domingo, 5 de janeiro de 2014

"Ei, estou aqui por engano"

Foi com o tempo, já adulto, que ele percebera mais claramente como ela lidava com a vida. Estava certo que ela não queria mais viver. De alguma forma, desde criança, ele não conseguira entender a razão de tanta infelicidade, mas não conseguia admitir tal hipótese. Quando a admitiu foi um misto de dor e alívio. Mas, isso só aconteceu mesmo um bom tempo depois, já adulto, afinal, por vezes, ela parecia ter um brilho nos olhos que demonstrava o contrário. Demonstrava que ela poderia sorrir e ser feliz com todos. Mas esse brilho nunca fora forte o suficiente para retirar-lhe a sombra tão pesada de uma maldita melancolia que lhe sugava todo o desejo e vontade de ser feliz. Uma melancolia que facilmente se transformava em raiva, em ódio; que rapidamente destruía qualquer laço que se formasse ao seu redor, por mais amoroso que fosse. Não, de fato, ela não queria mais viver. E lutou mesmo, decididamente, para morrer. Mas, nunca deu um fim rápido a todo este sofrimento. Optou por senti-lo até o final, como que punindo-se violentamente por uma culpa que não conseguia entender.

Acabou por viver muito. Com pouca qualidade, mas viveu. Rejeitava favores, menosprezava abraços, desdenhava carinhos e afastava a todos que queriam o seu bem. Esteve por aqui um bom tempo. Por engano, assim ela imaginava. Ele lhe cobrou amor, pois sabia que ela o tinha. Ele experimentara isso, tinha lembranças de quando era bem pequenino. Nunca desistira dessa busca. Já crescendo, amadurecendo, à noite, vez por outra, parecia se contorcer na cama em busca do seu colo, de um aconchego do qual se recordava e que lhe fazia muita falta. Sim, ele lhe cobrara amor durante toda a vida, toda a vida. Hoje ele sabe que, a seu modo, ela o amava. Mas, como ela poderia retribuir mais? Como? Há muito tempo ela já havia desistido. Ele mesmo, quando percebera isso deixou de lhe cobrar qualquer coisa, nem mesmo uma pitadinha de amor. Havia, finalmente, descoberto, de forma trágica, que isso era uma impossibilidade. Passou, então, a entendê-la e a sofrer por seu destino. Ela nunca conhecera o amor, como, então, poderia doá-lo a alguém?

Ele teve que sobreviver, não sem um custo é claro, mas teve algum sucesso nessa sobrevivência. E, de alguma forma, ela também encontrou algum sucesso ao ir embora. Afinal, ele só conseguia mesmo imaginar que realmente ela estava aqui "por engano". Nunca vira uma angústia tão inominável, nunca vira uma dor tão dilacerante. Os tormentos lhe tomaram conta de toda a vida, a ponto de a única definição sensata que ele conheceu para a palavra tormento foi: "mãe".

Que todo o seu tormento agora se transforme em luz. Que ela volte a ser criança, que volte a brincar, que volte a ser sapeca, que volte a correr com os pés no chão e na chuva, que ele descobrira ser o que ela mais gostava. Que possa ter uma segunda chance, e não mais sentir-se aqui "por engano". E que ele encontre, finalmente, o amor que sempre buscou, pois desde algum tempo atrás desacreditou, finalmente, que estava aqui, também, "por engano". Afinal de contas, há coisas a fazer! Há coisas pelo que esperar! Há pessoas a amar!

sábado, 4 de janeiro de 2014

17 dias

17 dias não chega a ser um período completo de férias, mas dá pra se sentir feliz, divertir-se, conhecer novas pessoas, farrear um pouco, enfim, dá pra dar uma boa relaxada. Mas, 17 dias também servem para rever toda uma vida, ficar dentro de um quarto com as janelas fechadas para nem notar se é dia ou noite, dá pra assistir 5 temporadas de uma série e mais 2 temporadas de outra. Dá pra comprar um monte de porcarias e levar tudo pra cama e dormir em meio a saquinhos e farelos. Bem, dá pra muita coisa. Dá pra fazer tudo isso e ainda curtir, mas dá pra fazer tudo isso e se sentir bem sozinho. Sozinho porque está distante daquela pessoa com quem já passou o maior tempo de sua própria vida; sozinho porque não sabe o que se passa na cabeça do filho que está prestes a se mudar e ir pra sua própria casa; sozinho porque você olha pra sua vida profissional e pensa no quanto poderia ter feito melhor; sozinho porque você abre sua agenda e descobre que todos os teus amigos estão bem ocupados com suas famílias e se divertindo; e sozinho porque de quem você esperava um abraço, que foi implorado, não veio até você quando mais precisava. Enfim, tudo isso pode ser bem desagradável.

Mas, é quando você olha para os lados e vê que não tem saída, não dá mais pra pedir socorro, não dá pra ligar pra analista, não dá pra ligar para os pais. E aí, o que fazer? Vai pular da janela? Hum... não! A opção é pelo sofrimento mesmo. Ele precisa ser enfrentado, cara a cara. A gente sabe, no íntimo, que pode aguentar mais um pouco. Então, vamos lá e mergulhamos no mais dolorido sofrimento. É a gente com a gente mesmo. Não tem mais ninguém por ali para pedir ajuda. Não tem SOS, não tem polícia, não tem bombeiro. É o momento do "SE VIRA!". Haja tempo pra tanto choro, pra tanto desespero, pra tanta confusão na cabeça. Cadê aquele colo que todo ser humano deveria ter numa hora dessas? Não tem! É o momento do "se vira" mesmo. Mas, os dias se passam, você começa a abrir a janela, começa a sair e ir buscar uma coisa melhor na padaria, começa até a notar que está fazendo um dia bonito. E a angústia, que parecia insuportável, vai se atenuando. No final, uma grande descoberta: Não estou tão sozinho assim. Ainda tenho a mim mesmo! Posso me reconstruir! Posso deixar de sofrer tanto pelos outros, afinal, sofrer por mim mesmo foi bem mais produtivo! Saio bem mais forte dessa. Foram 17 dias bem interessantes. Não vou esquecer jamais dessas férias!

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Renuncio ao impossível pelo possível

Tudo bem, dizem a todo instante por aí que "nada é impossível". Ok, é um excelente fator de motivação e, por vezes, é necessário mesmo pensarmos desta forma. Mas, em que pese a vida ser um enorme campo de batalha, não precisamos estar, em todos os momentos, provando a nós mesmos, ou aos outros, que somos fortes o suficiente. De onde vem esta necessidade de ser "forte" ou, pior, "invencível"? De onde vem esta ideia de tornar o "impossível" algo "possível"? Que desejos são estes que nos colocam em metas absolutamente desgastantes? Que vazio é este que só o "impossível" parece preencher? Que "ordem" é essa que seguimos sem contestar? Que fantasia ou idealização é essa que vemos à nossa frente?
 
Sei que é difícil chegar à esta conclusão, mas é realmente necessário insistir em renunciar ao "absoluto". Sei que é difícil porque vivemos uma época em que "desistir" de algo, ou de parte de algo, pode ser logo taxado de "fracasso", "covardia", "fraqueza", e por aí vai. Besteira! O fato é que a pressão que existe lá fora é imensa, afinal vivemos em uma sociedade fortemente competitiva onde o individualismo narcisista é o que dita a regra geral, cada vez mais. Como, então, desistir, renunciar ao "absoluto", ao "impossível", e aceitar o "possível" quando nos exigem que sejamos "perfeitos"?
 
Não é mesmo uma luta fácil pois toda a nossa estrutura de desejo é a de ir em busca do "impossível", aquilo que não nos é dado, ou foi negado. Mas, manter-se prisioneiro dessa busca do "impossível", leva ao fácil esquecimento de que o "possível" não é apenas o "possível", enquanto sinônimo de algo limitado, pequeno, inferior. O "possível" é algo mais! É aquilo que também satisfaz e atende ao nosso desejo. Já o "impossível", quase sempre, só nos mantém em uma obsessividade incontrolável e dolorosa, que faz sempre nos sentirmos pequenos e insatisfeitos.
 
Não precisamos desistir da vida, ou da batalha, mas não podemos nos transformar em conquistadores que só encontrarão a paz naquilo que não pode ser conquistado. Não é essa conquista do "impossível" que nos tornará melhores. Vamos nos neurotizar nesta busca? Virarmos prisioneiros de uma obsessão? Quando não aceitamos o "possível" abrimos uma enorme porta para o sofrimento neurótico. Mas, quando o aceitamos, a chance de um desenvolvimento emocional saudável é imensamente maior.
 
A vida pode ser bem mais leve do que afirmam por aí. Estamos numa batalha sim. Mas sabemos que esta batalha não é o que define nossa vida. Podemos fazer escolhas mais simples e adequadas. Por que eleger como meta aquilo que não vamos conquistar? E se conquistarmos, que significado isso terá? Grandes conquistas são muito interessantes pra mostrar que podemos nos superar. Mas, a vida não é sinônimo de "grandes conquistas". E onde ficam os prazeres dos pequenos detalhes, daquelas escolhas mais simples, e que, sim, no dia a dia, são o que nos mantém de pé, e felizes.
 
Sim, sou um fervoroso defensor da simplicidade, em todos os aspectos da vida, ela nos torna mais autênticos e sadios. Colocar-se metas "impossíveis" nos começos de ano é uma brincadeira que fazemos com nós mesmos. Só resta perceber mesmo, entretanto, que a felicidade vai estar nos pequenos detalhes, e estes não poderão passar despercebidos, como se tudo o que importasse fosse o "impossível".
 
As vezes temos que virar leões, mas sabemos sair deste papel quando ele não se torna mais necessário? Ou insistimos em ser super-heróis a todo instante? Eu não sou um super-herói, eu sou menor que a vida, mas dela faço parte, e cada grão que recebo, ou conquisto, pode me trazer muita felicidade, e paz. Não se trata de "acomodação", e sim de uma escolha pela felicidade e pela paz. Não quero deixar a vida passar despercebida. Não quero um cantinho na sala para os meus troféus. Quero o meu sorriso e quem amo sempre por perto. Esses são minhas maiores conquistas!
 
(José Henrique P. e Silva)

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

 
Parece que tem algo de libertador na dor... Quando ela eh muito intensa soa como um lembrete de que tudo pode acabar... De alguma forma!

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Onde se situa a diferença? (sexualidade e normalidade)

Lembro que tinha exatos 19 anos de idade quando estava, com uma namorada, almoçando na casa de uma pessoa muito querida dela. Era uma senhora de trinta e poucos anos (pois é, na época, pra mim, era uma senhora... mas hoje sei que mulheres nessa idade ainda são garotas!), psicóloga, muito religiosa e uma mãe de dois filhos bastante devota à regras de comportamento de todo tipo. Num determinado momento, durante o almoço, a questão da homossexualidade veio à tona. Salvo engano, foi algo que veio da televisão que estava ligada. E lembro que fiz um comentário bem desastroso, por sinal. Disse que, em minha opinião, as pessoas "tornavam-se" homens ou mulheres. Ora, o que eu entendia disso? Era apenas um comentário livre o suficiente de preconceitos, fruto da educação que eu recebera. Mas, o mal-estar se instalou rsrs. Saí dali com uma péssima reputação. Mas o almoço estava gostoso, e isso era o mais importante!

Muito tempo depois, já envolvido até a alma com a psicanálise, o tema da sexualidade passou a ser recorrente, afinal, são raríssimos os pacientes e analisandos que não trazem uma questão de fundo sexual. Mas, enfim, aproveitei essa lembrança só pra endossar aquela minha velha opinião de garoto (sim, embora eu me achasse um "homem" de 19 anos, era só um moleque ainda, rsrs). Ou seja, continuo acreditando que nós nos tornamos mesmo homens ou mulheres.

Vivemos, hoje, uma época de intensa "desorganização" no imaginário social a partir da fragilização das categorias "masculino" e "feminino", até então referências simbólicas sustentadas pelas diferenças anatômicas entre homens e mulheres (pênis e vagina, para sermos mais claros). Claro que toda esta "desorganização" se reflete diretamente no surgimento de novas configurações familiares.

Então, de onde vem a certeza de que estamos diante de um homem ou uma mulher? Ora, antes mesmo de nascermos, nossa sexualidade (menino ou menina) já é fruto de especulações a partir dos "desejos" de nossos pais. Depois, quando somos bebês, eles nos compram roupas azuis ou rosas. E tudo isso baseado em nossa anatomia (e no desejo deles).

Será, então, em meio aos desejos dos pais e em toda esta relação triangular entre a criança, o pai e a mãe, que a sexualidade se desenvolverá, algumas vezes, independentemente da anatomia, e seus referenciais biológicos. O que quero dizer é que a masculinidade e a feminilidade são "PONTOS DE CHEGADA" e não "pontos de partida". A anatomia não explica tudo em termos de sexualidade.

É evidente que a questão da sexualidade desperta todo tipo de moralismo. E desse debate eu estou fora! Mas, é de se perguntar, por exemplo, se apesar de toda esta "desorganização" não estamos vivendo uma nova ordem moralista repressiva através do "politicamente correto", carregado de uma pretensa "normalidade".

Ora, o fato é que é no interior desta ordem (e seja ela qual for) que o psicanalista se situa e atua, não dando conselhos, nem determinando o que é a moral, mas acompanhando as mudanças sociais e verificando como as pulsões libidinais do indivíduo acompanham as mudanças, e que tipo de sofrimento pode surgir de tudo isto. O dramático, entretanto, é que, quanto mais a sociedade é moralmente repressiva, mas a sexualidade vai sendo pervertida, afinal, é por onde ela tem que "sair".

Não foi em um contexto assim (o da moralidade repressiva da Era Vitoriana de fins do século XIX) que Freud deitou e rolou (metaforicamente é claro) com as suas mulheres histéricas? E mais, se antes a histeria surgia da repressão sexual, o que é que está surgindo (em termos de patologias) de uma pretensa liberdade sexual hoje em dia? Ufa! Tema complicado! Mas, não é pra discutir muito não, é só pra ajudar a pensar.

O Mito de Narciso

Um mito é sempre um relato polimorfo, ou seja, está sujeito a mudar de forma. Ele rompe com a linearidade tão típica do pensamento racional e lógico, pois sua estrutura, além de complexa, envolve o imaginário. Um mito também remete ao "excesso", à "desmedida", algo que, na psicanálise, está muito próximo da "loucura". Talvez, justamente por isso, a loucura só exija mesmo de nós uma "outra" leitura possível de um indivíduo que "extrapolou" a realidade. Nesse sentido, o mito te uma voz polifônica que rejeita qualquer possibilidade de uma única interpretação. Não à toa, cada época parece construir sua própria versão de um mito, sem preocupar-se tanto com sua coerência interna, supostamente fixa. É preciso lembrar que uma das funções do mito é a sustentação de uma estrutura social, e es nunca é rígida ou estática. A leitura variável do mito também corresponde às mudanças que essa estrutura social sofre ao longo dos tempos.
 
Em sua versão mais tradicional, Narciso nasce de Cefiso (Rio) e Liríope (Ninfa), e foi fruto de uma indesejada gravidez e de um parte apreensivo. E, no dia de seu nascimento, o adivinho Tirésias previu que ele teria vida longa desde que jamais contemplasse a si mesmo. Possuidor de uma beleza incomparável não cedia aos apelos e amores das mulheres. Eco, foi uma bela ninfa que não conformou-se com a rejeição, vagou e o desejou amargurada até a morte, deixando apenas um sussurro melancólico, um gemido. Nêmesis, para lhe impor um castigo o fez partir para a caça e, estando muito cansado deitou-se à margem do rio para beber água. Foi quando viu seu reflexo, e ali também definhou até sua morte, encantado por sua própria beleza. Não encontraram seu corpo, somente uma flor em seu lugar havia nascido. Entre Eco (que viveu em função de Narciso, sem ter um "si mesmo") e Narciso (fechado em "si mesmo") o encontro seria impossível.
 
Interessante lembrar que o termo "narcisismo", ou mesmo "Narciso", deriva da palavra grega narke ("entorpecido"), que simbolizava a vaidade e a insensibilidade, pois estamos falando de um "entorpecimento emocional", de uma não ligação com os outros. Há uma negatividade aí, um drama de nossa individualidade, no limite, um olhar em profundidade sobre si mesmo. Para algumas interpretações, ao voltar-se para si mesmo Narciso enxergou-se como mais que um simples mortal, e por isso apaixonou-se. O que parecia enxergar, então, era a "criação". De alguma forma, entretanto, as duas versões se aproximam em muito. Afinal, olhar para si e enxergar a "criação" é, de alguma forma, impossibilitar-se de relacionamento com os outros mortais.
 
Mas, o que é o narcisismo? Pode-se dizer que, segundo a psicanálise, é uma patologia auto-referencial. Está marcado pelo Solipsismo (do latim "solu, «só» + ipse, «mesmo» + ismo"), uma concepção filosófica segundo a qual, além de nós mesmos, só existem as nossas próprias experiências, de tal modo que tudo o que resta é o eu no seu estado presente. Fora do "eu" tudo o mais pode ser posto em dúvida. O "eu" é a única realidade. Ora, em si, o narcisismo não é um problema, mas se torna patológico quando impede o avanço em direção ao outro, ao objeto, e permanece em si mesmo. Nesse caso, a libido fico endo-psíquica. O narcisismo é o primeiro caminho em direção ao outro, à alteridade. Trata-se de um processo que, se interrompido, transformasse em patologia.

Lacan e o Estádio do Espelho

A postagem abaixo é uma síntese da comunicação feita por J. Lacan ao XVI Congresso Internacional de Psicanálise, em Zurique, a 17.06.1949, sob o título "O estádio do espelho como formador da função do Eu tal como nós é revelada na experiência psicanalítica".
 
Trata-se de um momento espetacular em que a criança reconhece sua imagem no espelho a partir de uma série de gestos em que experimenta, ludicamente, os movimentos de sua imagem refletida, e dos objetos que estão à sua volta. Ocorre a partir dos seis meses de idade, e é uma atividade libidinal que muito nos fala da estrutura ontológica do ser humano.
 
É um momento de IDENTIFICAÇÃO, matriz de todas as identificação secundárias posteriores, ou seja, o sujeito assume uma imagem (imago) e o EU se precipita nesta fase de ainda impotência motora e dependência, antes mesmo de afirmar-se diante do outro e antes que a linguagem lhe dê a função de sujeito. Trata-se de um "Eu-Ideal". Diante do espelho, portanto, a criança vê a forma do seu corpo (uma "miragem" do seu poder) como Gestalt, numa exterioridade. O que vê, entretanto, tem forte efeito constituinte, afinal, já está mais que comprovado que uma Gestalt tem efeitos normativos sobre o organismo. Estamos em um momento de pura dialética entre o organismo e sua própria realidade. É nesta relação que entra a função da imago. Assim,
O estádio do espelho é um drama cujo impulso interno se precipita da insuficiência à antecipação - e que, para o sujeito, apanhado na armadilha da identificação espacial, maquina os fantasmas que se sucedem, de uma imagem retalhada do corpo a uma forma que chamaremos ortopédica da sua totalidade - e à armadura enfim assumida de uma identidade alienante, que vai marcar com sua estrutura rígida todo o desenvolvimento mental. 
Mais à frente, quando do momento de término do estádio do espelho e passagem do "eu especular" para o "eu social", a armadura fortificada do eu se verá diante de situações socialmente elaboradas e será sempre mediado pelo desejo do outro (um "intermediário cultural"), tornando, então, perigoso, qualquer levantamento de instintos. Dono de uma liberdade que se afirma como autêntica entre os muros de uma prisão o eu verá a loucura (neuroses e psicoses) nascer por entre esses muros, sempre nos falando de paixões que foram amortizadas.
Nesse ponto de junção da natureza à cultura que a antropologia dos nossos dias perscruta obstinadamente, a psicanálise somente é que reconhece esse nó de servidão imaginária que o amor vem sempre redesfazer ou retalhar.

sábado, 21 de dezembro de 2013

Presente

Outro dia me vi diante de uma situação bem interessante. Tinha que comprar um presente para um amigo que há muito não o via. Agora, passados muitos e muitos anos ele era um cara de sucesso e isso podia ser bem medido pelos bens que possuía. Situação complicada! De onde vou tirar uma grana para comprar um baita presente para ele, afinal, o que deve lhe faltar? Depois de ficar me perturbando por um bom tempo tive uma ideia. Eu tinha que ter alguma boa ideia, pois não ia ter a grana mesmo, rsrs. Lembrei que ele, nos tempos de adolescência, quando ainda era um "duro" como eu adorava meus gibis do "Tex" (uma Ranger do oeste americano, mais precisamente do Texas). Ele não comprava e ficava me importunando para emprestar os meus. Mas eu sabia que ele gostava e acabava emprestando. O chato é que me devolvia amassado e as vezes até rasgado. Mas ele lia e gostava muito. Pois é, resolvi procurar bastante e comprei alguns exemplares. Devo ter gasto uns R$ 60,00 em 5 exemplares. No final das contas, para um cara que tem tudo hoje em dia, e pode perder qualquer coisa que não vai lhe fazer falta, achei que o que ele não podia perder mesmo era uma boa lembrança do passado. Deu tudo certo: ele ficou bem feliz e eu economizei bastante.

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

"Tormentos da alma" e a contratransferência do analista

Um tempinho atrás, num desses canais fechados de filmes clássicos, descobri "Tormentos da Alma" (Pressure Point, EUA, 1962, com Sidney Poitier). Em sua face mais aparente o filme trata do racismo, afinal está centrado nos embates entre um psiquiatra negro e seu paciente branco de ideologia nazista. Numa situação assim o racismo muito dificilmente deixaria de se destacar. Mas, há bem mais que isso.
 
Chefe de um setor psiquiátrico em um hospital nosso personagem central se vê diante da iminente desistência de um de seus médicos no tratamento de um paciente considerado "difícil". É nesse momento que ele passa a relembrar-lhe uma experiência pessoal de 20 anos atrás. Nessa época, trabalhava na psiquiatria de uma penitenciária federal e tinha um paciente, branco, de 29 anos, cumprindo pena por rebelião em prol da derrubada do governo Roosevelt.
 
De imediato, a partir destas lembranças, o que vemos é uma forte contratransferência do psiquiatra que passa a nutrir forte intolerância com seu paciente e suas ideias nazistas. O diagnóstico inicial? um psicopata (paranóico, agressivo e antissocial), para quem recomendara isolamento, principalmente para não espalhar suas ideias na cadeia. No isolamento, entretanto, o paciente continua com suas angústias: insônia, pesadelos, sentimentos paranóicos, "ausências", desmaios, alucinações (se vê prestes a cair pelo ralo de uma pia em direção a um possível abismo).
 
Sempre agressivo, e tentando desmoralizar o psiquiatra por ser negro, tudo o que parece buscar é um remédio para que possa dormir. Mas, o psiquiatra passa a investigar seus sintomas e começa a lhe perguntar sobre as "ausências", seguidas de enjôo e dificuldade de respiração. Em determinado momento o paciente lembra que só chegou a desmaiar uma vez, ainda quando criança. Nesse exato momento, ele tem uma crise e desmaia. Pede ajuda ao médico, que insiste em que precisa "conhecê-lo melhor para poder ajudar".
 
As consultas se sucedem e, no processo de investigação, um quadro mais claro vai surgindo. Ele era filho único e seu nascimento só acelerou o fracasso do casamento dos pais. Um pai irritável e descontente, com forte ressentimento vingativo contra o filho. A mãe, fraca, deprimida, cada vez mais isolada na cama. Assistindo a tudo isso, ele, criança, só prometia a si mesmo não chorar. Acabou isolando-se muito na infância, e sempre revelava-se envergonhado em relação ao pai. Aqui, um destaque para o filme. São impressionantes as cenas de revivência desses momentos da infância que invadem o consultório. É a imagem completa do que chamo de "o retorno do infantil", trazido em flashbacks pelo filme.
 
Apesar de cuidar da mãe, não sentia pena. A via como uma "fraca" e passou sempre a ter raiva dos mais fracos. Sempre admirou aqueles que competem e superam barreiras, tornando-se mais fortes. Era como desejava ser. Em seu desenvolvimento isolado acaba por criar um amigo imaginário para buscar as satisfações negadas pela realidade. E a função deste amigo imaginário foi a de lhe permitir exercer sua pequena tirania, sua fantasia de indestrutibilidade. Gradativamente, porém, à medida que entra na escola, e vai tendo contatos sociais mais amplos, vai abandonando este amigo imaginário em troca de amigos reais, sempre tendo como elo de ligação os atos arriscados e indisciplinados.
 
A mãe "fraca" e deprimida, entretanto, lhe alimentava uma forte relação libidinal. Dizia que ele era o "único", o mais "forte", palavras que lhe enchiam de um desejo de vingança contra o pai, e raiva da fraqueza da própria mãe. Imaginava-se um príncipe oriental, poderoso, que punia implacavelmente, inclusive sua própria mãe. Era assim que se iniciava o padrão de seu comportamento sexual, satisfazendo seus desejos sempre com muita brutalidade e impondo aos outros os seus caprichos.
 
Certa vez, em meio a uma crise econômica, vendendo frutas na rua conheceu uma simpática e gentil moça. Parecia ter encontrado a chance de um relacionamento feliz, mas o pai dela, um judeu, o recusa. É aí que tem início a transferência de seu ódio para os judeus e aproximação com nazistas. O que o filme vai construindo, então, é uma clara associação entre o nazismo e o ressentimento individual com todas as suas perdas e incapacidade de preenchê-las com a sociabilidade. Há um forte didatismo do filme, nesse sentido, ao mostrar a lógica e o nascimento de movimentos como o nazismo, definidos como "movimentos de ódio" por parte daqueles que são rejeitados. Inegável aqui a leitura dominante do perfil psicológico de Hitler, sempre visto como um "rejeitado" e que se alimentara de ódio ao longo de toda a vida.
 
De imediato, nos grupos nazistas, seu ódio encontrava acolhida e era canalizado para alvos comuns, reais, e poderia, enfim, sentir-se forte. Com as reuniões de seu grupo nazista, saia do isolamento e ampliava sua força e poder. Aquela criança que detestava ver o sangue, tão presente no açougue do pai, agora era um adulta que clamava por esse mesmo sangue.
 
Voltando ao consultório, o psiquiatra insiste que continue falando de suas "ausências". Diz sentir medo, diz sentir que vai morrer. Ele diz que é seu pai que está caindo no ralo da pia, mas antes era ele. Como explicar? Misturam-se o desejo pela morte do pai e a punição que impõe a si mesmo por este desejo? Era, ao mesmo tempo, assassino e vítima, e esta fantasia o perseguia cruelmente. O reconhecimento aberto deste desejo fez com que os ataques de ausência desaparecessem. Parecia ter resgatado sua possibilidade de voltar a dormir melhor. Mas, uma outra questão toma conta do psiquiatra. Ele não quer liberá-lo para a condicional por acreditar que, embora curado do sintoma da insônia e dos pesadelos, sua personalidade continua a mesma, sem que tenha ocorrido nenhum tipo de mudança.
 
Mas, essa posição do psiquiatra contraria a dos demais médicos do hospital e o paciente acaba conseguindo a liberação. A questão para o psiquiatra era: mesmo com bom comportamento ele ainda era um homem perigoso, por suas ideias, sua obsessão. Nesse momento, num forte indício de contratransferência, o psiquiatra parece estar diante do próprio Hitler, e imagina poder detê-lo antes que cometa maiores males à sociedade. Para o psiquiatra, a rebeldia do paciente contra a autoridade refletia seu ódio pelo pai, e sua raiva contra os mais fracos (a raiva contra a mãe). Continuava sentindo-se fraco e impotente mas buscaria, sempre, compensar isto com atos perversos, intolerantes e agressivos. Enfim liberto, 10 anos depois seria enforcado por espancar um estranho até a morte.
 
Ao final do filme, já em sua época atual, o médico relembra, numa autocrítica, que o tratamento e a disposição profissional para a "ajuda" devem ser maiores que qualquer ressentimento ou preconceito. É com essa história que ele convencerá o membro de sua equipe a continuar o tratamento com um paciente negro, também agressivo. Estávamos nos anos 60 e a situação invertera-se. Eram os negros que agora se mobilizavam nas ruas por direitos, num momento de acirramento das questões raciais nos EUA.
 
Claro que o filme parece uma coleção de clichês psicanalíticos, mas, ainda assim é um bom filme, principalmente pela ousadia em associar o conflito psíquico individual às pressões do ambiente social. E, se a contratransferência do psiquiatra (sua raiva do paciente) revelava uma clara influência do social em seu psiquismo (a luta contra a ideologia nazista), também nos mostra o quanto, como profissionais, também estamos vulneráveis.
 
Com relação a este aspecto precisamente lembro a posição de Lacan acerca da contratransferência, como um conjunto de obstáculos imaginários que dificultam ao analista ocupar, de fato, seu lugar de "atrator". Mais tarde, Nasio iria situar a contratransferência como algo, então, que se define não no interior da relação do psicanalista com o seu paciente, mas no interior da relação do psicanalista com esse lugar que deve ocupar. O seu "desejo" pelo tratamento, como o próprio personagem do filme ressalta, deveria ser maior que o preconceito (obstáculo).

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Fixação

A "Fixação" é um importante conceito em psicanálise e nos ajuda a entender muitas das razões que estão por trás de um sofrimento. Quando, por exemplo, na fase adulta do indivíduo, um determinado evento traumático ocorre, ele vai nos remeter a um processo de regressão e à fixação (ou mais fixações). A fixação seria, portanto, aquele lugar do desenvolvimento individual onde se instalou um determinado ponto que, em boa parte, nos "define", e que resulta do tripé formação hereditária / formação constitucional / evento traumático precoce. Abaixo, uma tentativa muito geral de apresentar aas principais fases do desenvolvimento individual. Não custa lembrar que o "encaixe" das fases não é tão perfeito, pois o ser humano escapa a qualquer teoria.

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          Oral               Anal              Anal-Sádico            Uretal              Fálico           Genital

Auto-erotismo         Narcisismo 1°                                Narcisismo 2°                Rel. Obj.

           POSIÇÃO ESQUIZO-PARANÓIDE                        POSIÇÃO DEPRESSIVA

                              PSICOSES                                     NEUR. OBS-COMP.             FOBIA                    HISTERIA
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Sintoma

 
Nos casos de sofrimento psíquico o sintoma é somente mesmo o seu "cartão de visita". Ele não explica a dor, mas desvia muito bem o foco de atenção que poderia ser direcionado a ela pelo próprio indivíduo. E é muito fácil que esse desvio aconteça, afinal, o complicado mesmo não é lidar diretamente com o sintoma, mas com suas causalidades psíquicas. Um sintoma, no corpo (tipo uma dor), no comportamento (tipo uma compulsão), no nosso pensamento (tipo uma obsessão), diz que estamos sofrendo, mas não diz muito sobre a "lógica" (causas) que existe por trás dele mesmo. É essa "lógica" que precisa ser buscada e que geralmente está lá, nas "leis de trânsito" do nosso inconsciente. Em boa parte, esse é o trabalho da análise.

domingo, 15 de dezembro de 2013

A "errância psicótica"

Durante algum tempo lidei muito de perto com diversas situações psicóticas (álcool e drogas) e um dos pontos em comum mais evidentes era a chamada "errância psicótica". Sempre vi este comportamento como o de alguém que está "trancado pelo lado de fora", ou seja, apesar de estar do lado de fora e possuir a liberdade ele não tem nenhuma "direção". Seu caminhar seria como um daqueles jogos de "liga pontos" que, entretanto, não forma imagem alguma. Não se trata de uma experimentação da liberdade (como aquela vontade de simplesmente sair por aí sem rumo), pois não há liberdade a ser experimentada por mais que ele tenha o mundo inteiro para andar. Ele está na situação de vítima de um delírio que não lhe permite ancorar em porto algum. Um razoável exemplo desta situação está no filme "Na Natureza Selvagem" (Into the Wild), cuja busca do personagem por chegar ao Alasca, e alcançar sua maior integração com a natureza, era só um motivo para não chegar a lugar algum. É um belo filme, e a trilha sonora de Eddie Vedder é um show a parte.

sábado, 14 de dezembro de 2013

Sobre "desistir"

 
Sei que é complicado falar em "desistir". Parece ser uma violência, pois quem quer "parar"? Mas o que me incomoda é que esse conceito de "não desistir" as vezes está carregado de algo muito pesado: a ideia de um possível "fracasso", que parece não queremos encarar. Ora, nem sempre é assim e o que adoece é o "não desistir". Ficar "fixado" em algo, de forma insistente, pode somente nos enfraquecer, nos sugar, nos atormentar, nos paralisar e deixar tudo mais insuportável. Nesse caso, "desistir" nos torna mais livres. Tudo bem... ninguém disse que é fácil! Mas, saber parar, reconhecer limites... tudo isto está carregado de dignidade! Não há verdade absoluta nesse caso. Tudo bem que andamos sempre pra frente, mas isso implica em saber desviar de obstáculos muito fortes e encontrar atalhos e outros caminhos também. E cá pra nós, a dor causada por uma "desistência" não é pior que a dor causada por uma "insistência" ou "permanência". É só pra se pensar!!!

Sobre a Interpretação na análise

Quando alguém inicia um processo de análise é claro que existem muitas fantasias acerca de tudo o que pode acontecer. Uma dessas fantasias é a de que o discurso do analista, quando ele faz a sua "interpretação" da fala do analisando, é algo muito poderoso e que traz uma "explicação" quase definitiva, ou um "conselho" superior. Besteira! E o pior é quando o analista começa a compartilhar dessa fantasia e acaba se colocando em uma posição de "poder". O que ocorre, pela experiência, é um processo de "construção" com o analisando permanentemente (não necessariamente "interpretação"). A interpretação, quando ocorre, se dá em raros momentos, e sempre de forma muito precisa e localizada. Afinal, tenho que ter o cuidado de só interpretar aquilo que o analisando tem condições de "metabolizar", do contrário... efeito zero, ou até contrário.

No caso de um sonho, por exemplo. É fundamental que ocorra um deciframento. Mas não é o analista que faz isto sozinho. Pelo contrário, ele pode até atrapalhar com sua ansiedade e teorização. O que ocorre, então? Um tremendo processo de "construção", onde o analista auxilia o analisando em seu discurso. É no contexto desse trabalho de "construção" que se forma o "vínculo" e ocorre a "transferência" das questões do analisando para o analista. Sair dessa posição de um "saber poderoso" é vital para um bom processo de análise.

Sobre o Ego

 
Gosto de pensar no nosso "ego" como um urso tentando se equilibrar num monociclo. Isso porque, como Freud destacou, o ego assume a função de um "administrador" de relações com o inconsciente, com o superego e com a realidade externa. Claro, é sempre um equilíbrio dinâmico, nunca estático, nem "zen". Ou seja, coitados mesmo de nós. Haja equilíbrio nesta vida!!!

Freud - Aspectos da vida e obra

" Que progresso estamos fazendo. Na Idade Média, eles me teriam atirado na fogueira; hoje, eles se contentam em queimar meus livros..." (Freud).

Esta frase foi dita por Freud, em 1933, assim que soube que os nazistas, na Alemanha, tinham atirados seus livros à fogueira, e que o oficial alemão teria gritado: "contra a glorificação da vida instintiva que destrói a alma". O episódio é interessante pois faz lembrar que Hitler e Freud viveram uma mesma época em Viena, no início do século. Num momento em que Freud estava no seu maior vigor intelectual e Hitler conhecia um dos piores momentos de sua vida, chegando a dormir na rua por falta de recursos. Anos depois, a situação se inverteria. Hitler, caminhando para seu avanço nazista e destrutivo, prestes a anexar a Áustria, e Freud conhecendo a decadência física proporcionada por seu câncer e a própria velhice, prestes a se refugiar na Inglaterra. Mas, ainda assim, extremamente lúcido. No final, a história deu a cada um o seu devido tamanho e lugar. A I Guerra Mundial e a ascensão do Nazismo foram episódios que em muito influenciaram Freud a desenvolver o seu conceito de "pulsão de morte" e a expandir a psicanálise para a compreensão do "social" e do "político", com o seu conceito de "mal-estar", como algo inerente à natureza humana, seja no indivíduo, seja na sociedade.
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"Não aguento ficar sendo olhado... durante oito horas por dia (ou mais)..." (Freud)

Freud disse essa frase referindo-se à sua posição, sentado em sua poltrona à cabeceira do divã, fora do alcance visual de seus pacientes. Foi assim que se comportou durante bom tempo dos mais de 50 anos em que recebeu seus pacientes na Bergasse 19, sua casa em Viena, onde utilizava os fundos da casa. Talvez seja só nisso mesmo que se resuma a "importância" do divã que virou símbolo máximo (e caricatura) da psicanálise. Mas, foi aí neste lugar que Freud cada vez mais recolheu-se a partir do início de 1938, quando ao mesmo tempo que se submetia a mais, e dolorosas, cirurgias de seu câncer na mandíbula, Hitler colocava em prática seu desejo de anexação (Anschluss) da Áustria convocando o Chanceler desta para dizer-lhe que estava disposto a reparar este ato de "traição" histórica da Áustria. Foi nesta conversa com o Chanceler Schuscnigg que Hitler disse: "eu tenho uma missão histórica e vou cumprir esta missão, porque a providência me destinou a isso. Acredito inteiramente nessa missão, ela é minha vida". Seus delírios já haviam chegado a um ponto incontrolável.
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"O objetivo de toda vida... é a morte..." (Freud)

Freud sempre foi visto como um "advogado de Eros", um legítimo defensor da pulsão de vida, daquilo que nos impulsiona à satisfação do desejo, do prazer. Mas, um de seus conceitos mais intrigantes (embora pouco aprofundado pelo próprio Freud) foi o de "pulsão de morte". Aquela força, aquela ânsia, de se voltar a um estado de satisfação primordial, praticamente em um estado de decomposição. Ele dizia que, afinal de contas todos íamos mesmo morrer. E morrer, talvez significasse esse retorno a um estado de prazer há muito perdido pelo homem. É este conceito que está presente em muitas patologias psíquicas. Quantas vezes não desejamos a "morte", simbolizada naquele sonho impossível, naquela volta a uma situação onde experimentamos felicidade. Tudo isto pode simplesmente nos paralisar, nos aprisionar. A pulsão de vida, se nos leva a caminhar, a pulsão de morte nos faz querer ficar, como que inertes... depressivamente inertes!
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"Martha é minha...a moça doce de que todos falam com admiração, que apesar de toda minha resistência cativou meu coração já em nosso primeiro encontro, a moça que eu temia cortejar e que se aproximou de mim com magnânima confiança, que fortaleceu minha fé e minhas energias para trabalhar, quando eu mais precisava delas..." (Freud - carta à Martha)

Apesar de sua obstinada disposição investigativa Freud era também um homem romântico. Idealizou a imagem de sua futura esposa e seus laços com os amigos eram fortemente afetivos, complexos, intensos e repletos de ciúmes. Um homem como vários de nós. E isso nada tem a ver com ser "perfeito".
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"Crio meus filhos... como filhos" (Freud)

Muitos fantasiam a ideia de que um psicólogo ou um psicanalista é sempre feliz e está bem "resolvido" ou, pelo menos, que isso fosse uma "obrigação" para ele, já que vai "cuidar" dos outros. Hum... complicado isso! Freud, certa vez, disse que criava seus filhos, como "filhos". O que isto significa? Talvez o mesmo que dizer que um cardiologista também pode... vir a morrer de uma deficiência no coração. Outra vez, respondendo à uma mãe que lhe questionara sobre métodos eficazes para a educação do filho, ele respondera que tudo o que ela fizesse poderia vir a dar errado. Ora, mulheres, amigos, filhos, não são pacientes, não estão sob análise. Como abrir mão disso? É na relação mais convencional com os que estão ao nosso lado que nos mostramos como realmente somos, passíveis de erros, de avaliações equivocadas, mas é onde mostramos também nossa paixão, nossos desejos... tudo aquilo que nos torna humanos e naturalmente imperfeitos. Tudo, ao final, é só uma fantasia mesmo, pois da mesma forma que precisamos ser implacáveis contra os erros em nossa profissão, necessitamos ter um espaço para errar, junto aos que estimamos. É isso que nos faz crescer.


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"Havia uma atmosfera de pânico em Viena que agora acalmou-se um pouquinho. Nós não nos juntamos ao pânico. É muito cedo, ainda não se podem prever as consequências de tudo que aconteceu. Por enquanto tudo continua como estava antes..." (Anna Freud - carta a Ernst Jones).

Anna, filha de Freud, escreveu esta carta a seu amigo Jones, já em meio a uma possível mudança para Londres, em exílio. A carta foi escrita pouco depois de 20/02/38 quando de um fortíssimo discurso de ódio contra a Áustria, proferido por Hitler no Parlamento alemão. Era inevitável e próxima a anexação. Na verdade, Freud nunca cogitara partir, mesmo nas fortes crises anteriores. Ele amava Viena, embora sofresse por suas ideias e por ser judeu.

Quem disse que um instante de amor não salva uma vida?

Vindos de histórias de vida amargas, Dodge e Penny conheceram-se a poucos dias, experimentam momentos tensos e divertidos e agora, instantes antes do fim do mundo, se encontram. Se abraçam, deitam lado a lado, com as mãos dadas e olhares voltados um para o outro. Enquanto aguardam o momento final travam o seguinte diálogo (do filme "Procura-se um amigo para o fim do mundo").
 
- Eu não quero dormir, tudo bem? Não me deixe dormir, prometa, diz Penny.
- Eu prometo. E seus pais?
- Eles são românticos e entenderão. Além disso eles têm um ao outro. Eu só quero ficar com você.
- E eu com você.
- Eu não poderia viver sem você. Não importa por quanto tempo. O que fazemos agora?
- Só quero ficar deitado com você. Só quero conversar com você.
- Sobre o que quer conversar?
- Onde você cresceu?
 
(ela conta um pouco de sua história, e enquanto o barulho de explosões na cidade começa a acontecer ele continua a lhe acariciar os cabelos e  lhe fazer perguntas sobre sua vida, sem tirar os olhos dela)
 
- Queria ter conhecido você há muito tempo, quando éramos crianças, diz Penny.
- Não poderia acontecer de outro jeito. Tinha que ser agora.- Mas não temos tempo suficiente
- Nunca teríamos tido
- Estou com medo
- Eu estou loucamente apaixonado por você Penny. Você é a minha coisa preferida em todo o mundo
- Achei que, de alguma forma, salvaríamos um ao outro
- Nós salvamos Penny. Estou muito feliz por ter conhecido você.

  (ela chora... e sorri)
 
Quem disse, então, que alguns instantes de pleno amor não são suficientes para uma vida inteira ter valido a pena? São estes momentos que adquirem uma capacidade de ordenação de tudo o que aconteceu em nossa vida, nos oferecendo um sentido e nos trazendo uma serenidade nunca conquistada. Não acham? Não é isso que, no fundo, buscamos?

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

A relação entre psicanálise e literatura

A literatura sempre me foi uma grande paixão. Sou um obstinado pela leitura dos clássicos e nutri a crença de que morrer sem lê-los seria desastroso. Dentre os clássicos me apeguei fortemente àqueles que exploram intensamente a subjetividade de seus personagens, alguns até fortemente melancólicos e angustiados. Esses têm algo a  dizer sobre nós e o que nos cerca. Tudo bem, depois percebi que isso só falava de mim mesmo e de minhas buscas e faltas, e não podia ser de outra forma pois aquilo que nos toca na arte é aquilo que permite e facilita nossa "identificação", ou seja, aquele processo que nos permite reconhecer algo de idêntico, que nos permite assimilar esse algo do outro que acaba por nos transformar e constituir, afinal, não é assim que construímos nossa personalidade, com processos psicológicos de identificação?
 
Mas, não é sobre melancolia, nem sobre angústia, que quero conversar um pouco, e sim sobre a relação entre a Literatura e a Psicanálise. Cada vez mais me empenho em estreitar essa relação, sempre enxergando na literatura um amplo campo de explanação da subjetividade humana, algo que interessa, portanto, diretamente à psicanálise. Ou seja, já ficou muito atrás o tempo em que a literatura me era só um passatempo. Hoje ela me municia profissionalmente. Isso mesmo. Se antes buscava a subjetividade do texto literário para me distrair e me conhecer, hoje busco, também, para aperfeiçoar meu uso da teoria psicanalítica. Mudou alguma coisa, mas não mudou, entretanto, o fato de a literatura continuar soberana em me fornecer elementos de conhecimento.

O que me motivou a pensar novamente neste assunto foi a leitura de um curto texto de Rafael A. Villari*, publicado em 2000. No texto, ele nos lembra que Freud já havia inaugurado um amplo diálogo entre a psicanálise e a literatura, identificando possibilidades. Em uma delas dizia que havia, por exemplo, a tentação de se “reconstruir” o autor a partir de deduções da própria obra. Claro que isso poderia resultar em reducionismos aberrantes, bem típicos do psicobiografismo que tenta colocar o autor, e a própria obra, no divã. Outra possibilidade apontada por Freud seria ver no texto literário algo do “real”, contribuindo, então, com a própria teoria psicanalítica. É em cima dessas duas visões que Villari vai nos falar no "possível" e no "impossível" desta relação entre psicanálise e literatura.

Teríamos, portanto, duas vertentes na relação entre a psicanálise e a literatura. A que busca acrescentar sentidos ao texto e, em consequência, compreender o autor a partir da própria interpretação psicanalítica e, a que busca no texto contribuições à própria psicanálise. Ou seja, numa o texto é analisado, noutra ele serve de instrumento.

Para Villari, então, o “impossível” nesta relação seria justamente tentar-se utilizar a teoria psicanalítica como ferramenta para a interpretação da obra e do autor como que buscando desvendar “sentidos ocultos” e “enigmas”. Algo semelhante à atuação do analista sobre o relato dos seus analisandos. Esta é a “textanálise”. Como saber, ali no texto, o que era o reprimido do inconsciente e o que era só o manifesto do consciente? O sujeito não estava ali! Onde estava o sujeito do enunciado, o autor? Com o tempo, então, abandonou-se a tentativa de buscar o inconsciente no texto e começou-se a falar em “proto-texto”. Seria o rascunho do texto onde se poderia enxergar o “movimento” da escrita. Ali, se pensou poder encontrar algumas das formações do inconsciente, como atos falho, sonhos, chistes etc. Ou seja, insistia-se em encontrar o sujeito, só que agora nos intervalos, nas dúvidas e nos erros de escrita.

Mas, o texto só diz algo quando é lido, correto? Foi a partir daí, portanto, que se começou a buscar o “leitor”. Ele é quem seria portador, então, do inconsciente do texto, do desejo do escritor. O texto não diria nada! Saímos então do patamar da escrita para o da “leitura”. Seria, então, através da leitura que o desejo “do” escritor, e não “de um” escritor, seria transmitido. O desejo “de um” escritor nos fala de um desejo particular. É o desejo “do” escritor, por outro lado, que nos desperta o desejo de escrever. Mas não como o escritor, ou sobre o escritor. O que desejamos é o desejo que o escritor teve de escrever. Com isso, desejamos aquilo que o escritor desejou quando pensou no leitor: ser amado pelo seu texto.

Mas, vamos pensar um pouco mais sobre o “proto-texto” (o trabalho inconsciente da escritura). Essa postura implica um sujeito portador de um saber apriori (teoria psicanalítica) que ao percorrer o texto o desvenda através do “vista psicanalítico do texto literário”, como nos dia Villari.

O que seria esse vista psicanalítico do texto literário? Não pode, evidentemente, como na clínica, ser uma prática, pois não dá para se pensar em transferência a partir de um texto. O que se usa da psicanálise, então, não é sua prática clínica, mas somente sua teoria, com todos os seus limites. É por isso que Villari propõe o que seria o “possível” numa relação entre psicanálise e literatura: utilizar o texto para o interesse da teoria psicanalítica, já que o texto resiste à qualquer tentativa de interpretação.

Não é o texto, portanto, que vai ser questionado pela psicanálise, mas esta, a partir da literatura. A psicanálise, ao invés de colocar-se como um saber apriori, coloca-se, diante do texto, como um sujeito que não sabe. A literatura, portanto, pode nos ajudar a dizer o que não conseguimos como psicanalistas. Com o texto literário, há uma boa chance do real nos alcançar pelo simbólico. Diante do texto literário, portanto, só temos, enquanto psicanalistas, que resistir às suas tentações e encantos e fazê-lo falar, nos motivarmos à pesquisa. A literatura é sim uma forma privilegiada de acesso ao conhecimento psicanalítico, mas desde que coloquemos o saber com o texto e a ignorância conosco. São as palavras do texto que poderão explicar muito do que há de silêncio em mim mesmo, como disse Freud a Fliess em uma carta.

Seria esta, segundo Villari, a atitude de investigação propriamente freudiana: partindo-se da ideia de uma teoria psicanalítica incompleta, buscamos reconhecer no texto literário aquilo que nos leva à pesquisa e ao conhecimento, ou seja, encontrando nos grandes autores algo do conhecimento da alma humana.

Isso me leva àquele parágrafo inicial quando disse que sempre o que me motivou no texto literário era a subjetividade das personagens, por vezes levada aos limites da loucura. Com isso, só buscava mesmo me conhecer um pouco mais. É este comportamento que, hoje como psicanalista, recupero, para dotar-me de um melhor saber acerca da condição humana.



* VILLARI, Rafael Andrés. Relações possíveis e impossíveis entre a psicanálise e a literatura. Psicol. cienc. prof. [online]. 2000, vol.20, n.2 [cited  2013-12-13], pp. 2-7 . Available from: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932000000200002 &lng=en&nrm=iso>. ISSN 1414-9893.  http://dx.doi.org/10.1590/S1414-98932000000200002.

É interessante como podemos ser corajosos, heroicos e aceitar doar, mesmo com muita dor, a nossa própria vida por um amor. Mas, por outro lado, também podemos negar, resistir fortemente a aceitação da perda daquela(e) a quem amamos, como se nossa própria vida tivesse menor significado que a dela(e). Ou seja, enfrentamos com tranquilidade o desconhecido da morte por quem amamos, mas não enfrentamos a presença esmagadora da realidade da perda de quem amamos. Talvez pelo simples fato de que, a partir deste momento estaremos morrendo um pouco a cada dia e, "morrer em vida", é bem pior que a simples morte.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013


- Ando muito, muito, mas muito ansioso mesmo!

- Pelo que?

- Por começar a acordar logo ao seu lado!!!

A Hipocrisia na defesa de uma maior ação do estado na sociedade

Pensando nos conceitos de "esquerda" e "direita" C. Calligaris, em sua coluna de hoje (12.12.13) na Folha, aponta para a superficialidade de tais conceitos. Na ideia de uma maior intervenção estatal na economia, por exemplo, diz que isso poderia facilmente mobilizar seu "lado" esquerdista, mas como não pensar, imediatamente, em corrupção e burocracias ineficientes? Diz pertencer a uma geração de baby boomers cujos sonhos com justiça e dignidade nunca significaram ter que confiar em Estados, governos, entidades coletivas, partidos e opiniões dominantes. Mas, reconhece que aceitamos facilmente a tutela moral de Estados e governos, como se fosse normal retribuir assim os benefícios da social-democracia. Então, ser libertário, especula, é resistir a esta tutela moral do estado. Mas, hoje, segundo Calligaris, até a direita adora tutelar o cidadão, visto como vulneráveis e incapazes. A esquerda faz o mesmo, só que com o agravante, histórico, mas hipócrita, por ser insustentável, de declarar sempre querer o bem de todos, até dos que ela persegue. Ele cita o exemplo de François Hollande, presidente da França, que visita hoje o Brasil. Hollande apresentou uma proposta de lei pela qual é preciso abolir a prostituição e, penalizar os clientes das prostitutas, com multas e prisão. Calligaris, então, sugere que Dilma poderia lembra-lo que somos menos hipócritas, pois sabemos que o verdadeiro problema que o governo francês quer resolver não é a prostituição, mas a imigração de mulheres, que tentam ser livres trabalhadoras do sexo e que, em geral, não são vítimas nem de traficantes, nem de cafetões, nem de seus clientes. Por que não deixar em paz as prostitutas? De que tutela estatal estamos realmente falando? De imediato, penso: Será que só podemos ser cidadãos se entregarmos nosso destino aos Estados e Governos? É um bom tema!

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

O pecado de falar sobre o desejo!

Tenho um grande débito para com a psicanálise. Depois que a descobri foi como se iniciasse um caminho de retorno a mim mesmo e foi isso que, profissionalmente, me possibilitou ir ao encontro de outras pessoas na tentativa de oferecer algum suporte para esse mesmo encontro. Não desmereço minha história, mas não tenho receio em dizer que devo à clínica psicanalítica o que sou hoje. E quando falo "clínica" falo dos meus atendimentos, de minha análise pessoal, de minha supervisão e de minha formação teórica que é permanente, interminável. Claro que têm dias que saio da clínica mais pensativo do que, de fato, gostaria. Intrigado, as vezes sem encontrar uma ideia que acalme o pensamento, as vezes até um pouco irritado. Sim, é normal, pois se temos que suportar as dores de outros, também precisamos de alguém que suporte as nossas. Ou o psicanalista não tem suas dores? Mas não é esta a questão exatamente. O ponto mesmo é o que por vezes deixa uma intriga.

É muito normal que a intriga fique sempre pairando o atendimento clínico. Lido, ali, com questões psíquicas muito próprias do indivíduo, mas que nunca deixam de refletir o conjunto de vivências e relacionamentos que ele experimentou ao longo de sua vida. Nunca acreditei estar ali acompanhando e analisando um indivíduo isolado, mas um indivíduo que se situa em uma densa e complexa teia de vivências sociais de toda ordem. E tudo isto se manifesta em suas angústias. Vou já oferecer um exemplo desta complexa e densa teia social.

Na clínica, portanto, a condição humana se revela em sua face, não diria nua, mas mais enigmática. Sim, porque mesmo nus não deixamos de ser enigmas. E é sobre um desses enigmas que quero comentar um pouco mais. Há alguns dias, numa quinta-feira a noite, me surpreendi, intrigado, com o quanto se andava falando, na clínica, sobre a questão do casamento, de modo mais específico, e do relacionamento, de forma mais geral. Não tenho estatísticas que comprovem esse aumento de preocupação com esta questão mas, de fato, me parece estar ocupando um espaço crescente.

Casamento, relacionamento, no fundo estamos falando do "amor", seus dramas e angústias. Ora, vamos acertar logo algo aqui desde o início. Falar de amor é falar sim de sofrimento. É falar de algo que fantasiamos como solução definitiva mas que sabemos correr o risco permanente de perder. E isto se revela como fonte de uma angústia inesgotável. Pode até não atrapalhar tanto a felicidade, mas fica ali como algo ameaçador. Podemos perder um amor sim. Podemos perder a pessoa para a morte, ou para a vida. Há, portanto, sempre algo que nos fala de uma severa necessidade em lidar com o luto de uma separação. Mas tudo isto é muito amplo e geral, e queria mesmo pensar sobre algo mais específico.

Ou seja, e quando uma pessoa não revela seu desejo de separação com medo de magoar à outra? O que existe aqui? De que estamos falando? Logo o que me vem à cabeça é uma pergunta: o amor encontra seu mais perfeito contorno em um casamento? Ora, pode ser que sim! Existem casamentos, e relacionamentos, que são a mais "perfeita" materialização do amor. Mas, e quando o amor parece não mais caber em um casamento? O que se faz? É essa dúvida que leva muitas pessoas à clínica.

Alguns poderiam dizer apressadamente: "separem-se oras!". É, pode ser assim mesmo. Mas, em que pese acreditarmos em nossa capacidade de agir e tomar decisões conscientes e racionais, não é assim que agimos na maioria das vezes. Aliás, na grande maioria das vezes. Lógico que isso pode parecer frustrante para alguns, mas há como negar? Nem tentem me convencer que somos seres "racionais" 24 horas por dia! Já desisti desta crença há algum tempo.

E isto fica muito claro nas queixas dos pacientes justamente no momento que se descobrem ainda possuidores de uma enorme capacidade de amar, mas dramaticamente este amor não mais cabendo no seu casamento ou relacionamento. Ou seja, continuo podendo amar, mas amo outra pessoa agora! E aí? O que fazer? Os dramas são os mais diversos. Mas, existe um ponto bastante comum entre inúmeros casos. Uma espécie de fio condutor que ajudar a explicar várias situações que chegam à clínica. Não todas evidentemente.

Vou tentar, forçosamente, resumir a queixa na seguinte frase: "Como posso deixa-lo(a) se havia a promessa de um amor eterno?". Ufa! No dia a dia esta frase pode soar trivial, mas na clínica, diante da evidente angustia de um indivíduo, soa como um grito de desespero. Um beco sem saída. Uma caminho que só leva a um abismo.

Quando falei acima sobre um "fio condutor", um "ponto em comum" que ajuda a explicar esta queixa, estou falando da severa dificuldade, num primeiro momento, de reconhecimento do próprio desejo e, num segundo momento, de se trabalhar mais com "fantasias" que com a própria realidade. Mas, onde entra o peso do "social" nisto tudo? Vou por partes.

Entrar em contato, e reconhecer como legítimos nossos desejos não é mesmo uma tarefa fácil. Me arriscaria a dizer que talvez seja uma das principais tarefas da psicanálise, pois exemplifica bem o que seria esse "encontro consigo mesmo". Ora, quem é esse "outro" dentro de mim mesmo, que quero encontrar, senão meus desejos? É a busca por ele que pode significar uma atenuação das minhas dores e sofrimentos.

Mas, não se trata de um processo simples mesmo. Há momentos, por exemplo em que fantasias tomam conta, como uma sombra, e afastam qualquer possibilidade de enxergar a coisa com clareza e aí as decisões se tornam impossíveis. Por exemplo, se o indivíduo descobre que, de fato, quer continuar amando, mas amando outra pessoa, e tem um compromisso de relacionamento (casamento), começam a pesar sobre ele (a) severas questões.

Ele(a) pode acreditar, por exemplo, que não haverá qualquer possibilidade de diálogo com a pessoa com quem mantém o compromisso (fantasia), pode estar acreditando que ela(a) dirá algo que o coloque "contra a parede" e o(a) faça desistir da ideia de uma separação. Que fantasias são essas? Podem ser do tipo: "depois de tanto tempo, agora você quer me deixar?", "você jurou que nosso casamento seria eterno!", "minha família não vai aceitar!", "isso é pecado!", "o que as pessoas vão dizer de mim?", "eu não vou sobreviver sem você", "eu me anulei e me dediquei somente a você" etc.

Veja, tudo isto pode estar somente no nível de uma fantasia imaginada por quem quer se separar e não tem a coragem de iniciar um diálogo, ou pode se transformar em acusações bem reais quando do início de um diálogo. É justamente aqui que vemos o quanto um relacionamento pode ser invadido por questões egóicas (egoístas) e por pressões do social e até da religião, impedindo ou dificultando que as pessoas possam reformular suas vidas em busca de uma felicidade que imaginam poder conquistar.

Claro que estou tocando em questões socialmente sensíveis a muitas pessoas. Mas, quem disse que temos que ter esta preocupação como central na clínica. O que precisamos é escutar bem, ajudar a reconhecer o desejo e trabalhar no sentido de que o indivíduo seja competente e responsável o suficiente por suas escolhas. Mas, vamos voltar ao assunto.

Promessa, pecado, aceitação familiar, aceitação social, necessidades. O "social", o "egóico" e o "religioso", neste momento, surgem com toda força sobre aquele que está saindo de um casamento. Na voz daqueles que estão sendo "deixados" soa o grito de "traição", "abandono", "ingratidão", e na voz daqueles que estão "deixando" soa o peso de uma promessa não cumprida, o peso de estar se cometendo um "pecado".

Não é uma transição fácil, mas é bom que se lembre que a dor de uma separação, então, não está somente em quem "fica", mas também em quem "sai" de um relacionamento. Ambos têm que lidar com uma perda, um reencontro com seus desejos, com uma reestruturação. Isso não explica tudo, mas explica alguns dramas vividos em certos relacionamentos, honestos, mas que se perderam em algum momento.

Melhor seria se fizessem essa transição juntos, se escutando, se respeitando, buscando recuperar uma identidade que tem que sobreviver ao relacionamento que agora começa a se desfazer. É por uma recusa em buscar essa identidade, que é anterior e deve sobreviver mesmo durante o casamento, que muito casais acabam optando pelo comodismo, pelo abandono de seus desejos, pela infelicidade mútua, ao invés de se darem uma chance de liberdade e apostarem mais uma vez. É lamentável, mas é o que ocorre na grande maioria dos casos. O laço, que é frouxo e comporta sempre um risco, se transforma em uma corrente, dura e resistente, que aprisiona. estão como que "fadados a serem felizes", custe o que custar, inclusive a felicidade de ambos.

Só uma observação. Não vejo o casamento como uma instituição "falida", o que está falido mesmo é esse relacionamento egóico, que se utiliza de chantagens pessoais e pressões sociais e religiosas para sustentar um relacionamento quando ele, de fato, já se transformou. É por isso que, para muitos que chegam à clínica é sempre um "pecado" falar de seus próprios desejos, sentem-se "traidores" ou "traídos". Para não "magoar" o outro preferem calar a si mesmos e abandonar sua vontade de ser feliz. E aí só lhes restará, no lugar da busca pela felicidade, ou de mais uma chance, o contentamento com a paralisia e a acomodação. Terrível, quando se pensa que não teremos outra vida para colocar as coisas em ordem.

Porque não apostar em uma amizade eterna, em um carinho eterno, ao invés de um forçoso "casamento eterno"? Por que preferir a infelicidade do(a) outro(a), e a de si mesmo(a), que a possibilidade de novamente tentarem ser felizes, de outra forma? No fundo, ainda entendemos muito pouco de relacionamentos. No fundo temos medo de começar de novo. Mas, isso é da condição humana. Duvido que melhore muito no futuro, pois estaremos sempre trabalho com a fantasia do "eterno", com a vontade de "posse" e com a ideia de "pecado". Isso intriga, e muito!

Espero não ter deixado ninguém chateado, mas o tema está aí, no nosso dia a dia!

Como lidar com a ausência do "poder"?


"Alguém que deixa o poder defronta-se antes de tudo com o fantasma daquilo que perde: os rituais, a vida distinta, os mimos e mesuras dos subordinados, o conforto do palácio. Precisa se acostumar com os ruídos alheios e esquecer o som da própria voz. Há quem diga que sente certo alívio ao voltar ao anonimato e se libertar da agenda carregada, das liturgias cansativas, do excesso de exposição. Mas a ausência disso pode se assemelhar a uma crise de abstinência, que termina por levar o ex-poderoso à busca inglória de um lugar ao sol semelhante ao que desfrutava nos dias de fausto" (Marco Aurélio Nogueira, prof. de Teoria Política da Unesp - O Estado de S. Paulo, 27/03/11, Aliás, J3).
Acredito nos que dizem ser um alívio, pois para este o poder pode ter machucado e ferido sua estrutura de personalidade, seu caráter, mas também acredito nos que dele sentem falta, como numa abstinência, pois para estes o poder servia como um sentido para sua vida, o eixo estruturante de sua personalidade e, sem o poder, como podem sobreviver sendo "mais um", como deixar de sentirem-se "nada" sem o poder? estão prontos para a separação? É claro que isto serve para nosso cotidiano, onde sempre imaginamos que a "posse" de algo é que nos alivia de nossas ansiedades ou angústias mais profundas. Precisamos aprender a "perder", a nos "separarmos", a nos depararmos com nós mesmos.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

O ciúme e as formas paranóicas do amor (C. Dunker)

Abaixo, trechos do texto “o ciúme e as formas paranóicas do amor“, de C. Dunker, publicado em Consumidos pelo Ciúmes. Viver Psicologia. São Paulo, v.36, 1996, e divulgado no facebook do autor.
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O ciúme talvez seja a mais interessante vicissitude do amor. O ciúme é um sentimento demasiadamente humano, trágico. Quando amamos amamos a “nada”, a um “vazio” (agalma) e é neste vazio que o ciúme fabricará imagens, traços, signos para ocupá-lo e assim responder ao enigma (…) O ciúme, portanto, supõe algo onde não há nada, onde há falta de algo.
 
(…) ele é antes de tudo um pensador meticuloso. Pequenos detalhes, um tom de voz, uma palavra e está armada a conjectura. Inicia-se o processo: certificações, vigilância, suspeitos. Flagrar o ato criminoso torna se uma obsessão. A confissão do traidor é esperada e temida, mas de toda forma obrigatória. Quanto mais ciúme mais método, mais rigor, mais engenhosa a reflexão.
 
Podemos avaliar a posição daquele que é tomado pelo ciúme a partir de duas vertentes. De um lado o que Freud chamou de ciúme projetado, de outro o ciúme delirante.
 
No caso do ciúme projetado o desejo de trair é transferido para o outro. Trata-se de conter nele o que o sujeito não reconhece em si, ou que reconhece e atualiza na forma de infidelidade e culpa (…). 
 
Na sua modalidade moderna fala-se das duas metades da laranja. O amor à equivalência ou ao ajuste das necessidades subjetivas dos que nele se envolvem é aqui a raiz do ciúme. O ciúme conseqüência necessária da hipótese de que há um objeto que nos faça Um. Ciúme por asfixia, pela falta da falta. Quando dois se completam demais o desejo se vinga no ciúme. É talvez um ponto de liberdade para um novo movimento.
 
Tal interpretação tem o mérito, a nosso ver, de explicar o juízo do senso comum que diz que um pouco de ciúme é benéfico para todo relacionamento. Benéfico, pois faz intervir, mesmo que apenas como uma possibilidade virtual, o terceiro e a falta. Ele acusa neste caso uma certa insatisfação que funciona como motor para novos engajamentos subjetivos.
 
Nada mais propício ao aparecimento do ciúme do que o clássico marido cuja vida se resume a satisfazer as demandas da esposa. No filme “O Processo do Desejo” tal figura aparece exemplarmente descrita. Um juiz que dá tudo para a esposa e é exatamente por isso que ela o rejeita. Não falta nada para amar.
 
(…) Lógico, não queremos tudo o que queremos, amamos quando surge algo além do que imaginamos (…). Dar tudo, isso faz o ciumento traduzir o que sente num ato amoroso. Se te vigio, se te amedronto, se te mato … é porque te amo. Talvez não tenha existido pior mal nas ações humanas do que aqueles cometidos em nome do Bem e do amor.
 
Talvez a ética do ciumento seja … também uma ética masoquista onde não se consegue interromper a realimentação do sofrimento. “Eu me mordo, eu me acabo, eu faço bobagem de ciúme”, diz a música. Que estranha satisfação é essa a do ciumento crônico? … Amar é dar o que não se tem, dizia Lacan. Ao ciumento a fórmula aparece ao contrário: possuir, reter, ter, não perder de modo algum o outro. Garantir que todo o seu desejo tenha um único endereço…
 
O segundo tipo de ciúme não está às voltas com o preenchimento do que falta ao outro mas com uma imagem fixa: a cena de traição… Não está em jogo a realidade, se bem que pareça, mas uma certeza que atravessa sua fala: houve, há e haverá traição. Os argumentos neste caso só servem para atestar que o ciúme é justificado. O ciúme impulsiona ao ato violento. O pensamento se aproxima da lógica dos inquisidores medievais, como aponta o texto básico dos queimadores de bruxas: “Tortura-se o acusado que vacilar nas respostas, afirmando ora uma coisa ora outra, sempre negando a acusação. Nestes casos, presume-se que esconde a verdade. Se negar uma vez, depois confessar sob tortura não será visto como vacilante e sim como herege penitente, sendo condenado.”
 
Enfim, trata-se de um pseudojulgamento uma vez que a culpa está dada de antemão… A atração pela cena da infidelidade se assenta na figura do terceiro. Ora considerado como aquele que seduziu, corrompeu a inocência daquele que foi embriagado pelo feitiço, ora tomado por um fascínio, este terceiro é a chave da questão. Se não o fosse o que levaria a continuidade da investigação do outro uma vez que já se sabe que ele é culpado? Neste caso a ligação do ciumento inclui uma certa inveja em relação ao seu parceiro.
 
A hipótese evidentemente recorre à noção de inconsciente. Nos termos de Freud, inveja-se o fato, por exemplo, desta mulher ser possuída por outro homem, a recusa deste desejo homossexual promove o fascínio por este outro homem e o ódio pela mulher. Um ódio cuja aparência é de irracionalidade. O ciúme paranóico reclama, desta forma, de uma indiferença à sua demanda amorosa. Indiferença pertinente uma vez que o endereço desta demanda não é aquele de quem se diz sentir ciúme.
 
Montaigne dizia que na ordem das relações humanas a realidade conta pouco. Nos apegamos a ficções. Preferimos a ilusão prazeirosa ao desgosto da pálida realidade. O fato notável do ciúme é que ele parece comandado por ficções que adquirem o estatuto de realidade. A mentalidade jurídica do ciumento o põe assim num beco sem saída. Um julgamento sem fim onde o veredicto é o que menos importa. Alguns se apegam a dúvida interminável, como Bentinho, outros se dirigem à certeza, outros ainda convidam pelo ciúme à experiência de serem enganados, como mostrou Nelson Rodrigues.
 
O ciúme é aí um pedido de retomada da relação amorosa, um teste dos seus limites. Um pedido para que o outro reaja ao preenchimento da agalma, que faça diferença onde encontra simetria em excesso. Ao contrário do ciúme paranóico é um pedido de saber menos.
 
Quando Afrodite é tomada por ciúme no momento em que vê os mortais adorando a mortal Psiquê o ciúme convida Psiquê à morte. Salva da morte por Eros o ciúme das irmãs convida Psiquê à solidão. Salva da solidão o ciúme de Afrodite convida então Psiquê a provar seu amor. Quando finalmente o ciúme de Afrodite provoca o próprio Zeus então Eros fica em paz com Psiquê. Mas até quando?

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

A Viela... uma passagem para o amor!

- Oi, posso dividir a mesa contigo?
- Claro, fica a vontade!

Foi assim que ele a conheceu. Num pequeno café, apertado, mas aconchegante, onde teve que ter a ousadia, que não lhe é costumeira, de pedir para sentar ao seu lado. Ele sempre fora muito recatado e odiava transparecer qualquer ousadia. O café ficava em uma esquina, bem movimentada por sinal, e a pequena mesinha estava ao lado de fora, na calçada, bem próxima ao caminhar das pessoas que passavam por ali quase sempre apressadas. Estar assim tão próximo às pessoas lhe garantia certa privacidade, evitando aquele típico constrangimento de estar tão próximo e não ter o que falar. Conversas olho no olho, com estranhos lhe causavam certo temor. Mas a mesinha, de tão pequena, conspirava para que cruzassem os olhares constantemente e quase tocassem as mãos, inesperadamente, em qualquer movimento sobre a mesa.
 
Inevitável, então, que surgissem os primeiros comentários. Poucas palavras, mas logo começaram a trocar ideias sobre as pessoas que por ali passavam, sobre o próprio café e sobre o que faziam para ir levando a vida. Mal perceberam, estavam sorrindo das situações que um e outro traziam. O tempo passava e ficava mais difícil tomar a iniciativa de levantar e ir embora. Tudo ali parecia destoar daquele cotidiano tão cinza e vazio que marcava a vida de ambos. Mal sabiam que aquela leveza que tinham conquistado com piadas e sorrisos estava tornando seus sentidos mais aguçados e fazendo-os notar pequenos detalhes um no outro. Mal perceberam, estavam entrelaçando-se, entregando-se à descontração.
 
Mas a vida pode ser tirânica e, mesmo que algo estivesse conspirando para que ficassem um pouco mais e aproveitassem o fato de terem encontrado um ao outro, ela, a vida, os chamava para seus afazeres e preocupações. Tiveram que levantar. Impossível que não suspirassem e prendessem o fôlego como que num lamento. Era chegada a hora de ir. Tinham suas tarefas a cumprir. Ele não sabia bem o que estava acontecendo, mas sentia uma enorme vontade de prolongar um pouco mais a presença ao lado dela. Estar junto a ela lhe trouxera uma intensa alegria. Foi então que, permitindo-se querer sentir um pouco mais aquilo, teve que ser mais ousado ainda.
 
- Tu vais por ali?
- Sim, vou sim, fica logo ali… – Te acompanho então!

A rua que ela indicara era a de baixo, menor e mais estreita. Havia um prédio alto ao fundo. Era lá que ela trabalhava. Talvez uns 70 metros de distância. Sim, só mais 70 metros juntos, era o que ele pensava. A rua não tinha saída, isso ele enxergava claramente. Começaram, então, a caminhar. Mas, se nos primeiros metros pareciam decididos a andar a passos largos, logo começaram a andar mais calmamente encontrando desculpas nas vitrines para ficarem um pouco mais, juntos. Andavam quase que para os lados e mal tentavam disfarçar que queriam ficar um pouco mais. As mãos pareciam inquietas. Vez por outra se esbarravam, como se quisessem se atar. Mas eles estavam muito tímidos, sem jeito mesmo. Algumas vezes olhavam para frente tentando saber quanto ainda restava de rua. Isso lhes tirava um pouco o fôlego, o ânimo, e trazia certo medo. A rua estava acabando, estava próximo o momento da despedida.
 
Nos últimos metros já passavam mais tempo em silêncio, de cabeça baixa, antecipando um sofrimento que era certo. Os últimos passos já eram mais lentos, numa desesperada tentativa de evitar o final. Foi nesse momento que, chegando, afinal, ao fim da rua, que ele descobriu que se tratava de outra esquina. A rua acabava, mas, se virasse para o lado, um determinado lado, teria pela frente uma viela que levava a uma rua bem mais larga e que não conseguiam enxergar o seu fim. Talvez houvesse um fim, mas ele não se permitia enxergar naquele momento. Tomado por uma sensação de coragem e ansioso por continuar a caminhada, ele teve mais um momento de ousadia.
 
- Vamos ver o que tem por ali?
- Vamos sim, nunca fui por ali, mas sempre tive vontade!

Trocaram um rápido sorriso e a alegria parecia lhes invadir novamente, inundando-os mesmo. Num ato onde o pensamento teve pouca chance de estar presente, quase que automaticamente deram as mãos, e os passos ficaram mais firmes. Voltaram a sorrir e a brincar. Quando chegaram ao fim da viela e enxergaram aquela rua que parecia não ter fim olharam-se e deram um sorriso ainda mais largo. As mãos que já estavam dadas agora viram os dedos entrelaçarem-se. Não estavam preocupados em enxergar o fim da estrada, ou o futuro. Não! Cada passo era tão maravilhoso, e leve, que parecia que a estrada se prolongava com eles, parecendo tão… Infinita! Nesse momento, ele teve um último ato de ousadia.
 
- Aceita caminhar comigo um pouco mais?
- Claro, tua companhia me faz perceber que preciso de ti… Preciso muito de ti!