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quinta-feira, 8 de maio de 2014

A genialidade do pensamento alemão

Se na música e no cinema tenho uma forte "queda" pelos ingleses, confesso um profundo respeito e admiração pelo "gênio alemão" e sua intelectualidade. Não quero fomentar discussões com isso, apenas acredito que exista uma cultura na Alemanha que se reproduz fazendo com que uma geração sempre assuma, com grandiosidade, os desafios do pensamento levados a cabo pela geração anterior, mantendo o gosto pelas "grandes questões" e sua discussão em profundidade e abrangência, um pouco diferente do pragmatismo inglês e do proselitismo francês. Mas, isso é só uma impressão.

Pensei sobre isso a partir de uma resenha no Estadão da autoria de Brian Ladd, jornalista e sociólogo sobre o livro The German Genius, de Peter Watson. O livro é uma compilação de contribuições essenciais feitas pelos alemães nos campos da filosofia, teologia, matemática, ciências naturais e sociais e arte, desde 1750. O que parecia estar claro na virada do século XIX para o XX era que havia algo de especial na cultura alemã, a ponto de alguns a colocarem como única herdeira das civilizações clássicas de Grécia e Roma.

De acordo com Watson, devemos a eles nosso conceito de História. O seu romantismo e erudição instalaram a verdade e a criatividade na mente humana. Nomes como Kant, Hegel, Goethe, Marx, Nietzsche e Freud, buscaram sentido para um mundo em total movimento. Inventaram a universidade moderna, que combinou ensino e pesquisa. Desenvolveram uma burocracia especializada, como uma espécie de rival da autoridade. E, o mais decisivo, para muitos, voltaram-se para o interior com o objetivo de encontrar verdades que não estivessem ancoradas na razão nem na revelação divina. Esta é a marca do "individualismo subjetivo moderno".

Freud, então, é fruto deste ambiente, desta ousadia metafísica, deste não contentar-se com a razão, nem com a religião. Da mesma forma que foi fundo na mente humana, foi abrangente ao olhar para a sociedade. Profundidade e abrangência, é esta combinação, para mim, que produz genialidades. Mas, veio o nazismo, o holocausto, e como definir esta "genialidade"? É possível deixá-los de lado ao se observar a cultura alemã? O que significam no conjunto da cultura alemã? Hitler foi o ponto culminante dessa genialidade? Não acredito! São questões delicadas e que exigem reflexão. Só não podem é obscurecer que existe uma vontade de potência naquele pensamento, que também revela seu lado trágico, e que marcou a sociedade alemã em todo o século XX.

(José Henrique P. e Silva)

sábado, 12 de abril de 2014

A psicanálise e o "pré-conceito"

Essa é uma das frases mais poderosas de Freud. Gosto porque é provocativa. Não fala somente da "psicanálise", fala de "PRE-CONCEITOS" ou seja, aquela atitude que teimosamente temos em, antes de conhecer algo, emitir juízos condenatórios e pejorativos.

Ou seja, quantas vezes nossas "antipatias" só servem mesmo para nos manter ignorantes em relação ao outro? No caso da psicanálise isso é muito comum. 

Só a respeita quem a conhece, e só a conhece quem não tem medo de reconhecer as próprias dores e de ver o homem como um sujeito psíquico, além de social e biológico.

(José Henrique P. e Silva)

Sobre a Psicanálise (Freud, 1913 [1911])

Em março de 1911, Freud recebeu um convite do Dr. Andrew Davidson, secretário da Seção de Medicina Psicológica e Neurologia para escrever, ler e publicar um artigo nas Atas do Congresso Médico Australasiano (Sidney, setembro/1911). Trata-se de um texto muito curto, mas bastante elucidador sobre o papel da psicanálise. Vejamos os principais pontos.

Freud nos diz que a psicanálise, como um método de pesquisas das neuroses e sua etiologia (causas), não é fruto de especulação e sim de experiências científicas que precisam ser continuadas. Tudo teria começado com as pesquisas sobre a histeria (Estudos sobre a Histeria, 1895 - Freud e Breuer) que tomaram impulso a partir dos rastros de Charcot (histeria "traumática"), Liébeault e Berheim (hipnose) e Janet (processos inconscientes).

Aos poucos a psicanálise foi recusando várias explicações limitadas às questões hereditárias e congênitas e foi acentuando a importância dos processos psíquicos na formação de doenças. Um exemplo foi mostrar que os sintomas histéricos são resíduos (reminiscências) de experiências traumáticas e afastadas do consciente através de um processo de "repressão" onde parte do material psíquico é mantido no inconsciente.

Trata-se de uma visão "dinâmica" pois encara os processos psíquicos como deslocamentos de energia psíquica que podem ser medidos pelo valor de seu efeito sobre os elementos afetivos (p. 226). Na histeria isto é muito presente pois a "conversão" cria os sintomas pela transformação de boa quantidade de impulsos mentais em inervações somáticas.

No início, os primeiros tratamentos foram feitos com o auxílio do hipnotismo, logo abandonado pela "associação livre' que permitia estender o método a mais pessoas. Mas, com isso, foi necessário desenvolver uma técnica de "interpretação" sobre o que era dito pela pessoa. A partir daí começou a ficar claro que as dissociações psíquicas surgiam de "conflitos" e eram sustentadas por "resistências internas" que mantinham a "repressão". Superar os "conflitos" seria fundamental para o tratamento.

Mais tarde, chegou-se à conclusão que os conflitos se davam sempre entre os instintos sexuais (no sentido amplo) e os desejos e tendências do restante do ego. Nas neuroses, por exemplo, esses instintos sucumbem à repressão e se tornam a base mais importante para o surgimento de sintomas (encarados, então, como substitutos das satisfações sexuais reprimidas).

Outro desenvolvimento importante da psicanálise foi acrescentar o fato "infantil" ao somático e ao hereditário, chegando à conclusão que inibições no desenvolvimento mental ("infantilismos") apresentam uma disposição à neurose. Ou seja, existe uma "sexualidade infantil". O instinto sexual, desde muito cedo, atravessa um complicado curso de desenvolvimento cujo desfecho deveria ser a sexualidade "normal" nos adultos. Isso nos mostra que, por exemplo:
As enigmáticas perversões do instinto sexual que ocorrem em adultos parecem ser inibições de desenvolvimento, fixações ou crescimentos assimétricos. Assim, as neuroses são o negativo das perversões (p. 227).
Mais um desenvolvimento importante da psicanálise foi perceber que o "desenvolvimento cultural" da humanidade é um forte fator que torna inevitáveis as repressões do instinto sexual, proibindo a satisfação da libido e exigindo sua supressão.

Na sequência, percebeu-se que o instinto sexual tem a capacidade de ser "desviado" dos seus objetivos sexuais diretos para metas mais elevadas ("sublimação") como as realizações sociais e artísticas, por exemplo. Dessa forma,
O reconhecimento da presença simultânea dos três fatores de "infantilismo", "sexualidade" e "repressão" constitui a principal característica da teoria psicanalítica e assinala sua distinção de outras visões da vida mental patológica (p. 227).
Ao mesmo tempo,
A psicanálise demonstrou que não existe diferença fundamental, mas apenas de grau, entre a vida mental das pessoas normais, dos neuróticos e dos psicóticos. Uma pessoa normal tem de passar pelas mesmas repressões e lutar com as mesmas estruturas substitutas; a única diferença é que ela lida com estes acontecimentos com menos dificuldade e mais sucesso (p. 227).
Não à toa a psicanálise enveredou pela investigação dos fenômenos psíquicos normais, como os sonhos, os pequenos erros da vida cotidiana, os chistes, os mitos e as obras da imaginação, sempre com o objetivo de obter maior compreensão interna (insight) da vida psíquica inconsciente.

Porém, apesar de todas estas conquistas, Freud denuncia a tendência nos círculos médicos a contradizer a psicanálise sem estudos reais ou aplicações práticas, talvez porque as premissas e a técnica da psicanálise estejam mais próximas da psicologia que da medicina. Mas, Freud questiona: O que os ensinamentos puramente médicos fizeram pela compreensão da vida mental?

O fechamento da comunicação de Freud é impressionante. Faz um alerta com uma força esplendorosa!
O progresso da psicanálise é ainda retardado pelo termo que o observador médio sente de ver-se a si mesmo em seu próprio espelho. Os homens de ciência tendem a enfrentar resistências emocionais com argumentos e, assim, satisfaze-se a si mesmos para sua própria satisfação! Quem quer que deseje não ignorar uma verdade fará bem em desconfiar de suas antipatias e, se quiser submeter a teoria da psicanálise a um exame crítico, que primeiro se analise a si mesmo (p. 228).
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FREUD, S. Sobre a Psicanálise. In: Obras Psicológicas Completas: Edição Standard Brasileira. Volume XII – O Caso Schreber, Artigos sobre Técnica e outros trabalhos (1911-1913) , pág. 221-229.

A psicanálise como procedimento científico

Esta frase de Freud foi dita em um pronunciamento seu, em 1911, em um Congresso de Neurologia e Psiquiatria na Austrália. A psicanálise dava seus primeiros passos, mas já era bastante discutida em várias partes do mundo. Ao inciar sua fala Freud já nos chama a atenção para este ponto: a psicanálise como um procedimento científico. 

Freud dedicou toda sua vida profissional a sustentar esta nova ciência. Teve desafetos, enfrentou a descrença da medicina, lutou contra os preconceitos da sociedade, teve seus livros queimados pelos nazistas, mas produziu e escreveu como poucos, nos deixando um legado que ainda está por ser plenamente entendido. 

Hoje em dia, quando a Neurociência, com todo o seu avanço tecnológico de "mapeamento das funções cerebrais" através de imagens, comprova praticamente todas as teses de Freud, isso não surpreende quem conhece Freud. Mas, insisto, é um erro acreditar que a Neurociência "prova" alguma coisa. 

O que Freud escreveu, na sua imensa maioria das vezes, foi fruto de sua experiência clínica e não de especulações. Foi a partir do estudo, observação e tratamento de seus pacientes que pôde nos deixar uma nova ciência. Cabe continuar o seu trabalho, e enfrentando-se a mesma ordem de resistências e preconceitos por parte daqueles que tentam ignorar ou minimizar a importância de nosso psiquismo. Freud fez ciência a todo instante, quem especula são aqueles que não o leram.

(José Henrique P. e Silva)

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Progresso: Tecnologia ou Civilização?


Embora se possa dizer que Freud era um Iluminista, pois tinha a crença na capacidade humana de colocar o conhecimento a seu favor fez, talvez, a maior crítica que o pensamento iluminista poderia sofrer em toda a sua história, ao destacar o conceito de "inconsciente" e apontar que nossa capacidade "racional" não é tão inabalável quanto imaginávamos. 

Nesta frase, ele deixa claro um aspecto fundamental desse nosso "mal-estar" ao contrapor o desenvolvimento tecnológico (subjugação e controle da natureza) ao progresso nos assuntos humanos (capacidade de construir uma moral e viver em sociedade na civilização). Nesse aspecto Freud continua imbatível, pois apesar de contínuos avanços tecnológicos a humanidade ainda se arrasta em termos de avanço cultural e civilizatório deixando que sua agressividade e intolerância ainda sejam suas principais marcas e heranças. 

Ai de quem acredita que o progresso é ditado pelo avanço tecnológico. Isso pouco nos diz respeito enquanto humanidade, pois está longe de estar a seu serviço... muito longe!

(José Henrique P. e Silva)

sábado, 14 de dezembro de 2013

Freud - Aspectos da vida e obra

" Que progresso estamos fazendo. Na Idade Média, eles me teriam atirado na fogueira; hoje, eles se contentam em queimar meus livros..." (Freud).

Esta frase foi dita por Freud, em 1933, assim que soube que os nazistas, na Alemanha, tinham atirados seus livros à fogueira, e que o oficial alemão teria gritado: "contra a glorificação da vida instintiva que destrói a alma". O episódio é interessante pois faz lembrar que Hitler e Freud viveram uma mesma época em Viena, no início do século. Num momento em que Freud estava no seu maior vigor intelectual e Hitler conhecia um dos piores momentos de sua vida, chegando a dormir na rua por falta de recursos. Anos depois, a situação se inverteria. Hitler, caminhando para seu avanço nazista e destrutivo, prestes a anexar a Áustria, e Freud conhecendo a decadência física proporcionada por seu câncer e a própria velhice, prestes a se refugiar na Inglaterra. Mas, ainda assim, extremamente lúcido. No final, a história deu a cada um o seu devido tamanho e lugar. A I Guerra Mundial e a ascensão do Nazismo foram episódios que em muito influenciaram Freud a desenvolver o seu conceito de "pulsão de morte" e a expandir a psicanálise para a compreensão do "social" e do "político", com o seu conceito de "mal-estar", como algo inerente à natureza humana, seja no indivíduo, seja na sociedade.
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"Não aguento ficar sendo olhado... durante oito horas por dia (ou mais)..." (Freud)

Freud disse essa frase referindo-se à sua posição, sentado em sua poltrona à cabeceira do divã, fora do alcance visual de seus pacientes. Foi assim que se comportou durante bom tempo dos mais de 50 anos em que recebeu seus pacientes na Bergasse 19, sua casa em Viena, onde utilizava os fundos da casa. Talvez seja só nisso mesmo que se resuma a "importância" do divã que virou símbolo máximo (e caricatura) da psicanálise. Mas, foi aí neste lugar que Freud cada vez mais recolheu-se a partir do início de 1938, quando ao mesmo tempo que se submetia a mais, e dolorosas, cirurgias de seu câncer na mandíbula, Hitler colocava em prática seu desejo de anexação (Anschluss) da Áustria convocando o Chanceler desta para dizer-lhe que estava disposto a reparar este ato de "traição" histórica da Áustria. Foi nesta conversa com o Chanceler Schuscnigg que Hitler disse: "eu tenho uma missão histórica e vou cumprir esta missão, porque a providência me destinou a isso. Acredito inteiramente nessa missão, ela é minha vida". Seus delírios já haviam chegado a um ponto incontrolável.
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"O objetivo de toda vida... é a morte..." (Freud)

Freud sempre foi visto como um "advogado de Eros", um legítimo defensor da pulsão de vida, daquilo que nos impulsiona à satisfação do desejo, do prazer. Mas, um de seus conceitos mais intrigantes (embora pouco aprofundado pelo próprio Freud) foi o de "pulsão de morte". Aquela força, aquela ânsia, de se voltar a um estado de satisfação primordial, praticamente em um estado de decomposição. Ele dizia que, afinal de contas todos íamos mesmo morrer. E morrer, talvez significasse esse retorno a um estado de prazer há muito perdido pelo homem. É este conceito que está presente em muitas patologias psíquicas. Quantas vezes não desejamos a "morte", simbolizada naquele sonho impossível, naquela volta a uma situação onde experimentamos felicidade. Tudo isto pode simplesmente nos paralisar, nos aprisionar. A pulsão de vida, se nos leva a caminhar, a pulsão de morte nos faz querer ficar, como que inertes... depressivamente inertes!
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"Martha é minha...a moça doce de que todos falam com admiração, que apesar de toda minha resistência cativou meu coração já em nosso primeiro encontro, a moça que eu temia cortejar e que se aproximou de mim com magnânima confiança, que fortaleceu minha fé e minhas energias para trabalhar, quando eu mais precisava delas..." (Freud - carta à Martha)

Apesar de sua obstinada disposição investigativa Freud era também um homem romântico. Idealizou a imagem de sua futura esposa e seus laços com os amigos eram fortemente afetivos, complexos, intensos e repletos de ciúmes. Um homem como vários de nós. E isso nada tem a ver com ser "perfeito".
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"Crio meus filhos... como filhos" (Freud)

Muitos fantasiam a ideia de que um psicólogo ou um psicanalista é sempre feliz e está bem "resolvido" ou, pelo menos, que isso fosse uma "obrigação" para ele, já que vai "cuidar" dos outros. Hum... complicado isso! Freud, certa vez, disse que criava seus filhos, como "filhos". O que isto significa? Talvez o mesmo que dizer que um cardiologista também pode... vir a morrer de uma deficiência no coração. Outra vez, respondendo à uma mãe que lhe questionara sobre métodos eficazes para a educação do filho, ele respondera que tudo o que ela fizesse poderia vir a dar errado. Ora, mulheres, amigos, filhos, não são pacientes, não estão sob análise. Como abrir mão disso? É na relação mais convencional com os que estão ao nosso lado que nos mostramos como realmente somos, passíveis de erros, de avaliações equivocadas, mas é onde mostramos também nossa paixão, nossos desejos... tudo aquilo que nos torna humanos e naturalmente imperfeitos. Tudo, ao final, é só uma fantasia mesmo, pois da mesma forma que precisamos ser implacáveis contra os erros em nossa profissão, necessitamos ter um espaço para errar, junto aos que estimamos. É isso que nos faz crescer.


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"Havia uma atmosfera de pânico em Viena que agora acalmou-se um pouquinho. Nós não nos juntamos ao pânico. É muito cedo, ainda não se podem prever as consequências de tudo que aconteceu. Por enquanto tudo continua como estava antes..." (Anna Freud - carta a Ernst Jones).

Anna, filha de Freud, escreveu esta carta a seu amigo Jones, já em meio a uma possível mudança para Londres, em exílio. A carta foi escrita pouco depois de 20/02/38 quando de um fortíssimo discurso de ódio contra a Áustria, proferido por Hitler no Parlamento alemão. Era inevitável e próxima a anexação. Na verdade, Freud nunca cogitara partir, mesmo nas fortes crises anteriores. Ele amava Viena, embora sofresse por suas ideias e por ser judeu.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

O "caso Elizabeth" e a Histeria

O caso Elizabeth é um dos casos chamados "pré-psicanalíticos" de Freud e é fundamental para a estruturação dos alicerces de sua teoria psicanalítica. Trata-se de um caso que tem muito a dizer acerca da histeria. 

Historicamente, a questão da histeria sempre disse respeito ao "corpo". Eram como que "humores" e "vapores" do corpo que, de alguma forma, alcançavam a mente. Ou seja, o corpo "enlouquecia". Só no século XIX é que a histeria passa a ter "no" corpo o local de sua manifestação, deixando de ser algo "do" corpo, mas da ordem do psicossoma.

A histeria seria, portanto, um modo mais "barato" para se lidar com a energia estrangulada. Barato no sentido de poder-se utilizar de deslocamentos dessa energia para escapar ao sofrimento intenso e se encontrar uma forma mais amena de sobrevivência. Nessa escala, o modo mais "caro" poderia ser o autismo, que acaba por cortar a relação com a realidade. 

No caso de Elizabeth, sua perna era quem simbolizava suas questões edípicas, era ali que tudo se manifestava. A perna carregava em si suas questões. O corpo estaria ocupando o lugar, portanto, de um psiquismo que não dá conta de suas questões. Aliás, isso é a base da psicossomática.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Temos medo de que? (Angústia - Alain Vanier)

O ponto central desta conferência de Alain Vanier (1) é a tentativa de melhor entender o "medo" na contemporaneidade, e sua relação com o enfraquecimento das "figuras tutelares". De imediato, destaca o quanto é rico o campo semântico que constitui o vocabulário do "medo", mas quase nunca especifica bem. Que singularidades este, tão universal, "medo" tem assumido na história? Trata-se de uma questão muito interessante, mas o que o autor faz é partir do entendimento da psicanálise, e a partir daí chegar a uma compreensão atual. 

Freud associou o medo à angústia (angst) e esta entrou para o vocabulário da psicopatologia, dando à ela um estatuto mais importante, com a "neurose de angústia" (em 1895, ao distinguí-la das neurastenias). Para a psicanálise, a angústia seria vista como o "afeto principal", "fundamental", tendo uma estreita vinculação com nosso corpo. Mas, não significa um "ressurgimento de nossa animalidade", uma espécie de "reação". De fato, então, a palavra "angústia" é a que melhor fala do "medo", no sentido psicanalítico.
 
Vanier nos lembra que, para Freud, a angústia corresponde a uma tensão física que não pode ser elaborada psiquicamente, e essa tensão é sexual, sendo, em seguida, articulada à teoria do recalcamento. Ou seja, tendo a "representação" recalcada no inconsciente, o "afeto" é deslocado, não mais se reconhece, e se transforma em uma angústia que parece não ter objeto.
 
Estimulado pelos efeitos clínicos da I Guerra, Freud propõe uma divisão de medos e angústias em três categorias, em função de sua "relação com o perigo": 
  • a angústia — Angst — que se refere a um estado e "abstrai do objeto". O perigo pode ser desconhecido e provoca um estado de espera e de preparação;
  • o medo (Furcht), que exige um objeto determinado e dirige sua atenção para este;
  • o pavor, (Schreck) que é efeito de um perigo que não é preparado por alguma forma de alerta, não é preparado pela angústia, é marcado pela surpresa;
É isso que leva Freud a dizer que nos protegemos daquilo que nos apavora por meio da angústia. Inúmeras neuroses seriam o modo explícito de uma manifestação de pavor. Essa articulação entre medo e angústia seria mais nítida na fobia.
 
Ao longo dos anos 1920, porém, Freud vai propor uma segunda teoria da angústia ("Inibição, Sintoma e Angústia") onde não é mais o recalcamento que cria a angústia, mas sim "a angústia é que faz o recalcamento". Nesse caso, a angústia sobrevém de um perigo extremo, real. É aquela angústia, por exemplo, da criança diante da possível perda do amor da mãe. É vista como uma "angústia originária". Dessa forma, como nos diz Vanier,
A angústia é um sinal no eu, ela adverte o sujeito de um perigo que é o de um desejo enigmático que envolve seu ser como perdido e passível de anulação, seu ser como objeto que pode ser, sem saber qual, para o desejo do Outro. Só então o recalcamento intervém.
Um exemplo, estudado por Freud, está no artigo sobre o "pequeno Hans" (1909), com 4 anos e acometido por uma fobia. É um momento em que a descoberta do órgão sexual está se dando e as ereções já não acontecem simplesmente vinculadas à micção, e geram sensações desconhecidas e incontroláveis. É dessa forma que a "descoberta" da sexualidade aparece como o lugar por excelência do fracasso do domínio de si mesmo
 
No caso de Hans, o nascimento de uma irmãzinha só alimenta seus questionamentos, e logo sua fobia vai se desenvolver, principalmente quando sonha com sua mãe abandonando-o. Mais tarde, a fobia a cavalos seria o lugar da transposição da angústia, ou seja, o medo de ser devorado (abandonado) pela mãe gera o sintoma (medo do cavalo devorá-lo). Ele não sabe mais acerca do amor de sua mãe.
 
Imaginando-se não desejado pela mãe, ele sai do campo do imaginário desta e cai no campo da "angústia", substituindo o medo pela fobia
Esse medo, diferentemente da angústia, tem a vantagem de estar focalizado num objeto; de algum modo é um posto avançado da angústia. Paradoxalmente, esse medo tem uma função estruturante. Introduz uma ordem — exorbitante, é bem verdade — no mundo dessa criança: há, assim, lugares onde pode ir, onde ela não tem medo, e outros onde ela não pode ir. 
É assim que a fobia acaba por ajudar a criar um "exterior" e um "interior", pois, até então, a criança estava no "interior" da mãe. Por isso é estruturante para a criança. Quando ela se confronta com o medo do abandono ela se depara com seu próprio "desejo" pela mãe. É a falta do outro que gera o desejo. E, quando não sabe que objeto ele é para esse outro, e seu desejo não é atendido, surge a angústia, por vezes substituída pelo medo do "objeto fóbico", que é, em última instância, uma proteção contra seu próprio desejo. Surge aí, portanto, toda a problemática do relacionamento com o outro. Assim, 
O objeto fóbico é um significante, um significante que serve para tudo, trata-se igualmente do pai que pune e da mãe que devora. 
É claro que estes significantes têm um valor para além de toda realidade presente, mas está, porém, depositado na cultura, nos nossos mitos. Não à toa, perguntas como "O que ele quer? O que ele quer de mim?" "O que é que eu sou para o Outro?" "O que ele ama em mim?" "Ele me ama?" não param de surgir ao longo da vida inteira. 
 
As fobias, que manifestam isso, aparecem por volta de 3 a 5 anos (separação) e depois, por volta de 8-9 anos, quando a criança apreende que pode perder ou ser perdida por seus pais, que são mortais. É, portanto, a incompletude e a não compreensão que nos levam a temer e procurar a psicanálise. Sofremos por não compreender.
 
Desse modo, como Freud dizia, toda angústia é, fundamentalmente, angústia de separação. E daí a importância que Winnicott atribuía aos "objetos transicionais" (seja um bichinho de pelúcia, um paninho macio) que mostram que há um "resto" da separação e que ela não foi totalmente simbolizável.
 
O objeto da angústia, então, é um "objeto perdido", que "falta", que se "perdeu" na separação. Justamente por isso os pacientes fóbicos apresentam novos surtos de angústia quando a fobia desaparece, assim como reaparece na neurose obsessiva quando o sujeito é impedido de entregar-se aos seus rituais. A solução só se dá mesmo na resolução do complexo de Édipo, isto é, no lugar que o pai pode tomar como sendo aquele que se ocupa do desejo da mãe.
 
Isso nos chama a atenção para o lugar do "pai" e seu declínio, enfraquecimento de sua função, de forma estruturante, na atualidade, como se nenhum pai estivesse à altura de substituir por completo a dimensão simbólica de sua função. 
Essa dimensão ideal de uma figura paterna é particularmente evidente na constituição dos grupos. Quem tenha assistido a um dia de aula numa seção de crianças pequenas de um maternal — crianças de mais ou menos 3 anos — terá guardado na lembrança a dificuldade que a professora pode ter para simplesmente arrumá-las em grupo. Alguns anos mais tarde, as crianças formam uma fila sem maiores dificuldades, elas se organizam sob a tutela da professora, ou do líder que tenha surgido de dentro de suas próprias fileiras. O reagrupamento sob uma figura tutelar sempre constituiu uma das maneiras mais comuns de tratar o medo. O pai, ou sua figura, protege do medo
E esse reagrupamento se faz à custa de uma regressão que mantém o sujeito em uma posição infantil, mas que o protege contra a neurose. É o que a religião realizava com o "não tenhais medo!". Mas, com o relativo declínio do discurso religioso, a psicanálise emerge como sintoma revelador do mal-estar em nossa civilização.

Então, temos medo de que? Para Lacan, de nosso "corpo", esse haver, essa posse que nos possui e de que gozamos. Um corpo sempre mediado simbolicamente pelo Outro, que é constituidor; um corpo que a linguagem atravessa-o recortando e produzindo perdas. Um corpo "furado" pelas nossas faltas.

E sentimos o medo, a angústia de não mais gozar com este corpo. Não à toa estamos tentando preenchê-lo, sempre, com novos objetos que, por sua vez, logo nos deixam insatisfeitos novamente. 
Cada uma dessas felizes redescobertas é marcada de uma impossibilidade — "não é isso!" — e o sujeito é lançado novamente nessa busca sem fim (...) A ciência nos dá numerosas bugigangas próprias como engodo para o nosso desejo. Elas vêm no lugar daquilo que nos falta (...) Esse gozo, outrora remetido ao além como recompensa de uma vida de merecimentos, hoje em dia nos é prometido, mostrado como possível (...) Se essa organização é a mola propulsora do consumo moderno, é também provedora de angústia ante esse real que a ciência produz.
A ciência cresceu ante a religião e, como Benjamin dizia, o capitalismo é uma religião não expiatória mas "culpabilizante" nos oferecendo o que está "vivo" e, permanentemente, nos deixando na angústia, na falta de um sentido que sustente sua vida, em busca permanente de um balizamento que regule o nosso gozo. 
 
Dessa forma, vivemos o desmoronamento das figuras tutelares que tem como correlato o aumento do medo. Vivíamos num mundo em que nosso gozo se situava, se regulava a partir do Outro. Hoje em dia, somente nos situamos a partir do objeto.

E a psicanálise? Ela, como a ciência, é filha da modernidade. mas não é uma ciência, mesmo que tenha sido influenciada pelo discurso da ciência, pois ela a rejeita. Há, aqui, uma "jogada ética": 
O tratamento analítico permite que o sujeito saiba alguma coisa de seu gozo, permite apreender esse Real — e se contrapor a ele e suportar essa parte que incessantemente escapa ao sujeito, parte que, no entanto, é estrutural, embora retorne ao sujeito como aquilo que lhe é o mais estrangeiro. 

Sabemos que a psicanálise não promete o fim da angústia, apenas o "um por um", mas, como Kierkegaard dizia: "a todo instante o indivíduo é ele próprio e o gênero humano". A psicanálise nos permite viver com a angústia, que é a marca da nossa condição, da nossa finitude e da nossa paradoxal liberdade.
 
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(1) VANIER, Alain. Temos medo de quê? Ágora (Rio J.) [online]. 2006, vol.9, n.2 [cited  2013-07-12], pp. 285-298 . Available from: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-14982006000200009&lng=en&nrm=iso>. ISSN 1516-1498.  http://dx.doi.org/10.1590/S1516-14982006000200009.

sexta-feira, 31 de maio de 2013

"A Interpretação dos Sonhos" (Freud)

Algum tempo atrás o canal Discovery Civilization discorreu sobre o livro "A Interpretação dos Sonhos", de Freud, em sua série "Great Books". A intenção da série é levantar os principais aspectos de cada obra em questão. No caso deste livro de Freud os principais pontos comentados foram os seguintes.

De acordo com a série, haveria um lado obscuro onde se ocultam o medo, a luxúria, a raiva, desejos inconscientes que não repousam tranquilamente na psique humana e que, através do sonho poderiam ser acessados. O sonho seria aquele momento em que tais desejos inconscientes estariam em campo aberto e, com certa técnica psicanalítica poderiam ser desvendados em seus significados. 

O sonho é um terreno fantasioso onde as leis da lógica não se aplicam, mas o fato é que, depois de Freud, não foi mais tão fácil evitar nossa própria responsabilidade por nosso comportamento inconsciente. Não à toa a psicanálise se transformou em base de boa parte da cultura do século XX. Hitchcock, por exemplo, entre suas brilhantes obras, tentou mostrar um pouco disso em "Quando fala o coração" (Spellbound, 1945), com a lindíssima Ingrid Bergman. O trecho abaixo mostra um pouco dessa dinâmica da interpretação, em linhas muito gerais, evidentemente.


Dessa forma, os sonhos teriam forte papel na revelação de tramas ocultas no inconsciente e o procedimento técnico para essa revelação seria simples: lembrar do conteúdo manifesto do sonho e fazer associações de cada trecho com fatos conscientes, seguidas de interpretações - era a "livre associação" freudiana.

O "sonho de Irma" teria sido o sonho base de Freud que ilustrou este seu novo método, cuja formulação geral era a de que o sonho é a realização de um desejo. Foi isto que o teria inspirado a escrever "A Interpretação dos Sonhos", livro que, à época, vendeu muito pouco e deixou Freud acuado diante de boa parte dos médicos, que resistiam à nascente Psicanálise.

Sua interpretação dos sonhos, então, está totalmente baseada em sua concepção da natureza humana. Esta, para Freud, está sustentada em desejos reprimidos, procedimento necessário para a vida em sociedade, do contrário como sustentar o egoísmo total. É esta "repressão" que, incessantemente, alimenta nosso inconsciente.

Dessa forma, continua a série televisiva, Freud nos falaria, quando de sua análise do sonho, de uma parte da mente que chama de "censura". Parte essa, cuja função é a de impedir que sonhemos nossos desejos de forma literal, do contrário as angústias poderiam ser insuportáveis. Estamos no processo, então, de "elaboração" do sonho. Por isso os sonhos nos parecem tão "ilógicos" e "incompreensíveis".

Em seguida, com o recurso da "condensação", o sonho permitiria a combinação de múltiplos símbolos e imagens "aceitáveis" à censura. Ao final do processo, o ego trabalharia para dar um sentido aparente ao sonho. Desvendar esse sonho manifesto é que é fundamental para revelar o significado oculto latente. Como imaginar, a partir destas considerações que os sonhos ainda fossem mensagens divinas ou premonições? Não se trata, portanto, da mera interpretação de símbolos, mas da busca de seus significados.

Hoje, muitos já não consideram os sonhos tão importantes na psicanálise. pelo menos para aqueles que buscam respostas mais rápidas para acontecimentos mais correntes. Mas, os sonhos continuam a aparecer na clínica e, quando desvendados, auxiliam em muito os tratamentos.

O sonho, portanto, fala de nós mesmos, de nosso inconsciente. Nos fala daquilo que não tem data, mas que está presente e não nos deixa até que possamos lhe dar um significado. Conhecer a nós mesmos, portanto, passa, necessariamente, pela aventura que é buscar o seu próprio inconsciente. O sonho seria um dos caminhos mais interessantes para essa busca.

Como desconhecer o inconsciente? Só mesmo construindo uma versão de uma natureza humana completamente dominada pela razão. Muitos ainda tentam isto!

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Sobre a Transitoriedade (Freud, 1915)

Em 1915, Freud escreveu um pequeno texto, a partir das lembranças de um passeio com um amigo. Trata-se de "Sobre a Transitoriedade", um dos seus mais belos escritos. No passeio por um jardim o amigo de Freud, de súbito, entristeceu-se diante da efemeridade das flores que murchavam aos seus olhos. Nesse momento, teria comentado que a "a beleza se vai com o tempo".

Foi sobre isto que Freud especulou e nos disse que duas noções psíquicas podem surgir quando reconhecemos que tudo o que é belo se deteriora com o tempo: uma levaria à revolta contra essa fatalidade, e outra levaria à "aflição", que era o que seu amigo estaria sentindo. Mas, o que existiria por trás dessa aflição? Segundo Freud, uma EXIGÊNCIA DE ETERNIDADE, uma exigência de que o belo seja eterno, supere o tempo. É aí que Freud faz associações com o "luto" e a "guerra".

Ora, o luto seria aquele momento em que há uma "rebelião psíquica" que nos tira o prazer pela apreciação da vida. Era o que seu amigo experimentava, de forma "antecipada", ou seja, sofria pela iminente morte das flores e, com isso, se "aprisionava" a este objeto, não conseguindo desligar-se desta aflição. Sobre a guerra, nos lembrou que ela destrói belezas, arruína a cultura, rouba o que amamos, e expõe a efemeridade das coisas. Mas, Freud se questiona: SÓ NOS RESTA MESMO SOFRER DIANTE DAQUILO QUE NOS FOI RETIRADO, DAQUILO QUE FOI PERDIDO? Não! Podemos reconstruir tudo sobre uma base mais firme duradoura.

É aí que Freud nos lembra, então, que É JUSTAMENTE PORQUE AS COISAS SÃO TRANSITÓRIAS QUE MAIS AS AMAMOS, ou seja, se eu sei que posso perder algo (e vou perder) tenho uma grande chance de lhe dedicar mais amor. É por isto que aquilo que amamos não desaparece, nem com sua própria destruição, ou com sua morte, pois nos significou algo muito forte. O sentimento, então, fica conosco, incorporado, não mais como luto, mas como uma "lembrança" de que a felicidade é sempre possível, e que pode ser buscada a todo instante. Mas, pensar assim exige certa sensibilidade, contato maior com nossos sentimentos, capacidade de olhar com respeito as coisas mais simples, respeito ao amor que dedicamos a algo ou alguém.

Mas, é desta forma que agimos? Hoje, vivemos um momento em que, paradoxalmente, a "transitoriedade" não nos deixa perceber com atenção as coisas, as pessoas, os sentimentos. Hoje, já não é a vida, e o belo, que são transitórios. TUDO é transitório e, de uma forma ainda mais cruel, "descartável". Já não temos mais o "tempo" e a dedicação à contemplação e ao amor. Somos como que "forçados" a saltar rapidamente de uma preferência para outra, de uma marca para outra, de uma celebridade para outra, de uma paixão para outra. Como encontrar o que é belo assim? Como amar algo assim?

A velocidade com que tudo se torna descartável impede a contemplação, tão necessária ao alimento de nosso espírito. A aceleração, por outro lado, nos cria a ilusão de estarmos sempre indo em direção ao futuro, ao melhor, ao perfeito. Não! Não estamos indo nessa direção, estamos abdicando do conhecimento sobre o que é belo e do que é o amor. Já não somos autorizados a nos apegar a nada, nem mesmo a ninguém. A velocidade das mudanças é tal que, como a fala do esquizofrênico, impede o tempo de "parar" e, ao refletir e sentir, se apegar. Dessa forma, imagino que o transitório hoje, não pode ficar a serviço do descartável, ele tem que voltar a ficar a serviço do que é belo, como dizia Freud.

Estaríamos, portanto, nos tornando uma sociedade de "autômatos", incapazes de sentir? Sempre prontos a concorrer, a disputar, a agredir, a ultrapassar o outro, a ter sempre o que é melhor e mais novo. O "novo" substituiu o "belo"... que pena! Isto é muito ruim para a cultura, para a civilização, para a humanidade. Esta é a nossa guerra atual. A guerra que Freud presenciou lhe dava esperanças de reconstrução, mas e esta, será que nos permite esperanças?


Abaixo, a íntegra do texto de Freud. 
Não faz muito tempo empreendi, num dia de verão, uma caminhada através de campos sorridentes na companhia de uma amigo taciturno e de um poeta jovem mas já famoso. O poeta admirava a beleza do cenário à nossa volta, mas não extraia disso qualquer alegria. Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava fadada à extinção, de que desapareceria quando sobreviesse o inverno, como toda a beleza humana e toda a beleza e esplendor que os homens criaram ou poderão criar. Tudo aquilo que, em outra circunstância, ele teria amado e admirado, pareceu-lhe despojado de seu valor por estar fadado à transitoriedade.
A propensão de tudo que é belo e perfeito à decadência, pode, como sabemos, dar margem a dois impulsos diferentes na mente. Um leva ao penoso desalento sentido pelo jovem poeta, ao passo que o outro conduz à rebelião contra o fato consumado. Não! É impossível que toda essa beleza da Natureza e da Arte, do mundo de nossas sensações e do mundo externo, realmente venha a se desfazer e nada. Seria por demais insensato, por demais pretensioso acreditar nisso. De uma maneira ou de outra essa beleza deve ser capaz de persistir e de escapar a todos os poderes de destruição. Mas essa exigência de imortalidade, por ser tão obviamente um produto dos nossos desejos, não pode reivindicar seu direito à realidade; o que é penoso pode, não obstante, ser verdadeiro.. Não vi como discutir a transitoriedade de todas as coisas, nem pude insistir numa exceção em favor do que é belo e perfeito. Não deixei, porém, de discutir o ponto de vista pessimista do poeta de que a transitoriedade do que é belo implica uma perda de seu valor.  
Pelo contrário, implica um aumento! O valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição. Era incompreensível, declarei, que o pensamento sobre a transitoriedade da beleza interferisse na alegria que dela derivamos. Quanto à beleza da Natureza, cada vez que é destruída pelo inverno, retorna no ano seguinte, do modo que, em relação à duração de nossas vidas, ela pode de fato ser considerada eterna. A beleza da forma e da face humana desaparece para sempre no decorrer de nossas próprias vidas; sua evanescência, porém, apenas lhes empresta renovado encanto. Uma flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela. Tampouco posso compreender melhor porque a beleza e a perfeição de uma obra de arte ou de uma realização intelectual deveriam perder seu valor devido à sua limitação temporal. Realmente, talvez chegue o dia em que os quadros e estátuas que hoje admiramos venham a ficar reduzidos a pó, ou que nos possa suceder uma raça de homens que venha a não mais compreender as obras de nossos poetas e pensadores, ou talvez até mesmo sobrevenha uma era geológica na qual cesse toda a vida animada sobre a terra; visto, contudo, que o valor de toda essa beleza e perfeição é determinado somente por sua significação para nossa própria vida emocional, não precisa sobreviver a nós, independendo, portanto, da duração absoluta.  
Essas considerações me parecem incontestáveis, mas observei que não causara impressão quer no poeta quer em meu amigo. Meu fracasso levou-me a inferir que algum fator emocional poderoso se achava em ação, perturbando-lhes o discernimento, e acreditei, depois, ter descoberto o que era. O que lhes estragou a fruição da beleza deve ter sido uma revolta em suas mentes contra o luto. A ideia de que toda essa beleza era transitória comunicou a esses dois espíritos sensíveis uma antecipação de luto pela morte dessa mesma beleza; e, como a mente instintivamente recua de algo que é penoso, sentiram que em sua fruição de beleza interferiam pensamentos sobre sua transitoriedade.  
O luto pela perda de algo que amamos ou admiramos se afigura tão natural ao leigo, que ele o considera evidente por si mesmo. Para os psicólogos, porém, o luto constitui um grande enigma, um daqueles fenômenos que por si sós não podem ser explicados, mas a partir dos quais podem ser rastreadas outras obscuridades. Possuímos, segundo parece, certa dose de capacidade para o amor - que denominamos de libido - que nas etapas iniciais do desenvolvimento é dirigido no sentido de nosso próprio ego. Depois, embora ainda numa época muito inicial, essa libido é desviada do ego para objetos, que são assim, num certo sentido, levados para nosso ego. Se os objetos forem destruídos ou se ficarem perdidos para nós, nossa capacidade para o amor (nossa libido) será ais uma vez liberada e poderá então ou substituí-los por outros objetos ou retornar temporariamente para o ego, Mas permanece um mistério para nós o motivo pelo qual esse desligamento da libido de seus objetos deve constituir um processo tão penoso, até agora não fomos capazes de formular qualquer hipótese para explicá-lo. vemos apenas que a libido se apega a seus objetos e não renuncia àqueles que se perderam, mesmo quando um substituto se acha bem à mão. Assim é o luto.  
Minha palestra com o poeta ocorreu no verão antes da guerra. Um ano depois irrompeu o conflito que lhe subtraiu o mundo das belezas. Não só destruiu a beleza dos campos que atravessava e as obras de arte que encontrava em seu caminho, como também destroçou nosso orgulho pelas realizações de nossa civilização, nossa admiração por numerosos filósofos e artistas, e nossas esperanças quanto a um triunfo final sobre as divergências entre as nações e as raças. Maculou a elevada imparcialidade da nossa ciência, revelou nossos instintos em toda a sua nudez e soltou de dentro de nós os maus espíritos que jugávamos terem sido domados para sempre, por séculos de ininterrupta educação pelas mais nobres mentes. Amesquinhou mais uma vez nosso país e tornou o resto do mundo bastante remoto. Roubou-nos do muito que amáramos e mostrou-nos quão efêmeras eram inúmeras coisas que consideráramos imutáveis.  
Não pode surpreender-nos o fato de que nossa libido, assim provada de tantos dos seus objetos, se tenha apegado com intensidade ainda maior ao que nos sobrou, que o amor pela nossa pátria, nossa afeição pelos que se acham mais próximos de nós e nosso orgulho pelo que nos é comum, subitamente se tenham tornado mais vigorosos. Contudo, será que aqueles outros bens, que agora perdemos, realmente deixaram de ter qualquer valor para nós por se revelarem tão perecíveis e tão sem resistência? Isso parece ser o caso de muitos de nós; só que, na minha opinião, mais uma vez, erradamente. Creio que aqueles que pensam assim, e parecem prontos a aceitar uma renúncia permanente porque o que era precioso revelou não ser duradouro, encontram-se simplesmente num estado de luto pelo que se perdeu. O luto, como sabemos, por mais doloroso que possa ser, chega a um fim espontâneo. Quando renunciou a tudo o que foi perdido, então consumiu-se a si próprio, e nossa libido fica mais uma vez livre (enquanto ainda formos jovens e ativos) para substituir os objetos perdidos por novos igualmente, ou ainda mais, preciosos. É de esperar que isso também seja verdade em relação às perdas causadas pela presente guerra. Quando o luto tiver terminado, verificar-se-á que o alto conceito em que tínhamos as riquezas da civilização nada perdeu com a descoberta de sua fragilidade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de forma mais duradoura do que antes.
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FREUD, Sigmund. Sobre a Transitoriedade. In: Obras Psicológicas Completas: edição standard brasileira. Volume XIV – A história do movimento psicanalítico, artigos sobre a metapsicologia e outros trabalhos (1914-1916), pág. 313-319.