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quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Winnicott - Formamos cidadãos ou consumidores?

Em um artigo de 1950 o psicanalista D. Winnicott se aventurou pelo campo da política*. Ele sabia que não era seu campo predileto, mas também sabia que sempre era valioso cruzar-se fronteiras. Seu objetivo foi discutir a "democracia". Inicialmente, nos disse que a palavra tem múltiplos sentidos, sendo tratada como um sistema social onde: quem manda é o povo; o povo escolhe o líder; o povo escolhe o governo; o governo dá liberdade ao povo; os indivíduos possuem liberdade de ação. Mas, como tratar tal conceito psicologicamente?
 
Para Winnicott, uma das tarefas da psicologia é, justamente, a de estudar, nos conceitos, suas ideias presentes (significados óbvios e conscientes) e latentes. Este seria um bom ponto de partida. No caso da palavra "democracia" ele nos sugere que um dos conteúdos latentes seria o de que se trata de uma sociedade "madura", algo que está muito ligado à ideia de um desenvolvimento saudável e bem ajustado, como dizia Money-Kyrle. Portanto,
 
é o modo como as pessoas usam o termo que tem importância para o psicólogo (p. 190).
 
Mas, o que é o normal e o saudável? Levando-se a expressão para o campo do indivíduo diz-se que existe um "grau apropriado de desenvolvimento emocional", uma espécie de "maturidade", diretamente associada à "saúde". São significados que não são tão fixos, mas que se relacionam plenamente. Assim, democracia = momento saudável e de maturidade.
 
Vamos avançar. Como sistema  social a democracia também nos apresenta uma máquina através da qual existem eleições e mudanças nos governos, e sua essência é o voto livre (secreto) através do qual se pode expressar sentimentos profundos, inconscientes. Mas, como funciona o ato de votar?
 
Ora, o voto expressa o desfecho de uma luta dele consigo mesmo, tendo sido a cena externa internalizada e portanto trazida em forma de associações ao interjogo de forças existente em seu próprio mundo pessoal, interno. Isto é, a decisão sobre a maneira de votar é a expressão da solução de uma luta dentro da pessoa... o indivíduo torna pessoal a cena externa, com seus muitos aspectos sociais e políticos, no sentido de que se identifica gradualmente com todas as partes em conflito. Isso significa que ele percebe a cena externa em termos de sua própria luta interna, e temporariamente permite que sua luta interna seja travada em termos da cena política externa (p. 191).
 
É como se o mundo interno do eleitor se transformasse numa arena de disputa política. Voltando à questão da "maturidade", é fácil perceber que a democracia não é um sistema que pode ser imposto. Ela é sempre uma aquisição, daí pertencer à uma fase "madura" da sociedade. Como isto se explicaria, segundo Winnicott?
 
Nesta sociedade, neste momento, há maturidade suficiente no desenvolvimento emocional de uma proporção suficiente de indivíduos que a compõem, a ponto de existir uma tendência inata em direção à criação, à recriação e à manutenção da máquina democrática (p. 192).
 
Existe uma proporção de indivíduos específica para que a democracia sobreviva? Ou, ao contrário, existe uma proporção de indivíduos anti-sociais, específica, para que a democracia submerja, questiona-se Winnicott. Ele avança nestas questões mais específicas e nos diz que, em dado momento, numa sociedade, se existirem x indivíduos anti-sociais, há sempre uma quantidade z de indivíduos que, como reação, identificam-se à autoridade. Que postura é essa?
 
É uma tendência pró-sociedade mas antiindivíduo. As pessoas que se desenvolvem dessa maneira podem ser chamadas de "anti-sociais ocultas" (p. 193).
 
Seria uma postura doentia e imatura para Winnicott. Mas, então o que sobrar de 100 - (x + z) é igual à indivíduos "sociais"? Não! Ainda há os que ocupam posição indeterminada (y %). Então, saudáveis e sociais são aqueles que resultam da equação 100 - (x + z + y).
 
É sobre este restante que cairá a responsabilidade democrática. Mas, como surge este fator democrático? É inato? Estimulado pelas lideranças? Se pensarmos  em um caráter inato temos que pensar na forma como os pais agiram com seus filhos. São os "bons lares comuns" os únicos que podem fornecer um fator democrático inato.
 
É no homem comum, então, que repousa a essência de uma democracia. Entretanto, muita coisa conspira para o bom funcionamento do lar e isso sem falar que muitos pais não são "bons", são anti-sociais, imaturos, doentes, etc.
 
Mas, como a sociedade age contra isso? Sejamos fancos, há alguma preocupação com uma formação familiar saudável? Será que não estamos sendo absolutamente displicentes com o surgimento de patologias as mais diversas no seio familiar?
 
Mas, não quero aqui, fazer "sociologismo barato" e dizer que tudo se resume à questão econômica. Isso é mentira! Há bem mais coisas envolvidas, principalmente as de ordem psíquica. O que oferecemos, então, para a saúde psíquica da sociedade?
 
Para piorar, me parece que vivemos em uma época em que não só as condições psíquicas para a formação de crianças está cada vez mais comprometida, como também não sabemos exatamente se esta criança está se integrando a uma "sociedade" ou a um "mercado", competitivo e individualista, anti-social, portanto.
 
Não podemos cair no erro de acreditar que a única coisa que realmente importa é o cuidado físico, como nos diz Winnicott. Isso é a melhor expressão de fantasias que orbitam em torno da relação mãe-bebê (momento crucial para o cuidado físico necessário). Não à toa proliferam lideranças "maternas" e que "cuidam" dos indivíduos na sociedade.
 
Por outro lado, se tudo isto realmente for sensato e verdadeiro, resgatamos a importância da educação para a sustentação dos procedimentos democráticos. Mas, mais uma vez, é isto que vemos no cotidiano dos governos e lideranças?
 
No texto, Winnicott ainda faz referências ao papel da mulher no poder, à existência da democracia em estados de guerra e à questão das fronteiras geográficas da democracia, mas fico com estas questões já levantadas.
 
Nada sustenta melhor uma democracia que a existência de um fator democrático em determinado percentual da sociedade, e isso resulta, por sua vez, em grande parte, de um desenvolvimento emocional saudável, sobre o qual o governo não deve interfirir, mas oferecer apoios, como através, principalmente, da educação e de suportes psicológicos, além, evidentemente, de buscar condições para atenuar as carências materiais.
 
O grande problema e que me parece algo que merece ser estudado com muita atenção, é o fato de vivermos uma conjuntura de forte investimento em distribuição de dinheiro, precário investimento na educação e forte dose de credulidade no mercado. Isso precisa ficar mais claro. Precisa ser estudado com mais atenção para chegarmos a conclusões mais efetivas.
 
Por enquanto, são especulações, pessimistas, mas são só especulações de que não estamos formando cidadãos, e sim tão somente consumidores com alto potencial anti-social. Pior para a democracia? Melhor para os populismos?
 
Realmente Winnicott se aveturou pelo campo da política, mas não acredito que nenhum sociólogo ou cientista político não o respeite por isto, principalmente por nos fornecer, há tanto tempo, ferramentas para a análise da sociedade atual.
 
______________
 
* “Algumas reflexões sobre o significado da palavra “democracia”. In: D. W. Winnicott. Tudo começa em casa. Tradução Paulo Sandler. – 2a ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1996. – (Psicologia e Pedagogia), p. 189-204. Título original: Home is where we start from. O texto foi escrito para o “Human Relations” em junho de 1950.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

O conceito de Falso Self (D. Winnicott)

Este post foi escrito a partir do rascunho inacabado de uma palestra proferida por Winnicott no All Souls College, Oxford, para o grupo "Crime - um desafio", em 29.01.64. O rascunho está publicado em "Tudo Começa em Casa" (Martins Fontes, 1996, p. 51-54), e nesta palestra Winnicott aproveitou para, mais uma vez, destacar os conceitos de verdadeiro e falso self

Trata-se de uma "divisão" que todos nós possuímos (e ele pôde detectar em seus pacientes) e que nos permite dizer que "todos somos doentes" e, ao mesmo tempo, que "as pessoas doentes são saudáveis". Ou seja, é da divisão que muitos processos patolóigicos surgem, mas é a divisão que nos torna "normais". Dessa forma, segundo Winnicott:
cada pessoa tem um self educado ou socializado, e também tem um self pessoal privado, que só aparece na intimidade. Isso é comum e pode ser considerado normal (p. 52).
Trata-se de uma divisão, uma cisão na mente que, em seu grau mais profundo, gera a esquizofrenia. A sociedade, segundo Winnicott nos exige altos graus de concordância e adaptação, e aceitamos o fato diante das perspectivas de obter vantagens. 

Por exemplo, ensinamos as crianças a dizer "obrigado", por polidez, e não necessariamente porque a criança o quer dizer. Ou seja, de alguma forma esperamos que as crianças sejam capazes de mentir, aceitando as convenções para uma administração da vida. Parece ser o preço a pagar pela socialização. É nesse contexto que muitas crianças vão começar a achar a vida difícil devido à 
necessidade que têm de estabelecer e restabelecer a importância do verdadeiro self em relação à tudo o que seja falso (p. 54). 
O que Winnicott quer dizer é que, embora sejamos capazes de fazer concessões diariamente à sociedade, podem existir áreas que consideramos especiais e não aceitamos fazer concessões
Na área escolhida não há lugar para concessões (p. 54).
Podemos resumir dizendo que a sociedade impõe regras que devemos aceitar, consentir. Tais concessões levam à socialização e à construção de um falso self. É esse falso self que, por vezes, contrasta com o self verdadeiro, aquele que mantém nossos desejos, que é de nossa privacidade. Nessa luta, estamos todos, e a todo instante, envolvidos.