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sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

A relação entre psicanálise e literatura

A literatura sempre me foi uma grande paixão. Sou um obstinado pela leitura dos clássicos e nutri a crença de que morrer sem lê-los seria desastroso. Dentre os clássicos me apeguei fortemente àqueles que exploram intensamente a subjetividade de seus personagens, alguns até fortemente melancólicos e angustiados. Esses têm algo a  dizer sobre nós e o que nos cerca. Tudo bem, depois percebi que isso só falava de mim mesmo e de minhas buscas e faltas, e não podia ser de outra forma pois aquilo que nos toca na arte é aquilo que permite e facilita nossa "identificação", ou seja, aquele processo que nos permite reconhecer algo de idêntico, que nos permite assimilar esse algo do outro que acaba por nos transformar e constituir, afinal, não é assim que construímos nossa personalidade, com processos psicológicos de identificação?
 
Mas, não é sobre melancolia, nem sobre angústia, que quero conversar um pouco, e sim sobre a relação entre a Literatura e a Psicanálise. Cada vez mais me empenho em estreitar essa relação, sempre enxergando na literatura um amplo campo de explanação da subjetividade humana, algo que interessa, portanto, diretamente à psicanálise. Ou seja, já ficou muito atrás o tempo em que a literatura me era só um passatempo. Hoje ela me municia profissionalmente. Isso mesmo. Se antes buscava a subjetividade do texto literário para me distrair e me conhecer, hoje busco, também, para aperfeiçoar meu uso da teoria psicanalítica. Mudou alguma coisa, mas não mudou, entretanto, o fato de a literatura continuar soberana em me fornecer elementos de conhecimento.

O que me motivou a pensar novamente neste assunto foi a leitura de um curto texto de Rafael A. Villari*, publicado em 2000. No texto, ele nos lembra que Freud já havia inaugurado um amplo diálogo entre a psicanálise e a literatura, identificando possibilidades. Em uma delas dizia que havia, por exemplo, a tentação de se “reconstruir” o autor a partir de deduções da própria obra. Claro que isso poderia resultar em reducionismos aberrantes, bem típicos do psicobiografismo que tenta colocar o autor, e a própria obra, no divã. Outra possibilidade apontada por Freud seria ver no texto literário algo do “real”, contribuindo, então, com a própria teoria psicanalítica. É em cima dessas duas visões que Villari vai nos falar no "possível" e no "impossível" desta relação entre psicanálise e literatura.

Teríamos, portanto, duas vertentes na relação entre a psicanálise e a literatura. A que busca acrescentar sentidos ao texto e, em consequência, compreender o autor a partir da própria interpretação psicanalítica e, a que busca no texto contribuições à própria psicanálise. Ou seja, numa o texto é analisado, noutra ele serve de instrumento.

Para Villari, então, o “impossível” nesta relação seria justamente tentar-se utilizar a teoria psicanalítica como ferramenta para a interpretação da obra e do autor como que buscando desvendar “sentidos ocultos” e “enigmas”. Algo semelhante à atuação do analista sobre o relato dos seus analisandos. Esta é a “textanálise”. Como saber, ali no texto, o que era o reprimido do inconsciente e o que era só o manifesto do consciente? O sujeito não estava ali! Onde estava o sujeito do enunciado, o autor? Com o tempo, então, abandonou-se a tentativa de buscar o inconsciente no texto e começou-se a falar em “proto-texto”. Seria o rascunho do texto onde se poderia enxergar o “movimento” da escrita. Ali, se pensou poder encontrar algumas das formações do inconsciente, como atos falho, sonhos, chistes etc. Ou seja, insistia-se em encontrar o sujeito, só que agora nos intervalos, nas dúvidas e nos erros de escrita.

Mas, o texto só diz algo quando é lido, correto? Foi a partir daí, portanto, que se começou a buscar o “leitor”. Ele é quem seria portador, então, do inconsciente do texto, do desejo do escritor. O texto não diria nada! Saímos então do patamar da escrita para o da “leitura”. Seria, então, através da leitura que o desejo “do” escritor, e não “de um” escritor, seria transmitido. O desejo “de um” escritor nos fala de um desejo particular. É o desejo “do” escritor, por outro lado, que nos desperta o desejo de escrever. Mas não como o escritor, ou sobre o escritor. O que desejamos é o desejo que o escritor teve de escrever. Com isso, desejamos aquilo que o escritor desejou quando pensou no leitor: ser amado pelo seu texto.

Mas, vamos pensar um pouco mais sobre o “proto-texto” (o trabalho inconsciente da escritura). Essa postura implica um sujeito portador de um saber apriori (teoria psicanalítica) que ao percorrer o texto o desvenda através do “vista psicanalítico do texto literário”, como nos dia Villari.

O que seria esse vista psicanalítico do texto literário? Não pode, evidentemente, como na clínica, ser uma prática, pois não dá para se pensar em transferência a partir de um texto. O que se usa da psicanálise, então, não é sua prática clínica, mas somente sua teoria, com todos os seus limites. É por isso que Villari propõe o que seria o “possível” numa relação entre psicanálise e literatura: utilizar o texto para o interesse da teoria psicanalítica, já que o texto resiste à qualquer tentativa de interpretação.

Não é o texto, portanto, que vai ser questionado pela psicanálise, mas esta, a partir da literatura. A psicanálise, ao invés de colocar-se como um saber apriori, coloca-se, diante do texto, como um sujeito que não sabe. A literatura, portanto, pode nos ajudar a dizer o que não conseguimos como psicanalistas. Com o texto literário, há uma boa chance do real nos alcançar pelo simbólico. Diante do texto literário, portanto, só temos, enquanto psicanalistas, que resistir às suas tentações e encantos e fazê-lo falar, nos motivarmos à pesquisa. A literatura é sim uma forma privilegiada de acesso ao conhecimento psicanalítico, mas desde que coloquemos o saber com o texto e a ignorância conosco. São as palavras do texto que poderão explicar muito do que há de silêncio em mim mesmo, como disse Freud a Fliess em uma carta.

Seria esta, segundo Villari, a atitude de investigação propriamente freudiana: partindo-se da ideia de uma teoria psicanalítica incompleta, buscamos reconhecer no texto literário aquilo que nos leva à pesquisa e ao conhecimento, ou seja, encontrando nos grandes autores algo do conhecimento da alma humana.

Isso me leva àquele parágrafo inicial quando disse que sempre o que me motivou no texto literário era a subjetividade das personagens, por vezes levada aos limites da loucura. Com isso, só buscava mesmo me conhecer um pouco mais. É este comportamento que, hoje como psicanalista, recupero, para dotar-me de um melhor saber acerca da condição humana.



* VILLARI, Rafael Andrés. Relações possíveis e impossíveis entre a psicanálise e a literatura. Psicol. cienc. prof. [online]. 2000, vol.20, n.2 [cited  2013-12-13], pp. 2-7 . Available from: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932000000200002 &lng=en&nrm=iso>. ISSN 1414-9893.  http://dx.doi.org/10.1590/S1414-98932000000200002.

domingo, 18 de agosto de 2013

Contrapartida (James Joyce, "Dublinenses")

A campainha soou furiosamente e quando a senhorita Parker chegou ao receptor, uma voz irada, com estridente sotaque do norte da Irlanda, gritou:

- Mande Farrington aqui!
A senhorita Parker retornou à sua máquina e, de passagem, disse para o homem que trabalhava numa escrivaninha:
- O senhor Alleyne quer você lá em cima.
"Que vá para o diabo", resmungou o homem, afastando a cadeira para levantar-se...
É desta forma intensa que se inicia este conto de James Joyce ("Contrapartida", publicado em Dublinenses). Farrington, em seu trabalho, e naquele momento em especial, tinha a missão de fazer cópias de um contrato. Cópias à mão é claro. Estava permanentemente sendo cobrado e a lembrança do tempo se esgotando o perturbava imensamente e acabava impedindo-o de melhor se concentrar.

Sua relação com o chefe era a de um ódio contido, mas a ponto de explodir. Sentia-se permanentemente humilhado e não reconhecido. Em certo momento, quando tentou pegar a caneta novamente, sentiu que precisava molhar a garganta. Levantou-se, foi ao restaurante O'Neill e pediu uma cerveja. Logo voltou ao escritório, mas o tempo parecia esgotar-se rapidamente. Não iria conseguir.

A noite escura e nevoenta aproximava-se, aumentando seu desejo de passá-la bebendo com os amigos, em meio ao tilintar de copos nos salões bem iluminados.

Mas, faltavam 14 páginas.

"Maldição". Não iria conseguir. Tinha vontade de blasfemar, de socar alguém... Sentia-se capaz de arrasar o escritório num só golpe. Seu corpo ansiava por fazer alguma coisa: precipitar-se para a rua e desabafar na violência. Todas as afrontas que sofrera na vida vinham-lhe à memória e o encolerizavam...

Apesar do seu mergulho em devaneios, logo a cobrança chegou. Ele não conseguira cumprir a tarefa. As ofensas logo começaram. E, mais uma vez fora obrigado a desculpar-se vergonhosamente. Ansiava cada vez mais pelo bar, mas precisava de dinheiro. Estava muito irritado, mas logo descobriu que, como saída, seu relógio podia ir parar numa casa de penhores.

Atravessou rapidamente a estreita passagem do Temple Bar, murmurando consigo que todos podiam ir para o diabo, pois ele teria uma boa noitada.

Junto aos amigos começou a relatar os incidentes do dia e suas respostas malcriadas. Todos riam e ele sentia-se melhor, mas, com o passar da noite a cólera e o desejo de vingança voltavam a dominá-lo. Além de tudo isto, ainda detestava voltar para casa, pois a mulher o repreendia por andar bebendo.

Ao chegar em casa, sabe pelo filho que a mulher foi à igreja. A criança está com medo, se oferece para preparar a comida do pai, mas deixa o fogo apagar-se no fogão. Neste momento, o pai persegue-o e o agarra pelo casaco golpeando-o vigorosamente com a bengala.

O garoto soltou um gemido de dor quando a bengala atingiu-o na coxa. Ergueu as mãos entrelaçadas e sua voz tremia de pavor:

- Oh, papai! Não me bata, papai. Eu... eu rezarei uma ave-maria pelo senhor... Eu rezarei uma ave-maria pelo senhor, papai, se não me bater... Rezarei uma ave-maria...

Este conto de Joyce é duro, mas nem de longe é uma ficção. É o cotidiano de um homem insatisfeito, humilhado e que, como que numa previsibilidade terrível, alimenta-se de rancor e desejo de vingança. A tragédia faz parte de seu cotidiano, a vida lhe parece um horror, nada o satisfaz e, infelizmente, o desejo de explodir em violência, acaba encontrando no lar, e nas inocentes crianças, o ambiente perfeito para acontecer.

Vale a pena ler... e reler este conto. Podemos, enquanto adultos, nos vermos, ainda que em lampejos, neste homem. Mas, se fizermos um esforço maior, podemos, enquanto crianças, também nos vermos na aflição e no terror daquela criança.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Primeira Dor ("Um Artista da Fome", Kafka)

A Primeira Dor é o primeiro de quatro pequenos contos de "Um Artista da Fome", de F. Kafka. Junto com A Construção, a coletânea foi escrita nos momentos finais da vida de Kafka, entre 1922-24, funcionando, na opinião de Modesto Carone (tradutor desta versão¹), como o testamento literário do autor, e de sua geração. 

Não há como negar que a infelicidade, a incerteza, a impossibilidade física, o ódio e a dor presentes neste conjunto de textos certamente espelham as angústias do escritor nos tempos sombrios da ascensão do nazismo (M. Carone)². A seguir faço algumas considerações.

O artista do trapézio tinha organizado sua vida pelo esforço da perfeição. Um hábito tirânico, já que passava dia e noite no trapézio. Seu convívio humano reduzia-se e o silêncio o cercava. Ninguém o incomodava, justamente por ser considerado extraordinário e insubstituível. Quando tinha que descer, por qualquer motivo, isso lhe significava enorme sofrimento, que só cessava quando retornava ao trapézio. Sua arte era o que lhe permitia viver e, ao mesmo tempo, era a expressão máxima de sua dor: um apego obsessivo a manter-se equilibrado na vida, embora não lhe sobrasse mais nada além disso. 

Quanta infelicidade revelada neste pequeno conto. O que o levou a manter-se em permanente equilíbrio? O que a explica esta infelicidade? Quem sabe um profundo sentimento de “insegurança”, um “medo de cair”, de “desmoronar”, de se "desequilibrar", que levam a esse pensamento obsessivo pela perfeição e que cria hábitos que se revelam tirânicos e, não podemos esquecer, ao mesmo tempo, "confortáveis", funcionando como almofadas para nosso sofrimento.

O que lhe resta senão buscar ainda mais a perfeição? Afinal, só buscando-a é que poderá minimamente afastar de si o risco de “cair”. Seu lamento por um novo trapézio é comovente, como comovente é a expressão de um rosto que se obriga à perfeição, revelando uma força e uma determinação que só o levam ao cansaço e, enfim... a um triste envelhecimento.

Vez por outra vejo alguns desses rostos. São a expressão de uma época que exige a todos a perfeição, que sejam felizes a todo custo, que sejam os melhores, que sejam mais vistos. Como lidar com a "queda" em uma época assim? Não dá! Então, só resta o caminho tirânico das obsessões do perfeccionismo e de seu principal fruto... uma profunda infelicidade, escondida em meio à busca da perfeição.

Algo o levou lá para cima, lá para o trapézio. Algo o fez ficar por lá. E, uma vez lá, não havia saída senão manter-se equilibrado. Mas, até quando iria conseguir? Isto lhe custou viver! Mas, havia vida lá embaixo? Será que ele já não estava ali porque a vida embaixo era insuportável? Só lhe restaria manter-se num equilíbrio permanente, obsessivo, perfeccionista... mas que não escondia sua infelicidade.

Hoje, nos ensinam que a "queda" é sinônimo de "fracasso". Trata-se de uma ideologia muito perigosa, competitiva, egoísta, individualista. A "queda", porém,  é o que também nos torna humanos. Quem disse que precisamos ser os "melhores", quem disse que precisamos só pensar no que é "novo" e esquecer o passado? Por que ser esse escravo pós-moderno?

Sei que existem outras formas de "ler" e "interpretar" este pequeno conto, mas esta foi a forma que me sobressaiu. Impossível também deixar de registrar que, à época em que foi escrito Kafka enfrentava duríssimos problemas com a tuberculose. Estava às vésperas da morte. O conto, não deixa de ser, portanto, como afirma M. Carone, um testamento do autor.

Parece não haver dúvida que Kafka, quando escrevia, tinha a morte como sua companheira permanente. Mas, justamente por isso, por ter tido a capacidade de "anunciá-la" neste conto, nos deixou um imenso legado: a possibilidade de nos enxergarmos em nossos próprios trapézios, lutando para nos mantermos por lá, livres, talvez, dos riscos da vida, ou mesmo, quem sabe, buscando alguma vida.

(José Henrique P. e Silva)

A seguir, a íntegra de A Primeira Dor. 
Um artista do trapézio - como se sabe, esta arte que se pratica no alto da cúpula dos grandes teatros de variedades é uma das mais difíceis entre todas as acessíveis aos homens - tinha organizado sua vida de tal maneira, primeiro pelo esforço de perfeição, mais tarde pelo hábito que se tornou tirânico, que enquanto trabalhava na mesma empresa permanecia dia e noite no trapézio. Todas as suas necessidades eram atendidas por criados que se revezavam, vigiavam embaixo e faziam subir e descer, em recipientes construídos especificamente para esses fins, tudo o que era preciso lá em cima. Esse modo de viver não causava aos outros dificuldades especiais; era apenas um pouco incômodo que durante os demais números do programa ele ficasse lá no alto, o que não se podia ocultar: apesar de, messes momentos, na maioria das vezes se conservar quieto, de quando em quando um olhar do público se desviava para ele. Mas os diretores o perdoavam por isso porque era um artista extraordinário e insubstituível. Além do que admitia-se com naturalidade que ele não vivia assim por capricho e que só podia preservar a perfeição de sua arte mantendo-se em exercício constante. 
De mais a mais, lá no alto também era saudável, e quando nas épocas mais quentes do ano eram abertas as janelas laterais em toda a extensão da cúpula e junto com o ar fresco o sol entrava poderoso no espaço crepuscular, então era até bonito lá em cima. Sem dúvida, seu convívio humano estava reduzido; só uma vez ou outra um colega de acrobacia subia até ele pela escada de corda; então os dois se sentavam no trapézio, inclinavam-se à esquerda e à direita sobre as cordas de sustentação e proseavam. Ou então os operários que consertavam o teto trocavam algumas palavras com ele através de uma janela aberta; ou o bombeiro examinava a iluminação de emergência na galeria superior e lhe gritava algo respeitoso mas pouco inteligível. De resto, o silêncio o cercava; algumas vezes um funcionário qualquer, que porventura errava à tarde pelo teatro vazio, erguia o olhar para a altura - que quase fugia à vista - onde o artista do trapézio, sem poder adivinhar que alguém o observava, exercia sua arte ou descansava.
O trapezista teria assim podido viver tranquilamente, não fossem as inevitáveis viagens de lugar em lugar que lhe eram extremamente molestas. É verdade que o empresário providenciava para que ele ficasse a salvo de qualquer prolongamento desnecessário desses sofrimentos: para as viagens nas cidades usavam-se automóveis de corrida com os quais se disparava, se possível à noite ou de madrugada, pelas ruas desertas na mais alta velocidade, que certamente era muito lenta para a nostalgia do artista do trapézio; no trem era reservado todo um compartimento onde ele passava a viagem na rede destinada à bagagem, numa substituição lamentável mas ainda possível da sua maneira habitual de viver; no local da apresentação seguinte o trapézio já estava colocado no teatro antes da chegada do artista; mantinham-se também abertas todas as portas que davam para o palco e livres todos os corredores. Mas os momentos mais belos na vida do empresário eram sempre aqueles em que o artista punha o pé na escada de corda e finalmente, num instante, estava de novo pendurado no alto do seu trapézio.
Por mais bem-sucedidas que essas viagens fossem para o empresário, cada nova excursão lhe era penosa, pois a despeito de tudo perturbavam seriamente os nervos do trapezista.
Certa vez em que ambos viajavam juntos - o trapezista sonhando na rede da bagagem e o empresário na canto da janela lendo um livro - o artista do trapézio dirigiu-se a ele em voz baixa. O empresário deu-lhe imediatamente atenção. O artista disse, mordendo os lábios, que de agora em diante ele iria precisar sempre de dois trapézios ao invés de um - dois trapézios, um em frente ao outro. o empresário concordou rapidamente. Mas, como se estivesse querendo mostrar que a anuência do empresário tinha aqui tão pouco sentido quanto a sua negação, o artista acrescentou que nunca mais e em circunstância alguma trabalharia com apenas um trapézio. Parecia estremecer só com a ideia de que isso acontecesse outra vez. Hesitante, o empresário observou o trapezista e se declarou novamente de pleno acordo com o fato de que dois trapézios eram melhor que um; além disso essa nova disposição apresentava a vantagem de tornar o número mais variado. De repente o artista do trapézio começou a chorar. Profundamente assustado, o empresário deu um salto e perguntou o que havia acontecido; por não receber resposta, subiu no assento, acariciou-o e apertou o rosto dele contra o seu, de tal modo que as lágrimas do trapezista lhe escorreram sobre a pele. mas só depois de muitas perguntas e palavras de carinho o artista do trapézio disse soluçando: "Só com esta barra na mão, como é que posso viver?". Agora era mais fácil para o empresário consolar o artista; prometeu telegrafar da primeira estação para o lugar da apresentação seguinte, pedindo o segundo trapézio; censurou-se por ter deixado o trapezista trabalhar tanto tempo com apenas um trapézio, agradeceu-lhe e elogiou-o muito por ter afinal chamado a sua atenção para o erro. Foi assim que o empresário pôde aos poucos acalmar o artista e voltar ao seu canto. mas ele mesmo não estava tranquilo e com grave preocupação examinava secretamente o trapezista por cima do livro. Se pensamentos como esse começassem a atormentá-lo, poderiam cessar por completo? Não continuariam aumentando sempre? Não ameaçariam sua existência? E de fato o empresário acreditou ver, no sono aparentemente calmo em que o choro tinha terminado, como as primeiras rugas começavam a se desenhar na lisa testa de criança do artista do trapézio.
________

¹ Franz Kafka. Um Artista da Fome / A Construção. Tradução de Modesto Carone. - São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
² Em “A construção”, especialmente, essa relação é marcante. Segundo o tradutor, o texto oferece uma imagem insuperável do modo de existência do escritor, perseguido por dentro pela tuberculose e por fora pelo fascismo alemão. É por isso que o personagem se enterra num buraco e vive, no submundo, a ilusão momentânea de um abrigo, no qual vem a descobrir que não tem um lar que o proteja de um inimigo que, ao atingi-lo no fundo da terra, vai travar com ele uma luta de extermínio (M. Carone).

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Uma Pequena Nuvem (James Joyce, "Dublinenses")

Neste conto de Joyce, inserido em Dublinenses, Chandler é um típico funcionário e chefe de família que ganha sua vida em um também típico escritório em Dublin e hoje vive uma situação que lhe tira da rotina, pelo menos em seus pensamentos.

Vive a expectativa de reencontrar um amigo que chega de Londres e, com isso, aproveita para dar espaço à lembranças que nem sempre agradáveis. Nesse processo de recordação...
Várias vezes, abandonou sua tediosa tarefa para olhar da janela do escritório. O fulgor de um tardio crepúsculo de outono cobria a grama dos canteiros e as calçadas, envolvendo em suave poeira dourada as empregadinhas malvestidas e os velhos decrépitos que dormitavam nos bancos. Reluzia também sobre todas as formas móveis: crianças que corriam gritando pelas veredas de cascalho e pessoas que perambulavam pelos jardins. Contemplava a cena e pensava na vida. E como sempre acontecia quando pensava na vida, ficou triste. Uma suave melancolia apossou-se dele. Sentia o quanto era inútil lutar contra o destino.
Seu refúgio era pensar nos livros de poesia e em como ainda poderia vir a se tornar um escritor reconhecido. Ao mesmo tempo, não parava de pensar no amigo Gallaher que ocupava o posto de jornalista em Londres e estava chegando. Ele parecia que estava predestinado a vencer na vida. 

Em seus devaneios Chandler imaginava-se distante da vida medíocre que levava. Saiu e logo encontrou o amigo de Londres em um bar, e à medida que a conversa entre os dois avançava, Chandler experimentava sentimentos contraditórios: ora de entusiasmo pelo amigo, ora de desilusão e inveja.
Sentia agudamente o contraste entre suas vidas, que lhe parecia injusto. Gallaher era inferior em nascimento e educação. Se tivesse uma oportunidade, estava certo de que poderia fazer algo muito melhor do que tudo o que o amigo fizera ou viria a fazer... e o que é que o impedia? Sua desafortunada timidez!
Momentos depois, de volta à sua casa, Chandler, sem tirar os olhos da fotografia da esposa pensou na vida de Gallaher e pensou também em uma vida diferente da sua atual. Distanciando-se de tudo que estava ao seu redor.
O pensamento assustou-o e ele correu o olhar nervoso pela sala. A mobilia bonita, comprada a crédito, pareceu-lhe também um tanto vulgar. Fora escolhida por Annie e o fez lembrar-se dela novamente. Era enfeitada demais aquela mobília, bonitinha demais. Um sombrio ressentimento contra sua própria vida cresceu dentro dele. Não escaparia nunca daquela casa? Seria demasiado tarde para tentar a vida audaciosa de Gallaher? Poderia ir para Londres? A mobília ainda não estava paga. Se conseguisse escrever um livro e publicá-lo, talvez isso lhe abrisse o caminho.
Logo o choro da criança, seu filho, o traz à realidade. Não conseguia fazê-la parar de chorar. Tremia de raiva. Apertava a criança contra sí e chegou a pensar...
Se ela morresse...
Neste instante Annie, sua esposa, chegou. Ele se assustou, talvez muito mais com seus próprios pensamentos.
Com o rosto queimando de vergonha, Little Chandler afastou-se da luz do abajur. Ouvia o pranto da criança abrandar-se pouco a pouco e lágrimas de remorso inundaram-lhe os olhos.
Pobre Chandler! A submissão à crença no destino e ao ressentimento, o fato de estar sempre à espera de uma oportunidade e a incapacidade de ter a audácia de reconhecer-se a si próprio o aprisionavam em seus pensamentos medíocres e mortíferos, tornando a melancolia a "nota predominante em seu temperamento".

Um belo conto de Joyce. Destaquei apenas alguns trechos, mas, é evidente, que merece ser lido na íntegra.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

"O Eterno Marido" (Dostoiévski)



Não conhecia este título de Dostoiévski e aproveitei uns dias de folga no Natal de 2011 para ler. É um livro curto e bem gostoso de ser lido. Lembrei que tinha feito algumas anotações, com trechos do livro, e agora compartilho aqui com vocês. Ler é uma necessidade, ler os clássicos é quase uma obrigação, e ler Dostoiévski é puro prazer. Como disse, o texto é pequeno, foi escrito em 1869 e nos mostra o sarcasmo e a ironia em doses muito raramente vistas. Isso tudo, é claro, regado com as descrições incomparáveis que Dostoiévski faz de seus personagens e lugares.

É início de julho e está começando o verão em Petersburgo. Lá, Vielhtcháninov encontrava-se retido devido a um processo que lhe causava certo mal-estar. Estava próximo dos 40 anos mas, 
ele mesmo compreendia que o que havia tão cedo envelhecido não era a quantidade mas, por assim dizer, a qualidade dos anos, e que se se sentia enfraquecer antes da idade, era mais depressa por dentro do que por fora (p.7)
Era um obsessivo e andava tomado por lembranças que o angustiavam demasiadamente, embora nada que lhe parecesse fazer sentido. Ultimamente as coisas haviam piorado e a rememoração de certos episódios cotidianos (pequenos fracassos, dívidas, insultos, etc.) sobrecarregava sua consciência e atormentavam seu espírito. Ele questionava: 
de que servem tais recordações, quando não sei nem mesmo libertar-me suficientemente de mim no presente? (p. 14). 
Estava prisioneiro de recordações e quase não mais se distraia ou respirava. Como acabar com estes pensamentos? Esta era sua principal questão. Chegou a pensar em deixar Petersburgo, em busca de algo diferente, mas decidiu ficar, e certa noite entrou em um restaurante para o jantar. Estava especialmente irritado. Claro que com nada em particular. De repente, um pensamento imprevisto, e uma sensação de alívio: parecia que finalmente compreendera a razão de seus tormentos. Era o chapéu, o chapéu com crepe

Agora as coisas pareciam começar a ficar mais claras e ele começa a rememorar em detalhes os últimos 15 dias. O que aconteceu? Neste tempo, Vielhtcháninov teve uma sucessão de “encontros” ocasionais com um misterioso homem que usava um crepe no chapéu. Eram encontros com rápidas trocas de olhares e com uma sensação de já conhecer aquele sujeito que, por sua vez, nunca se aproximava. A cada encontro aumentava a angústia de Vielhtcháninov. Sentia-se perseguido, com muita raiva e, pior, os pensamentos não lhe davam sossego. Tudo parecia se resumir a um grande sentimento de culpa que não o abandonava.

Ao chegar em casa o sono era perturbado por pesadelos e não mais conseguiu dormir. Foi até a janela e, para sua surpresa, lá estava o homem misterioso olhando para sua casa. Ele resolve descer e enfrentá-lo. 
Era como se o sonho de ainda há pouco se houvesse fundido com a realidade (p. 25)
Ao vê-lo na sua frente logo o reconheceu. Era Páviel Pávlovitch. Conheceram-se a 9 anos atrás quando Vielhcháninov (Alieksiéi Ivânovitch) hospedara-se em sua casa por um período. Páviel estava confuso, mas lhe dá a notícia da recente morte de sua esposa, Natália. Páviel transformara-se em um homem atormentado, que só vagava pelas ruas. Suas frases são sempre pela metade, parecendo ocultar algo. De qualquer forma, a pressão que Alieksiéi sofria parecia amenizar-se. As lembranças vinham à tona para Alieksiéi: ela fora amante daquela mulher.
É uma dessas mulheres, pensava ele, que nasceram para ser infiéis. Não há risco de que mulheres dessa espécie caiam enquanto são donzelas: é lei de sua natureza esperarem para isso que estejam casadas. O marido é o primeiro amante delas, porém jamais antes do casamento. Não há mulheres mais honestas do que elas para o casamento (p. 39).
Alieksiéi também estava convencido que à uma mulher desse tipo correspondia o que chamava de "eterno marido", ou seja, homens que são, em toda a sua vida, somente maridos e nada mais. 
O homem dessa espécie vem ao mundo e cresce apenas para se casar e, logo que casa, torna-se imediatamente algo de complementar de sua mulher (p. 40).
E o maravilhoso é que com tudo isso não se podia dizer que aquele marido vivesse sob o chinelo de sua esposa. Natalia Vassílievna mostrava toda a aparência da mulher perfeitamente obediente e talvez ela própria estivesse convencida de sua obediência (p. 41).
Alieksiéi relembra que apaixonara-se por Natália e que ela o dispensara um tempo depois alegando estar grávida. Ele, por seu lado, achava que ela estava mesmo era apaixonada por outro. 

Passam-se as lembranças e, no dia seguinte, Alieksiéi vai visitar Páviel e, chegando lá, nota a presença de uma garotinha. Era Lisa. Páviel começa a contar sobre a gravidez fazendo relação com a estadia de Alieksiéi em sua casa a 9 anos atrás. Tem início uma série de diálogos mal completados que só deixam Alieksiéi atormentado com a ideia de ser o pai daquela garotinha. 

Os diálogos, por vezes beiram a loucura, pois Páviel insinua mas não afirma. É irônico mas não vai até o final em suas suposições. Não à toa, rapidamente, Alieksiéi vai saindo da posição defensiva para tornar-se mais direto e até agressivo com Páviel. Ele logo percebe que Lisa está doente e que Páviel pretende deixá-la com amigos por um tempo. Lisa desperta muita atenção em Aliekseiév, principalmente quando levanta a suspeita de que Páviel pretende matar-se. 
Ele... ele se enforcará! - disse ela, baixinho, como em delírio (p. 60). 
Seguem-se cenas de intensos diálogos entre Aliekseiév e Páviel, repletas de cinismo e insinuações. Mas, pouco tempo depois, Lisa não resiste e morre. A partir daí, opera-se, lentamente, uma profunda mudança em Aleikseiév: não mais sentia-se culpado por nada, pelo contrário, estava com raiva.

Em determinado momento separa-se de Páviel, distanciam-se, mas o grande efeito de tudo isto é que as revelações, a relembrança dos fatos do passados não mais o angustiavam. Sua hipocondria havia desaparecido. Não havia mais recalque. Tudo vira à tona e adquirira algum significado para Aleikseiév. 

Os dois ainda se encontrariam no futuro. Mas nada mudará, Páviel continuará a ver a sombra da traição de sua esposa e Aleikseiév terá só mais uma nova oportunidade para enxergar em Páviel o "eterno marido".

Trata-se de um pequeno texto, mas muito denso, cuja intensidade dos diálogos, repletos de cinismo e ironia, beiram o delírio fantasioso. O rancor e a raiva parecem permear todo o livro, mas a principal teia, salvo engano, é a que mostra a cura de Aleikseiév pela revivência dos fatos do passado. Eles não mais lhe perturbam. O mesmo não se pode dizer da abnegação total de si promovida por Páviel Pavlovitch, o eterno marido.

sábado, 18 de maio de 2013

"Um Encontro" (James Joyce, Dublinenses)


Neste conto, de "Dublinenses", Joyce nos fala de um grupo de amigos que se reunia para contínuas brincadeiras de batalhas de índios, no bom estilo oeste selvagem. Entre eles, Joe Dillon era o que incorporava as brincadeiras com muita seriedade. Aliás,
Um clima de rebeldia difundiu-se entre nós e, sob sua influência, desapareciam diferenças de cultura e temperamento. Associávamo-nos alguns por arrojo, outros por divertimento e outros quase por medo. Entre estes últimos, índios relutantes que temiam parecer estudiosos ou fracotes, encontrava-me eu. As aventuras narradas na literatura sobre o oeste selvagem não tocavam de perto minha índole, mas, de qualquer forma, abriam portas para a fuga.
Neste curto trecho Joyce literalmente nos remete à infância. Ora, quem que (e aqui me incluo), tendo uma infância repleta de amigos, com largos espaços para correr e brincar nas ruas, não experimentou sensações como estas descritas acima, de fantasia, medo e fuga? Só hoje, olhando para trás com atenção, percebo que realmente haviam profundas diferenças culturais e de índole entre todos os colegas com os quais convivia, e que, de fato, se estávamos todos juntos era por motivos os mais diversos.

Não posso negar que, no meu caso, como sempre era o "mais novo" da turma, pairava sempre o "medo", essa sensação de não ter uma boa garantia de pertencimento ao grupo. Por isso, as vezes, me ocupava com papéis secundários, embora, vez por outra, buscasse uma posição de maior protagonismo, como que numa luta por sobrevivência, onde temos que mostrar toda a força, exibi-la e, se for o caso, demonstrá-la, como nas brigas com os amigos, por motivos os mais banais. De fato, estávamos em permanente batalha, onde as figuras de fortes e fracos, mocinhos e bandidos, faziam parte de nosso imaginário.

Voltando ao conto, Joyce nos mostra os conflitos proporcionados por uma atmosfera predominantemente religiosa, evidenciando o quanto os padres desautorizavam as brincadeiras e este "tipo" de literatura (quadrinhos, gibis).

Ora, conheço isso muito bem. Quase todos os meus anos de infância foram em um colégio salesiano e aprendi a conviver bem com as dissimulações dos padres em seu rigor quase mal humorado, convivendo com momentos, raros, de leveza.

Porém, assim que me distanciei da influência inibitória da escola, comecei novamente a ansiar por emoções violentas, pela fuga que somente aqueles tumultuosos relatos propiciavam. As guerras imaginárias, ao entardecer, tornaram-se por fim tão enfadonhas quanto a rotina da pela manhã, porque eu desejava participar de aventuras reais. Mas aventuras reais, pensei, não acontecem para os que ficam em casa; devem ser procuradas.

Ora, quem não ansiou por tais "aventuras reais". Talvez, hoje em dia, nestes ambientes higienizados por tanta tecnologia, virtualidade, cuidados excessivos e o politicamente correto, a "aventura real" tenha perdido muito de seu atrativo. Mas, acredito que o desejo pela aventura real ainda sobrevive em quem tem a condição e a possibilidade de fantasiar, de colocar seu  pensamento a favor da imaginação, da construção de cenários misteriosos, perigosos, desconhecidos.

Foi em busca dessa aventura que os garotos, voltando ao conto, marcam um encontro (matando a aula, evidentemente) na ponte do canal para, cruzando de ferryboat, irem até o columbário. Prepararam todos os detalhes, juntaram algum dinheiro, encheram-se de expectativa e emoção e seguiram no horário certo.   Gastaram boa parte do tempo vagueando pelas vielas observando o movimento de guindastes e locomotivas. Observaram minuciosamente o comércio de Dublin e o movimento de barcaças.

Lar e escola pareciam afastar-se de nós e sua influência apagava-se.

Compraram chocolates e biscoitos e os comiam enquanto caminhavam de forma errante pelas ruas estreitas. De repente, observam um velho aproximar-se. Ele começa a falar da saudade que sentia dos tempos de escola e dos livros. Claro que isso entendiava os garotos. Falou de namoradas e do necessário açoite a garotos desobedientes. Seu ar era intrigante e os garotos já torciam para o fim do monólogo. Encontrando uma desculpa banal e mostrando certo nervosismo o garoto se afasta, indo embora, mas carregando consigo certo medo de estar sendo seguido.

Subi a encosta devagar, mas meu coração disparava de medo que ele me agarrasse os tornozelos.

Estava aí sua aventura real, e principalmente o "medo". Um dia muito diferente onde a rotina e a monotonia do lar e da escola foram deixados para trás, e a fantasia, enfim, encontrou sua realização. Mas, como fazer isto hoje em dia, quando a tecnologia e a virtualidade te transportam instantaneamente para a aventura, sem a intermediação da fantasia? Não quero dizer que minha infância, ou a de gerações passadas foi melhor, mas que foi diferente, pois fazíamos, muito, uso da imaginação. talvez eu esteja enganado e, de alguma forma, a fantasia ainda sobreviva em meio a tudo isto que as novas tecnologias trazem. Torço para que isso seja verdade.

O mundo retratado por Joyce, neste conto publicado em "Dublinenses", é um mundo que ainda consigo, portanto, perfeitamente, imaginar, pois inúmeros traços dele ainda estão em minhas memórias: O grande grupo de amigos na infância, as ruas que explorávamos e que pareciam não ter fim, os locais abandonados que serviam para "experiências" as mais diversas, as disputas, as brigas, os romances...enfim, as "aventuras reais".

Emily Dickinson e o nosso "inimigo oculto"


Emily Dickinson viveu em meados do século XIX, nos Estados Unidos. Ao longo da vida foi impondo-se um isolamento que está plenamente manifestado em sua obra, divulgada, em grande parte, somente após sua morte. As questões da condição humana são as que mais estão presentes em seus poemas. Em seu isolamento, conseguia colocar em poemas o que realmente sentia. Principalmente toda sorte de dúvidas e impressões sobre a vida. Abaixo um dos meus preferidos poemas.
Para as assombrações, desnecessária é a alcova,
Desnecessária, a casa –
A mente tem corredores que superam
Os espaços materiais.

Mais seguro é encontrar à meia-noite
Um fantasma,
Que enfrentar, internamente,
Aquele hóspede mais pálido.

Mais seguro é galopar cruzando um cemitério
Por pedras tumulares ameaçado.
Que, ausente a lua, encontrar-se a si mesmo
Em desolado espaço.

O “eu”, por trás de nós oculto,
É muito mais assustador,
E um assassino escondido em nosso quarto,
Dentre os horrores é o menor.

O homem prudente leva consigo uma arma
E cerra os ferrolhos da porta,
Sem perceber outro espectro,
Mais intimo e maior.
(Emily DickinsonPoemas Escolhidos)[i]

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Que fantástico! Nos corredores da mente habita um hóspede do qual estamos sempre evitando o encontro. Trata-se de um "eu", oculto, e que não desejamos que se revele. Prefirimos enfrentar qualquer outro pavor, mas não este que é tão íntimo e poderoso. Mas, dele não podemos escapar. Emily parece falar de algo que nos assombra, mas algo que, ao mesmo tempo, é "nosso". Nossos medos? Provavelmente. Que de pior pode haver que nos depararmos, sozinhos, com nossos medos? É um grande momento, uma grande oportunidade, mas é um embate... um duro embate. Mas, melhor enfrentá-lo que fugir.

[i] In: BENDER, Ivo. (2007) Emily Dickinson: poemas escolhidos. (seleção, tradução e introdução). Edição bilíngüe. – Porto Alegre, RS: L&PM, 2007, p. 57, 128 p. Série L&PM Pocket, Plus, vol. 436. © da tradução 2005. 

O texto em sua versão original é este: "One need not be a chamber – to be Haunted - / One need not be a house - / The brain bas corridors – surpassing / Material place - / Far safer, through an abbey gallop, / The stones a’chase - / Than unarmed, one’s a self encounter / In lonesome place - / ourself behind ourself, conceled - / should startle most - / Assassin hid in our apartment / Be horror’s least / The body – borrows a revolver - / he bolts the door, / O’erlooking a superior spectre - / Or more –".

quarta-feira, 15 de maio de 2013

"Noites Brancas" (Dostoiévski)


"Noites Brancas" é um curto texto de Dostoiévski publicado em 1848. Foi escrito após uma forte desilusão amorosa e também é seu último texto antes de ser encaminhado para a prisão e exílio na Sibéria. Não se encontra aqui aquele Dostoiévski onde a cena social é sua maior preocupação, mas um Dostoiévski que sofre pelo amor. A própria ausência do nome de seu errante personagem parece ser um indício de sua amargura, em não enxergar a si mesmo.
 
Outro indício desse seu momento de certo alheamento amoroso é a própria atmosfera criada em São Petersburgo pelo fenômeno da "noite branca". Trata-se de um momento em que o sol permanece na linha do horizonte iluminando a noite e criando uma paisagem propícia ao sonho e à paixão. É um Dostoiévski "aprisionado" à noite e à espera da luz da manhã seguinte. Não à toa a trama se passa em 4 noites e na manhã seguinte.
 
No início, nosso personagem sente-se angustiado, mas não sabe a razão. Percebe que praticamente todos na cidade a estão deixando para desfrutar de algum prazer proporcionado pelo verão nos campos. De alguma forma, todos lhe parecem felizes e com o destino certo: deixar a cidade por algum tempo. Somente quando, em determinado momento, decidiu caminhar sem uma direção clara e foi afastando-se da cidade, é que compreendeu a razão de sua inquietação: Parecia estar ficando sozinho. No seu caminhar sentiu sensações estranhas, de felicidade, de esperança ...
tal era o poderoso influxo que a natureza exercia sobre mim, doentio habitante da cidade, que se sente abafar entre as paredes dos prédios (p. 17).
Em seu caminho de volta passa pelo canal da cidade, local onde muitos paravam para contemplar. Nota uma moça que passa a seu lado e escuta soluços. Tentou aproximar-se e lhe falar, mas ela afastou-se. Ele percebeu que ela vinha sendo seguida e estava sendo abordada indelicadamente. É quando se aproxima e afasta o sujeito desconhecido. Oferecesse para acompanhá-la até à sua casa. No caminho conversam e ele lhe demonstra toda a satisfação e felicidade em estar tendo a oportunidade de falar a uma jovem tão bonita e educada. Inevitável que apelasse a um segundo encontro, na noite seguinte.
 
E, de fato, deu-se o encontro. Mas, sobre o que conversar? A ansiedade de nosso personagem é tamanha que, quando questionado sobre "que espécie de homem é voce?" ele disparou a contar uma história em terceira pessoa, de forma frenética, quase sem pausas a ponto de ser interrompido algumas vezes por sua acompanhante. Ele passa a falar de uma vida onde tem se encontrado "completamente só", sempre. Fala de uma vida que não passa de...
uma obscura rotina e de habitual monotonia, para não chamar-lhe vulgar, vulgar até o desespero (p. 33).
Nesse cenário é que surge o que ele chama de "sonhador", alguém que costuma viver fora do mundo, numa espécie de refúgio, como se se escondesse da luz do dia (p. 33).
É já escuro no seu quarto e ele tem a alma triste e vazia. À sua volta desvaneceu-se todo um império de sonhos: secretamente, sem ruído, sem deixar provas, como só um sonho pode desvanecer-se, e ele nem sequer poderia contar aquilo que viu. Mas um obscuro sentimento que começa a agitar-se no seu coração, pouco a pouco lhe vai infundindo um novo anseio, afagando, sedutor, a sua fantasia e, sem querer, aí volta à sua frente uma nova cavalgada de visões (...) surge em seu redor um novo mundo, uma nova vida encantadora. Um novo sonho... uma nova felicidade (p. 39).
Ora, mas em que lhe interessa esse nosso mundo "real", considerado lento, monótono, vazio? Mas, o que alimenta os seus sonhos, pergunta-lhe Nástienhka? É só ilusão! Fantasia! Ele responde. Mas, é disso que precisamos. E avalia:
Teria sido então tudo isso um simples sonhar acordado... e também o jardim solitário e abandonado, com os carreirinhos cobertos de erva, em que ambos passearam tantas vezes de mãos dadas, erguendo ilusões, e em que se desejaram e se amaram tão triste e docemente... ? (p. 43).
Nástienhka ficara surpresa por ele ter levado a vida inteira assim, de forma solitária, ociosa, inútil e aborrecida. Ela se lastima e chora, e lhe promete uma eterna amizade. Mas, ela quer lhe pedir um conselho. Antes, porém, vai lhe contar sua história. Ela lhe conta que sempre morou com a avó, num sistema de permanente vigilância ("amarradas às saias da avó"). Na casa, um quartinho servia para alugar e, certa vez, um inquilino lhe chamara muito a atenção a ponto de desejar ir embora com ele quando de sua partida para ficar um ano fora. Ele prometeu voltar, mas ela não acreditava. Foi duro para ela, mas ela declarou-se apaixonada para ele. Entretanto, ela soubera que ele estava de volta. Mas, como encontrá-lo? Ele sugere que ela escreva uma carta a ser entregue para conhecidos do seu amado. Cada momento que passava só servia para que ele aumentasse o seu amor por ela. Mas, como dizer-lhe? Até porque ela mesmo enaltecera sua disposição em ser apenas amigo e não aproveitar-se da situação. Tem início um conflito interior: contar ou não a ela o que sente?
Parecemos todos mais frios e taciturnos do que somos na verdade; pode-se dizer que as pessoas têm medo de se comprometer expondo com franqueza os seus sentimentos (p. 74).
A espera pelo retorno do amado é angustiante para Nástienhka. Na quarta noite a certeza de ter sido abandonada já é dominante. Ela se lamenta e chora. É quando ele, já não aguentando mais, decide lhe revelar tudo o que sente. Declara todo o seu amor. Ela é compreensiva e, certa de seu abandono percebe que é possível amá-lo também. Chega a pedir-lhe para ir morar pertinho dela já na manhã seguinte. Isso o deixa num estado de felicidade jamais visto. Fazem planos, muitos planos. Ela lhe diz, selando seu amor:
Quero dizer, se sente e acredita... que o seu amor é tão grande que pode afugentar do meu coração... Se voce tem tanta pena de mim e não quer agora deixar-me entregue ao meu destino, sem consolo nem esperança; se for capaz de amar-me sempre assim, como agora me ama... então, eu lhe juro... que minha gratidão... que o meu amor há de ser digno do seu... Quer aceitar a minha mão? (p. 85-6).
A felicidade parece não ter limites. Neste momento, tudo o que era sombrio em sua vida parece desaparecer:
Olhe para o céu, Nástienhka, olhe para cima! Amanhã vamos ter um dia lindo... Como o céu está azul e olhe para aquela lua! (p. 89).
Nesse momento, entretanto, um homem se aproxima. É ele! Ela não se conteve. Pegou em seus braços e foi embora. Nosso personagem não sabia o que pensar. Na manhã seguinte ele recebe uma carta dela. Ela pede que a perdoe pelo seu coração retornar às mãos daquele que já era seu dono. Tudo para ele volta a ser sombrio. Percebe que tudo ao seu redor está cinzento, envelhecido, com teias de aranha. Nestes instantes finais ele diz que o fato de só ver sujeiras nas paredes de seu quarto deve-se ao raio de sol que o iluminou.
Talvez a culpa de tudo isto fosse aquele raio de sol que de súbito surgiu por entre as nuvens, para logo depois voltar a esconder-se por detrás de outra ainda mais escura, que anunciava chuva, de tal maneira que todas as coisas se tornaram ainda mais lúgubres e mais sombrias... Ou seria que os meus olhos divisaram o meu futuro e nele viram algo de árido e de triste, algo semelhante a mim, ao que sou agora, àquilo que serei dentro de quinze anos, neste mesmo quarto, igualmente só (p. 93).
Mas, nenhuma raiva se apodera dele. Ele perdoa Nástienhka. Deseja-lhe toda a felicidade proclamando:
Bendita sejas pelo instante de felicidade que tu deste a outro coração solitário e agradecido! Meu Deus! Um momento de felicidade! Sim! Não será isso o bastante para preencher uma vida? (p. 94).
O pequeno romance é uma bela descrição não precisamente de um coração apaixonado, mas de um comportamento depressivo e seu olhar cinzento sobre a realidade. Com esta experiência de felicidade, vivida, por instantes, ao lado de Nástienhka, ele poderá agora, quem sabe, ter outras lembranças... e outras esperanças. Quem sabe poderá mudar seu olhar sobre a vida e enxergar, vez por outra, que os raios de luz podem ser raros, mas eles existem e dão um forte sentido à nossa existência.

Dostoiévski, nesse momento, está em busca de algo que lhe dê sentido à vida. Não custa lembrar que vinha de uma experiência amorosa desastrosa, além de estar às vésperas de ir à prisão. Um pequeno e belo texto. Se puder, veja também o filme de 1957, de Visconti.

"Crime e Castigo" (Dostoiévski)



A obra "Crime e Castigo", de Dostoiévski, dispensa maiores apresentações. É daqueles livros clássicos que duas, três ou mais vezes na vida temos que ler. A um tempinho atrás, assisti no canal Discovery Civilization, um episódio da série Grandes Livros (Great Books) que, justamente, tratava desta obra. Nada melhor, então, que comentá-la um pouco.

Roskolnikov, o personagem central, aparece na trama dominado pelas teorias do "homem grandioso". Recusa-se a ser um homem comum e parece destinado a mostrar que pode ser grande. É nesse pano de fundo ideológico que o assassinato pode adquirir ares de superioridade, desde que voltado para atingir um objetivo maior. É isto que vai mover Roskolnikov em sua trama. Uma busca pela grandeza que o levará a conhecer os piores tormentos psíquicos.

É inevitável, neste momento, a tentação de comparar Roskolnikov a um dos "grandes homens" de que falava Maquiavel, ou seja, um daqueles que fazem a história, principalmente através de sua "virtú". Mas, não seria bem isso que iria acontecer com Roskolnikov que, ao invés de ter o controle sobre sua vida, viria a conhecer intimamente a tortura psicológica de um forte sentimento de fracasso e culpa. Assim, longe de conquistar a grandeza típica de um "homem" de Maquiavel, apenas deu início ao pesadelo de seu caos moral.

O livro é definido como uma história de suspense, uma novela realista, envolvida pelas teorias sociais e políticas dominantes na Rússia de sua época. Qual era este pano de fundo? Dostoievski espantava-se em ver como, na sua época, as pessoas matavam-se facilmente, e ele tinha a visão de que o assassinato destruía a alma da sociedade russa e de seus compatriotas. Estamos falando de meados do século XIX e agora só me vem à mente Melanie Klein e sua ideia de que só a "culpa" pode permitir uma sociedade melhor. Era o que Dostoievski, de alguma forma, chamava à atenção.

Inevitável dizer, agora, que ainda fazemos parte de uma sociedade que continua cada vez mais distante da culpa. Ainda acreditamos numa suposta superioridade e grandiosidade, que possa ser conquistada, dispensando-se a moral. Um mal sinal.

Então, voltemos à obra. Roskolnikov, portanto, é um ícone do "solitário que mata para ser grande". Não é à toa que os personagens do livro são todos tirados da praça do mercado em São Petersburgo - um local de pobreza e maus costumes. Aliás, cabe destacar que Dostoievski, permanentemente em dificuldades financeiras, identificava-se facilmente nestas pessoas comuns. Via, nelas, um desespero que lhe era familiar e, ao mesmo tempo, universal, presente em qualquer sociedade.

Seus personagens, portanto, são indiscutivelmente isolados e vulneráveis. Será que não poderíamos fazer esta mesma leitura da atualidade? Como não identificar estes personagens de Dostoievski com os personagens de nossa vida atual, voltados para si mesmos, num isolamento egoístico e, ao mesmo tempo, absolutamente desamparados psiquicamente.

É a partir deste contexto que Dostoievski, portanto, levanta questões sobre a natureza humana: que tipo de homem eu sou? como vou viver depois de tudo o que fiz? Um assassinato pode ser justificado por objetivos grandiosos? O que Dostoievski escreve são nossas reações às complexidades que criamos sobre nós mesmos na condução da vida. Em sua biografia, por exemplo, vemos que Dostoievski sempre alugou apartamentos de esquina, sempre com duas ruas e uma Igreja à vista. Assim, poderia sempre lembrar das escolhas da vida: o caminho de Deus, ou algum outro. Afinal, em vários momentos sempre somos "tentados" para o mal.

Assim era Roskolnikov. Permanentemente tentado para o mal. Não era um assassino, mas, antes de tudo, um jovem confuso pelas novas ideias de grandiosidade, superioridade e poder. A trama se desenvolve a partir do assassinato que comete. Para ele, matar uma velha agiota não seria de todo mal. Afinal, já está velha e, pior, lucra com a desgraça dos outros. Além disso, sua irmã iria casar e ele precisava mostrar à família que estava bem de vida.Tudo parece, então, plenamente justificável.

Mas, logo após o assassinato, seu intelecto entra em conflito com sua compaixão nata. Ele tem muito mais impulsos bons e convive com grande ímpeto de liberdade. Se isso, entretanto, lhe dá ótimas oportunidades de fazer o bem, também pode fazer dele um assassino brutal, à medida que se irrita profundamente com sua existência comum. Não podemos esquecer que os intelectuais russos da época, atraídos por Hegel e Nietzsche, muito debatiam a questão do "homem extraordinário", que busca e conquista seus objetivos. É isso que pressiona Roskolnikov.

Desde o início, então, o que Roskolnikov faz é se envolver numa experiência com a "vontade humana", ou seja: Se não existe a vontade de Deus, então toda a vontade é minha - aí ele é tomado por sonhos de grandeza. Sua vítima escolhida era uma agiota, muito velha, feia e que logo ia morrer. Por que não pegar seu dinheiro e usá-lo para o bem?

É dessa forma que Roskolnikov sofre por não ter alternativa a não ser viver num mundo onde as pessoas mutilam e são mutiladas. A "vontade humana" é torturante. Escolher não é fácil e Dostoievski foi muito fundo na alma humana. Ele, como cristão ortodoxo, acreditava na promessa da redenção. Talvez até mesmo por seus próprios pecados: adultério, jogos, etc.

Ele sabia que tinha culpa, talvez por isso, tivesse compaixão. O fato é que, logo após o assassinato Roskolnikov se sente forte e diz "eu fiz isto por um ideal". Mas, ele não escaparia aos tormentos e angústias advindas de um fortíssimo sentimento de perseguição, que o levaria, gradativamente, a buscar o próprio "castigo".

Um dos traços marcantes desta obra de Dostoievski é seu "realismo". É bom recordar que na Rússia da época a literatura era uma válvula de escape que escondia a realidade sob a dramatização. Afinal, não era possível falar abertamente das questões sociais, a repressão do Czar era forte. É dessa forma que as pessoas esperavam os romances para saber o que se dizia sobre o regime político. É por isso que, no episódio de sua condenação à morte e imediata execução, quando o Czar muda sua pena simulando compaixão, causa muita turbulência no mais íntimo da alma de Roskolnikov.

Para Dostoievski nenhum crime é estranho, pois somos todos criminosos. Roskolnikov, então, sofre, se flagela. Ele não estava pronto para ser um homem sem sentimentos, que buscasse a grandiosidade a qualquer custo. Matar sem sentir culpa representaria a liberdade máxima, mas, ele tem febre, tem medo, se tortura psicologicamente.

Em certo momento, após o assassinato, ele se liga a uma prostituta cuja fé em Deus o abala. Ele tenta convencê-la da bobagem, mas não consegue. Pelo contrário, ela é que vai se oferece para compartilhar seu sofrimento. Até aí ele não sente remorsos pelo crime, só se desespera por não conseguir mostrar que é um grande homem. Seus sonhos o atormentam. Ele pretende ser um a-moral... mas não consegue. Se desespera a todo instante, nunca sabe se está sendo acusado pelo crime ou não. Surgem estados persecutórios inegáveis.

O que está claro é que ele não está fugindo, mas justamente indo em direção ao castigo. Ele sabe que precisa se entregar. O que se percebe é que a busca da liberdade individual leva à decadência moral. Por exemplo: exilar-se ou fugir seria como um suicídio. Ele não conseguiria lidar com isso. Então, ele se entrega. Mas não consegue se arrepender e dizer que sua escolha pela liberdade estava errada. Sente-se completamente isolado na prisão. Só a partir do reencontro com Sônia, a prostituta, é que ele passa a sentir esperança e amor. Seu "isolamento" parecia que ia ter um fim.

A obra de Dostoievski pouco retrata a paisagem, dos locais, mas muito do indivíduo e sua personalidade. Não há dúvida que existem muitos Roskolnikov perambulando por aí, e destes, muitos estão planejando "matar a sua agiota" também. Roskolnikov, sem dúvida, é um personagem que já anunciava o futuro... ou seja, o nosso presente. Este é o Dostoievski profético. Os 730 passos que separavam o quarto de Roskolnikov da casa de sua vítima não o separavam da grandiosidade, mas de seu pior castigo.

Que tal, em nossos sonhos de grandiosidade deixar algum espaço para a culpa? A "culpa depressiva" pode ser extremamente importante para facilitar nossos laços sociais.