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quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Pierre Bourdieu (Dossiê - Revista Cult 166/2012)

Impossível não registrar algo acerca do dossiê preparado pela Revista Cult (n. 166, março 2012) para relembrar alguns conceitos de Pierre Bourdieu neste momento de 10 anos de sua morte (1930-2002). Uma justa homenagem a um dos maiores intelectuais do século XX, principalmente num momento em que, como diz Daysi Bregantini (editora da Cult),
nossos poucos intelectuais públicos são desmotivados, assim como nossos bons criadores. A economia vive um momento inédito de crescimento, mas não é representada na produção cultural, que está desbotada e sem vigor. O jornalismo cultural, com poucas exceções, está quase desmoralizado e a reboque da indústria do entretenimento. Por que nos conformamos?
Bourdieu é aquele intelectual ao qual podemos atribuir duas grandes características: é "engajado" (segue a tradição francesa de participar ativamente de movimentos sociais, integrando a teoria com a prática) e é "total" (sua obra cobre uma gama extremamente variada de problemas, domínios e dimensões da vida social).
 
Sua produção é vasta e, recentemente, foi publicado na França o livro "Sobre o Estado", produto de um curso oral entre 1989 e 1992 onde discutiu o papel do Estado e do indivíduo na sociedade. Segundo Franck Poupeau, ali Bourdieu constrói um modelo de gênese do Estado, pensado no cruzamento da História, da Sociologia e da Filosofia Política, com referências ao contexto francês da época, quando da desconstrução dos serviços públicos, das políticas sociais e da própria ideia de "público".
 
O termo que usava era o do "abandono do Estado", imaginando que o neoliberalismo estaria esvaziando completamente o Estado de suas funções. Nesse aspecto talvez tivesse se surpreendido, hoje em dia, com a sobrevivência de inúmeras funções e, talvez, optasse por falar em "transformação" do Estado e suas funções. Mas, é esperar pra ver, com calma, como tratou esta questão do Estado num momento decisivo de seu questionamento.
 
Entretanto, apesar de ser um dos autores mais citados no mundo (e "descoberta" no mundo inglês), sua obra vem sendo muito atacada pelos sociólogos franceses. Para Bernard Lahire, um de seus  herdeiros, estaria ocorrendo um processo de "desqualificação" (muito típico nas Ciências Sociais) que obedeceria à lógica da moda*, onde não há espaço para argumentações e evidências empíricas, somente para o "novo" e o "ultrapassado".
 
O que existiria por trás disso, então, seria uma recusa de uma sociologia subjetiva, apegada aos estudos da dominação e da desigualdade, dos determinismos sociais. Predomina, na atualidade, uma sociologia consensual, ausente de relações de dominação.
 
Vê-se aí reflexos da ideologia consumista onde os intelectuais estariam se comportando como crianças que, em busca de reconhecimento por parte do poder, estariam se tornando dóceis e se recusando a denunciar as violências. Um comportamento que tira das Ciências Sociais qualquer possibilidade de se tornar um contrapoder.
 
É neste contexto que Geoffroy de Lagasnerie critica a relação de muitos intelectuais (como Alain Badiou) com a mídia, também expressão dessa busca frenética por um tipo de reconhecimento similar à das celebridades.
 
Para ele, tais autores estariam se tornando ensaistas de segunda linha e produzindo subpesquisas, fazendo praticamente desaparecer o debate intelectual. Entretanto, o autor não demoniza a mídia e vê que Bourdieu, por sua vez, não soube avaliar com clareza o papel da mídia, perdendo-se, junto a outros importantes teóricos, numa feroz crítica aos jornais e suplementos culturais. Havia um receio de se perder o "monopólio" do discurso acadêmico?
 
Não há como negar o importante papel destes outros espaços como "críticos" das práticas acadêmicas, papel importante para se atenuar as chamas "imposturas" acadêmicas (similares às imposturas midiáticas). A crítica feroz, portanto, mais parecia uma tentativa de salvaguardar de críticas o espaço acadêmico, contribuindo para isolá-lo cada vez mais da sociedade, fechando-o em si mesmo.
Quando refletimos sobre o jornalismo, insistimos com frequência na censura que exerce. Mas a contribuição essencial do jornalismo reside no fato de que se trata de uma instância exterior à universidade. Ele representa um espaço de acolhimento para as obras, os autores e questionamentos em ruptura com as normas científicas (p. 39).
Outra publicação de Bourdieu, que deve ser lançada ainda este ano no Brasil, é "Os Herdeiros". Segundo sua tradutora, Ione Ribeiro Valle (UFSC), o livro inspira-se na tradição weberiana de não considerar a relação de dominação como exclusivamente econômica, embora sustente (como o marxismo) a ideia de divisão da sociedade entre dominantes e dominados.
 
No livro, Bourdieu rompe com a "ingenuidade" da ideologia da igualdade de oportunidades assentada na ideia de uma escola que alcance a todos. Independente de qualquer coisa, a escola ainda tem a função de legitimadora das desigualdades, mais do que um instrumento de mobilidade social. Para Bourdieu, a cultura de elite ainda predomina e seria necessário uma socialização diversa daquela preconizada pela escola (**). Vejamos, em síntese, alguns dos principais conceitos de Bourdieu:
 
1) Capital Cultural - Conjunto de qualificações intelectuais produzidas pela escola ou transmitidas pela família. Pode ser "incorporado" (como a facilidade de expressão), "objetivo" (como livros) ou "institucionalizado" (como títulos escolares). É uma propriedade que se tornou parte integrante da pessoa através da aprendizagem e aculturação, e fortemente relacionado ao capital econômico do indivíduo;
 
2) Capital Econômico - Conjunto de recursos patrimoniais e de rendas ligados ao capital ou a um exercício profissional assalariado ou não assalariado;
 
3) Contato Social - Conjunto de contatos, relações, amizades, obrigações, relações socialmente úteis que podem ser mobilizadas ao longo da trajetória profissional ou pessoal do indivíduo. É uma variável que confere maior ou menor "espessura" social, poder de ação e reação. "A rede de relações é o produto de estratégias de investimento social", consciente ou não, a fim de criar, manter, reforçar, reativar ligações das quais pode esperar retirar "lucros materiais ou simbólicos";
 
4) Campo -Espaço social estruturado e conflitual no qual os agentes sociais ocupam uma posição definida pelo volume e pela estrutura do capital eficiente no campo, agindo segundo suas posições nesse campo. Cada campo - um "campo de força" de agentes e instituições em luta - é dotado de regras de funcionamento e de agentes investidos de hábitos específicos (campo universitário, jornalístico, literário, jurídico, econômico etc). São campos autônomos que resultam da diferenciação do mundo social e dos modos de conhecimento do mundo. Assim, cada campo tem um ponto de vista fundamental sobre o mundo e cria, portanto, seu objeto próprio;
 
5) Distinção - Corresponde a uma estratégia de diferenciação que está no âmago da vida social. É uma propriedade que marca um desvio, uma diferença em relação a outros e que funda uma hierarquia entre indivíduos e grupos;
 
6) Capital Simbólico - Conjunto de rituais (como a etiqueta e o protocolo) ligados à honra e ao reconhecimento. É o crédito e a autoridade que conferem a um agente o reconhecimento e a posse das três outras formas de capital (econômico, cultural e social). Ele é produto da "transfiguração de uma relação de força em relação de sentido", designando o efeito de violência imaterial das outras formas de capital sobre a consciência. Um exemplo típico das transmutações das outras espécies de capital em efeitos simbólicos é o "grande nome" (de uma "grande família"), que condensa todas as propriedades materiais e imateriais acumuladas e herdadas. A compreensão da lógica dos efeitos simbólicos de posições e de recursos advém de uma economia dos bens simbólicos;
 
7) Espaço Social -~Representação multidimensional e relacional da estrutura da sociedade de acordo com o volume e a estrutura do capital em posse das diferentes classes sociais em conflito. É aqui que se encontra a verdadeira lógica da dinâmica social, pois a sociedade não é mais que um espaço de distribuição, ou seja, um vasto conjunto de posições hierarquizadas através de múltiplas dimensões, recortado por tensões e dominações, definido pela exclusão mútua, ou distinção, das posições que o constituem;
 
8) Habitus - Talvez seja o conceito central em Bourdieu. É um sistema de disposições duráveis e transponíveis, que podem gerar práticas em outras esferas no curso do processo de socialização. São potencialidades objetivas que têm a tendência a se atualizar e a operar nas práticas e representações que elas moldam de forma duradoura. Embora Bourdieu negue um determinismo social rígido (pois há uma margem de manobra para o "jogo" e a improvisação) o habitus seria sempre produto do condicionamento histórico e social. Ele não pode ser revertido com uma mera tomada de consciência, pois está profundamente inscrito, internalizado, nos corpos, gestos e posturas, mas nem sempre percebido e muito menos entendido racionalmente.
 
9) Hysteresis - É estar atrasado, defasado, em descompasso.
 
10) Violência Simbólica - É a violência não percebida, obtida por um trabalho de inculcação da legitimidade dos dominantes sobre os dominados e que assegura a permanência da dominação e da reprodução social. Um exemplo é a transmissão da cultura escolar;
O dossiê elaborado pela revista ainda tráz uma série de revelações da trajetória de Sérgio Miceli, para muitos o maior divulgador de Bourdieu no Brasil. No texto se percebe o fascínio e o caminho percorrido por Miceli no encontro com as ideias de Bourdieu, sua forte preocupação com as questões culturais e o pouco espaço encontrado nas universidades brasileiras dos anos 70, que se concentravam demasiadamente em Marx e em O Capital. Era uma época de "má vontade" da Sociologia com a cultura.
 
Para Miceli, enquanto o marxismo tratava a cultura de forma reducionista, o trabalho de Bourdieu era mais complexo e fascinante. Ele trazia uma nova leitura, menos dogmática e mais simbólica. Era, segundo muitos, a consolidação daquilo que os frankfurtianos iniciaram: uma análise central da cultura. Trata-se de um belo texto, revelador de uma época. Assim como Bourdieu pode ser muito revelador para a época atual.
 
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(*) interessante como a Universidade e, em especial o competitivo campo das Ciências Sociais, se utilize justamente daquilo que mais critica: a descartabilidade. Na ânsia por um "lugar" na história se patrocina, seguidamente, o "enterro" de teorias e metodologias (e seus representantes) para dar lugar às novidades. Ora, o que mais isso é além da "lógica da moda"?
(**) um bom terreno para se avaliar esta questão é o Brasil atual com sua migração social e o papel da escolaridade nesse processo como um todo. se pode tentar observar como o "desprezo" pela educação pode, de um lado, continuar servido a uma reproduzção cultural elitista, mas, também, a uma outra socialização, que menospreza qualquer valor oriundo da cultura escolar e acadêmica.