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sexta-feira, 12 de julho de 2013

Temos medo de que? (Angústia - Alain Vanier)

O ponto central desta conferência de Alain Vanier (1) é a tentativa de melhor entender o "medo" na contemporaneidade, e sua relação com o enfraquecimento das "figuras tutelares". De imediato, destaca o quanto é rico o campo semântico que constitui o vocabulário do "medo", mas quase nunca especifica bem. Que singularidades este, tão universal, "medo" tem assumido na história? Trata-se de uma questão muito interessante, mas o que o autor faz é partir do entendimento da psicanálise, e a partir daí chegar a uma compreensão atual. 

Freud associou o medo à angústia (angst) e esta entrou para o vocabulário da psicopatologia, dando à ela um estatuto mais importante, com a "neurose de angústia" (em 1895, ao distinguí-la das neurastenias). Para a psicanálise, a angústia seria vista como o "afeto principal", "fundamental", tendo uma estreita vinculação com nosso corpo. Mas, não significa um "ressurgimento de nossa animalidade", uma espécie de "reação". De fato, então, a palavra "angústia" é a que melhor fala do "medo", no sentido psicanalítico.
 
Vanier nos lembra que, para Freud, a angústia corresponde a uma tensão física que não pode ser elaborada psiquicamente, e essa tensão é sexual, sendo, em seguida, articulada à teoria do recalcamento. Ou seja, tendo a "representação" recalcada no inconsciente, o "afeto" é deslocado, não mais se reconhece, e se transforma em uma angústia que parece não ter objeto.
 
Estimulado pelos efeitos clínicos da I Guerra, Freud propõe uma divisão de medos e angústias em três categorias, em função de sua "relação com o perigo": 
  • a angústia — Angst — que se refere a um estado e "abstrai do objeto". O perigo pode ser desconhecido e provoca um estado de espera e de preparação;
  • o medo (Furcht), que exige um objeto determinado e dirige sua atenção para este;
  • o pavor, (Schreck) que é efeito de um perigo que não é preparado por alguma forma de alerta, não é preparado pela angústia, é marcado pela surpresa;
É isso que leva Freud a dizer que nos protegemos daquilo que nos apavora por meio da angústia. Inúmeras neuroses seriam o modo explícito de uma manifestação de pavor. Essa articulação entre medo e angústia seria mais nítida na fobia.
 
Ao longo dos anos 1920, porém, Freud vai propor uma segunda teoria da angústia ("Inibição, Sintoma e Angústia") onde não é mais o recalcamento que cria a angústia, mas sim "a angústia é que faz o recalcamento". Nesse caso, a angústia sobrevém de um perigo extremo, real. É aquela angústia, por exemplo, da criança diante da possível perda do amor da mãe. É vista como uma "angústia originária". Dessa forma, como nos diz Vanier,
A angústia é um sinal no eu, ela adverte o sujeito de um perigo que é o de um desejo enigmático que envolve seu ser como perdido e passível de anulação, seu ser como objeto que pode ser, sem saber qual, para o desejo do Outro. Só então o recalcamento intervém.
Um exemplo, estudado por Freud, está no artigo sobre o "pequeno Hans" (1909), com 4 anos e acometido por uma fobia. É um momento em que a descoberta do órgão sexual está se dando e as ereções já não acontecem simplesmente vinculadas à micção, e geram sensações desconhecidas e incontroláveis. É dessa forma que a "descoberta" da sexualidade aparece como o lugar por excelência do fracasso do domínio de si mesmo
 
No caso de Hans, o nascimento de uma irmãzinha só alimenta seus questionamentos, e logo sua fobia vai se desenvolver, principalmente quando sonha com sua mãe abandonando-o. Mais tarde, a fobia a cavalos seria o lugar da transposição da angústia, ou seja, o medo de ser devorado (abandonado) pela mãe gera o sintoma (medo do cavalo devorá-lo). Ele não sabe mais acerca do amor de sua mãe.
 
Imaginando-se não desejado pela mãe, ele sai do campo do imaginário desta e cai no campo da "angústia", substituindo o medo pela fobia
Esse medo, diferentemente da angústia, tem a vantagem de estar focalizado num objeto; de algum modo é um posto avançado da angústia. Paradoxalmente, esse medo tem uma função estruturante. Introduz uma ordem — exorbitante, é bem verdade — no mundo dessa criança: há, assim, lugares onde pode ir, onde ela não tem medo, e outros onde ela não pode ir. 
É assim que a fobia acaba por ajudar a criar um "exterior" e um "interior", pois, até então, a criança estava no "interior" da mãe. Por isso é estruturante para a criança. Quando ela se confronta com o medo do abandono ela se depara com seu próprio "desejo" pela mãe. É a falta do outro que gera o desejo. E, quando não sabe que objeto ele é para esse outro, e seu desejo não é atendido, surge a angústia, por vezes substituída pelo medo do "objeto fóbico", que é, em última instância, uma proteção contra seu próprio desejo. Surge aí, portanto, toda a problemática do relacionamento com o outro. Assim, 
O objeto fóbico é um significante, um significante que serve para tudo, trata-se igualmente do pai que pune e da mãe que devora. 
É claro que estes significantes têm um valor para além de toda realidade presente, mas está, porém, depositado na cultura, nos nossos mitos. Não à toa, perguntas como "O que ele quer? O que ele quer de mim?" "O que é que eu sou para o Outro?" "O que ele ama em mim?" "Ele me ama?" não param de surgir ao longo da vida inteira. 
 
As fobias, que manifestam isso, aparecem por volta de 3 a 5 anos (separação) e depois, por volta de 8-9 anos, quando a criança apreende que pode perder ou ser perdida por seus pais, que são mortais. É, portanto, a incompletude e a não compreensão que nos levam a temer e procurar a psicanálise. Sofremos por não compreender.
 
Desse modo, como Freud dizia, toda angústia é, fundamentalmente, angústia de separação. E daí a importância que Winnicott atribuía aos "objetos transicionais" (seja um bichinho de pelúcia, um paninho macio) que mostram que há um "resto" da separação e que ela não foi totalmente simbolizável.
 
O objeto da angústia, então, é um "objeto perdido", que "falta", que se "perdeu" na separação. Justamente por isso os pacientes fóbicos apresentam novos surtos de angústia quando a fobia desaparece, assim como reaparece na neurose obsessiva quando o sujeito é impedido de entregar-se aos seus rituais. A solução só se dá mesmo na resolução do complexo de Édipo, isto é, no lugar que o pai pode tomar como sendo aquele que se ocupa do desejo da mãe.
 
Isso nos chama a atenção para o lugar do "pai" e seu declínio, enfraquecimento de sua função, de forma estruturante, na atualidade, como se nenhum pai estivesse à altura de substituir por completo a dimensão simbólica de sua função. 
Essa dimensão ideal de uma figura paterna é particularmente evidente na constituição dos grupos. Quem tenha assistido a um dia de aula numa seção de crianças pequenas de um maternal — crianças de mais ou menos 3 anos — terá guardado na lembrança a dificuldade que a professora pode ter para simplesmente arrumá-las em grupo. Alguns anos mais tarde, as crianças formam uma fila sem maiores dificuldades, elas se organizam sob a tutela da professora, ou do líder que tenha surgido de dentro de suas próprias fileiras. O reagrupamento sob uma figura tutelar sempre constituiu uma das maneiras mais comuns de tratar o medo. O pai, ou sua figura, protege do medo
E esse reagrupamento se faz à custa de uma regressão que mantém o sujeito em uma posição infantil, mas que o protege contra a neurose. É o que a religião realizava com o "não tenhais medo!". Mas, com o relativo declínio do discurso religioso, a psicanálise emerge como sintoma revelador do mal-estar em nossa civilização.

Então, temos medo de que? Para Lacan, de nosso "corpo", esse haver, essa posse que nos possui e de que gozamos. Um corpo sempre mediado simbolicamente pelo Outro, que é constituidor; um corpo que a linguagem atravessa-o recortando e produzindo perdas. Um corpo "furado" pelas nossas faltas.

E sentimos o medo, a angústia de não mais gozar com este corpo. Não à toa estamos tentando preenchê-lo, sempre, com novos objetos que, por sua vez, logo nos deixam insatisfeitos novamente. 
Cada uma dessas felizes redescobertas é marcada de uma impossibilidade — "não é isso!" — e o sujeito é lançado novamente nessa busca sem fim (...) A ciência nos dá numerosas bugigangas próprias como engodo para o nosso desejo. Elas vêm no lugar daquilo que nos falta (...) Esse gozo, outrora remetido ao além como recompensa de uma vida de merecimentos, hoje em dia nos é prometido, mostrado como possível (...) Se essa organização é a mola propulsora do consumo moderno, é também provedora de angústia ante esse real que a ciência produz.
A ciência cresceu ante a religião e, como Benjamin dizia, o capitalismo é uma religião não expiatória mas "culpabilizante" nos oferecendo o que está "vivo" e, permanentemente, nos deixando na angústia, na falta de um sentido que sustente sua vida, em busca permanente de um balizamento que regule o nosso gozo. 
 
Dessa forma, vivemos o desmoronamento das figuras tutelares que tem como correlato o aumento do medo. Vivíamos num mundo em que nosso gozo se situava, se regulava a partir do Outro. Hoje em dia, somente nos situamos a partir do objeto.

E a psicanálise? Ela, como a ciência, é filha da modernidade. mas não é uma ciência, mesmo que tenha sido influenciada pelo discurso da ciência, pois ela a rejeita. Há, aqui, uma "jogada ética": 
O tratamento analítico permite que o sujeito saiba alguma coisa de seu gozo, permite apreender esse Real — e se contrapor a ele e suportar essa parte que incessantemente escapa ao sujeito, parte que, no entanto, é estrutural, embora retorne ao sujeito como aquilo que lhe é o mais estrangeiro. 

Sabemos que a psicanálise não promete o fim da angústia, apenas o "um por um", mas, como Kierkegaard dizia: "a todo instante o indivíduo é ele próprio e o gênero humano". A psicanálise nos permite viver com a angústia, que é a marca da nossa condição, da nossa finitude e da nossa paradoxal liberdade.
 
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(1) VANIER, Alain. Temos medo de quê? Ágora (Rio J.) [online]. 2006, vol.9, n.2 [cited  2013-07-12], pp. 285-298 . Available from: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-14982006000200009&lng=en&nrm=iso>. ISSN 1516-1498.  http://dx.doi.org/10.1590/S1516-14982006000200009.