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sexta-feira, 11 de abril de 2014

Um desamparo que dilacera ("The Thin Ice", Pink Floyd)


"The Thin Ice" é uma música que compõe o álbum The Wall, do Pink Floyd (1979). Se eu tivesse que dividir o álbum em "atos" como em uma peça teatral (e fiz isso em um artigo há alguns anos atrás) diria que a música integra o Ato 2, nos falando de um desamparo dilacerante do personagem que está presente em todas as músicas do álbum. 

É neste momento inicial do álbum (a música é a faixa número 2) que o personagem, sentindo-se vazio pela perda do pai e pouco afeto da mãe, sente-se sempre sobre uma FINA CAMADA DE GELO, inseguro, incerto, assustado, sozinho, aflito, com medo, frágil, onde a qualquer momento tudo pode ruir e ele mergulhar em direção ao desconhecido. É um momento de angústia muito intensa. Preso à lembranças trágicas e ao vazio da impotência, só consegue ver-se sob aquela fina camada de gelo que, quando romper sob seus pés, lhe sugará, lhe fará perder toda a consciência. Mas nem assim estará livre de seus medos, que o seguirão por toda a profundidade, arrastando consigo suas dores.

A fina "camada de gelo" é daquelas representações a que nosso inconsciente recorre costumeiramente para nos lembrar que corremos o risco de perder a luta para nossos medos. Esta fina camada de gelo (assim como outras representações semelhantes) está em nossos pensamentos e em nossos sonhos, sempre que nos sentimos desamparados. Imaginarmo-nos sendo tragados por essa profundidade gelada, cortante, escura e silenciosa nada mais é que a própria visão que a vida pode assumir se não enfrentarmos este desamparo, que vez por outra, insiste em se manifestar.

Esta é a letra da música:

Momma loves her baby
And Daddy loves he too
And the sea may look warm to you Babe
And the sky may look blue
Ooooh Babe
Ooooh Baby Blue
Ooooh Babe
If you should go skating
On the thin ice of modern life
Dragging behind you the silent reproach
Of a million tear stained eyes
Don't be surprised, when a crack in the ice
Appears under your feet
You slip out of your depth and out of your mind
With your fear flowing out behind you
As you claw the thin ice

Abaixo o vídeo de "The Thin Ice" quando do show Live in Berlin (1990), interpretada por Ute Lamper e Roger Waters. A versão está maravilhosa, mas nada como assistir ao filme The Wall com todas as cenas de guerra e dor como pano de fundo para a angústia presente nesta música.



sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Precisamos de respostas! (a angústia do desconhecido - texto 6)

Gosto de filmes de ficção científica! Mesmo contrariando alguns colegas que torcem o bico, como se eu só devesse gostar de filmes de Bergman, dos iranianos ou franceses. Não é o caso, pois em se tratando de cinema, não tenho preconceitos. Assisto aquilo que geralmente considero que possa ser interessante e não dou bola para nacionalidades, diretores, prêmios, publicidades, críticos, etc. Acho que tenho minha própria forma de avaliar se vale a pena comprar o ingresso. O fato é que adoro sair do cinema com a certeza de que algo ficou e não que fui lá à somente para passar o tempo (embora isto seja absolutamente legítimo, e necessário!). Claro que já entrei algumas vezes, quebrei a cara e saí na metade do filme. É um risco, mas já me surpreendi inúmeras vezes. E essas são as melhores.
Mas, por que mesmo falei tudo isso? Ah, só para dizer que também gosto de filmes de ficção científica. Sim, adoro! 2001, uma Odisséia no espaço foi o primeiro que me deixou marcas. Filme inteligente, em todos os aspectos. E quando Roger Waters compôs a música Perfect Sense achei que o filme tinha recebido uma bela homenagem, destacando que o “salto” que demos do passado para este futuro pode ter sido, tecnologicamente interessante mas, ainda deixa muito a desejar em termos de evolução moral e ética. Mas, onde mesmo quero chegar? A ficção científica, quando não é feita só de bichinhos estranhos e bonitinhos, ou só de batalhas com raio laser, pode revelar algo bem interessante e que diz respeito a algo muito íntimo nosso. Algo que dificilmente expomos para os outros. Pode dizer respeito à nossa necessidade e ânsia por respostas.

Mais uma vez o “sentimento oceânico” que nos inunda e nos faz mergulhar em um desejo de respostas vem à tona. É este sentimento que nos leva, finalmente, a abrir os olhos e perceber nosso real tamanho. Bem diminuto, por sinal. Mas, nem por isso, menos interessante. Mas, diminuto frente às perguntas que fazemos e não conseguimos oferecer respostas. É um sentimento que nos faz desejar respostas para obter segurança, algum conforto, uma espécie de proteção. E a ficção científica tem evoluído bem para essa direção, nos levando a pensar em algumas coisas. Uma direção em que mostra que uma de nossas maiores necessidades é a de “respostas” para aplacar algumas de nossas angústias.
O filme Prometheus (2012), por exemplo, segue esta linha. Aqui um parêntese. Nos anos 80, quando assisti Alien, o oitavo passageiro, o fascínio foi imenso. O filme já se tornou um clássico e, agora, Prometheus veio para oferecer uma espécie de "origem" àquele assustador "Alien". Naquele momento, com "Alien" sabia-se que havia algo "além", pois a criatura que tinha dizimado uma nave, agora atacava outra que viera em socorro na tentativa de encontrar sobreviventes. Mas, uma resposta nunca havia sido dada: de onde vinham tais criaturas?

Somente agora Ridley Scott, o diretor, começou a oferecer alguma explicação. A criatura seria uma criação, por parte de uma espécie (os "engenheiros"). Espécie que teria sido a responsável também, por nossa criação, enquanto humanos. O problema é que as criaturas (aliens) haviam sido criadas com o objetivo de destruição da espécie humana. Algo deu errado, entretanto, e os próprios "engenheiros" foram destruídos, antes, em seu "laboratório". Mas, por quê destruir a nossa espécie? É aí que o filme fica interessante em minha opinião. Inicialmente motivados pela ideia de encontrar nossos "criadores" uma equipe de exploração parte em sua busca tentando responder às eternas questões: de onde viemos? Quem somos? Questões filosóficas e científicas que as religiões tentam também oferecer algum tipo de resposta.

Mas, quando tal equipe se depara com a questão da possível destruição da nossa espécie, outra pergunta se sobrepõe: o que fizemos de errado para ter que encarar nossa extinção? Essa mesma questão já havia sido colocada por outro filme clássico da ficção científica, "O dia em que a terra parou" (que teve uma refilmagem recente). Mas, infelizmente essa polêmica só aparece de forma subjacente ao filme, embora fique bem nítida para mim, e acho que é o grande barato do filme. Desse modo, entendo que as questões filosóficas e científicas que sempre colocamos sobre nossa origem e destino perdem totalmente qualquer relevância diante de outra questão: o que estamos fazendo? O que está dando errado em nossa evolução?

Acredito que buscar explicações para nossa origem e destino pode ser legítimo e a expressão máxima de nossa racionalidade, mas poderão ser sempre questões sem resposta, como que fadadas a manter nossa racionalidade prisioneira de si mesmo. Entretanto, pensar sobre o que estamos fazendo com nossas oportunidades de vida também é legítimo e pode ter resultados concretos. Quantas vezes já não parei e pensei comigo mesmo diante de tantas barbaridades cometidas pelo ser humano: "nós não demos certo", "falimos enquanto espécie". Buscar respostas para nossa origem e destino, de forma racional, pode ser mesmo só um artifício que usamos para escapar à pergunta mais importante e que diz respeito, mais de perto, à nossa existência e nossas responsabilidades: o que estamos fazendo? Saber de onde vim e para onde vou pode me dar alguma ilusão em me acreditar importante, escolhido, mas é quando me deparo com a questão do que faço com minha existência é que sinto o peso da responsabilidade e a angústia cresce.

Talvez por isso eu tenha gostado tanto de Prometheus, pois nos lembra de nosso iminente "fracasso" enquanto espécie. Lembra-nos de nossa maior tragédia enquanto seres humanos: diante da possibilidade de paz, teimamos em fracassar, pois a solução agressiva e violenta sempre nos parece mais fácil e adequada. Não é assim no nosso dia a dia? Não é assim quando nos revelamos absurdamente preconceituosos e intolerantes com quem é diferente de nós mesmos? Não é assim quando acreditamos que somos sempre melhores que os outros e não lhes devemos nenhum tipo de obrigação? A raiva e a agressividade talvez sejam o maior símbolo de nosso fracasso. Arrefecê-las, é o sinônimo de nosso sucesso. Por que não apostar nisso e olhar para o outro como alguém de quem realmente necessitamos, para nossa sobrevivência e felicidade? Talvez seja impossível, mas estamos aqui para tentar provar o contrário! A raiva e a agressividade talvez sejam o maior símbolo de nosso fracasso. Arrefecê-las, é o sinônimo de nosso sucesso. Por que não apostar nisso e olhar para o outro como alguém de quem realmente necessitamos, para nossa sobrevivência e felicidade? Talvez seja impossível, mas estamos aqui para tentar provar o contrário!

Já que falei em "tragédia", numa hora dessas não há como esquecer a mitologia. “Prometeu” foi um titã que tentou dar a inteligência aos homens, e foi punido severamente por isto. Assim, talvez no fundo, ainda estejamos mesmo ainda buscando nossa maior inteligência: Não necessariamente saber de onde viemos ou para onde vamos, mas entender o que estamos fazemos a nós mesmos aqui, nesta vida. A ciência, a filosofia e a religião lutam para nos oferecer respostas e nos acalmar sobre nossa origem e destino, mas ainda suspeito que nossa principal fonte de angústia é nos depararmos com o real significado de nossa existência, no aqui e no agora, e com o que estamos fazendo! Esse talvez seja o maior “desconhecido”, aquele que mais nos assusta!

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Reunindo meus pedaços! (texto 5 - os contos de fada e a perfeição)

Todos somos, em algum grau, neuróticos. E sei que esta é uma frase que incomoda e assusta a algumas pessoas que temem, com isso, uma proximidade com a “loucura”. Mas, não se trata disso. A loucura está mais próxima de uma violenta dissociação com a realidade, que nos aliena e incapacita para a construção de laços de forma quase permanente. A neurose, por seu lado, traz alguns traços desse tipo, mas num grau quase sempre bastante atenuado. Estamos falando, então, de outra ordem de sofrimento, de outro tipo de defesa que nós buscamos para controlar nossas angústias. E que é um tipo de defesa muito mais comum do que imaginamos. 

Quando se diz, então, que a “normalidade” é neurótica é porque, em nosso processo de constituição psíquica, em algum momento, nos deparamos com “limites” (pais, leis, regras sociais, valores etc.) que restringem nossos desejos e acabamos por sofrer com isso. Mas, sem este processo, sem estes “limites” como poderíamos olhar para o outro e respeitá-lo? Como poderíamos construir laços sociais se não tivéssemos restrições em nossos desejos? É uma boa questão! E não está fechada. Ou seja, conscientemente, sabemos da necessidade de limites para a vida social, mas a questão é que inconscientemente nossos desejos tentam “escapar” e é a luta por bloqueá-los que nos leva ao sofrimento. A grande saída é algum tipo de sublimação, que faça com que nossos desejos inconscientes se realizem de outra forma, como num relacionamento amoroso, num trabalho que nos causa felicidade, numa atividade em que nos sentimos bem etc. 

A neurose, então, nos fala de uma “submissão” à regra, ao limite. E é o sofrimento daí gerado que leva a mecanismos de defesa como a obsessividade e a compulsividade, por exemplo. Sofrer pelo nosso próprio desejo não realizado, então, nos aprisiona a uma “dívida”, como se estivéssemos em “falha” permanente, em “culpa”. Um sentimento de que somos devedores de algo que não sabemos bem o que é, e nem sabemos ao certo quem é o nosso credor. O fato é que nosso desejo fica soterrado em meio às obrigações e temores de punição ou de limites. É uma dívida que temos, então, em sentido metafórico, com o pai, com a lei, com o limite, e isso nos leva, nos casos mais graves, à possibilidade de nos comportarmos como escravos e ficarmos paralisados, sem futuro, condenados a repetições e com pouca chance de crescer e sentir-se bem.

Madonna, há pouco tempo, dirigiu um filme (“W. E.”, 2011) que, com muita força, traz um exemplo digno de chamar a atenção. Aliás, o filme traz uma trilha sonora que, no seu romantismo angustiante, parece sempre estar à beira da revelação de uma tragédia da qual não se pode escapar. Algo que marca os medos do neurótico obsessivo. No filme, duas histórias correm em paralelo. O que as liga? O desejo de um pai e de uma mãe que, ao dar o nome de uma nobre inglesa à filha, depositam ali todo o desejo de que sua vida transcorra como um “conto de fadas”, bem ao estilo daquilo que as monarquias tentam nos mostrar com sua pompa, beleza e delicadeza.

Isso é complicado. Para desespero da criança sua história seria construída tendo como espelho a vida daquela família real, considerada “perfeita”, como num “conto de fadas”. Ela teria, então, que realizar-se na busca por seu próprio conto de fadas. Mas, ela só conhecerá tragédias. Ficará, portanto, aprisionada ao desejo dos pais, e não ao seu. Não é a sua história que terá que viver, e isso lhe causa dor. Livrar-se da obsessão, portanto, significaria livrar-se de uma pulsão de morte poderosíssima, que a impulsiona sempre ao fracasso. O desejo não era seu e sim dos seus pais, era a eles que estava “obedecendo” ao tentar manter-se na linha de conquistar o “conto de fadas” para a sua vida. Quantas vezes, não levamos um tempo demasiado para perceber que o que estamos fazendo não é para nossa satisfação, e sim de nossos pais, ou outras pessoas? Isso quando percebemos!

Quantos pais, nesse exato instante, não estão arquitetando o “futuro” dos seus filhos, organizando “agendas” de educação e atividades que lhes tiram a chance de serem crianças ou adolescentes? Não! Não é assim. Contos de fada e histórias e “sucesso” individuais são criadas para amenizar nossas tragédias, para nos trazer de volta a esperança. Mas não podem se transformar em rígidos modelos de identificação, em exemplos aos quais devemos seguir e sermos fiéis incondicionalmente. Quem, de fato pode ser um super-homem? Quem, de fato pode ser uma princesa? Isso é puramente ideológico, e perigoso, pois nos adoece. Pelo contrário, é em meio aos tropeços de nossas vidas que vamos delineando um caminho que, muitas, vezes, já é o nosso próprio "conto de fadas". Basta às vezes, olhar atentamente para os lados e perceber, sentir. Ao final, o conto de fadas pode até estar se realizando sim, mas não daquela forma idealizada. Reconhecer isto é que é difícil, pois nos espelhamos severamente em modelos quase que inalcançáveis.

São estes “modelos inalcançáveis” e “irrealizáveis”, como os dos contos de fadas, que podem fazer com que pais e crianças se envergonhem de suas “imperfeições”, daí a busca em tornarem-se “super-adultos”. Isto é um massacre ao psiquismo da criança, ainda não plenamente constituído, e que já é submetido a tal ordem de obrigações neurotizantes. É nesse processo que a relação afetiva vai dando lugar a um sistema de obrigações morais e “educativas” que proporcionam uma boa dose de tormento às crianças. Crianças assim, preparadas para serem “super-adultos” e realizarem seu conto de fadas a todo custo, acabam se revelando egocêntricas, narcisistas, ou estarão condenadas a um sofrimento por se sentirem sempre “pequenas”. Por isso a dificuldade em enxergar o outro na sua totalidade. Afinal, se a sua própria integridade está corrompida, como enxergará a integridade dos outros? Os outros serão apenas “pedaços” dos quais se aproveita para buscar uma ilusória “completude”. 

E essa completude tem um nome: “perfeição”. É isso que muitos buscam como forma de sentirem-se, finalmente, bem, sem divida, sem culpa, sem sofrimento. Nesse terreno, portanto, não suportamos lidar com nossas “imperfeições”. Buscamos corrigi-las a todo custo, e cada vez mais cedo. Ou as cirurgias plásticas estéticas, por exemplo, não estão cada vez mais disseminadas e em idade cada vez mais precoce? Que modelo é esse que buscamos seguir? Que perfeição é esta que nos fascina? Metaforicamente poderia dizer que é a perfeição dos contos de fadas, mas na concretude do dia a dia, a perfeição está identificada nas atuais “celebridades”, por exemplo. São estas celebridades que “denunciam” nossas imperfeições. Não seria melhor pensar que todos somos “diferentes”? Não seria um comportamento mais saudável e humano?

É nos sentindo sem integridade, despedaçados, que buscamos os lábios de uma, o cabelo da outra, as pernas de outra ainda, os seios de uma outra. Ou, o cargo do outro, a casa maravilhosa de outro, o carro mais moderno de outro ainda. E por aí se caminha, tentando-se construir a completude, a perfeição e, em última instância, a paz interna. É claro que é natural que busquemos no outro algo que nos agrade, mas isso às vezes se torna um comportamento obsessivo. Enxergar o outro como feito de “partes” acaba nos levando a nos enxergarmos como um jogo de quebra-cabeças onde cada parte tem que juntar-se necessariamente para compor um todo, preenchendo um vazio e dando ares de “normalidade” e “perfeição”. Difícil, então, em meio a tudo isto, as crianças aprenderem a lidar com as diferenças. Elas querem escondê-las a todo custo, corrigi-las de qualquer modo, sempre na esperança de completar a obra, o quebra-cabeças, a si mesmas. Um dia isso ocorrerá? Jamais! São heranças de obsessões, por vezes, paternas e maternas, às quais se somam as obsessões do mundo contemporâneo, e que nos tornam reféns desde muito cedo.

Voltando ao filme, vemos que o resultado é paradoxal. De um lado, nossa personagem se "liberta" de um "destino" traçado antes mesmo de seu nascimento. Ela não viverá para sempre com seu príncipe. Mas, é justamente essa libertação que a permitirá atuar sobre seu próprio destino, construindo-o com seus próprios desejos, e não os de seus pais. É um exemplo que nos mostra o "peso" gigantesco que o desejo dos pais pode ter sobre uma criança que, para defender-se, segue o caminho da patologia, da doença psíquica. Pior, tal desejo dos pais, herdado de forma incondicional, sem negociação, obscurece nossos próprios desejos e até a percepção de que já podemos estar vivendo nosso próprio conto de fadas, ao nosso modo, mesmo sem nos darmos conta disso. E, isso tudo ainda agravado pelo fato de, culturalmente, teimarmos em esperar que um suposto destino se revele esplendoroso sobre nossas vidas. Não dá! Esperança é importante, mas não a ponto de nos tirar a responsabilidade sobre a construção de nosso destino.

(José Henrique P. e Silva - out/2013)

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Por um sentido na vida! (texto 1 - o vazio e a morte)

São tempos difíceis. Guerras devastam as regiões e as pessoas estão famintas, frágeis e doentes. É quando nosso cavaleiro recebe a visita da "morte", que veio buscá-lo. Chegara o seu momento, mas ele resiste e diz que, apesar de seu corpo estar pronto, sua alma ainda não o está, e, num esforço de resistência, propõe um jogo de xadrez para ganhar um pouco mais de tempo. Os fãs de filmes clássicos já sabem que estou falando de “O Sétimo Selo” (1956, I. Bergman), um filme extraordinário que nos leva a pensar na vida a partir de nosso medo da morte.

Mas, pensando nesta partida de xadrez, ela já não estaria fadada ao fracasso, afinal, como se poderia vencer a morte? O fato é que nosso cavaleiro não leva isto em consideração e parte para a disputa. O que tem a perder? Bem, é a partir daí que uma angústia vai se instalando e ele passa a questionar-se: um tempo a mais de vida, mas viver para que? Num certo momento, uma confissão nos mostrará toda a carga desta angústia. É quando ele nos diz:
O vazio é um espelho que reflete meu rosto. Minha própria imagem me causa repulsa e medo. A indiferença que eu sinto pelo próximo me levou ao isolamento. Agora eu vivo em um mundo de assombrações, prisioneiro das minhas próprias fantasias (...) Como podemos ter fé, se não temos fé em nós mesmos? (...) Eu não quero fé ou suposição, eu quero conhecimento! Eu quero que Deus estenda a mão para mim, mostre seu rosto e fale comigo (...) Eu clamo por ele na escuridão, mas parece que não há ninguém lá (...) Então a vida é um terror sem sentido (...) Minha vida se resumiu em buscas sem sentido, a ações e conversas tolas e vazias. Uma vida inteira sem sentido. Não digo isso com amargura ou discriminação, como tantas outras pessoas que também vivem assim. Mas eu quero usar esta trégua [jogo de xadrez] para fazer algo que tenha significado (Antonius Block, o cavaleiro).
Confesso que sempre considerei este trecho do filme magnífico. Uma confissão que nos mostra como uma vida esvaziada de sentido pode intensificar o medo da morte. Não seria, portanto, a morte em si, ou o "nada" que viria após ela, que nos causaria medo e repulsa. Seria o olhar-se no espelho e ver que a vida está seguindo sem maiores significados o que realmente nos espanta, embora não o percebamos tão facilmente. É este espelho, que reflete meu vazio, que me traz, então, o medo da morte como companhia.

Na confissão de nosso cavaleiro ele diz buscar o conhecimento, quer ver Deus, quer uma prova de sua existência, quer algo que lhe dê algum significado além do vazio que sente. Ora, não há conhecimento ou racionalização suficiente que acabe com este medo. A ciência e a religião podem nos fornecer algum amparo e acolhimento, mas não eliminam esse sentimento que Freud, apesar de ter dúvidas sobre ele, o situava num nível muito primário de nossa vida. O tal "sentimento oceânico", que nos impele a ter a esperança de uma proteção contra nossas dores e angústias. Esse sentimento é algo com o que temos de lidar ao longo da vida e que nos impele, portanto, à transcender numa tentativa de encontrar respostas.

Talvez não haja mesmo como vencer a morte numa partida de xadrez, mas pode-se deixar de temê-la. Como? Talvez a resposta esteja na forma como lidamos com nossa finitude. Daí que o melhor talvez não seja especular sobre a morte em si ou o que vem após, e sim sobre nossa própria existência, neste momento. Não é o nosso "fim" que nos atemoriza, mas o fato de nos imaginarmos vivendo uma vida sem significados. Precisamos contrapor ao "medo" uma certa "ingenuidade" em nossa forma de viver. A leveza e a certeza de estarmos dando significados para nossas ações cotidianas é que nos manterá tranquilos e confiantes de ter encontrado um "sentido" para estar vivos. Só isto esvaziaria o sentido do “vazio” e do medo que ele nos impõe.

Mas, me parece que nos dias atuais existem sérios problemas quanto a isso, afinal somos alvos de uma intensa campanha para nos mantermos "imortais", "jovens", “belos” e “fortes”, o que só nos distancia dessa ingenuidade e leveza. Isso é devastador! Puro delírio! Arrogância! São tempos narcisistas, de uma infantil onipotência, de desconhecimento de limites, de não reconhecimento da castração, de forte perversão, enfim, tempos em que nos achamos espertos o suficiente para driblar a morte, numa tentativa de não a temermos. Não são poucas as pessoas que padecem deste mal. A individualidade e a competitividade estão enfraquecendo os laços sociais. Todos nos pedem que sejamos "melhores" que alcancemos logo o "sucesso", e atacam a simplicidade e a leveza como se fossem pragas. E, em grande parte, topamos a brincadeira.

Se continuarmos assim, não só estaremos perdendo a batalha do xadrez para a morte, como estaremos deixando de viver e deixando o vazio tomar conta. Lutar contra esse narcisismo, que só produz onipotências e ausência de limites, é uma tarefa dura, árdua, pois cresce como erva daninha nos lembrando, em muito, aquele homem “selvagem” de Thomas Hobbes que, se deixado à solta, devora ao outro como um lobo esfomeado.

Assim, não é o suposto "vazio" trazido pela morte que mais nos assusta, mas o vazio que permitimos em nossa vida e que, diante de um espelho, nos assusta tanto. É este vazio que também nos transforma em lobos, ou nos faz cair doentes. Não à toa os espelhos da atualidade só nos mostram a aparência de nossos corpos. Mal conseguimos ir além disso. Que interioridade possuímos? Qual a nossa subjetividade? Não a enxergamos mais, nem mesmo sabemos se ainda a possuímos. Nos limitamos severamente ao nosso corpo físico. Me parece muito pouco!

(José Henrique P. e Silva - out/2013)

domingo, 18 de agosto de 2013

Contrapartida (James Joyce, "Dublinenses")

A campainha soou furiosamente e quando a senhorita Parker chegou ao receptor, uma voz irada, com estridente sotaque do norte da Irlanda, gritou:

- Mande Farrington aqui!
A senhorita Parker retornou à sua máquina e, de passagem, disse para o homem que trabalhava numa escrivaninha:
- O senhor Alleyne quer você lá em cima.
"Que vá para o diabo", resmungou o homem, afastando a cadeira para levantar-se...
É desta forma intensa que se inicia este conto de James Joyce ("Contrapartida", publicado em Dublinenses). Farrington, em seu trabalho, e naquele momento em especial, tinha a missão de fazer cópias de um contrato. Cópias à mão é claro. Estava permanentemente sendo cobrado e a lembrança do tempo se esgotando o perturbava imensamente e acabava impedindo-o de melhor se concentrar.

Sua relação com o chefe era a de um ódio contido, mas a ponto de explodir. Sentia-se permanentemente humilhado e não reconhecido. Em certo momento, quando tentou pegar a caneta novamente, sentiu que precisava molhar a garganta. Levantou-se, foi ao restaurante O'Neill e pediu uma cerveja. Logo voltou ao escritório, mas o tempo parecia esgotar-se rapidamente. Não iria conseguir.

A noite escura e nevoenta aproximava-se, aumentando seu desejo de passá-la bebendo com os amigos, em meio ao tilintar de copos nos salões bem iluminados.

Mas, faltavam 14 páginas.

"Maldição". Não iria conseguir. Tinha vontade de blasfemar, de socar alguém... Sentia-se capaz de arrasar o escritório num só golpe. Seu corpo ansiava por fazer alguma coisa: precipitar-se para a rua e desabafar na violência. Todas as afrontas que sofrera na vida vinham-lhe à memória e o encolerizavam...

Apesar do seu mergulho em devaneios, logo a cobrança chegou. Ele não conseguira cumprir a tarefa. As ofensas logo começaram. E, mais uma vez fora obrigado a desculpar-se vergonhosamente. Ansiava cada vez mais pelo bar, mas precisava de dinheiro. Estava muito irritado, mas logo descobriu que, como saída, seu relógio podia ir parar numa casa de penhores.

Atravessou rapidamente a estreita passagem do Temple Bar, murmurando consigo que todos podiam ir para o diabo, pois ele teria uma boa noitada.

Junto aos amigos começou a relatar os incidentes do dia e suas respostas malcriadas. Todos riam e ele sentia-se melhor, mas, com o passar da noite a cólera e o desejo de vingança voltavam a dominá-lo. Além de tudo isto, ainda detestava voltar para casa, pois a mulher o repreendia por andar bebendo.

Ao chegar em casa, sabe pelo filho que a mulher foi à igreja. A criança está com medo, se oferece para preparar a comida do pai, mas deixa o fogo apagar-se no fogão. Neste momento, o pai persegue-o e o agarra pelo casaco golpeando-o vigorosamente com a bengala.

O garoto soltou um gemido de dor quando a bengala atingiu-o na coxa. Ergueu as mãos entrelaçadas e sua voz tremia de pavor:

- Oh, papai! Não me bata, papai. Eu... eu rezarei uma ave-maria pelo senhor... Eu rezarei uma ave-maria pelo senhor, papai, se não me bater... Rezarei uma ave-maria...

Este conto de Joyce é duro, mas nem de longe é uma ficção. É o cotidiano de um homem insatisfeito, humilhado e que, como que numa previsibilidade terrível, alimenta-se de rancor e desejo de vingança. A tragédia faz parte de seu cotidiano, a vida lhe parece um horror, nada o satisfaz e, infelizmente, o desejo de explodir em violência, acaba encontrando no lar, e nas inocentes crianças, o ambiente perfeito para acontecer.

Vale a pena ler... e reler este conto. Podemos, enquanto adultos, nos vermos, ainda que em lampejos, neste homem. Mas, se fizermos um esforço maior, podemos, enquanto crianças, também nos vermos na aflição e no terror daquela criança.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

"O Sétimo Selo" e o medo do vazio (morte)

São tempos difíceis. Guerras devastam as terras. As pessoas estão frágeis e doentes. É quando nosso cavaleiro recebe a visita da "morte". Ela veio buscá-lo, mas ele diz que se seu corpo está pronto, sua alma ainda não está. Ele quer ficar um pouco mais e propõe um jogo de xadrez para ter uma pouco mais de vida. 

Trata-se de “O Sétimo Selo” (I. Bergman, 1956, com Max Von Sidow). Uma partida de xadrez, desde o início fadada ao fracasso, afinal, como se pode vencer a morte? De qualquer forma, ele a enfrentará pois quer continuar vivendo. Mas, a questão é: continuar a viver para que? Em meio à disputa essa questão vai aflorar em um momento de confissão de nosso cavaleiro.
“O vazio é um espelho que reflete meu rosto. Minha própria imagem me causa repulsa e medo. A indiferença que eu sinto pelo próximo me levou ao isolamento. Agora eu vivo em um mundo de assombrações, prisioneiro das minhas próprias fantasias... O conhecimento... é tão inconcebível tentar compreender Deus? Por que ele precisa se esconder por trás de promessas vagas e milagres invisíveis? Como podemos ter fé, se não temos fé em nós mesmos? O que será de nós, que queremos acreditar, mas não conseguimos? E daqueles que não querem ou não podem acreditar? Por que não consigo arrancá-lo de dentro de mim? Por que persiste em viver em mim dessa forma tão dolorosa e humilhante, apesar de eu amaldiçoá-lo e tentar arrancá-lo de meu coração? Por que, apesar de ele ser uma falsa realidade, eu não consigo me livrar dele?... Eu quero conhecimento! Eu não quero fé ou suposição, eu quero conhecimento! Eu quero que deus estenda a mão para mim, mostre seu rosto e fale comigo... Eu clamo por ele na escuridão, mas parece que não há ninguém lá... Então a vida é um terror sem sentido. Ninguém consegue tolerar a morte sabendo que não há mais nada... temos que idolatrar nosso medo e chamá-lo de Deus... Minha vida se resumiu em buscas sem sentido, a ações e conversas tolas e vazias. Uma vida inteira sem sentido. Não digo isso com amargura ou discriminação, como tantas outras pessoas que também vivem assim. Mas eu quero usar esta trégua [conseguida pelo jogo de xadrez] para fazer algo que tenha significado. (Antonius Block, o cavaleiro)
Um trecho magnífico este. Como uma vida sem sentido, vazia, pode intensificar o medo da morte. Não é a morte, portanto, e em última instância, o "nada" que vem após ela, que causa medo e repulsa. É o olhar-se no espelho e ver que a vida seguiu sem um significado. É este medo que nos espanta, que nos assusta. 

É na ânsia de escapar a este medo que projetamos nossas esperanças. Esperanças de felicidade, de uma vida eterna, de um paraíso que venha a nos compensar por tantos erros. Mas, ainda assim o medo persiste. O espelho de hoje me impede de aceitar a morte.

Outro aspecto interessante deste trecho é a tentativa de se usar da racionalização (e do conhecimento) para se tentar entender um sentimento que Freud, apesar de ter dúvidas sobre ele, o situava num nível muito primário de nossa vida, o "sentimento oceânico" que nos move em direção à esperança da existência de um Deus que nos proteja, finalmente, e que não conseguimos, jamais, "explicar".

Vai ficando claro para nosso cavaleiro que não se pode vencer a morte, mas pode-se deixar de temê-la, dando-lhe também um significado. É esse significado que muitos dizem ser impossível dado o seu papel avassalador e destruidor. Mas, é preciso pensar melhor sobre isso, pois podemos muito bem lidar com nossa finitude. Temos um fim, isso é fato, mas não é isto que nos define, e sim o que fazemos e sentimos. Mas, é difícil esse lidar com a morte. Daí nossas infinitas indagações, como as do nosso cavaleiro.

- (morte) Você nunca vai parar de fazer perguntas?
- (cavaleiro) Não! Em tempo algum.
- (morte) Mas não terá respostas.

Não cansamos em querer entendê-la... e temê-la. Diante de uma cena dramática, a da morte de uma camponesa na fogueira, as interrogações continuam:

- (escudeiro, referindo-se à moça queimada viva) O que ela vê? Pode me dizer?
- (cavaleiro) Ela já não sente dor.
- (escudeiro) Quem vai olhar por ela? Os anjos? Deus? O Diabo? Ou apenas o vazio?
- (cavaleiro) Não pode ser
- (escudeiro) veja os olhos dela. Ela parece estar descobrindo algo.  O vazio!
- (cavaleiro) Não!
- (escudeiro) Estamos indefesos. Pois vemos o que ela vê e tememos também.

A presença da morte é tão intensa no filme como, por vezes, em nossa vida. Mas, o filme nos deixa algo a pensar: Por que temer tanto a morte se podemos levar a vida com mais pureza e leveza, fazendo da "arte" aquilo que, também, nos dá sentido? Sim, a arte tem um papel importante no filme. 

A resposta talvez seja não tentar vencer a morte, mas viver com maior felicidade, quase que num estado de "ingenuidade". A racionalidade não nos fornecerá armas adequadas para vencer a morte, mas a leveza nos manterá tranqüilos e confiantes de ter encontrado um "sentido" para a vida. Só isto esvazia o sentido do “vazio” e do medo que ele nos impõe.

Nos dias atuais, quando a meta é ser "imortal", quando o maior objetivo é parecer sempre "jovem", estamos cada vez mais distantes da leveza e da tranqüilidade, e isso é devastador. Não só estamos perdendo a batalha do xadrez para a morte, como estamos deixando de viver. O filme é clássico, afinal, a questão da morte não se desatualiza. 

Não é o suposto "vazio" trazido pela morte que mais nos assusta, mas o vazio que permitimos em nossa vida.

terça-feira, 9 de julho de 2013

A Clínica do Vazio / Autismo (D. Zimerman)


Mas, não é tão simples. Pode até ser que haja algum grau de verdade na frase "constrói um mundo só para ele", mas, mesmo que exista, não explica quase nada. A criança autista luta contra duas fontes de medo, uma externa (realidade) e outra interna (o vazio). Tanto o mundo externo lhe assusta quanto o vazio interno, e ela vai vivendo na busca deste equilíbrio sempre precário. E é aí que entram as diversas ajudas, no sentido de lhe permitir a segurança necessária para alcançar melhores níveis de simbolização sobre o mundo externo e começar a construir relações mais fortes com os diversos objetos externos, preenchendo, ao mesmo tempo, seu universo psíquico.

No desejo de deixar aqui, para consultas sobre o autismo, algum bom texto introdutório, logo lembrei de David Zimerman, que é um dos autores e psicanalistas brasileiros que mais gosto de consultar. A filiação a W. Bion explica boa parte dessa minha admiração por ele. Em um dos seus diversos trabalhos* nos oferece uma boa visão acerca de inúmeras patologias e, mais que isso, nos ajuda a pensar sobre o manejo técnico necessário para a terapêutica psicanalítica. Neste momento, então, vou me concentrar em sua fala acerca da Clínica do Vazio. Seleciono aqui, alguns dos principais pontos de seu texto. 

Zimerman é categórico quanto à esta maior inclinação por parte da tradicional psicanálise das "neuroses" em direção, também, às "fixações mais primitivas", relativas aos momentos pré-edípicos, aos instantes iniciais da vida do bebê. Uma dessas fixações primitivas é o que chama de "transtorno autístico", no qual, como dissemos acima, a criança parece "desligada do mundo". Trata-se de uma criança que não olha "para" a pessoa e sim "através" dela. A pessoa, em vários casos, não serve como objeto para que se construa uma relação. Esse é um trabalho difícil e duradouro.

Tais crianças sofrem de um "vazio" cuja origem é anterior ao conflito de pulsões e defesas (mecanismo típico das neuroses), ou seja, não chegaram a neurotizar, ficaram em uma etapa anterior, numa ausência quase absoluta de emoções. Estão, dessa forma, repletas de "buracos negros" (1), que sugam sua luminosidade interna (desenvolvimento pulsional, emocional), ao mesmo tempo que a protegem da ameaça de sofrimentos (2). É, certamente, para muitos, como imagino, um "beco quase sem saída".

Mas, tais estados autísticos não são exclusivos de crianças, pois são encontrados em estados neuróticos de adultos com psicopatologia regressiva (borderline, psicoses, perversões, drogadições etc.), e Zimerman nos diz que o ponto comum é a separação traumática do corpo da mãe. É esta separação traumática que leva às primitivas faltas e falhas da maternagem. O autor nos aponta três falhas principais:

1) Falha em ser "continente" das angústias do bebê. Aqui, o termo "continente" me parece estar no sentido de abarcar, conter, acolher as angústias do bebê. Nesse caso, a angustia do bebê, diante das imposições do mundo real, não encontram acolhida por parte da função materna. Acredito que falta aqui o braço que envolve e acolhe;

2) Falha em ser "provedora" das necessidades biológicas, físicas e afetivas do bebê. A falha aqui, me parece, é mais no sentido da função materna não ser uma fonte de origem de cuidados, tanto materiais quanto afetivos. Falta a provisão, o atendimento às necessidades, o toque;

3) Falha em exercer a "função de espelho", devolvendo para a criança um olhar de alegria e não de rancor, depressão, enigmático, que pode significar que ela é má e que ela é responsável pelo sofrimento da mãe (coloca a criança em posição de culpa). Neste caso, "função de espelho" significa, em grande parte, o "olhar" da mãe;

Por isso que Zimerman nos diz que, pior mesmo é quando este olhar, este "espelho" não reflete "nada", nem amor, nem raiva, deixando a criança em confusão e desamparo, o que é muito comum em mães depressivas - aquelas mesmas mães que André Green classificou no "complexo da mãe morta", ou seja, uma mãe que está viva, mas que carrega permanentemente um "luto branco", como se estivesse morta. Nesse sentido, a introjeção que o bebê fará, então, será a de uma mãe sem vitalidade (3). Não podemos esquecer que este é o momento em que o bebê está, justamente, fazendo a introjeção, para seu nascente campo psíquico, de elementos do mundo externo, que ele vai classificar como bons ou maus. essa introjeção de uma mãe "sem vitalidade", portanto,
... resulta em crianças deprimidas, as vezes com a depressão encoberta por hiperatividade reativa (p. 290).
Trata-se, segundo Zimerman, de uma identificação inconsciente entre o bebê e a mãe. Uma identificação que resultará em um sentimento de vazio que acompanhará a criança e se fará sentir, por ela, como um fracasso pessoal
Deve ficar claro, no entanto, que tais crianças crescerão, ficarão adultas, de modo que, de uma forma ou de outra, continuarão portando esses "buracos negros", por meio de múltiplos e variadas configurações caracterológicas e de manifestações clínicas mais, ou menos, manifestas e ruidosas, tudo isso englobado pelo fator comum que é a existência de vazios existênciais, constitui o que está sendo denominado como "clínica do vazio" (p. 291).
Tais crianças desenvolvem, então, "crateras afetivas" que as levam a criar "barreiras autísticas", numa espécie de "desligamento da realidade". A partir daí tornam-se crianças apáticas, com olhar perdido, alimentando-se passivamente; ligados de forma mecânica a algum brinquedo, e com reduzida capacidade de aprendizado e comunicação verbal. 

Houve, segundo Zimerman, um "congelamento" da mãe. Faltou à criança esse suporte inicial que estruturaria seu campo psíquico de forma mais segura. Diante disso, a criança passa, em geral, por três etapas principais (mais à frente, o autor sugere uma quarta etapa):

1) Protesto - manhas, choros, gritos e sintomas somáticos (corpo);

2) Acomodação - apatia depressiva;

3) Desesperança - aqui, a criança nada mais espera do mundo exterior e passa a construir barreiras contra o mundo hostil, e, nessa concha autística, vai apegar-se, cada vez mais, às suas fantasias;

São crianças, então, que muito se utilizam da projeção, de forma excessiva, e, em casos mais graves, se utilizam de uma supressão radical, ou foraclusão, daquilo que ocorre na mente. Eles tentam "expulsar" tudo o que consideram ameaçador e, como não houve quase nenhuma introjeção de objetos bons (maternos), o resultado é um "vazio", uma quase incapacidade de simbolizar qualquer elemento do mundo externo. Essa é uma estagnação extremada. Em muitos casos, há uma evolução, mas, não obstante, tais pacientes,
ergueram, e continuam erguendo, muralhas defensivas contra a angústia de desamparo, de desmoronamento psíquico, contra os medos de uma perda de identidade, ameaças de indiferenciação com os demais, de não existir como pessoa (p. 291).
Para escapar ao vazio, é comum o uso de mecanismos psicóticos e perversos, como certas formas de sexualidade aditiva (recurso para fugir "para" o outro e "dentro" do outro), de busca imaginária de um nirvana primitivo, de somatizações, de congelamento dos afetos ("fugir" dos outros), de controle tirânico de si e dos demais, de prepotência, de fuga de verdades que toquem feridas etc. Por outro lado, para evitar a culpa e a depressão surge uma "tríade maníaca": controle, triunfo e desprezo sobre todos os demais. Para a criança, não há como cair na vala comum da igualdade aos demais, pois o nivelamento só traria mediocridade. Mas ele precisa ser "visto", como uma espécie de garantia de que "existe".
Nos casos mais extremos pode surgir uma quarta etapa:
4) Desistência - o suicídio pode ser visto como a única saída;

Mas, e quanto ao manejo técnico? De acordo com Zimerman, a abordagem técnica exige algo de distinto em relação aos pacientes neuróticos comuns:
  • A criança não está simplesmente fugindo, isolando-se. Ela está perdida, pois ergue uma espessa muralha defensiva contra o mundo, pois pouco se beneficiou dos estímulos necessários ao seu desenvolvimento emocional. Por isso, ela deve ser "encontrada" e "sacudida" de seu estado de "desistência" e conformação em relação à vida;
  • É necessário proporcionar à criança ou adulto algum tipo de "experiência de ligação", já que pouco adiantam as interpretações, ainda que corretas, pois o paciente está encapsulado. Por vezes, nem a "continência" do analista funciona bem pois o paciente, geralmente, "não está nem aí", e não fica sensibilizado. É bom lembrar que essas crianças estão "perdidas", esperando que alguém vá até elas. Por isso, o setting funciona, as vezes, como um "útero materno" psicológico, uma "incubadora" para que o self prematuro se desenvolva. É fundamental sacudir as emoções que estão congeladas;
  • A importância de sacudir está, também, em se obter os "gritos de protesto", transformando a desistência em existência, abandonando o "namoro com a morte";
  • Há um grande risco para o analista, que é o de instalação de uma "contratransferência de desistência", a partir de um comportamento do analista também distante, apático, desesperançado. Essa atitude inviabiliza a terapia com esse tipo de paciente já que o analista deve funcionar como uma "mãe viva" suprindo as falhas da "mãe morta";
  • São "pacientes difíceis" no acesso, pois: falam de situações e coisas, mas não da relação entre elas; não fazem ligações do inconsciente com o consciente; do passado com o presente e o futuro; dos fatos com os afetos; da sequência de fatos relatados com suas consequências etc. Além disso, em casos de presença de componentes psicóticos, a linguagem passa a ser linear, sem abstrações excessivas ("crenças"), narrativa enfadonha, por vezes pouco inteligível; ou mesmo o mutismo quase absoluto. O risco da contratransferência aqui é a da paralisia, impotência, não-entendimento, tédio;
  • A respeito da transferência, quase sempre é natimorta, embora os parentes se apeguem à análise (motivados pela esperança de preencher o vazio), mas quase sempre com os afetos congelados para não sofrer decepções ou cair em uma "dependência má";
Zimerman destaca, ainda, dois tipos de portadores de vazios:

1) Os que têm o seu psiquismo invadido pelos "buracos negros" (para os quais valem as indicações de manejo anteriores);

2) Os que superpuseram à subjacente camada vazia de sua personalidade um conjunto de defesas mais bem organizadas, a ponto de terem um pensamento lúcido e uma linguagem bem-articulada, com vínculo transferencial e boa ligação entre ideias e afetos, além de bom êxito social e profissional. Para estes, quando diante de traumas regridem, emerge uma constelação de angústias primitivas que se traduzem em "atuações" principalmente masoquistas; sintomas somáticos; confusão; uso de drogas; persecutoriedade; conduta maníaca; ou submergem na depressão (desistência);

Nestes casos, em que há uma clivagem, a atividade interpretativa do analista é de natureza "binocular", ou seja, um olho no vazio, e outro na valorização das capacidades do paciente, reconhecendo seus avanços analíticos, por mínimos que sejam.

É preciso, ainda, ter cuidado com interpretações excessivas que mais parecem "invasões". E, por outro lado, o uso de metáforas é recomendável pois provocam maior efeito de percepção e compreensão sobre a realidade.

A necessidade de reconhecimento, por parte do paciente, é muito alta. Ele precisa se sentir "olhado", do contrário, identifica o analista às falhas que levaram ao seu vazio. Assim,
Mais do que o correto conteúdo de uma interpretação formal, a função do terapeuta diante da clínica do vazio - isto é, diante de sentimentos extremamente intensos, transbordantes ou congelados, de decepções, angústias, ódio e medo - age terapeuticamente, mais pelos atributos reais do analista: sua sensibilidade especial, intuição e empatia; escutar atentamente com um real interesse; conversar em tom de voz apropriado; perguntar como forma de o paciente sentir que tem algum amigo que realmente está ao lado dele; ser continente daquilo que para esse paciente parece ser uma carga horrível. Tudo isso concorrendo para o que, de fato, é o mais importante na clínica do vazio, ou seja, que o paciente sinta que, verdadeiramente, o analista sobreviveu aos seus ataques e indiferença, e, juntamente com ele, está vivo e presente! (p. 294).
Belo texto o de Zimerman, fornece um excelente ponto de partida para estudos mais aprofundados sobre os autismo.

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(*) ZIMERMAN, David. E. Manual de Técnica Psicanalítica. - Porto Alegre: Artmed, 2004.
(1) Expressão usada por F. Tustin, em "Estados Autistas em Crianças". Rio de  Janeiro: Imago, 1986).
(2) É neste sentido que a criança autista se defende de dois grandes temores: o medo do mundo externo e suas ameaças, e o medo do vazio interno.
(3) Nesse momento, é interessante relembrar que Bion concebia que a criança tanto pode internalizar o seio bom ("mais seio"), que alimenta, quanto o "menos seio", ou seja, aquele que está "ausente na presença". Mas, o mais grave é o "não seio", aquela situação em que não existe uma representação do seio ("mãe") e só existe um vazio. O "não seio" é o "nada".