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quinta-feira, 1 de maio de 2014

Não quero ser somente ... "eu"!

As vezes pensamos tanto em buscar a nossa própria felicidade, as vezes nos concentramos tanto em sentir as nossas próprias dores que esquecemos que somos responsáveis por algo além de nós mesmos. Talvez isto não seja egoísmo, mas somente aquele desejo de ser feliz e ter alguma paz, e aí nos colocamos sempre em "primeiro lugar". 

Mas, e aquelas pessoas que dependem de nós? Existem momentos, então, que não podemos nos colocar em "primeiro lugar", afinal, quem sabe para sermos felizes não dependemos mesmo de lutar por fazermos os que estão mesmo do nosso lado felizes e retribuir um pouco do que já foi feito por nós? 

A felicidade e o fim de nossas dores, me parece, nunca é um processo "individual", uma conquista que alcanço "sozinho"! Eu preciso sempre de algo a mais, que seja mais do que simplesmente... "eu"! Não confundir isso com o fato de sermos "responsáveis" pela felicidade dos outros, embora sejamos, em parte, sim! Afinal os outros não são, também, responsáveis, um pouco, pela minha felicidade? Insistimos em ser felizes sozinhos, mas...

Isso parece ir um pouco de encontro aos pensamentos narcísicos, dominantes em nossa época. Mas quem disse que temos sempre que remar a favor da maré? As vezes é preciso coragem pra pensar e agir de forma diferente. 

(José Henrique P. e Silva)

domingo, 13 de abril de 2014

A Felicidade, entre a descartabilidade e a persistência

Há pouco tempo, em uma dessas sessões nada monótonas na clínica, um adolescente me questiona: Como ser feliz? A pergunta veio direta e objetiva, como é a fala de um adolescente. O que exemplificava seu incômodo era o fato de gostar de música dos anos 70 e seus amigos desaprovarem a ideia. Sentia um mal-estar que o deixava, por vezes, retraído e solitário pois imaginava não ser aceito.


Depois, já em casa, a pergunta teimava em não me sair da cabeça. Ela falava de felicidade, música, moda, consumo, e me levou de imediato a lembrar de alguns trabalhos de G. Lipovetsky, filósofo francês da atualidade. Lembrei dele por sua ousadia em rediscutir alguns temas como o da felicidade e as "frivolidades" do consumo contemporâneo. E sua discussão é bastante contextualizada, ou seja, deixa a filosofia um pouco de lado e discute a felicidade no interior das relações que os indivíduos estabelecem, consigo mesmo e com os outros, e isso tudo no contexto maior do "consumismo". 

O que dizer sobre isso? Hoje, por exemplo, é muito comum que uma pessoa "pressione" outra a consumir algo específico em função da marca, do preço, da beleza ou do status que representará. E, portanto, é muito comum que também critique os que já possuem suas preferências razoavelmente consolidadas, e não tão sujeitas à moda. De outro lado, também é comum "sentir-se" pressionado, afinal, consumir o mesmo que o outro é uma possibilidade de aprovação, pertencimento, aceitação, reconhecimento.

Segundo Lipovetsky a "hipermodernidade" atual ("hiper" porque a ênfase está no "excessivo") está marcada pela tendência em se fazer da "mercadoria" e de seu "consumo" o próprio sinônimo de "felicidade". Nesse contexto, o que escapa de transformar-se em mercadoria? A felicidade também não escapa a isso, afinal não se costuma dizer que se o dinheiro não traz a felicidade ele, pelo menos, a compra? É nesse sentido que a felicidade passou a inserir-se, cada vez mais, em embalagens de produtos sempre novos e, portanto, sempre descartáveis.

O resultado disso já conhecemos bem: um consumo interminável, que não sacia nunca, que não preenche nunca, um excesso que transborda sem tapar nenhum buraco em nós mesmos. Não à toa os maiores rivais dos psicanalistas hoje em dia são as viagens, os salões de beleza, os carros novos, as cirurgias plásticas etc., soluções bem mais rápidas e, melhor, que evitam o penoso trabalho de lidar consigo mesmo.

Mas, o fato é que o aumento do consumo na atualidade não implica em aumento da felicidade, do contrário não viveríamos uma "era de ansiedades", uma época de profunda inquietude e insatisfação. Apenas estamos, freneticamente, comprando momentos de um prazer muito instantâneo, pouco resistente e duradouro. A "novidade" dos produtos e a aceleração da tecnologia respondem a este frenesi, pois o que consumimos agora já não nos serve amanhã. Precisamos de algo "novo" para manter nossa esperança de satisfação. É assim que funciona, em linhas gerais, o "consumismo", seja ele de que ordem for.

Ora, se depositarmos todas as nossas esperanças de felicidade no consumo de mercadorias da moda estamos fadados ao vazio do deserto, a uma inesgotável carência, a uma falta absoluta, de onde só pode resultar o sentimento de queda, de vazio, embora o tênis de primeira linha possa até trazer um alívio imediato para alguns que se esforçam em comprá-lo, ou até roubá-lo. Mas, é só um alívio imediato!

Ora, todos queremos bons produtos. Mas, resumimos nossa existência a isso? A comprar bons produtos e, ao abrir a embalagem, esperar que a felicidade seja desempacotada junto com a mercadoria? Onde está a "vontade de potência" nietzschiana? Onde está aquele desejo de potência que nos impele a ultrapassar, ir sempre mais distante em nossa existência mais ampla? E quando falo "mais ampla" é no sentido de "além do consumo". 

Ora, o consumo só ocupa este espaço absurdo que alcança na atualidade porque em outros campos (educação, profissão, arte, política, etc.) abdicamos de qualquer busca, abdicamos de buscar a felicidade por ali. O resultado é uma vida cada vez mais centrada e direcionada para a "mercadoria". Isso deve ser motivo de orgulho para alguém? Como preencher nossa vida com algo (mercadoria) que, cada vez mais, é descartável? Somente nos tornando, também, descartáveis. Esse será sempre o preço a pagar por uma vida de "excessos".

Como diz Lipovetsky, é preciso "relativizar o consumo", ou seja, fazê-lo perder a importância absoluta que adquiriu. Mas, como? Lutando para não preenchermos nosso vazio simplesmente com a mercadoria; olharmos para outras direções, outros prazeres, outras satisfações, principalmente as mais duradouras, aquelas que possuem uma "história" e que não sejam tão descartáveis.

Afinal, é em torno destes "objetos duradouros" que temos a chance de darmos o contorno para nós mesmos e reforçarmos nossa identidade. Mergulhar neste rio de consumo exacerbado é ficar à deriva. O consumo não pode ser nosso único ideal, onde fica nossa "riqueza" afetiva, intelectual, profissional?

O fato é que, para o adolescente de que falei no início, gostar de um ritmo musical de 40 anos atrás, certamente lhe traz problemas entre seus amigos, mas também lhe garante uma boa possibilidade de contorno psíquico e uma tremenda sensação de prazer e orgulho, sentindo-se, porque não, especial, diferente, marcado por sua individualidade... algo tão raro na atualidade descartável.

Pois é, essa descartabilidade não é fácil, nem para quem opta por ela, nem para quem resiste a ela, pois a pressão ocorre por todos os lados. Há alguém nos mostrando algo novo, alguém nos facilitando a compra, alguém nos dizendo que temos que ser felizes a todo custo. Cada vez mais sou levado a pensar, por tudo o que presencio, que a "felicidade que se compra" é a felicidade dos solitários e narcisistas. É preciso ir mais além, isto é muito pobre, psiquicamente falando.

(José Henrique P. e Silva)

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Sobre a "contemporaneidade" (Z. Bauman)

Abaixo alguns trechos de uma excelente entrevista do sociólogo Z. Bauman ao Estadão¹. Bauman, muito conhecido pelo conceito de "modernidade líquida", é um sociólogo em tempo integral que faz uso permanente de suas ferramentas de análise para decifrar a realidade.
 
1. Sobre as incertezas da modernidade líquida e a construção e reconstrução de estruturas
Nós nos encontramos num momento de "interregno": velhas maneiras de fazer as coisas não funcionam mais, modos de vida aprendidos e herdados já não são adequados à conditio humana do presente, mas também novas maneiras de lidar com os desafios da contemporaneidade ainda não foram inventados, tampouco adotados. Não sabemos quais formas e configurações existentes precisariam ser "liquefeitas" e substituídas... Estamos reagindo ao último problema que se apresenta. E tateamos no escuro... Admitamos: hoje mais sentimos do que sabemos. E temos dificuldade em admitir que o poder, isto é, a capacidade de fazer coisas, foi cruelmente separado da política, isto é, a capacidade de decidir quais coisas precisam ser feitas e priorizadas.
2. Sobre o incômodo rótulo de pós-modernidade
Todos nós, em cada canto deste planeta, somos modernos. As formas de vida moderna podem diferir em muitos aspectos, mas o que as une é precisamente sua fragilidade, fugacidade, seu pendor para câmbios constantes. "Ser moderno" significa mudar compulsivamente. Não tanto "ser", mas "estar se tornando", permanecendo incompleto e subdefinido... O que tempos atrás era apelidado erroneamente de "pós-modernidade", e que prefiro chamar "modernidade líquida", traduz-se na crescente convicção de que a mudança é a nossa única permanência. E a incerteza, a nossa única certeza
3. Sobre a descartabilidade
Tem a ver com a sociedade de consumo... as pessoas começam a valer pela sua "vendabilidade". Elas mesmas procuram desenvolver qualidades para as quais haja demanda ou reciclar qualidades para as quais a demanda ainda possa ser criada, num processo que mistura valor social e autoestima. Nossa sociedade não está preocupada com a satisfação de necessidades, desejos e vontades, mas com a commoditização ou recommoditização do consumidor. Daí o sentido de obsolescência e descartabilidade que nos persegue.
4. Sobre a "cultura da celebridade"
Como sugere o psicanalista francês Serge Tisseron, os relacionamentos significativos passaram do campo da intimité para o da extimité - ou seja, extimidade. Celebridades encarnam essa nova condição, funcionando como estrelas-guias, padrões a serem seguidos. Mostram o caminho para as massas que sonham e lutam para se tornar commodities vendáveis. Tudo isso comprova o apagamento da sacrossanta divisão entre a esfera privada e a esfera pública. Transformamo-nos numa sociedade confessional... Hoje esses microfones se encontram conectados a alto-falantes que bradam nossas vidas em praça pública.
5. Sobre as crises econômicas
A conclusão de Amartya Sen, de tão cristalina, chega a ser óbvia: quem quiser avaliar corretamente a gravidade da crise que examine "a vida de seres humanos, em especial das pessoas menos privilegiadas, no que tange ao seu bem-estar e à liberdade de levar uma existência decente".
6. Por que é difícil reagir à vulnerabilidade econômica?
Entre outros motivos, porque categorias de pessoas cronicamente carentes tendem a aceitar a sua sorte por conta de certa inevitabilidade, ou normalidade, que seja. Sofrem docilmente. São ineptas para denunciar as condições em que vivem. Acho muito pouco provável que cheguemos a um modelo "não contencioso" de sociedade justa. Porque enfrentamos dilemas insolúveis, sendo assim, nosso caminho será o de uma solução "acordada" de sociedade justa.
7. A formação acadêmica é um passaporte para um bom futuro?
Um diploma de primeira linha foi, durante muitos anos, o melhor investimento que pais amorosos poderiam fazer no futuro de seus filhos, e dos filhos de seus filhos. Acreditava-se nisso. Mas esta crença, como tantas outras que fizeram o Sonho Americano (e não só americano, reconheçamos) está sendo abalada hoje. O mercado de trabalho para os possuidores de credenciais de educação encolhe em termos globais, isso é um fato... A verdade é que a "promoção social via educação" serviu durante muitos anos como folha de parreira para tapar a desigualdade nua e indecente: enquanto as conquistas acadêmicas estavam correlacionadas a recompensas sociais generosas, as pessoas que não conseguiam ascender nessa direção só podiam se culpar - descarregando sobre si mesmas amargura e ódio. Agora nós nos defrontamos com um fenômeno novo, que é o desemprego entre os formados, ou então o emprego em nível muito baixo de expectativas, mas tanto uma coisa quanto outra têm potencial explosivo, basta ver os recentes levantes no Oriente Médio.
8. Sobre a mais intensa circulação do luxo e do dinheiro
Cem anos atrás, quando indagado por que decidira dobrar os salários de seus trabalhadores, Henry Ford respondeu que havia feito isso justamente para permitir que eles comprassem os carros que estava produzindo. Na verdade... embora seus operários dependessem dele para ganhar a vida, Ford dependia 100% daquela mão de obra localmente disponível, que mantinha as linhas de montagem operando, o que lhe garantia mais riqueza e poder. A dependência então era mútua e Ford não tinha escolha. Ele não dispunha da "arma de insegurança máxima" que existe no mundo globalizado, ou seja, o poder de decisão sobre mudar a riqueza para outros lugares, particularmente para endereços fervilhantes de pessoas prontas para sofrer sem chiar, muitas vezes em troca de salário miserável: o capital de Ford era "fixado" no lugar... Aquele contrato não escrito entre capital e trabalho, assentado na dependência mútua, se rompeu gerando uma desigualdade estarrecedora, com repercussões nas condições de trabalho da mão de obra metropolitana... o professor Tim Jackson, da Universidade de Surrey, em sua obra mais recente, Redefining Prosperity, alerta: o modelo de crescimento dos nossos dias produz danos terríveis por ser medido apenas pelo aumento da produção material, e não pela melhoria de serviços em áreas como lazer, saúde, educação. E isso evidentemente afeta os emergentes: passamos de uma desigualdade declinante entre os países para uma desigualdade crescente dentro de muitos deles. Porque os capitais, movimentando-se através dos fluxos globais, e agora "livres da política", como bem salientou Manuel Castells (sociólogo espanhol, autor de A Sociedade em Rede), procuram avidamente áreas com padrões rebaixados de vida, portanto mais receptivas a um tratamento de "terra virgem".
9. Sobre a questão ambiental
... Hoje, o que estamos vendo? O planeta, com seus recursos limitados, ainda pode satisfazer às necessidades humanas, mas tem se mostrado totalmente inadequado para saciar a capacidade humana, movida por esse insaciável "apetite pela novidade". Somos incentivados, forçados ou atraídos a comprar e a gastar. Ou melhor, a gastar o que temos e o que não temos, na esperança de ganhar no futuro.
10. Sobre o "apetite pela novidade" como motor do capitalismo
Como destacou Adam Smith, o grande teórico de A Riqueza das Nações, devemos nosso suprimento diário de pão fresco à ganância do padeiro, e não ao seu altruísmo ou aos seus elevados padrões morais... O próprio Amartya Sen admite que não é possível ter uma economia florescente sem a ampla participação dos mercados, também imprescindíveis para a constituição de um mundo próspero e justo. Mas o que se coloca em questão hoje é a capacidade de uma sociedade de resolver, ainda que imperfeitamente, os problemas que ela própria cria, ou os conflitos e os antagonismos sociais que ameaçam sua preservação. A solução, me parece, não virá do reforço ininterrupto do "apetite pela novidade", nem da ganância ou avareza que mantêm a economia florescendo. Afinal, que aspectos da condição humana levam os indivíduos a buscarem compensações nos mercados? Há alternativas a isso? Tim Jackson propõe uma reação baseada em três pontos: 1. conscientizar as pessoas de que o crescimento econômico tem limites. 2. convencer os capitalistas a distribuir lucros não apenas segundo critérios financeiros, mas em função dos benefícios sociais e ambientais. 3. Mudar a "lógica social" dos governos, para que os cidadãos enriqueçam suas existências por outros meios, que não só o material. Como se vê, a economia já não pode mais depender apenas da ganância do padeiro. Terá de se apoiar numa coexistência humana organizada, de que ainda dispomos.
Bauman tem sido fundamental para elucidar alguns aspectos da contemporaneidade, mas ainda estamos "tateando no escuro", como ele próprio diz, quando se trata de encontrar soluções. Vejamos por exemplo os três pontos indicados ao final de sua entrevista:
  • Como convencer ("conscientizar") alguém de que a lógica da "descartabilidade" não é interessante? Isso, sem falar que, nesse processo, há uma presença enorme do inconsciente atuando firme e forte;
  • No caso brasileiro, por exemplo, tem havido alguma distribuição de riqueza, infelizmente unicamente na forma assistencialista, nos últimos anos, mas ao custo dos recursos públicos, já que os bancos nunca antes na história conheceram melhores momentos;
  • Quanto à questão da "lógica social" dos governos, o que vimos, por exemplo, em toda a lógica discursiva do governo Lula (que foi um governo que se pretendia progressista) foi, como ele próprio declarou em várias oportunidades, uma "apologia ao consumo", numa clara, não só identificação, mas redução do conceito de cidadania ao de "consumo".
Há mesmo, muito o que pensar...

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¹ Entrevista concedida, em 30.0.2011, por e-mail, à jornalista Laura Greenhalgh e publicada no Sabático (Estadão).  http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20110430/not_imp712848,0.php.