Andrew Samuels é, como costuma se definir, um psicoterapeuta com base e treino pós-junguianos. Mas, como ele mesmo recomenda, não fiquemos aprisionados aos rótulos e o visualizemos como um psicanalista que continuamente intervém em questões políticas e sociais, uma espécie de "comentarista psicológico", como alguns gostam de chamar. Nesse sentido, é um excelente nome para se reler e trazer à tona algumas de suas colocações sobre este "lugar" entre o indivíduo e o social.
Samuels tem uma densa bibliografia a respeito dessa ligação entre nossos mundos "interno" (psíquico) e "externo" (social). Ligação que, para ele, e com justa razão, só pode ser feita através de uma "nova linguagem" que supere o descaso que tanto o psicoterapeuta tem pela política (entendida como um lugar do "social"), quanto o acadêmico ou o político têm pela psicanálise. Uma trata a outra com certo descrédito e arrogância. Atitude que, quase sempre, só serve para esconder a ignorância que uma nutre sobre a outra. Atitude que acaba sendo maior que a de buscar "pontes" de contato entre as disciplinas.
Não é um trabalho fácil, mas, como diz Samuels, pode ser feito. E a psicanálise, por exemplo, pode ter muito a contribuir com a vida pública, além de pensar sobre o "indivíduo". Desse "encontro" é que surgirá, com maior nitidez, o "lugar" existente entre o psiquismo individual e o social.
Um lugar que não é fruto de nenhuma elaboração acadêmica, não é uma hipótese científica, não é uma "descoberta". É um lugar que já está aí e do qual nos ocupamos diariamente, mas que precisa ser reconhecido e nomeado, para que sua existência seja ainda mais produtiva para o indivíduo e para a esfera pública de forma geral.
A psicanálise já rompeu as fronteiras da clínica individual, mesmo a contragosto e sob a crítica de muitos psicanalistas, e alcançou estes ambientes do "social", como a "política". Tudo muito tímido, é verdade, mas o que só mostra que é necessário continuar avançando.
E é neste movimento que também me situo intelectual e profissionalmente, ou seja, no movimento de buscar uma aproximação entre a psicanálise e a esfera pública (o espaço, por excelência, do social e, especificamente, do político). Não é uma jornada fácil. Como foi dito, implica em romper com inúmeros preconceitos. Mas precisamos desta "nova linguagem".
Voltando a Samuels, ele nos lembra que, como profissionais da psicanálise, podemos muito bem ignorar a política e continuar focando na transformação pessoal do indivíduo. Mas, não dá para se tentar contribuir com a revitalização da política além da transformação individual.
No meu caso, por exemplo, foi a "linguagem" que me permitiu fazer a "ponte". A linguagem que, na clínica manifesta desejos inconscientes, e que no "social" produz discursos que precisam ser melhor decifrados para reais transformações.
Além do mais, vivemos em um momento em que a economia, através do forte estímulo à competitividade e ao consumo, tem potencializado inúmeras patologias sociais que se refletem diretamente no dia a dia do indivíduo, adoecendo-o, assim como às instituições e laços sociais.
O que se percebe, portanto, na clínica, é uma impossibilidade de viver-se, unicamente, sob o jugo da emancipação de ordem "material", econômica, sustentada no consumo. O individualismo, a competitividade e o consumismo já causam mais doenças que "felicidades".
Ora, muitos vão dizer, "mas isto é uma questão que a própria economia e a política resolvem". E eu insisto: a psicanálise tem muito a dizer sobre isso, afinal, a economia e a política não são instituições, campos ou entidades abstratas que se colocam por sobre os homens, aglutinando-os e dizendo a eles como viver. Não! Elas também refletem os desejos e fantasias que elegemos em nosso psiquismo. É disso que a economia e a política se alimentam diariamente.
Como, então, me colocar como vítima da economia e da política? Não dá! Somos, também, responsáveis. E, para sair desse sentimento, ou me entrego com volúpia ao consumo ou aperfeiçoo meu auto-conhecimento e do próprio social. É neste aspecto, então, principalmente, que a "nova linguagem" pode contribuir.
E esta nova linguagem precisa romper com o dualismo entre o individual e o social. É no vácuo deixado pela nossa crença de que há uma cisão entre nosso mundo interior e a vida política que proliferam as "análises psicológicas" na mídia, especialmente sobre possíveis motivações psicológicas de políticos e outros agentes sociais.
Está certo que este movimento da mídia ainda está muito mais voltado para situações de crimes na sociedade, nem tanto na política. Afinal, a corrupção, a mentira etc., ainda não são tratados pela mídia do ponto de vista psicológico, pelo menos em nosso país. Ainda neste aspecto estamos atrasados. De qualquer forma, este exercício que a mídia faz é "inútil", pois, como nos lembra Samuels
por mais fascinante que seja o jogo de especulação sobre as motivações psicológicas dos políticos atuais, talvez seja bem mais importante descobrir o que aconteceria ao sistema político se os cidadãos fizessem uso de seu próprio autoconhecimento político - se descobrissem o que é chamado nos livros de "o político interior" (A Política no Divã, Summus Editorial, 2002, p. 18).
Então, não há como negar que a política sempre teve um forte caráter psicológico. Mas, ao mesmo tempo, quando este caráter está demasiado evidente em alguns políticos eles são tratados como "irracionais", como se a reação política fosse, ou devesse ser "racional". O problema é que, pensando assim, só nos afastamos das grandes questões que devem, de fato, ser pesquisadas, por exemplo: por que somos destrutivos e desagradáveis? As respostas vão exigir, sempre, um mergulho nas raízes psicológicas da política.
Desse modo, a política não incorpora a "racionalidade" de um povo, incorpora algo mais amplo, sua psiquê, com todos os seus elementos irracionais. Não foi a grande motivação gerada pela guerra que levou Freud a desenvolver o conceito de pulsão de morte e a iniciar seus estudos sobre o social? E mais, a praticamente concluir, de forma bem pessimista, que do mal-estar social talvez não nos livremos jamais? Por que insistir, então, nas bases exclusivamente racionais da política e desmerecer suas raízes psíquicas?
É nesse sentido que a Psicanálise e a Psicologia Social surgem como ferramentas de critica social e promoção de mudanças mas, pouco progresso se tem conseguido, e por várias razões: resistência de forças oriundas da economia e do patriarcado; resistência do próprio inconsciente; reducionismo psicoterápico que separa a análise social da clínica; triunfalismo da mídia; reivindicação de "universalidade" feita pela psicanálise, rejeitando, em consequência, as condições sócio-históricas na formação de sintomas, etc.
É em função disto que se apela a uma "nova linguagem", multidisciplinar em sua essência, que se interesse menos em definir como as pessoas "são" e mais em explorar "como" são. Nessa busca, é preciso superar a velha questão de saber-se quem é determinante: As forças econômicas? Ou é a nossa psique que molda o mundo exterior? É preciso um pouco mais de dialética nessa questão afinal, entre o psicológico e o social há um
intercâmbio flúido, ininterrupto, infinito, sem solução definitiva (p. 26).
Esta é uma possibilidade que está sempre a nos desafiar. Qual o maior objetivo disto tudo? Que o sujeito descubra em si potencialidades que o revelem um ser atuante na esfera pública, voltado ao social, ao político, ao interesse em estar junto. É difícil e não podemos ser ingênuos, mas por que desistir de tentar?