Este é um livro da Roudinesco que gosto muito. Trata da "Perversão", aquela estrutura clínica nem tanto "valorizada" quanto as neuroses ou psicoses, e em boa parte "glamourizada" pelas "fantasias sexuais" que parecem adquirir um grau de legitimidade bem elevado atualmente. Mas prefiro falar daquela "outra" Perversão, aquela parte considerada "maldita" em nós mesmos, e por isso quase sempre bem "escondida", que parece sempre nos lembrar de nossa potencial bestialidade, algo que parece contrastar com a própria "humanidade".
Essa perversão que dá margem a comportamentos e vidas infames, paralelas, minúsculas, bestiais, criminosas, monstruosas e miseráveis, que se disseminam pela sociedade e ao nosso redor. Estou falando de criminosos sexuais de uma forma geral (abusadores, pedófilos, estupradores etc.) que deveriam sim, e essa é uma opinião que tenho muito arraigada, serem permanentemente monitorados pelas instituições responsáveis, pois sabe-se que sua possibilidade de "cura" é ínfima, quase nula. Podem manter-se sob algum tipo de controle, mas parecem não escapar desta "parte obscura" que tomou conta de si mesmos. Há muito o que se falar sobre a Perversão.
O livro da Roudinesco nos traz alguns exemplos de "notórios perversos", como Gilles de Rais, neto de João de Craon, um riquíssimo senhor feudal libertino. Desde seus 11 anos foi iniciado no crime por este seu avô. Dilapidou sua fortuna em bebedeiras e toda sorte de excessos.
O gosto pelo sangue e o desprezo às leis era indiscutível. Apegado às armas, Gilles acabou por servir ao lado de Joana D'Arc e chegou a ser condecorado, mas não escapava às pilhagens e roubos. Depois passou a cometer outro tipo de crime: o seqüestro de crianças, seguido de todo tipo de sevícias.
Retalhava corpos, arrancava órgãos, e tudo isso associado ao abuso sexual dos corpos. No auge da loucura chegava a invocar o demônio em extrema excitação – acabava transformando-se num dejeto, sujo de sangue, esperma e restos de comida. Todas as fronteiras com a Lei já estavam abolidas e nada o refreava. Fala-se em cerca de 300 crianças mortas, o que deu origem à lenda do Barba Azul. Em 1440 Gilles foi levado a julgamento e confessou todos seus crimes dizendo que foram por iniciativa própria. Não atribuiu culpa ao demônio nem a instintos bestiais. Ele simplesmente lembrou a educação que recebera do odiado avô que fizera dele uma criatura abjeta, imersa no vício.
No final, implorou perdão e pediu orações. Foi enforcado e queimado. Diante da pergunta do porque teria cometido tais crimes, ele responde: "para que atormentar, a vós e a mim?" - Esta é uma característica do perverso, o TORMENTO do qual não consegue livrar-se a não ser com a própria MORTE.
Outro "notório perverso" trazido pelo livro da Roudinesco é o bastante famoso Marquês de Sade. Com ele isso, inaugurava-se a noção moderna de perversão, onde não havia nada de "diabólico" e sim "humano". Foi na regência de Philippe d’Orléans, após a morte de Luis XIV, que a "libertinagem" (fenômeno que surgiu como reação às guerras religiosas) encontrou sua forma política mais consumada.
Orgias, blasfêmias, especulação econômica, gosto pela prostituição, pelo luxo, pelo desperdício e escândalos: todas essas praticas concorriam para um vasto questionamento dos valores da tradição religiosa. A aristocracia entregava-se e fascinava-se pelos prazeres mais excessivos. Foi nesse cenário que cresceu o Marquês de Sade que, com sua escrita, levaria aos limites a "inversão da Lei".
Seus personagens, entretanto, não reivindicam uma filosofia do prazer e da liberdade individual, e sim uma vontade de destruir o outro e se autodestruir num TRANSBORDAMENTO DE SENTIDOS (gozo absoluto). O ser humano transforma-se em OBJETO (coisa) e ABJETO (desprezível). Sade não foi um criminoso do tipo Gilles de Rais, foi mais um "perverso moral". Não matou, mas destruía a identidade.
Tinha os germes da depravação, mas não da loucura. Assim, é compreensível que Sade tenha sido visto como um precursor da sexologia. Encarnação de todas as figuras possíveis da perversão, ele nunca cessará, após ter desafiado e insultado reis, Deus e invertido a Lei, de ameaçar a todos em sua vã pretensão de querer domesticar o gozo do mal. Esse é o típico "notório perverso" mais alinhado àquela perversão "glamourizada" dos dias atuais, onde se enaltecem as fantasias, quase sempre no limite entre o prazer e o crime.
Que olhar, então, dirigir ao perverso? Sabemos que existe aquela perversão que ninguém se intromete, porque é da ordem da vontade do indivíduo, casal ou grupo, em sua intimidade. Essa perversão fala algo da liberdade e da própria natureza humana. E não consigo estabelecer nenhum juízo moral sobre a questão, pois a psicanálise não busca nenhum tipo de "ordem moral" ou algo que diga o que é o "sexo bom" ou "mau" para cada um.
Mas, existe a perversão que é alvo da Lei e que sobre ela deve-se dirigir um olhar bastante severo. São os chamados "parafílicos sociais" (estupradores, pedófilos, assassinos maníacos, criminosos sexuais etc). Para esses o olhar não deve ser somente o de reprovação, mas de forte atuação no sentido do confinamento e monitoramento constante, pois o mal que causam ao outro é, muitas vezes, irreparável.
O que me assusta, por vezes, é uma certa condescendência com esse tipo de crime, tentando-se atribuir certa "naturalidade", mostrar que é "cultural", ou até mesmo que não é crime e sim uma "doença". Embora esse tipo de perversão tenha sim componentes destes três tipos de explicação quando inserida em nosso contexto social ela se torna crime sim, e merece punição rigorosa, ou vamos mesmo conseguir conviver com a ideia de um pai estuprar a própria filha criança ou adolescente?
(José Henrique P. e Silva)