sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

A relação entre psicanálise e literatura

A literatura sempre me foi uma grande paixão. Sou um obstinado pela leitura dos clássicos e nutri a crença de que morrer sem lê-los seria desastroso. Dentre os clássicos me apeguei fortemente àqueles que exploram intensamente a subjetividade de seus personagens, alguns até fortemente melancólicos e angustiados. Esses têm algo a  dizer sobre nós e o que nos cerca. Tudo bem, depois percebi que isso só falava de mim mesmo e de minhas buscas e faltas, e não podia ser de outra forma pois aquilo que nos toca na arte é aquilo que permite e facilita nossa "identificação", ou seja, aquele processo que nos permite reconhecer algo de idêntico, que nos permite assimilar esse algo do outro que acaba por nos transformar e constituir, afinal, não é assim que construímos nossa personalidade, com processos psicológicos de identificação?
 
Mas, não é sobre melancolia, nem sobre angústia, que quero conversar um pouco, e sim sobre a relação entre a Literatura e a Psicanálise. Cada vez mais me empenho em estreitar essa relação, sempre enxergando na literatura um amplo campo de explanação da subjetividade humana, algo que interessa, portanto, diretamente à psicanálise. Ou seja, já ficou muito atrás o tempo em que a literatura me era só um passatempo. Hoje ela me municia profissionalmente. Isso mesmo. Se antes buscava a subjetividade do texto literário para me distrair e me conhecer, hoje busco, também, para aperfeiçoar meu uso da teoria psicanalítica. Mudou alguma coisa, mas não mudou, entretanto, o fato de a literatura continuar soberana em me fornecer elementos de conhecimento.

O que me motivou a pensar novamente neste assunto foi a leitura de um curto texto de Rafael A. Villari*, publicado em 2000. No texto, ele nos lembra que Freud já havia inaugurado um amplo diálogo entre a psicanálise e a literatura, identificando possibilidades. Em uma delas dizia que havia, por exemplo, a tentação de se “reconstruir” o autor a partir de deduções da própria obra. Claro que isso poderia resultar em reducionismos aberrantes, bem típicos do psicobiografismo que tenta colocar o autor, e a própria obra, no divã. Outra possibilidade apontada por Freud seria ver no texto literário algo do “real”, contribuindo, então, com a própria teoria psicanalítica. É em cima dessas duas visões que Villari vai nos falar no "possível" e no "impossível" desta relação entre psicanálise e literatura.

Teríamos, portanto, duas vertentes na relação entre a psicanálise e a literatura. A que busca acrescentar sentidos ao texto e, em consequência, compreender o autor a partir da própria interpretação psicanalítica e, a que busca no texto contribuições à própria psicanálise. Ou seja, numa o texto é analisado, noutra ele serve de instrumento.

Para Villari, então, o “impossível” nesta relação seria justamente tentar-se utilizar a teoria psicanalítica como ferramenta para a interpretação da obra e do autor como que buscando desvendar “sentidos ocultos” e “enigmas”. Algo semelhante à atuação do analista sobre o relato dos seus analisandos. Esta é a “textanálise”. Como saber, ali no texto, o que era o reprimido do inconsciente e o que era só o manifesto do consciente? O sujeito não estava ali! Onde estava o sujeito do enunciado, o autor? Com o tempo, então, abandonou-se a tentativa de buscar o inconsciente no texto e começou-se a falar em “proto-texto”. Seria o rascunho do texto onde se poderia enxergar o “movimento” da escrita. Ali, se pensou poder encontrar algumas das formações do inconsciente, como atos falho, sonhos, chistes etc. Ou seja, insistia-se em encontrar o sujeito, só que agora nos intervalos, nas dúvidas e nos erros de escrita.

Mas, o texto só diz algo quando é lido, correto? Foi a partir daí, portanto, que se começou a buscar o “leitor”. Ele é quem seria portador, então, do inconsciente do texto, do desejo do escritor. O texto não diria nada! Saímos então do patamar da escrita para o da “leitura”. Seria, então, através da leitura que o desejo “do” escritor, e não “de um” escritor, seria transmitido. O desejo “de um” escritor nos fala de um desejo particular. É o desejo “do” escritor, por outro lado, que nos desperta o desejo de escrever. Mas não como o escritor, ou sobre o escritor. O que desejamos é o desejo que o escritor teve de escrever. Com isso, desejamos aquilo que o escritor desejou quando pensou no leitor: ser amado pelo seu texto.

Mas, vamos pensar um pouco mais sobre o “proto-texto” (o trabalho inconsciente da escritura). Essa postura implica um sujeito portador de um saber apriori (teoria psicanalítica) que ao percorrer o texto o desvenda através do “vista psicanalítico do texto literário”, como nos dia Villari.

O que seria esse vista psicanalítico do texto literário? Não pode, evidentemente, como na clínica, ser uma prática, pois não dá para se pensar em transferência a partir de um texto. O que se usa da psicanálise, então, não é sua prática clínica, mas somente sua teoria, com todos os seus limites. É por isso que Villari propõe o que seria o “possível” numa relação entre psicanálise e literatura: utilizar o texto para o interesse da teoria psicanalítica, já que o texto resiste à qualquer tentativa de interpretação.

Não é o texto, portanto, que vai ser questionado pela psicanálise, mas esta, a partir da literatura. A psicanálise, ao invés de colocar-se como um saber apriori, coloca-se, diante do texto, como um sujeito que não sabe. A literatura, portanto, pode nos ajudar a dizer o que não conseguimos como psicanalistas. Com o texto literário, há uma boa chance do real nos alcançar pelo simbólico. Diante do texto literário, portanto, só temos, enquanto psicanalistas, que resistir às suas tentações e encantos e fazê-lo falar, nos motivarmos à pesquisa. A literatura é sim uma forma privilegiada de acesso ao conhecimento psicanalítico, mas desde que coloquemos o saber com o texto e a ignorância conosco. São as palavras do texto que poderão explicar muito do que há de silêncio em mim mesmo, como disse Freud a Fliess em uma carta.

Seria esta, segundo Villari, a atitude de investigação propriamente freudiana: partindo-se da ideia de uma teoria psicanalítica incompleta, buscamos reconhecer no texto literário aquilo que nos leva à pesquisa e ao conhecimento, ou seja, encontrando nos grandes autores algo do conhecimento da alma humana.

Isso me leva àquele parágrafo inicial quando disse que sempre o que me motivou no texto literário era a subjetividade das personagens, por vezes levada aos limites da loucura. Com isso, só buscava mesmo me conhecer um pouco mais. É este comportamento que, hoje como psicanalista, recupero, para dotar-me de um melhor saber acerca da condição humana.



* VILLARI, Rafael Andrés. Relações possíveis e impossíveis entre a psicanálise e a literatura. Psicol. cienc. prof. [online]. 2000, vol.20, n.2 [cited  2013-12-13], pp. 2-7 . Available from: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932000000200002 &lng=en&nrm=iso>. ISSN 1414-9893.  http://dx.doi.org/10.1590/S1414-98932000000200002.

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