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terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Lacan e o Estádio do Espelho

A postagem abaixo é uma síntese da comunicação feita por J. Lacan ao XVI Congresso Internacional de Psicanálise, em Zurique, a 17.06.1949, sob o título "O estádio do espelho como formador da função do Eu tal como nós é revelada na experiência psicanalítica".
 
Trata-se de um momento espetacular em que a criança reconhece sua imagem no espelho a partir de uma série de gestos em que experimenta, ludicamente, os movimentos de sua imagem refletida, e dos objetos que estão à sua volta. Ocorre a partir dos seis meses de idade, e é uma atividade libidinal que muito nos fala da estrutura ontológica do ser humano.
 
É um momento de IDENTIFICAÇÃO, matriz de todas as identificação secundárias posteriores, ou seja, o sujeito assume uma imagem (imago) e o EU se precipita nesta fase de ainda impotência motora e dependência, antes mesmo de afirmar-se diante do outro e antes que a linguagem lhe dê a função de sujeito. Trata-se de um "Eu-Ideal". Diante do espelho, portanto, a criança vê a forma do seu corpo (uma "miragem" do seu poder) como Gestalt, numa exterioridade. O que vê, entretanto, tem forte efeito constituinte, afinal, já está mais que comprovado que uma Gestalt tem efeitos normativos sobre o organismo. Estamos em um momento de pura dialética entre o organismo e sua própria realidade. É nesta relação que entra a função da imago. Assim,
O estádio do espelho é um drama cujo impulso interno se precipita da insuficiência à antecipação - e que, para o sujeito, apanhado na armadilha da identificação espacial, maquina os fantasmas que se sucedem, de uma imagem retalhada do corpo a uma forma que chamaremos ortopédica da sua totalidade - e à armadura enfim assumida de uma identidade alienante, que vai marcar com sua estrutura rígida todo o desenvolvimento mental. 
Mais à frente, quando do momento de término do estádio do espelho e passagem do "eu especular" para o "eu social", a armadura fortificada do eu se verá diante de situações socialmente elaboradas e será sempre mediado pelo desejo do outro (um "intermediário cultural"), tornando, então, perigoso, qualquer levantamento de instintos. Dono de uma liberdade que se afirma como autêntica entre os muros de uma prisão o eu verá a loucura (neuroses e psicoses) nascer por entre esses muros, sempre nos falando de paixões que foram amortizadas.
Nesse ponto de junção da natureza à cultura que a antropologia dos nossos dias perscruta obstinadamente, a psicanálise somente é que reconhece esse nó de servidão imaginária que o amor vem sempre redesfazer ou retalhar.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

A relação entre psicanálise e literatura

A literatura sempre me foi uma grande paixão. Sou um obstinado pela leitura dos clássicos e nutri a crença de que morrer sem lê-los seria desastroso. Dentre os clássicos me apeguei fortemente àqueles que exploram intensamente a subjetividade de seus personagens, alguns até fortemente melancólicos e angustiados. Esses têm algo a  dizer sobre nós e o que nos cerca. Tudo bem, depois percebi que isso só falava de mim mesmo e de minhas buscas e faltas, e não podia ser de outra forma pois aquilo que nos toca na arte é aquilo que permite e facilita nossa "identificação", ou seja, aquele processo que nos permite reconhecer algo de idêntico, que nos permite assimilar esse algo do outro que acaba por nos transformar e constituir, afinal, não é assim que construímos nossa personalidade, com processos psicológicos de identificação?
 
Mas, não é sobre melancolia, nem sobre angústia, que quero conversar um pouco, e sim sobre a relação entre a Literatura e a Psicanálise. Cada vez mais me empenho em estreitar essa relação, sempre enxergando na literatura um amplo campo de explanação da subjetividade humana, algo que interessa, portanto, diretamente à psicanálise. Ou seja, já ficou muito atrás o tempo em que a literatura me era só um passatempo. Hoje ela me municia profissionalmente. Isso mesmo. Se antes buscava a subjetividade do texto literário para me distrair e me conhecer, hoje busco, também, para aperfeiçoar meu uso da teoria psicanalítica. Mudou alguma coisa, mas não mudou, entretanto, o fato de a literatura continuar soberana em me fornecer elementos de conhecimento.

O que me motivou a pensar novamente neste assunto foi a leitura de um curto texto de Rafael A. Villari*, publicado em 2000. No texto, ele nos lembra que Freud já havia inaugurado um amplo diálogo entre a psicanálise e a literatura, identificando possibilidades. Em uma delas dizia que havia, por exemplo, a tentação de se “reconstruir” o autor a partir de deduções da própria obra. Claro que isso poderia resultar em reducionismos aberrantes, bem típicos do psicobiografismo que tenta colocar o autor, e a própria obra, no divã. Outra possibilidade apontada por Freud seria ver no texto literário algo do “real”, contribuindo, então, com a própria teoria psicanalítica. É em cima dessas duas visões que Villari vai nos falar no "possível" e no "impossível" desta relação entre psicanálise e literatura.

Teríamos, portanto, duas vertentes na relação entre a psicanálise e a literatura. A que busca acrescentar sentidos ao texto e, em consequência, compreender o autor a partir da própria interpretação psicanalítica e, a que busca no texto contribuições à própria psicanálise. Ou seja, numa o texto é analisado, noutra ele serve de instrumento.

Para Villari, então, o “impossível” nesta relação seria justamente tentar-se utilizar a teoria psicanalítica como ferramenta para a interpretação da obra e do autor como que buscando desvendar “sentidos ocultos” e “enigmas”. Algo semelhante à atuação do analista sobre o relato dos seus analisandos. Esta é a “textanálise”. Como saber, ali no texto, o que era o reprimido do inconsciente e o que era só o manifesto do consciente? O sujeito não estava ali! Onde estava o sujeito do enunciado, o autor? Com o tempo, então, abandonou-se a tentativa de buscar o inconsciente no texto e começou-se a falar em “proto-texto”. Seria o rascunho do texto onde se poderia enxergar o “movimento” da escrita. Ali, se pensou poder encontrar algumas das formações do inconsciente, como atos falho, sonhos, chistes etc. Ou seja, insistia-se em encontrar o sujeito, só que agora nos intervalos, nas dúvidas e nos erros de escrita.

Mas, o texto só diz algo quando é lido, correto? Foi a partir daí, portanto, que se começou a buscar o “leitor”. Ele é quem seria portador, então, do inconsciente do texto, do desejo do escritor. O texto não diria nada! Saímos então do patamar da escrita para o da “leitura”. Seria, então, através da leitura que o desejo “do” escritor, e não “de um” escritor, seria transmitido. O desejo “de um” escritor nos fala de um desejo particular. É o desejo “do” escritor, por outro lado, que nos desperta o desejo de escrever. Mas não como o escritor, ou sobre o escritor. O que desejamos é o desejo que o escritor teve de escrever. Com isso, desejamos aquilo que o escritor desejou quando pensou no leitor: ser amado pelo seu texto.

Mas, vamos pensar um pouco mais sobre o “proto-texto” (o trabalho inconsciente da escritura). Essa postura implica um sujeito portador de um saber apriori (teoria psicanalítica) que ao percorrer o texto o desvenda através do “vista psicanalítico do texto literário”, como nos dia Villari.

O que seria esse vista psicanalítico do texto literário? Não pode, evidentemente, como na clínica, ser uma prática, pois não dá para se pensar em transferência a partir de um texto. O que se usa da psicanálise, então, não é sua prática clínica, mas somente sua teoria, com todos os seus limites. É por isso que Villari propõe o que seria o “possível” numa relação entre psicanálise e literatura: utilizar o texto para o interesse da teoria psicanalítica, já que o texto resiste à qualquer tentativa de interpretação.

Não é o texto, portanto, que vai ser questionado pela psicanálise, mas esta, a partir da literatura. A psicanálise, ao invés de colocar-se como um saber apriori, coloca-se, diante do texto, como um sujeito que não sabe. A literatura, portanto, pode nos ajudar a dizer o que não conseguimos como psicanalistas. Com o texto literário, há uma boa chance do real nos alcançar pelo simbólico. Diante do texto literário, portanto, só temos, enquanto psicanalistas, que resistir às suas tentações e encantos e fazê-lo falar, nos motivarmos à pesquisa. A literatura é sim uma forma privilegiada de acesso ao conhecimento psicanalítico, mas desde que coloquemos o saber com o texto e a ignorância conosco. São as palavras do texto que poderão explicar muito do que há de silêncio em mim mesmo, como disse Freud a Fliess em uma carta.

Seria esta, segundo Villari, a atitude de investigação propriamente freudiana: partindo-se da ideia de uma teoria psicanalítica incompleta, buscamos reconhecer no texto literário aquilo que nos leva à pesquisa e ao conhecimento, ou seja, encontrando nos grandes autores algo do conhecimento da alma humana.

Isso me leva àquele parágrafo inicial quando disse que sempre o que me motivou no texto literário era a subjetividade das personagens, por vezes levada aos limites da loucura. Com isso, só buscava mesmo me conhecer um pouco mais. É este comportamento que, hoje como psicanalista, recupero, para dotar-me de um melhor saber acerca da condição humana.



* VILLARI, Rafael Andrés. Relações possíveis e impossíveis entre a psicanálise e a literatura. Psicol. cienc. prof. [online]. 2000, vol.20, n.2 [cited  2013-12-13], pp. 2-7 . Available from: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932000000200002 &lng=en&nrm=iso>. ISSN 1414-9893.  http://dx.doi.org/10.1590/S1414-98932000000200002.