Não conhecia este título de Dostoiévski e aproveitei uns dias de folga no Natal de 2011 para ler. É um livro curto e bem gostoso de ser lido. Lembrei que tinha feito algumas anotações, com trechos do livro, e agora compartilho aqui com vocês. Ler é uma necessidade, ler os clássicos é quase uma obrigação, e ler Dostoiévski é puro prazer. Como disse, o texto é pequeno, foi escrito em 1869 e nos mostra o sarcasmo e a ironia em doses muito raramente vistas. Isso tudo, é claro, regado com as descrições incomparáveis que Dostoiévski faz de seus personagens e lugares.
É início de julho e está começando o verão em Petersburgo. Lá, Vielhtcháninov encontrava-se retido devido a um processo que lhe causava certo mal-estar. Estava próximo dos 40 anos mas,
ele mesmo compreendia que o que havia tão cedo envelhecido não era a quantidade mas, por assim dizer, a qualidade dos anos, e que se se sentia enfraquecer antes da idade, era mais depressa por dentro do que por fora (p.7).
Era um obsessivo e andava tomado por lembranças que o angustiavam demasiadamente, embora nada que lhe parecesse fazer sentido. Ultimamente as coisas haviam piorado e a rememoração de certos episódios cotidianos (pequenos fracassos, dívidas, insultos, etc.) sobrecarregava sua consciência e atormentavam seu espírito. Ele questionava:
de que servem tais recordações, quando não sei nem mesmo libertar-me suficientemente de mim no presente? (p. 14).
Estava prisioneiro de recordações e quase não mais se distraia ou respirava. Como acabar com estes pensamentos? Esta era sua principal questão. Chegou a pensar em deixar Petersburgo, em busca de algo diferente, mas decidiu ficar, e certa noite entrou em um restaurante para o jantar. Estava especialmente irritado. Claro que com nada em particular. De repente, um pensamento imprevisto, e uma sensação de alívio: parecia que finalmente compreendera a razão de seus tormentos. Era o chapéu, o chapéu com crepe.
Agora as coisas pareciam começar a ficar mais claras e ele começa a rememorar em detalhes os últimos 15 dias. O que aconteceu? Neste tempo, Vielhtcháninov teve uma sucessão de “encontros” ocasionais com um misterioso homem que usava um crepe no chapéu. Eram encontros com rápidas trocas de olhares e com uma sensação de já conhecer aquele sujeito que, por sua vez, nunca se aproximava. A cada encontro aumentava a angústia de Vielhtcháninov. Sentia-se perseguido, com muita raiva e, pior, os pensamentos não lhe davam sossego. Tudo parecia se resumir a um grande sentimento de culpa que não o abandonava.
Ao chegar em casa o sono era perturbado por pesadelos e não mais conseguiu dormir. Foi até a janela e, para sua surpresa, lá estava o homem misterioso olhando para sua casa. Ele resolve descer e enfrentá-lo.
Era como se o sonho de ainda há pouco se houvesse fundido com a realidade (p. 25).
Ao vê-lo na sua frente logo o reconheceu. Era Páviel Pávlovitch. Conheceram-se a 9 anos atrás quando Vielhcháninov (Alieksiéi Ivânovitch) hospedara-se em sua casa por um período. Páviel estava confuso, mas lhe dá a notícia da recente morte de sua esposa, Natália. Páviel transformara-se em um homem atormentado, que só vagava pelas ruas. Suas frases são sempre pela metade, parecendo ocultar algo. De qualquer forma, a pressão que Alieksiéi sofria parecia amenizar-se. As lembranças vinham à tona para Alieksiéi: ela fora amante daquela mulher.
É uma dessas mulheres, pensava ele, que nasceram para ser infiéis. Não há risco de que mulheres dessa espécie caiam enquanto são donzelas: é lei de sua natureza esperarem para isso que estejam casadas. O marido é o primeiro amante delas, porém jamais antes do casamento. Não há mulheres mais honestas do que elas para o casamento (p. 39).
Alieksiéi também estava convencido que à uma mulher desse tipo correspondia o que chamava de "eterno marido", ou seja, homens que são, em toda a sua vida, somente maridos e nada mais.
O homem dessa espécie vem ao mundo e cresce apenas para se casar e, logo que casa, torna-se imediatamente algo de complementar de sua mulher (p. 40).
E o maravilhoso é que com tudo isso não se podia dizer que aquele marido vivesse sob o chinelo de sua esposa. Natalia Vassílievna mostrava toda a aparência da mulher perfeitamente obediente e talvez ela própria estivesse convencida de sua obediência (p. 41).
Alieksiéi relembra que apaixonara-se por Natália e que ela o dispensara um tempo depois alegando estar grávida. Ele, por seu lado, achava que ela estava mesmo era apaixonada por outro.
Passam-se as lembranças e, no dia seguinte, Alieksiéi vai visitar Páviel e, chegando lá, nota a presença de uma garotinha. Era Lisa. Páviel começa a contar sobre a gravidez fazendo relação com a estadia de Alieksiéi em sua casa a 9 anos atrás. Tem início uma série de diálogos mal completados que só deixam Alieksiéi atormentado com a ideia de ser o pai daquela garotinha.
Os diálogos, por vezes beiram a loucura, pois Páviel insinua mas não afirma. É irônico mas não vai até o final em suas suposições. Não à toa, rapidamente, Alieksiéi vai saindo da posição defensiva para tornar-se mais direto e até agressivo com Páviel. Ele logo percebe que Lisa está doente e que Páviel pretende deixá-la com amigos por um tempo. Lisa desperta muita atenção em Aliekseiév, principalmente quando levanta a suspeita de que Páviel pretende matar-se.
Ele... ele se enforcará! - disse ela, baixinho, como em delírio (p. 60).
Seguem-se cenas de intensos diálogos entre Aliekseiév e Páviel, repletas de cinismo e insinuações. Mas, pouco tempo depois, Lisa não resiste e morre. A partir daí, opera-se, lentamente, uma profunda mudança em Aleikseiév: não mais sentia-se culpado por nada, pelo contrário, estava com raiva.
Em determinado momento separa-se de Páviel, distanciam-se, mas o grande efeito de tudo isto é que as revelações, a relembrança dos fatos do passados não mais o angustiavam. Sua hipocondria havia desaparecido. Não havia mais recalque. Tudo vira à tona e adquirira algum significado para Aleikseiév.
Os dois ainda se encontrariam no futuro. Mas nada mudará, Páviel continuará a ver a sombra da traição de sua esposa e Aleikseiév terá só mais uma nova oportunidade para enxergar em Páviel o "eterno marido".
Trata-se de um pequeno texto, mas muito denso, cuja intensidade dos diálogos, repletos de cinismo e ironia, beiram o delírio fantasioso. O rancor e a raiva parecem permear todo o livro, mas a principal teia, salvo engano, é a que mostra a cura de Aleikseiév pela revivência dos fatos do passado. Eles não mais lhe perturbam. O mesmo não se pode dizer da abnegação total de si promovida por Páviel Pavlovitch, o eterno marido.
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