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quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Humihação e Medo!

O horário era o do almoço. Perto de umas 13:30. Numa mesa próxima, um pai e duas crianças. Em determinado momento uma delas, a menor (talvez uns 5 anos), abre uma mochila, tira um brinquedo e o coloca sobre a mesa. O "problema" é que o brinquedo ao ser colocado e arrastado sujou a toalha que cobria a mesa. A reação do pai foi absolutamente desproporcional. Numa rápida reação esticou o braço, arrancou o brinquedo das mãos da criança, com uma mão lhe segurou fortemente o braço, com a outra lhe colocou o dedo na cara e desfilou uma série de pequenas ofensas, com uma feição que beirava o ódio.
 
Ele parecia mesmo estar seguro de que realmente tinha feito a coisa certa, afinal estava dando uma demonstração pública de seu "cuidado" com a educação de seu filho. Ok, tudo bem! Parei de olhar e me voltei para meu próprio prato. Mas, logo em seguida, comecei a me chocar por outra coisa. A reação da criança. Ficou absolutamente calada, quase estática em seu lugar durante todo o restante do almoço. Parecia estar paralisada de medo. Sua obediência era exemplar. Nem um pio sequer, nem um esboço de movimento, difícil até perceber se ela levantava o rosto. E isso parece não ter causado nenhuma outra reação no pai, que parecia convencido de sua missão. Mas, e a criança, o que sentia? Vergonha, humilhação, impotência, insegurança, abandono?
 
Ver esta reação da criança que me fez pensar em algo que as vezes parece tão óbvio, mas tão difícil de ser colocado em prática: Uma educação sustentada no afeto, e não na agressividade. Nós precisamos de uma casa e de uma família sadia para nos constituirmos emocionalmente fortes. Aí está o óbvio da questão, pois se trata de um princípio inquestionável. Mas, nunca é tão simples. Se tudo fosse tão simples, talvez a psicanálise nem existisse! E precisaríamos deixar de ser humanos também.
 
Claro que, depois de adultos, podemos recuperar parte do "estrago" que experimentamos na infância, mas poderíamos evitar muito desse sofrimento se existisse mesmo a luta e a disposição para transformar a família em um local de harmonia, onde o respeito ao outro (criança) deve prevalecer acima de tudo, e onde sempre haja motivo para o cuidado e o amor... só isso! Isso não significa ser passivo diante de uma atitude equivocada da criança, significa apenas que algo diferente deve ser colocado no lugar da agressividade e da ofensa. Esse pai, portanto, é exatamente o outro polo daquele pai submisso que, incapaz de colocar  limites, ajuda na formação de "pequenas majestades".
 
Mas, é comum ouvir pessoas, principalmente de uma ou duas gerações passadas, dizerem que o "sofrimento nos fortalece". Isso já serviu como pano de fundo e justificativa para uma educação "tirânica" e carente de afeto. É lógico que a dureza da realidade está aí para nos ensinar algo. Mas, será que não podemos aprender de outra forma? Temos mesmo que agir de uma forma que beira a crueldade com os filhos? Quem disse que uma educação centrada no respeito e no carinho não torna uma criança muito mais forte e segura que uma educação centrada na simples severidade? Veja, não estou falando de limites. Isso é outra coisa! Estou falando de se negar afeto.
 
Ora, o sofrimento, se nos ensina algo, é sempre nos machucando, ferindo, causando dor. O máximo que ele consegue é nos "embrutecer" e isso não é ser "emocionalmente sadio". A realidade já será devidamente dura para todos nós e nossas crianças, mas pra que antecipar estes sofrimentos? Torná-la capaz de sobreviver à dureza da realidade não significa envolve-la em sofrimento desde cedo. Significa dotá-la de afeto, lhe dar a segurança de saber que é amada, pois é este afeto que a tornará forte para enfrentar a vida. Uma vida dura leva ao sacrifício de muitos afetos e, consequentemente, da felicidade. Então, acreditar que uma educação baseada no sofrimento ajuda a suportar melhor a vida é só reproduzir aquilo que se aprendeu e se recebeu: uma vida sem afeto! Nada mais que isso. Temos mesmo que reproduzir isso? E não adianta culpar quem nos causou algum sofrimento. A responsabilidade por mudar é nossa. Somente nossa!
 
Enfim, há poucas coisas tão terríveis na vida quanto ver uma criança que, na sua paralisia e medo, mostra todo o seu desamparo afetivo. Nessa hora, alguma lembrança pode vir à mente, você suspira fundo, se identifica com algo e logo percebe: não precisava ser assim! Podia ter sido de forma diferente! Mas, vamos em frente.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Vergonha, Depressão e Narcisismo: O conflito que vive o "envergonhado"

Hoje se dá uma maior atenção à "vergonha" como objeto de estudo. E isto se deve ao fato de que a disseminação de novas configurações neuróticas após Freud não cessa, sempre mostrando facetas até então ocultas ao olhar da metapsicologia. Assim, o caso das fobias sociais é um exemplo, pois, tradicionalmente vistas sob o ângulo do "medo", hoje pode-se colocar em relevo a "vergonha".
 
Na edição de out/2013 da Revista Mente&Cérebro o psicanalista Jurandir Freire Costa nos oferece um artigo justamente sobre a "vergonha" (Os sobrenomes da vergonha: melancolia e narcisismo), aquele sentimento que reflete bem o paradoxo de querer ser visto e reconhecido pelo outro, ao mesmo tempo que recusa ser visto por acreditar não possuir o que o outro deseja. É este paradoxo que é o cerne do conflito envergonhado. 

Neste conflito, depressão e narcisismo estão presentes. Segundo Jurandir, a DEPRESSÃO se faz notar através da "ausência de culpa", ou seja, o envergonhado não sente culpa por um dano real ou imaginário causado a outro, mas pelo "sentimento de insuficiência diante do desejo do outro". A marca principal da culpa é o "traço vergonhoso" que chega como uma sombra que recai sobre o sujeito. Mas, não confundir com a melancolia, pois esta é uma desorganização mental grave que pode levar à morte ou paralisia da atividade psíquica. Na vergonha o que há é uma desproporção entre a natureza dos mecanismos de defesa (semelhantes à melancolia) e os efeitos sintomáticos (próximos da neurose fóbica e das depressões por culpa) e o alvo do ódio é o próprio sujeito e não o objeto incorporado. É neste contexto que "a imagem corporal é submetido à mais cruel inspeção persecutória, racionalizada como prova de 'inferioridade real...", com consequências desastrosas. É a partir daí que o indivíduo lança mão, como defesa, da "recusa da intenção" (conceito de Marie-Claude Lambotte), que abandonando a intencionalidade (ação) tenta calar o psiquismo. É assim que o sujeito acabar por encenar para si e os outros a pantomima (abuso dos gestos para se comunicar e chamar a atenção).

É na tentativa de explicar melhor esta dinâmica melancólica que se recorre ao NARCISISMO. O que se percebe na vergonha é uma "precariedade narcísica" marcada por um olhar materno sem a intenção e amor, como uma moldura vazia do desejo do outro. A criança é despida de qualidades, seu imaginário se cristaliza no vácuo de ideais de eu maternos. Daí a inconsistência da formação egóica (baixa autoestima) e a dificuldade em sentir-se como suporte de narrativas positivas. Predomina uma história marcada por subtrações: eu não sou, eu não posso, eu não sei, eu não quero, eu não penso etc.

Como, então, analisar este indivíduo que não tem o ímpeto necessário para preencher sua moldura vazia com histórias e conteúdos suficientemente bons? Parece que o conceito de "perdão" terá uma importância decisiva. Mas, o que é o perdão? De original conotação religiosa passou a ter um sentido leigo como algo indispensável à manutenção da imprevisibilidade das ações humanas, pois sem o perdão não nos arriscaríamos a agir, já que não conseguimos prever ou controlar os efeitos de nossas ações. O perdão seria como um passaporte para a entrada no universo simbólico da relação com o outro, que precisa de nossa confiança em sua suposta benevolência. Na psicanálise, o "perdoar a si" é fundamental para este processo com o outro, já que seria reconhecer em nós mesmos a existência do gozo e do real, ou seja, daquilo que é "abjeto" (desprezível). É este reconhecimento que implica em nos tornarmos agentes de nossa história, que deixa de ser contada somente como se tudo fosse resultado da intenção do outro.

Daí é um passo para se concluir que a própria "moldura vazia" é uma fantasia defensiva, uma cena congelada pelo ego em favor de sua própria homeostase. Como nos diz Jurandir:

No começo, o vazio da moldura se impõe como o espelho da impotência da mãe-ambiente para criar uma imagem narcísica suficientemente boa do próprio sujeito. Depois esse vazio é progressivamente engessado numa outra fantasia, desta feita de autoria egóica: a do sujeito como replicante do não-desejo do outro (p. 73).

Ou seja, a vergonha não é só efeito da incapacidade do outro em projetar conteúdos bons e positivos, mas também uma resistência do ego em aceitar um sujeito que resiste à "intrusão" do outro.

A vergonha, a vitimização do ego pelo ego, faz da "moldura vazia" uma fachada que esconde a existência de um sujeito coautor de seu destino psíquico. Ao apegar-se à posição de traído pelo desejo do outro, o ego, inconscientemente, buscar furtar-se ao trabalho de desejar segundo a castração (p. 73).

Desse modo, "perdoar a si mesmo é tornar-se responsável inclusive pelo que o outro fez de 'irresponsável'...".