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sábado, 24 de maio de 2014

A crítica de Adorno e o "medo" nos dias atuais

Em época de eleição, e tendo uma ferramenta como o facebook nas mãos é muito fácil o debate sobre a política perder a "razão". É aí que lembro de T. Adorno (teórico da Escola de Frankfurt) e sua forte crítica à "racionalidade", ou seja, àquela racionalidade que abdica da autonomia do pensamento e fica refém de chavões e clichês simplistas. Hoje, se precisamos de uma forte crítica à forma como as coisas estão organizadas não podemos, por outro lado, cair na tentação dos discursos de "ódio" e dos apelos "autoritários".

Vivemos uma época difícil em termos de racionalidade. Não debatemos mais, nem mesmo criticamos mais, simplesmente tentamos "destruir". Se estou fora do governo ou se estou no governo só me interessa a "destruição" do outro. E aí os discursos do "medo", do "preconceito" e do "autoritarismo" encontram chance de proliferar. No final das contas, usamos a "violência" para justificar tudo. Onde está nossa autonomia de pensamento? Que uso estamos fazendo da razão? Ou a democracia sai fortalecida ou não estaremos usando nossa razão para nada proveitoso. E o uso do "medo" não é próprio da esquerda ou da direita, é próprio dos anti-democratas, independente das cores que vestem.

Claro que, no calor dos debates é difícil perceber isto. Só depois é que sentimos os efeitos catastróficos do que fizemos. Não a toa, para cada vez mais pessoas, a política corre o risco de se tornar "obsoleta" e "banal", tornando-se terreno do ódio, da indiferença, do uso em proveito próprio, onde a força da democracia está somente na "retórica", pois sua "prática" está tomada pelo interesse. Pobre democracia, que "avança" na criação de instituições mas que não penetra na mente dos cidadãos.

(José Henrique P. e Silva)

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Violência e Internet

O Programa Alexandre Garcia (GloboNews) de hoje teve como tema a violência e seu incrível aumento nos últimos anos aqui no Brasil. Em certo momento a "internet" veio à tona na discussão como um espaço que multiplica esse apelo à violência. Isso é fato! 

Não se trata de dizer que a internet é "culpada" de alguma coisa. Não se trata disso! É da natureza humana que estamos falando. O que a internet possibilita é que aquilo que, em público, não fazemos por temer as regras e punições, fazemos livremente no ambiente virtual. 

Ou seja, a internet funcionaria (para alguns) como um espelho onde se projetam frustrações, raivas, ressentimentos, ódios a partir de uma suposta posição de força e grandeza. Assim, o que a internet faz é facilitar a comunicação entre pessoas que já nutrem, potencialmente, o ódio e a frustração dentro de si de uma forma pouco controlável. 

Agora, isso combinado à falta de modelos identificatórios saudáveis na vida política e um quadro de instituições falidas, é explosivo! Não é à toa que, numa lista de 132 países, somos o 11° mais violento, e nem temos uma das melhores internet do mundo!

(José Henrique P. e Silva)

domingo, 18 de agosto de 2013

Contrapartida (James Joyce, "Dublinenses")

A campainha soou furiosamente e quando a senhorita Parker chegou ao receptor, uma voz irada, com estridente sotaque do norte da Irlanda, gritou:

- Mande Farrington aqui!
A senhorita Parker retornou à sua máquina e, de passagem, disse para o homem que trabalhava numa escrivaninha:
- O senhor Alleyne quer você lá em cima.
"Que vá para o diabo", resmungou o homem, afastando a cadeira para levantar-se...
É desta forma intensa que se inicia este conto de James Joyce ("Contrapartida", publicado em Dublinenses). Farrington, em seu trabalho, e naquele momento em especial, tinha a missão de fazer cópias de um contrato. Cópias à mão é claro. Estava permanentemente sendo cobrado e a lembrança do tempo se esgotando o perturbava imensamente e acabava impedindo-o de melhor se concentrar.

Sua relação com o chefe era a de um ódio contido, mas a ponto de explodir. Sentia-se permanentemente humilhado e não reconhecido. Em certo momento, quando tentou pegar a caneta novamente, sentiu que precisava molhar a garganta. Levantou-se, foi ao restaurante O'Neill e pediu uma cerveja. Logo voltou ao escritório, mas o tempo parecia esgotar-se rapidamente. Não iria conseguir.

A noite escura e nevoenta aproximava-se, aumentando seu desejo de passá-la bebendo com os amigos, em meio ao tilintar de copos nos salões bem iluminados.

Mas, faltavam 14 páginas.

"Maldição". Não iria conseguir. Tinha vontade de blasfemar, de socar alguém... Sentia-se capaz de arrasar o escritório num só golpe. Seu corpo ansiava por fazer alguma coisa: precipitar-se para a rua e desabafar na violência. Todas as afrontas que sofrera na vida vinham-lhe à memória e o encolerizavam...

Apesar do seu mergulho em devaneios, logo a cobrança chegou. Ele não conseguira cumprir a tarefa. As ofensas logo começaram. E, mais uma vez fora obrigado a desculpar-se vergonhosamente. Ansiava cada vez mais pelo bar, mas precisava de dinheiro. Estava muito irritado, mas logo descobriu que, como saída, seu relógio podia ir parar numa casa de penhores.

Atravessou rapidamente a estreita passagem do Temple Bar, murmurando consigo que todos podiam ir para o diabo, pois ele teria uma boa noitada.

Junto aos amigos começou a relatar os incidentes do dia e suas respostas malcriadas. Todos riam e ele sentia-se melhor, mas, com o passar da noite a cólera e o desejo de vingança voltavam a dominá-lo. Além de tudo isto, ainda detestava voltar para casa, pois a mulher o repreendia por andar bebendo.

Ao chegar em casa, sabe pelo filho que a mulher foi à igreja. A criança está com medo, se oferece para preparar a comida do pai, mas deixa o fogo apagar-se no fogão. Neste momento, o pai persegue-o e o agarra pelo casaco golpeando-o vigorosamente com a bengala.

O garoto soltou um gemido de dor quando a bengala atingiu-o na coxa. Ergueu as mãos entrelaçadas e sua voz tremia de pavor:

- Oh, papai! Não me bata, papai. Eu... eu rezarei uma ave-maria pelo senhor... Eu rezarei uma ave-maria pelo senhor, papai, se não me bater... Rezarei uma ave-maria...

Este conto de Joyce é duro, mas nem de longe é uma ficção. É o cotidiano de um homem insatisfeito, humilhado e que, como que numa previsibilidade terrível, alimenta-se de rancor e desejo de vingança. A tragédia faz parte de seu cotidiano, a vida lhe parece um horror, nada o satisfaz e, infelizmente, o desejo de explodir em violência, acaba encontrando no lar, e nas inocentes crianças, o ambiente perfeito para acontecer.

Vale a pena ler... e reler este conto. Podemos, enquanto adultos, nos vermos, ainda que em lampejos, neste homem. Mas, se fizermos um esforço maior, podemos, enquanto crianças, também nos vermos na aflição e no terror daquela criança.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Primeira Dor ("Um Artista da Fome", Kafka)

A Primeira Dor é o primeiro de quatro pequenos contos de "Um Artista da Fome", de F. Kafka. Junto com A Construção, a coletânea foi escrita nos momentos finais da vida de Kafka, entre 1922-24, funcionando, na opinião de Modesto Carone (tradutor desta versão¹), como o testamento literário do autor, e de sua geração. 

Não há como negar que a infelicidade, a incerteza, a impossibilidade física, o ódio e a dor presentes neste conjunto de textos certamente espelham as angústias do escritor nos tempos sombrios da ascensão do nazismo (M. Carone)². A seguir faço algumas considerações.

O artista do trapézio tinha organizado sua vida pelo esforço da perfeição. Um hábito tirânico, já que passava dia e noite no trapézio. Seu convívio humano reduzia-se e o silêncio o cercava. Ninguém o incomodava, justamente por ser considerado extraordinário e insubstituível. Quando tinha que descer, por qualquer motivo, isso lhe significava enorme sofrimento, que só cessava quando retornava ao trapézio. Sua arte era o que lhe permitia viver e, ao mesmo tempo, era a expressão máxima de sua dor: um apego obsessivo a manter-se equilibrado na vida, embora não lhe sobrasse mais nada além disso. 

Quanta infelicidade revelada neste pequeno conto. O que o levou a manter-se em permanente equilíbrio? O que a explica esta infelicidade? Quem sabe um profundo sentimento de “insegurança”, um “medo de cair”, de “desmoronar”, de se "desequilibrar", que levam a esse pensamento obsessivo pela perfeição e que cria hábitos que se revelam tirânicos e, não podemos esquecer, ao mesmo tempo, "confortáveis", funcionando como almofadas para nosso sofrimento.

O que lhe resta senão buscar ainda mais a perfeição? Afinal, só buscando-a é que poderá minimamente afastar de si o risco de “cair”. Seu lamento por um novo trapézio é comovente, como comovente é a expressão de um rosto que se obriga à perfeição, revelando uma força e uma determinação que só o levam ao cansaço e, enfim... a um triste envelhecimento.

Vez por outra vejo alguns desses rostos. São a expressão de uma época que exige a todos a perfeição, que sejam felizes a todo custo, que sejam os melhores, que sejam mais vistos. Como lidar com a "queda" em uma época assim? Não dá! Então, só resta o caminho tirânico das obsessões do perfeccionismo e de seu principal fruto... uma profunda infelicidade, escondida em meio à busca da perfeição.

Algo o levou lá para cima, lá para o trapézio. Algo o fez ficar por lá. E, uma vez lá, não havia saída senão manter-se equilibrado. Mas, até quando iria conseguir? Isto lhe custou viver! Mas, havia vida lá embaixo? Será que ele já não estava ali porque a vida embaixo era insuportável? Só lhe restaria manter-se num equilíbrio permanente, obsessivo, perfeccionista... mas que não escondia sua infelicidade.

Hoje, nos ensinam que a "queda" é sinônimo de "fracasso". Trata-se de uma ideologia muito perigosa, competitiva, egoísta, individualista. A "queda", porém,  é o que também nos torna humanos. Quem disse que precisamos ser os "melhores", quem disse que precisamos só pensar no que é "novo" e esquecer o passado? Por que ser esse escravo pós-moderno?

Sei que existem outras formas de "ler" e "interpretar" este pequeno conto, mas esta foi a forma que me sobressaiu. Impossível também deixar de registrar que, à época em que foi escrito Kafka enfrentava duríssimos problemas com a tuberculose. Estava às vésperas da morte. O conto, não deixa de ser, portanto, como afirma M. Carone, um testamento do autor.

Parece não haver dúvida que Kafka, quando escrevia, tinha a morte como sua companheira permanente. Mas, justamente por isso, por ter tido a capacidade de "anunciá-la" neste conto, nos deixou um imenso legado: a possibilidade de nos enxergarmos em nossos próprios trapézios, lutando para nos mantermos por lá, livres, talvez, dos riscos da vida, ou mesmo, quem sabe, buscando alguma vida.

(José Henrique P. e Silva)

A seguir, a íntegra de A Primeira Dor. 
Um artista do trapézio - como se sabe, esta arte que se pratica no alto da cúpula dos grandes teatros de variedades é uma das mais difíceis entre todas as acessíveis aos homens - tinha organizado sua vida de tal maneira, primeiro pelo esforço de perfeição, mais tarde pelo hábito que se tornou tirânico, que enquanto trabalhava na mesma empresa permanecia dia e noite no trapézio. Todas as suas necessidades eram atendidas por criados que se revezavam, vigiavam embaixo e faziam subir e descer, em recipientes construídos especificamente para esses fins, tudo o que era preciso lá em cima. Esse modo de viver não causava aos outros dificuldades especiais; era apenas um pouco incômodo que durante os demais números do programa ele ficasse lá no alto, o que não se podia ocultar: apesar de, messes momentos, na maioria das vezes se conservar quieto, de quando em quando um olhar do público se desviava para ele. Mas os diretores o perdoavam por isso porque era um artista extraordinário e insubstituível. Além do que admitia-se com naturalidade que ele não vivia assim por capricho e que só podia preservar a perfeição de sua arte mantendo-se em exercício constante. 
De mais a mais, lá no alto também era saudável, e quando nas épocas mais quentes do ano eram abertas as janelas laterais em toda a extensão da cúpula e junto com o ar fresco o sol entrava poderoso no espaço crepuscular, então era até bonito lá em cima. Sem dúvida, seu convívio humano estava reduzido; só uma vez ou outra um colega de acrobacia subia até ele pela escada de corda; então os dois se sentavam no trapézio, inclinavam-se à esquerda e à direita sobre as cordas de sustentação e proseavam. Ou então os operários que consertavam o teto trocavam algumas palavras com ele através de uma janela aberta; ou o bombeiro examinava a iluminação de emergência na galeria superior e lhe gritava algo respeitoso mas pouco inteligível. De resto, o silêncio o cercava; algumas vezes um funcionário qualquer, que porventura errava à tarde pelo teatro vazio, erguia o olhar para a altura - que quase fugia à vista - onde o artista do trapézio, sem poder adivinhar que alguém o observava, exercia sua arte ou descansava.
O trapezista teria assim podido viver tranquilamente, não fossem as inevitáveis viagens de lugar em lugar que lhe eram extremamente molestas. É verdade que o empresário providenciava para que ele ficasse a salvo de qualquer prolongamento desnecessário desses sofrimentos: para as viagens nas cidades usavam-se automóveis de corrida com os quais se disparava, se possível à noite ou de madrugada, pelas ruas desertas na mais alta velocidade, que certamente era muito lenta para a nostalgia do artista do trapézio; no trem era reservado todo um compartimento onde ele passava a viagem na rede destinada à bagagem, numa substituição lamentável mas ainda possível da sua maneira habitual de viver; no local da apresentação seguinte o trapézio já estava colocado no teatro antes da chegada do artista; mantinham-se também abertas todas as portas que davam para o palco e livres todos os corredores. Mas os momentos mais belos na vida do empresário eram sempre aqueles em que o artista punha o pé na escada de corda e finalmente, num instante, estava de novo pendurado no alto do seu trapézio.
Por mais bem-sucedidas que essas viagens fossem para o empresário, cada nova excursão lhe era penosa, pois a despeito de tudo perturbavam seriamente os nervos do trapezista.
Certa vez em que ambos viajavam juntos - o trapezista sonhando na rede da bagagem e o empresário na canto da janela lendo um livro - o artista do trapézio dirigiu-se a ele em voz baixa. O empresário deu-lhe imediatamente atenção. O artista disse, mordendo os lábios, que de agora em diante ele iria precisar sempre de dois trapézios ao invés de um - dois trapézios, um em frente ao outro. o empresário concordou rapidamente. Mas, como se estivesse querendo mostrar que a anuência do empresário tinha aqui tão pouco sentido quanto a sua negação, o artista acrescentou que nunca mais e em circunstância alguma trabalharia com apenas um trapézio. Parecia estremecer só com a ideia de que isso acontecesse outra vez. Hesitante, o empresário observou o trapezista e se declarou novamente de pleno acordo com o fato de que dois trapézios eram melhor que um; além disso essa nova disposição apresentava a vantagem de tornar o número mais variado. De repente o artista do trapézio começou a chorar. Profundamente assustado, o empresário deu um salto e perguntou o que havia acontecido; por não receber resposta, subiu no assento, acariciou-o e apertou o rosto dele contra o seu, de tal modo que as lágrimas do trapezista lhe escorreram sobre a pele. mas só depois de muitas perguntas e palavras de carinho o artista do trapézio disse soluçando: "Só com esta barra na mão, como é que posso viver?". Agora era mais fácil para o empresário consolar o artista; prometeu telegrafar da primeira estação para o lugar da apresentação seguinte, pedindo o segundo trapézio; censurou-se por ter deixado o trapezista trabalhar tanto tempo com apenas um trapézio, agradeceu-lhe e elogiou-o muito por ter afinal chamado a sua atenção para o erro. Foi assim que o empresário pôde aos poucos acalmar o artista e voltar ao seu canto. mas ele mesmo não estava tranquilo e com grave preocupação examinava secretamente o trapezista por cima do livro. Se pensamentos como esse começassem a atormentá-lo, poderiam cessar por completo? Não continuariam aumentando sempre? Não ameaçariam sua existência? E de fato o empresário acreditou ver, no sono aparentemente calmo em que o choro tinha terminado, como as primeiras rugas começavam a se desenhar na lisa testa de criança do artista do trapézio.
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¹ Franz Kafka. Um Artista da Fome / A Construção. Tradução de Modesto Carone. - São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
² Em “A construção”, especialmente, essa relação é marcante. Segundo o tradutor, o texto oferece uma imagem insuperável do modo de existência do escritor, perseguido por dentro pela tuberculose e por fora pelo fascismo alemão. É por isso que o personagem se enterra num buraco e vive, no submundo, a ilusão momentânea de um abrigo, no qual vem a descobrir que não tem um lar que o proteja de um inimigo que, ao atingi-lo no fundo da terra, vai travar com ele uma luta de extermínio (M. Carone).