quarta-feira, 3 de julho de 2013

Primeira Dor ("Um Artista da Fome", Kafka)

A Primeira Dor é o primeiro de quatro pequenos contos de "Um Artista da Fome", de F. Kafka. Junto com A Construção, a coletânea foi escrita nos momentos finais da vida de Kafka, entre 1922-24, funcionando, na opinião de Modesto Carone (tradutor desta versão¹), como o testamento literário do autor, e de sua geração. 

Não há como negar que a infelicidade, a incerteza, a impossibilidade física, o ódio e a dor presentes neste conjunto de textos certamente espelham as angústias do escritor nos tempos sombrios da ascensão do nazismo (M. Carone)². A seguir faço algumas considerações.

O artista do trapézio tinha organizado sua vida pelo esforço da perfeição. Um hábito tirânico, já que passava dia e noite no trapézio. Seu convívio humano reduzia-se e o silêncio o cercava. Ninguém o incomodava, justamente por ser considerado extraordinário e insubstituível. Quando tinha que descer, por qualquer motivo, isso lhe significava enorme sofrimento, que só cessava quando retornava ao trapézio. Sua arte era o que lhe permitia viver e, ao mesmo tempo, era a expressão máxima de sua dor: um apego obsessivo a manter-se equilibrado na vida, embora não lhe sobrasse mais nada além disso. 

Quanta infelicidade revelada neste pequeno conto. O que o levou a manter-se em permanente equilíbrio? O que a explica esta infelicidade? Quem sabe um profundo sentimento de “insegurança”, um “medo de cair”, de “desmoronar”, de se "desequilibrar", que levam a esse pensamento obsessivo pela perfeição e que cria hábitos que se revelam tirânicos e, não podemos esquecer, ao mesmo tempo, "confortáveis", funcionando como almofadas para nosso sofrimento.

O que lhe resta senão buscar ainda mais a perfeição? Afinal, só buscando-a é que poderá minimamente afastar de si o risco de “cair”. Seu lamento por um novo trapézio é comovente, como comovente é a expressão de um rosto que se obriga à perfeição, revelando uma força e uma determinação que só o levam ao cansaço e, enfim... a um triste envelhecimento.

Vez por outra vejo alguns desses rostos. São a expressão de uma época que exige a todos a perfeição, que sejam felizes a todo custo, que sejam os melhores, que sejam mais vistos. Como lidar com a "queda" em uma época assim? Não dá! Então, só resta o caminho tirânico das obsessões do perfeccionismo e de seu principal fruto... uma profunda infelicidade, escondida em meio à busca da perfeição.

Algo o levou lá para cima, lá para o trapézio. Algo o fez ficar por lá. E, uma vez lá, não havia saída senão manter-se equilibrado. Mas, até quando iria conseguir? Isto lhe custou viver! Mas, havia vida lá embaixo? Será que ele já não estava ali porque a vida embaixo era insuportável? Só lhe restaria manter-se num equilíbrio permanente, obsessivo, perfeccionista... mas que não escondia sua infelicidade.

Hoje, nos ensinam que a "queda" é sinônimo de "fracasso". Trata-se de uma ideologia muito perigosa, competitiva, egoísta, individualista. A "queda", porém,  é o que também nos torna humanos. Quem disse que precisamos ser os "melhores", quem disse que precisamos só pensar no que é "novo" e esquecer o passado? Por que ser esse escravo pós-moderno?

Sei que existem outras formas de "ler" e "interpretar" este pequeno conto, mas esta foi a forma que me sobressaiu. Impossível também deixar de registrar que, à época em que foi escrito Kafka enfrentava duríssimos problemas com a tuberculose. Estava às vésperas da morte. O conto, não deixa de ser, portanto, como afirma M. Carone, um testamento do autor.

Parece não haver dúvida que Kafka, quando escrevia, tinha a morte como sua companheira permanente. Mas, justamente por isso, por ter tido a capacidade de "anunciá-la" neste conto, nos deixou um imenso legado: a possibilidade de nos enxergarmos em nossos próprios trapézios, lutando para nos mantermos por lá, livres, talvez, dos riscos da vida, ou mesmo, quem sabe, buscando alguma vida.

(José Henrique P. e Silva)

A seguir, a íntegra de A Primeira Dor. 
Um artista do trapézio - como se sabe, esta arte que se pratica no alto da cúpula dos grandes teatros de variedades é uma das mais difíceis entre todas as acessíveis aos homens - tinha organizado sua vida de tal maneira, primeiro pelo esforço de perfeição, mais tarde pelo hábito que se tornou tirânico, que enquanto trabalhava na mesma empresa permanecia dia e noite no trapézio. Todas as suas necessidades eram atendidas por criados que se revezavam, vigiavam embaixo e faziam subir e descer, em recipientes construídos especificamente para esses fins, tudo o que era preciso lá em cima. Esse modo de viver não causava aos outros dificuldades especiais; era apenas um pouco incômodo que durante os demais números do programa ele ficasse lá no alto, o que não se podia ocultar: apesar de, messes momentos, na maioria das vezes se conservar quieto, de quando em quando um olhar do público se desviava para ele. Mas os diretores o perdoavam por isso porque era um artista extraordinário e insubstituível. Além do que admitia-se com naturalidade que ele não vivia assim por capricho e que só podia preservar a perfeição de sua arte mantendo-se em exercício constante. 
De mais a mais, lá no alto também era saudável, e quando nas épocas mais quentes do ano eram abertas as janelas laterais em toda a extensão da cúpula e junto com o ar fresco o sol entrava poderoso no espaço crepuscular, então era até bonito lá em cima. Sem dúvida, seu convívio humano estava reduzido; só uma vez ou outra um colega de acrobacia subia até ele pela escada de corda; então os dois se sentavam no trapézio, inclinavam-se à esquerda e à direita sobre as cordas de sustentação e proseavam. Ou então os operários que consertavam o teto trocavam algumas palavras com ele através de uma janela aberta; ou o bombeiro examinava a iluminação de emergência na galeria superior e lhe gritava algo respeitoso mas pouco inteligível. De resto, o silêncio o cercava; algumas vezes um funcionário qualquer, que porventura errava à tarde pelo teatro vazio, erguia o olhar para a altura - que quase fugia à vista - onde o artista do trapézio, sem poder adivinhar que alguém o observava, exercia sua arte ou descansava.
O trapezista teria assim podido viver tranquilamente, não fossem as inevitáveis viagens de lugar em lugar que lhe eram extremamente molestas. É verdade que o empresário providenciava para que ele ficasse a salvo de qualquer prolongamento desnecessário desses sofrimentos: para as viagens nas cidades usavam-se automóveis de corrida com os quais se disparava, se possível à noite ou de madrugada, pelas ruas desertas na mais alta velocidade, que certamente era muito lenta para a nostalgia do artista do trapézio; no trem era reservado todo um compartimento onde ele passava a viagem na rede destinada à bagagem, numa substituição lamentável mas ainda possível da sua maneira habitual de viver; no local da apresentação seguinte o trapézio já estava colocado no teatro antes da chegada do artista; mantinham-se também abertas todas as portas que davam para o palco e livres todos os corredores. Mas os momentos mais belos na vida do empresário eram sempre aqueles em que o artista punha o pé na escada de corda e finalmente, num instante, estava de novo pendurado no alto do seu trapézio.
Por mais bem-sucedidas que essas viagens fossem para o empresário, cada nova excursão lhe era penosa, pois a despeito de tudo perturbavam seriamente os nervos do trapezista.
Certa vez em que ambos viajavam juntos - o trapezista sonhando na rede da bagagem e o empresário na canto da janela lendo um livro - o artista do trapézio dirigiu-se a ele em voz baixa. O empresário deu-lhe imediatamente atenção. O artista disse, mordendo os lábios, que de agora em diante ele iria precisar sempre de dois trapézios ao invés de um - dois trapézios, um em frente ao outro. o empresário concordou rapidamente. Mas, como se estivesse querendo mostrar que a anuência do empresário tinha aqui tão pouco sentido quanto a sua negação, o artista acrescentou que nunca mais e em circunstância alguma trabalharia com apenas um trapézio. Parecia estremecer só com a ideia de que isso acontecesse outra vez. Hesitante, o empresário observou o trapezista e se declarou novamente de pleno acordo com o fato de que dois trapézios eram melhor que um; além disso essa nova disposição apresentava a vantagem de tornar o número mais variado. De repente o artista do trapézio começou a chorar. Profundamente assustado, o empresário deu um salto e perguntou o que havia acontecido; por não receber resposta, subiu no assento, acariciou-o e apertou o rosto dele contra o seu, de tal modo que as lágrimas do trapezista lhe escorreram sobre a pele. mas só depois de muitas perguntas e palavras de carinho o artista do trapézio disse soluçando: "Só com esta barra na mão, como é que posso viver?". Agora era mais fácil para o empresário consolar o artista; prometeu telegrafar da primeira estação para o lugar da apresentação seguinte, pedindo o segundo trapézio; censurou-se por ter deixado o trapezista trabalhar tanto tempo com apenas um trapézio, agradeceu-lhe e elogiou-o muito por ter afinal chamado a sua atenção para o erro. Foi assim que o empresário pôde aos poucos acalmar o artista e voltar ao seu canto. mas ele mesmo não estava tranquilo e com grave preocupação examinava secretamente o trapezista por cima do livro. Se pensamentos como esse começassem a atormentá-lo, poderiam cessar por completo? Não continuariam aumentando sempre? Não ameaçariam sua existência? E de fato o empresário acreditou ver, no sono aparentemente calmo em que o choro tinha terminado, como as primeiras rugas começavam a se desenhar na lisa testa de criança do artista do trapézio.
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¹ Franz Kafka. Um Artista da Fome / A Construção. Tradução de Modesto Carone. - São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
² Em “A construção”, especialmente, essa relação é marcante. Segundo o tradutor, o texto oferece uma imagem insuperável do modo de existência do escritor, perseguido por dentro pela tuberculose e por fora pelo fascismo alemão. É por isso que o personagem se enterra num buraco e vive, no submundo, a ilusão momentânea de um abrigo, no qual vem a descobrir que não tem um lar que o proteja de um inimigo que, ao atingi-lo no fundo da terra, vai travar com ele uma luta de extermínio (M. Carone).

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