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quinta-feira, 9 de maio de 2013

Sobre a Transitoriedade (Freud, 1915)

Em 1915, Freud escreveu um pequeno texto, a partir das lembranças de um passeio com um amigo. Trata-se de "Sobre a Transitoriedade", um dos seus mais belos escritos. No passeio por um jardim o amigo de Freud, de súbito, entristeceu-se diante da efemeridade das flores que murchavam aos seus olhos. Nesse momento, teria comentado que a "a beleza se vai com o tempo".

Foi sobre isto que Freud especulou e nos disse que duas noções psíquicas podem surgir quando reconhecemos que tudo o que é belo se deteriora com o tempo: uma levaria à revolta contra essa fatalidade, e outra levaria à "aflição", que era o que seu amigo estaria sentindo. Mas, o que existiria por trás dessa aflição? Segundo Freud, uma EXIGÊNCIA DE ETERNIDADE, uma exigência de que o belo seja eterno, supere o tempo. É aí que Freud faz associações com o "luto" e a "guerra".

Ora, o luto seria aquele momento em que há uma "rebelião psíquica" que nos tira o prazer pela apreciação da vida. Era o que seu amigo experimentava, de forma "antecipada", ou seja, sofria pela iminente morte das flores e, com isso, se "aprisionava" a este objeto, não conseguindo desligar-se desta aflição. Sobre a guerra, nos lembrou que ela destrói belezas, arruína a cultura, rouba o que amamos, e expõe a efemeridade das coisas. Mas, Freud se questiona: SÓ NOS RESTA MESMO SOFRER DIANTE DAQUILO QUE NOS FOI RETIRADO, DAQUILO QUE FOI PERDIDO? Não! Podemos reconstruir tudo sobre uma base mais firme duradoura.

É aí que Freud nos lembra, então, que É JUSTAMENTE PORQUE AS COISAS SÃO TRANSITÓRIAS QUE MAIS AS AMAMOS, ou seja, se eu sei que posso perder algo (e vou perder) tenho uma grande chance de lhe dedicar mais amor. É por isto que aquilo que amamos não desaparece, nem com sua própria destruição, ou com sua morte, pois nos significou algo muito forte. O sentimento, então, fica conosco, incorporado, não mais como luto, mas como uma "lembrança" de que a felicidade é sempre possível, e que pode ser buscada a todo instante. Mas, pensar assim exige certa sensibilidade, contato maior com nossos sentimentos, capacidade de olhar com respeito as coisas mais simples, respeito ao amor que dedicamos a algo ou alguém.

Mas, é desta forma que agimos? Hoje, vivemos um momento em que, paradoxalmente, a "transitoriedade" não nos deixa perceber com atenção as coisas, as pessoas, os sentimentos. Hoje, já não é a vida, e o belo, que são transitórios. TUDO é transitório e, de uma forma ainda mais cruel, "descartável". Já não temos mais o "tempo" e a dedicação à contemplação e ao amor. Somos como que "forçados" a saltar rapidamente de uma preferência para outra, de uma marca para outra, de uma celebridade para outra, de uma paixão para outra. Como encontrar o que é belo assim? Como amar algo assim?

A velocidade com que tudo se torna descartável impede a contemplação, tão necessária ao alimento de nosso espírito. A aceleração, por outro lado, nos cria a ilusão de estarmos sempre indo em direção ao futuro, ao melhor, ao perfeito. Não! Não estamos indo nessa direção, estamos abdicando do conhecimento sobre o que é belo e do que é o amor. Já não somos autorizados a nos apegar a nada, nem mesmo a ninguém. A velocidade das mudanças é tal que, como a fala do esquizofrênico, impede o tempo de "parar" e, ao refletir e sentir, se apegar. Dessa forma, imagino que o transitório hoje, não pode ficar a serviço do descartável, ele tem que voltar a ficar a serviço do que é belo, como dizia Freud.

Estaríamos, portanto, nos tornando uma sociedade de "autômatos", incapazes de sentir? Sempre prontos a concorrer, a disputar, a agredir, a ultrapassar o outro, a ter sempre o que é melhor e mais novo. O "novo" substituiu o "belo"... que pena! Isto é muito ruim para a cultura, para a civilização, para a humanidade. Esta é a nossa guerra atual. A guerra que Freud presenciou lhe dava esperanças de reconstrução, mas e esta, será que nos permite esperanças?


Abaixo, a íntegra do texto de Freud. 
Não faz muito tempo empreendi, num dia de verão, uma caminhada através de campos sorridentes na companhia de uma amigo taciturno e de um poeta jovem mas já famoso. O poeta admirava a beleza do cenário à nossa volta, mas não extraia disso qualquer alegria. Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava fadada à extinção, de que desapareceria quando sobreviesse o inverno, como toda a beleza humana e toda a beleza e esplendor que os homens criaram ou poderão criar. Tudo aquilo que, em outra circunstância, ele teria amado e admirado, pareceu-lhe despojado de seu valor por estar fadado à transitoriedade.
A propensão de tudo que é belo e perfeito à decadência, pode, como sabemos, dar margem a dois impulsos diferentes na mente. Um leva ao penoso desalento sentido pelo jovem poeta, ao passo que o outro conduz à rebelião contra o fato consumado. Não! É impossível que toda essa beleza da Natureza e da Arte, do mundo de nossas sensações e do mundo externo, realmente venha a se desfazer e nada. Seria por demais insensato, por demais pretensioso acreditar nisso. De uma maneira ou de outra essa beleza deve ser capaz de persistir e de escapar a todos os poderes de destruição. Mas essa exigência de imortalidade, por ser tão obviamente um produto dos nossos desejos, não pode reivindicar seu direito à realidade; o que é penoso pode, não obstante, ser verdadeiro.. Não vi como discutir a transitoriedade de todas as coisas, nem pude insistir numa exceção em favor do que é belo e perfeito. Não deixei, porém, de discutir o ponto de vista pessimista do poeta de que a transitoriedade do que é belo implica uma perda de seu valor.  
Pelo contrário, implica um aumento! O valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição. Era incompreensível, declarei, que o pensamento sobre a transitoriedade da beleza interferisse na alegria que dela derivamos. Quanto à beleza da Natureza, cada vez que é destruída pelo inverno, retorna no ano seguinte, do modo que, em relação à duração de nossas vidas, ela pode de fato ser considerada eterna. A beleza da forma e da face humana desaparece para sempre no decorrer de nossas próprias vidas; sua evanescência, porém, apenas lhes empresta renovado encanto. Uma flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela. Tampouco posso compreender melhor porque a beleza e a perfeição de uma obra de arte ou de uma realização intelectual deveriam perder seu valor devido à sua limitação temporal. Realmente, talvez chegue o dia em que os quadros e estátuas que hoje admiramos venham a ficar reduzidos a pó, ou que nos possa suceder uma raça de homens que venha a não mais compreender as obras de nossos poetas e pensadores, ou talvez até mesmo sobrevenha uma era geológica na qual cesse toda a vida animada sobre a terra; visto, contudo, que o valor de toda essa beleza e perfeição é determinado somente por sua significação para nossa própria vida emocional, não precisa sobreviver a nós, independendo, portanto, da duração absoluta.  
Essas considerações me parecem incontestáveis, mas observei que não causara impressão quer no poeta quer em meu amigo. Meu fracasso levou-me a inferir que algum fator emocional poderoso se achava em ação, perturbando-lhes o discernimento, e acreditei, depois, ter descoberto o que era. O que lhes estragou a fruição da beleza deve ter sido uma revolta em suas mentes contra o luto. A ideia de que toda essa beleza era transitória comunicou a esses dois espíritos sensíveis uma antecipação de luto pela morte dessa mesma beleza; e, como a mente instintivamente recua de algo que é penoso, sentiram que em sua fruição de beleza interferiam pensamentos sobre sua transitoriedade.  
O luto pela perda de algo que amamos ou admiramos se afigura tão natural ao leigo, que ele o considera evidente por si mesmo. Para os psicólogos, porém, o luto constitui um grande enigma, um daqueles fenômenos que por si sós não podem ser explicados, mas a partir dos quais podem ser rastreadas outras obscuridades. Possuímos, segundo parece, certa dose de capacidade para o amor - que denominamos de libido - que nas etapas iniciais do desenvolvimento é dirigido no sentido de nosso próprio ego. Depois, embora ainda numa época muito inicial, essa libido é desviada do ego para objetos, que são assim, num certo sentido, levados para nosso ego. Se os objetos forem destruídos ou se ficarem perdidos para nós, nossa capacidade para o amor (nossa libido) será ais uma vez liberada e poderá então ou substituí-los por outros objetos ou retornar temporariamente para o ego, Mas permanece um mistério para nós o motivo pelo qual esse desligamento da libido de seus objetos deve constituir um processo tão penoso, até agora não fomos capazes de formular qualquer hipótese para explicá-lo. vemos apenas que a libido se apega a seus objetos e não renuncia àqueles que se perderam, mesmo quando um substituto se acha bem à mão. Assim é o luto.  
Minha palestra com o poeta ocorreu no verão antes da guerra. Um ano depois irrompeu o conflito que lhe subtraiu o mundo das belezas. Não só destruiu a beleza dos campos que atravessava e as obras de arte que encontrava em seu caminho, como também destroçou nosso orgulho pelas realizações de nossa civilização, nossa admiração por numerosos filósofos e artistas, e nossas esperanças quanto a um triunfo final sobre as divergências entre as nações e as raças. Maculou a elevada imparcialidade da nossa ciência, revelou nossos instintos em toda a sua nudez e soltou de dentro de nós os maus espíritos que jugávamos terem sido domados para sempre, por séculos de ininterrupta educação pelas mais nobres mentes. Amesquinhou mais uma vez nosso país e tornou o resto do mundo bastante remoto. Roubou-nos do muito que amáramos e mostrou-nos quão efêmeras eram inúmeras coisas que consideráramos imutáveis.  
Não pode surpreender-nos o fato de que nossa libido, assim provada de tantos dos seus objetos, se tenha apegado com intensidade ainda maior ao que nos sobrou, que o amor pela nossa pátria, nossa afeição pelos que se acham mais próximos de nós e nosso orgulho pelo que nos é comum, subitamente se tenham tornado mais vigorosos. Contudo, será que aqueles outros bens, que agora perdemos, realmente deixaram de ter qualquer valor para nós por se revelarem tão perecíveis e tão sem resistência? Isso parece ser o caso de muitos de nós; só que, na minha opinião, mais uma vez, erradamente. Creio que aqueles que pensam assim, e parecem prontos a aceitar uma renúncia permanente porque o que era precioso revelou não ser duradouro, encontram-se simplesmente num estado de luto pelo que se perdeu. O luto, como sabemos, por mais doloroso que possa ser, chega a um fim espontâneo. Quando renunciou a tudo o que foi perdido, então consumiu-se a si próprio, e nossa libido fica mais uma vez livre (enquanto ainda formos jovens e ativos) para substituir os objetos perdidos por novos igualmente, ou ainda mais, preciosos. É de esperar que isso também seja verdade em relação às perdas causadas pela presente guerra. Quando o luto tiver terminado, verificar-se-á que o alto conceito em que tínhamos as riquezas da civilização nada perdeu com a descoberta de sua fragilidade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de forma mais duradoura do que antes.
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FREUD, Sigmund. Sobre a Transitoriedade. In: Obras Psicológicas Completas: edição standard brasileira. Volume XIV – A história do movimento psicanalítico, artigos sobre a metapsicologia e outros trabalhos (1914-1916), pág. 313-319.