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quarta-feira, 22 de maio de 2013

"O Eterno Marido" (Dostoiévski)



Não conhecia este título de Dostoiévski e aproveitei uns dias de folga no Natal de 2011 para ler. É um livro curto e bem gostoso de ser lido. Lembrei que tinha feito algumas anotações, com trechos do livro, e agora compartilho aqui com vocês. Ler é uma necessidade, ler os clássicos é quase uma obrigação, e ler Dostoiévski é puro prazer. Como disse, o texto é pequeno, foi escrito em 1869 e nos mostra o sarcasmo e a ironia em doses muito raramente vistas. Isso tudo, é claro, regado com as descrições incomparáveis que Dostoiévski faz de seus personagens e lugares.

É início de julho e está começando o verão em Petersburgo. Lá, Vielhtcháninov encontrava-se retido devido a um processo que lhe causava certo mal-estar. Estava próximo dos 40 anos mas, 
ele mesmo compreendia que o que havia tão cedo envelhecido não era a quantidade mas, por assim dizer, a qualidade dos anos, e que se se sentia enfraquecer antes da idade, era mais depressa por dentro do que por fora (p.7)
Era um obsessivo e andava tomado por lembranças que o angustiavam demasiadamente, embora nada que lhe parecesse fazer sentido. Ultimamente as coisas haviam piorado e a rememoração de certos episódios cotidianos (pequenos fracassos, dívidas, insultos, etc.) sobrecarregava sua consciência e atormentavam seu espírito. Ele questionava: 
de que servem tais recordações, quando não sei nem mesmo libertar-me suficientemente de mim no presente? (p. 14). 
Estava prisioneiro de recordações e quase não mais se distraia ou respirava. Como acabar com estes pensamentos? Esta era sua principal questão. Chegou a pensar em deixar Petersburgo, em busca de algo diferente, mas decidiu ficar, e certa noite entrou em um restaurante para o jantar. Estava especialmente irritado. Claro que com nada em particular. De repente, um pensamento imprevisto, e uma sensação de alívio: parecia que finalmente compreendera a razão de seus tormentos. Era o chapéu, o chapéu com crepe

Agora as coisas pareciam começar a ficar mais claras e ele começa a rememorar em detalhes os últimos 15 dias. O que aconteceu? Neste tempo, Vielhtcháninov teve uma sucessão de “encontros” ocasionais com um misterioso homem que usava um crepe no chapéu. Eram encontros com rápidas trocas de olhares e com uma sensação de já conhecer aquele sujeito que, por sua vez, nunca se aproximava. A cada encontro aumentava a angústia de Vielhtcháninov. Sentia-se perseguido, com muita raiva e, pior, os pensamentos não lhe davam sossego. Tudo parecia se resumir a um grande sentimento de culpa que não o abandonava.

Ao chegar em casa o sono era perturbado por pesadelos e não mais conseguiu dormir. Foi até a janela e, para sua surpresa, lá estava o homem misterioso olhando para sua casa. Ele resolve descer e enfrentá-lo. 
Era como se o sonho de ainda há pouco se houvesse fundido com a realidade (p. 25)
Ao vê-lo na sua frente logo o reconheceu. Era Páviel Pávlovitch. Conheceram-se a 9 anos atrás quando Vielhcháninov (Alieksiéi Ivânovitch) hospedara-se em sua casa por um período. Páviel estava confuso, mas lhe dá a notícia da recente morte de sua esposa, Natália. Páviel transformara-se em um homem atormentado, que só vagava pelas ruas. Suas frases são sempre pela metade, parecendo ocultar algo. De qualquer forma, a pressão que Alieksiéi sofria parecia amenizar-se. As lembranças vinham à tona para Alieksiéi: ela fora amante daquela mulher.
É uma dessas mulheres, pensava ele, que nasceram para ser infiéis. Não há risco de que mulheres dessa espécie caiam enquanto são donzelas: é lei de sua natureza esperarem para isso que estejam casadas. O marido é o primeiro amante delas, porém jamais antes do casamento. Não há mulheres mais honestas do que elas para o casamento (p. 39).
Alieksiéi também estava convencido que à uma mulher desse tipo correspondia o que chamava de "eterno marido", ou seja, homens que são, em toda a sua vida, somente maridos e nada mais. 
O homem dessa espécie vem ao mundo e cresce apenas para se casar e, logo que casa, torna-se imediatamente algo de complementar de sua mulher (p. 40).
E o maravilhoso é que com tudo isso não se podia dizer que aquele marido vivesse sob o chinelo de sua esposa. Natalia Vassílievna mostrava toda a aparência da mulher perfeitamente obediente e talvez ela própria estivesse convencida de sua obediência (p. 41).
Alieksiéi relembra que apaixonara-se por Natália e que ela o dispensara um tempo depois alegando estar grávida. Ele, por seu lado, achava que ela estava mesmo era apaixonada por outro. 

Passam-se as lembranças e, no dia seguinte, Alieksiéi vai visitar Páviel e, chegando lá, nota a presença de uma garotinha. Era Lisa. Páviel começa a contar sobre a gravidez fazendo relação com a estadia de Alieksiéi em sua casa a 9 anos atrás. Tem início uma série de diálogos mal completados que só deixam Alieksiéi atormentado com a ideia de ser o pai daquela garotinha. 

Os diálogos, por vezes beiram a loucura, pois Páviel insinua mas não afirma. É irônico mas não vai até o final em suas suposições. Não à toa, rapidamente, Alieksiéi vai saindo da posição defensiva para tornar-se mais direto e até agressivo com Páviel. Ele logo percebe que Lisa está doente e que Páviel pretende deixá-la com amigos por um tempo. Lisa desperta muita atenção em Aliekseiév, principalmente quando levanta a suspeita de que Páviel pretende matar-se. 
Ele... ele se enforcará! - disse ela, baixinho, como em delírio (p. 60). 
Seguem-se cenas de intensos diálogos entre Aliekseiév e Páviel, repletas de cinismo e insinuações. Mas, pouco tempo depois, Lisa não resiste e morre. A partir daí, opera-se, lentamente, uma profunda mudança em Aleikseiév: não mais sentia-se culpado por nada, pelo contrário, estava com raiva.

Em determinado momento separa-se de Páviel, distanciam-se, mas o grande efeito de tudo isto é que as revelações, a relembrança dos fatos do passados não mais o angustiavam. Sua hipocondria havia desaparecido. Não havia mais recalque. Tudo vira à tona e adquirira algum significado para Aleikseiév. 

Os dois ainda se encontrariam no futuro. Mas nada mudará, Páviel continuará a ver a sombra da traição de sua esposa e Aleikseiév terá só mais uma nova oportunidade para enxergar em Páviel o "eterno marido".

Trata-se de um pequeno texto, mas muito denso, cuja intensidade dos diálogos, repletos de cinismo e ironia, beiram o delírio fantasioso. O rancor e a raiva parecem permear todo o livro, mas a principal teia, salvo engano, é a que mostra a cura de Aleikseiév pela revivência dos fatos do passado. Eles não mais lhe perturbam. O mesmo não se pode dizer da abnegação total de si promovida por Páviel Pavlovitch, o eterno marido.

quarta-feira, 15 de maio de 2013

"Noites Brancas" (Dostoiévski)


"Noites Brancas" é um curto texto de Dostoiévski publicado em 1848. Foi escrito após uma forte desilusão amorosa e também é seu último texto antes de ser encaminhado para a prisão e exílio na Sibéria. Não se encontra aqui aquele Dostoiévski onde a cena social é sua maior preocupação, mas um Dostoiévski que sofre pelo amor. A própria ausência do nome de seu errante personagem parece ser um indício de sua amargura, em não enxergar a si mesmo.
 
Outro indício desse seu momento de certo alheamento amoroso é a própria atmosfera criada em São Petersburgo pelo fenômeno da "noite branca". Trata-se de um momento em que o sol permanece na linha do horizonte iluminando a noite e criando uma paisagem propícia ao sonho e à paixão. É um Dostoiévski "aprisionado" à noite e à espera da luz da manhã seguinte. Não à toa a trama se passa em 4 noites e na manhã seguinte.
 
No início, nosso personagem sente-se angustiado, mas não sabe a razão. Percebe que praticamente todos na cidade a estão deixando para desfrutar de algum prazer proporcionado pelo verão nos campos. De alguma forma, todos lhe parecem felizes e com o destino certo: deixar a cidade por algum tempo. Somente quando, em determinado momento, decidiu caminhar sem uma direção clara e foi afastando-se da cidade, é que compreendeu a razão de sua inquietação: Parecia estar ficando sozinho. No seu caminhar sentiu sensações estranhas, de felicidade, de esperança ...
tal era o poderoso influxo que a natureza exercia sobre mim, doentio habitante da cidade, que se sente abafar entre as paredes dos prédios (p. 17).
Em seu caminho de volta passa pelo canal da cidade, local onde muitos paravam para contemplar. Nota uma moça que passa a seu lado e escuta soluços. Tentou aproximar-se e lhe falar, mas ela afastou-se. Ele percebeu que ela vinha sendo seguida e estava sendo abordada indelicadamente. É quando se aproxima e afasta o sujeito desconhecido. Oferecesse para acompanhá-la até à sua casa. No caminho conversam e ele lhe demonstra toda a satisfação e felicidade em estar tendo a oportunidade de falar a uma jovem tão bonita e educada. Inevitável que apelasse a um segundo encontro, na noite seguinte.
 
E, de fato, deu-se o encontro. Mas, sobre o que conversar? A ansiedade de nosso personagem é tamanha que, quando questionado sobre "que espécie de homem é voce?" ele disparou a contar uma história em terceira pessoa, de forma frenética, quase sem pausas a ponto de ser interrompido algumas vezes por sua acompanhante. Ele passa a falar de uma vida onde tem se encontrado "completamente só", sempre. Fala de uma vida que não passa de...
uma obscura rotina e de habitual monotonia, para não chamar-lhe vulgar, vulgar até o desespero (p. 33).
Nesse cenário é que surge o que ele chama de "sonhador", alguém que costuma viver fora do mundo, numa espécie de refúgio, como se se escondesse da luz do dia (p. 33).
É já escuro no seu quarto e ele tem a alma triste e vazia. À sua volta desvaneceu-se todo um império de sonhos: secretamente, sem ruído, sem deixar provas, como só um sonho pode desvanecer-se, e ele nem sequer poderia contar aquilo que viu. Mas um obscuro sentimento que começa a agitar-se no seu coração, pouco a pouco lhe vai infundindo um novo anseio, afagando, sedutor, a sua fantasia e, sem querer, aí volta à sua frente uma nova cavalgada de visões (...) surge em seu redor um novo mundo, uma nova vida encantadora. Um novo sonho... uma nova felicidade (p. 39).
Ora, mas em que lhe interessa esse nosso mundo "real", considerado lento, monótono, vazio? Mas, o que alimenta os seus sonhos, pergunta-lhe Nástienhka? É só ilusão! Fantasia! Ele responde. Mas, é disso que precisamos. E avalia:
Teria sido então tudo isso um simples sonhar acordado... e também o jardim solitário e abandonado, com os carreirinhos cobertos de erva, em que ambos passearam tantas vezes de mãos dadas, erguendo ilusões, e em que se desejaram e se amaram tão triste e docemente... ? (p. 43).
Nástienhka ficara surpresa por ele ter levado a vida inteira assim, de forma solitária, ociosa, inútil e aborrecida. Ela se lastima e chora, e lhe promete uma eterna amizade. Mas, ela quer lhe pedir um conselho. Antes, porém, vai lhe contar sua história. Ela lhe conta que sempre morou com a avó, num sistema de permanente vigilância ("amarradas às saias da avó"). Na casa, um quartinho servia para alugar e, certa vez, um inquilino lhe chamara muito a atenção a ponto de desejar ir embora com ele quando de sua partida para ficar um ano fora. Ele prometeu voltar, mas ela não acreditava. Foi duro para ela, mas ela declarou-se apaixonada para ele. Entretanto, ela soubera que ele estava de volta. Mas, como encontrá-lo? Ele sugere que ela escreva uma carta a ser entregue para conhecidos do seu amado. Cada momento que passava só servia para que ele aumentasse o seu amor por ela. Mas, como dizer-lhe? Até porque ela mesmo enaltecera sua disposição em ser apenas amigo e não aproveitar-se da situação. Tem início um conflito interior: contar ou não a ela o que sente?
Parecemos todos mais frios e taciturnos do que somos na verdade; pode-se dizer que as pessoas têm medo de se comprometer expondo com franqueza os seus sentimentos (p. 74).
A espera pelo retorno do amado é angustiante para Nástienhka. Na quarta noite a certeza de ter sido abandonada já é dominante. Ela se lamenta e chora. É quando ele, já não aguentando mais, decide lhe revelar tudo o que sente. Declara todo o seu amor. Ela é compreensiva e, certa de seu abandono percebe que é possível amá-lo também. Chega a pedir-lhe para ir morar pertinho dela já na manhã seguinte. Isso o deixa num estado de felicidade jamais visto. Fazem planos, muitos planos. Ela lhe diz, selando seu amor:
Quero dizer, se sente e acredita... que o seu amor é tão grande que pode afugentar do meu coração... Se voce tem tanta pena de mim e não quer agora deixar-me entregue ao meu destino, sem consolo nem esperança; se for capaz de amar-me sempre assim, como agora me ama... então, eu lhe juro... que minha gratidão... que o meu amor há de ser digno do seu... Quer aceitar a minha mão? (p. 85-6).
A felicidade parece não ter limites. Neste momento, tudo o que era sombrio em sua vida parece desaparecer:
Olhe para o céu, Nástienhka, olhe para cima! Amanhã vamos ter um dia lindo... Como o céu está azul e olhe para aquela lua! (p. 89).
Nesse momento, entretanto, um homem se aproxima. É ele! Ela não se conteve. Pegou em seus braços e foi embora. Nosso personagem não sabia o que pensar. Na manhã seguinte ele recebe uma carta dela. Ela pede que a perdoe pelo seu coração retornar às mãos daquele que já era seu dono. Tudo para ele volta a ser sombrio. Percebe que tudo ao seu redor está cinzento, envelhecido, com teias de aranha. Nestes instantes finais ele diz que o fato de só ver sujeiras nas paredes de seu quarto deve-se ao raio de sol que o iluminou.
Talvez a culpa de tudo isto fosse aquele raio de sol que de súbito surgiu por entre as nuvens, para logo depois voltar a esconder-se por detrás de outra ainda mais escura, que anunciava chuva, de tal maneira que todas as coisas se tornaram ainda mais lúgubres e mais sombrias... Ou seria que os meus olhos divisaram o meu futuro e nele viram algo de árido e de triste, algo semelhante a mim, ao que sou agora, àquilo que serei dentro de quinze anos, neste mesmo quarto, igualmente só (p. 93).
Mas, nenhuma raiva se apodera dele. Ele perdoa Nástienhka. Deseja-lhe toda a felicidade proclamando:
Bendita sejas pelo instante de felicidade que tu deste a outro coração solitário e agradecido! Meu Deus! Um momento de felicidade! Sim! Não será isso o bastante para preencher uma vida? (p. 94).
O pequeno romance é uma bela descrição não precisamente de um coração apaixonado, mas de um comportamento depressivo e seu olhar cinzento sobre a realidade. Com esta experiência de felicidade, vivida, por instantes, ao lado de Nástienhka, ele poderá agora, quem sabe, ter outras lembranças... e outras esperanças. Quem sabe poderá mudar seu olhar sobre a vida e enxergar, vez por outra, que os raios de luz podem ser raros, mas eles existem e dão um forte sentido à nossa existência.

Dostoiévski, nesse momento, está em busca de algo que lhe dê sentido à vida. Não custa lembrar que vinha de uma experiência amorosa desastrosa, além de estar às vésperas de ir à prisão. Um pequeno e belo texto. Se puder, veja também o filme de 1957, de Visconti.

"Crime e Castigo" (Dostoiévski)



A obra "Crime e Castigo", de Dostoiévski, dispensa maiores apresentações. É daqueles livros clássicos que duas, três ou mais vezes na vida temos que ler. A um tempinho atrás, assisti no canal Discovery Civilization, um episódio da série Grandes Livros (Great Books) que, justamente, tratava desta obra. Nada melhor, então, que comentá-la um pouco.

Roskolnikov, o personagem central, aparece na trama dominado pelas teorias do "homem grandioso". Recusa-se a ser um homem comum e parece destinado a mostrar que pode ser grande. É nesse pano de fundo ideológico que o assassinato pode adquirir ares de superioridade, desde que voltado para atingir um objetivo maior. É isto que vai mover Roskolnikov em sua trama. Uma busca pela grandeza que o levará a conhecer os piores tormentos psíquicos.

É inevitável, neste momento, a tentação de comparar Roskolnikov a um dos "grandes homens" de que falava Maquiavel, ou seja, um daqueles que fazem a história, principalmente através de sua "virtú". Mas, não seria bem isso que iria acontecer com Roskolnikov que, ao invés de ter o controle sobre sua vida, viria a conhecer intimamente a tortura psicológica de um forte sentimento de fracasso e culpa. Assim, longe de conquistar a grandeza típica de um "homem" de Maquiavel, apenas deu início ao pesadelo de seu caos moral.

O livro é definido como uma história de suspense, uma novela realista, envolvida pelas teorias sociais e políticas dominantes na Rússia de sua época. Qual era este pano de fundo? Dostoievski espantava-se em ver como, na sua época, as pessoas matavam-se facilmente, e ele tinha a visão de que o assassinato destruía a alma da sociedade russa e de seus compatriotas. Estamos falando de meados do século XIX e agora só me vem à mente Melanie Klein e sua ideia de que só a "culpa" pode permitir uma sociedade melhor. Era o que Dostoievski, de alguma forma, chamava à atenção.

Inevitável dizer, agora, que ainda fazemos parte de uma sociedade que continua cada vez mais distante da culpa. Ainda acreditamos numa suposta superioridade e grandiosidade, que possa ser conquistada, dispensando-se a moral. Um mal sinal.

Então, voltemos à obra. Roskolnikov, portanto, é um ícone do "solitário que mata para ser grande". Não é à toa que os personagens do livro são todos tirados da praça do mercado em São Petersburgo - um local de pobreza e maus costumes. Aliás, cabe destacar que Dostoievski, permanentemente em dificuldades financeiras, identificava-se facilmente nestas pessoas comuns. Via, nelas, um desespero que lhe era familiar e, ao mesmo tempo, universal, presente em qualquer sociedade.

Seus personagens, portanto, são indiscutivelmente isolados e vulneráveis. Será que não poderíamos fazer esta mesma leitura da atualidade? Como não identificar estes personagens de Dostoievski com os personagens de nossa vida atual, voltados para si mesmos, num isolamento egoístico e, ao mesmo tempo, absolutamente desamparados psiquicamente.

É a partir deste contexto que Dostoievski, portanto, levanta questões sobre a natureza humana: que tipo de homem eu sou? como vou viver depois de tudo o que fiz? Um assassinato pode ser justificado por objetivos grandiosos? O que Dostoievski escreve são nossas reações às complexidades que criamos sobre nós mesmos na condução da vida. Em sua biografia, por exemplo, vemos que Dostoievski sempre alugou apartamentos de esquina, sempre com duas ruas e uma Igreja à vista. Assim, poderia sempre lembrar das escolhas da vida: o caminho de Deus, ou algum outro. Afinal, em vários momentos sempre somos "tentados" para o mal.

Assim era Roskolnikov. Permanentemente tentado para o mal. Não era um assassino, mas, antes de tudo, um jovem confuso pelas novas ideias de grandiosidade, superioridade e poder. A trama se desenvolve a partir do assassinato que comete. Para ele, matar uma velha agiota não seria de todo mal. Afinal, já está velha e, pior, lucra com a desgraça dos outros. Além disso, sua irmã iria casar e ele precisava mostrar à família que estava bem de vida.Tudo parece, então, plenamente justificável.

Mas, logo após o assassinato, seu intelecto entra em conflito com sua compaixão nata. Ele tem muito mais impulsos bons e convive com grande ímpeto de liberdade. Se isso, entretanto, lhe dá ótimas oportunidades de fazer o bem, também pode fazer dele um assassino brutal, à medida que se irrita profundamente com sua existência comum. Não podemos esquecer que os intelectuais russos da época, atraídos por Hegel e Nietzsche, muito debatiam a questão do "homem extraordinário", que busca e conquista seus objetivos. É isso que pressiona Roskolnikov.

Desde o início, então, o que Roskolnikov faz é se envolver numa experiência com a "vontade humana", ou seja: Se não existe a vontade de Deus, então toda a vontade é minha - aí ele é tomado por sonhos de grandeza. Sua vítima escolhida era uma agiota, muito velha, feia e que logo ia morrer. Por que não pegar seu dinheiro e usá-lo para o bem?

É dessa forma que Roskolnikov sofre por não ter alternativa a não ser viver num mundo onde as pessoas mutilam e são mutiladas. A "vontade humana" é torturante. Escolher não é fácil e Dostoievski foi muito fundo na alma humana. Ele, como cristão ortodoxo, acreditava na promessa da redenção. Talvez até mesmo por seus próprios pecados: adultério, jogos, etc.

Ele sabia que tinha culpa, talvez por isso, tivesse compaixão. O fato é que, logo após o assassinato Roskolnikov se sente forte e diz "eu fiz isto por um ideal". Mas, ele não escaparia aos tormentos e angústias advindas de um fortíssimo sentimento de perseguição, que o levaria, gradativamente, a buscar o próprio "castigo".

Um dos traços marcantes desta obra de Dostoievski é seu "realismo". É bom recordar que na Rússia da época a literatura era uma válvula de escape que escondia a realidade sob a dramatização. Afinal, não era possível falar abertamente das questões sociais, a repressão do Czar era forte. É dessa forma que as pessoas esperavam os romances para saber o que se dizia sobre o regime político. É por isso que, no episódio de sua condenação à morte e imediata execução, quando o Czar muda sua pena simulando compaixão, causa muita turbulência no mais íntimo da alma de Roskolnikov.

Para Dostoievski nenhum crime é estranho, pois somos todos criminosos. Roskolnikov, então, sofre, se flagela. Ele não estava pronto para ser um homem sem sentimentos, que buscasse a grandiosidade a qualquer custo. Matar sem sentir culpa representaria a liberdade máxima, mas, ele tem febre, tem medo, se tortura psicologicamente.

Em certo momento, após o assassinato, ele se liga a uma prostituta cuja fé em Deus o abala. Ele tenta convencê-la da bobagem, mas não consegue. Pelo contrário, ela é que vai se oferece para compartilhar seu sofrimento. Até aí ele não sente remorsos pelo crime, só se desespera por não conseguir mostrar que é um grande homem. Seus sonhos o atormentam. Ele pretende ser um a-moral... mas não consegue. Se desespera a todo instante, nunca sabe se está sendo acusado pelo crime ou não. Surgem estados persecutórios inegáveis.

O que está claro é que ele não está fugindo, mas justamente indo em direção ao castigo. Ele sabe que precisa se entregar. O que se percebe é que a busca da liberdade individual leva à decadência moral. Por exemplo: exilar-se ou fugir seria como um suicídio. Ele não conseguiria lidar com isso. Então, ele se entrega. Mas não consegue se arrepender e dizer que sua escolha pela liberdade estava errada. Sente-se completamente isolado na prisão. Só a partir do reencontro com Sônia, a prostituta, é que ele passa a sentir esperança e amor. Seu "isolamento" parecia que ia ter um fim.

A obra de Dostoievski pouco retrata a paisagem, dos locais, mas muito do indivíduo e sua personalidade. Não há dúvida que existem muitos Roskolnikov perambulando por aí, e destes, muitos estão planejando "matar a sua agiota" também. Roskolnikov, sem dúvida, é um personagem que já anunciava o futuro... ou seja, o nosso presente. Este é o Dostoievski profético. Os 730 passos que separavam o quarto de Roskolnikov da casa de sua vítima não o separavam da grandiosidade, mas de seu pior castigo.

Que tal, em nossos sonhos de grandiosidade deixar algum espaço para a culpa? A "culpa depressiva" pode ser extremamente importante para facilitar nossos laços sociais.