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quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Sobre o amor e o casamento: "antes" era melhor que hoje?

Amar, hoje em dia é mais fácil que antes? Antes, o casamento era melhor que hoje? Ser um casal hoje em dia garante que vou continuar sendo livre? Perguntas como estas, e tantas outras, povoam o imaginário de homens e mulheres na atualidade. São como que sombras de um passado, de que se ouviu falar, principalmente dos pais e avós, e que não consegue mais se sustentar tão facilmente e com tanta naturalidade. 

Ora, os casais continuam indo às terapias com suas angustias e incertezas. Mas, se antes estas eram provocadas, na sua maioria, por uma espécie de "confinamento" (no casamento) que exigia uma mudança, hoje, muito são muito mais motivadas por uma "liberdade" (individual) que se conquistou e que é difícil dividir com o outro, não se sabendo bem, portanto, o que fazer com ela. No meio de tudo isto, aquela fantasia tão nos ensinada pelos contos de fada: "antes tudo era melhor". Será mesmo? Em que aspectos?

Antes de mais nada, é bom lembrar o quanto é difícil se trabalhar com categorias assim tão fechadas como "antes" e "hoje", pois sabemos que esses tempos se misturam de formas específicas em cada imaginário e produzem fantasias as mais distintas em cada pessoa, onde a realidade de um casal e do amor não é a mesma de outro e precisa ser investigada na sua especificidade. Isso, entretanto, não invalida que apontemos certas "regularidades", situações compartilhadas por muitos, e são estas que nos permitem falar, ainda que com cautela, em um "antes" e um "hoje".

Mas, o que era este "antes"? Cada vez mais, o "antes" dos relacionamentos amorosos e conjugais entra para aquela categoria dos "paraísos perdidos", dos quais nada sabemos, nada experimentamos, nada vivemos, mas que somos capazes de jurar que foram bem melhores do que aquilo que vivemos hoje. São como que um refúgio para onde escapamos, em nossos pensamentos, quando as incertezas do momento atual nos afligem. 

Uma necessária regressão a tempos "primitivos" onde apostamos na existência de uma felicidade sincera e duradoura. Melhor seria olhar para frente? Talvez! Mas, convenhamos, é bem mais fácil e simples se olhar para trás com alguma nostalgia, essa saudade idealizada e quase sempre irreal, alguma segurança, do que olhar para frente com todos os riscos que o futuro traz embutidos.

O "paraíso perdido", então, nada mais é do que uma construção imaginária que utilizamos para combater nossas angústias. Por isso soa tão fácil na boca de muitas pessoas ouvir que, "antes", mesmo quando o amor não estava tão em questão no casamento, tudo era "melhor". Não há nada que comprove isto. Para os que se apegam demasiadamente em estatísticas talvez o tempo de duração dos casamentos hoje comprove algo. Mas, na verdade, isso não explica quase nada. 

Então, o retorno ao "paraíso perdido" é só um recurso de que nos utilizamos quando estamos sem saber bem o que fazer "hoje". Mas, de fato, o que era esse "antes", tão idealizado por homens e mulheres? E quais os desafios que o "hoje" coloca aos relacionamentos amorosos?

A respeito do "antes", acho que dá para se chegar a algum consenso: o "casal" era algo bastante idealizado, principalmente pelas mulheres, e muito buscado. Os papéis de homem e mulher já estavam bem definidos, enquanto um buscava prover e proteger, outro buscava cuidar e procriar, tudo segundo regras culturais bem claras e que deixavam o destino bem visível para os dois. Neste contexto, havia uma ideia de complementaridade, como se fossem "duas metades", ou como se diz, "a tampa da panela". Os filhos, quase sempre muitos, eram como que a garantia e o atestado de uma família feliz. 

Esse é um panorama muito geral, que quase sempre é idealizado mesmo. Mas, em seu interior haviam problemas. E é muito natural que houvessem. Num contexto assim, como o de "antes", não era difícil o marasmo, a inércia, e a luta pela "transformação" do vínculo entre os dois talvez estivesse no inconsciente de cada um, mas sem grandes possibilidades de sucesso. Estavam como que "amarrados", mas no sentido ruim mesmo do termo, e a palavra de ordem era "transformar" para se tentar ser feliz. 

Mas, e o "hoje", o que apresenta de novidade? Existem sim algumas características que transformam o "hoje" em algo bem distinto de "antes". Duas me parecem muito fortes e ajudam a explicar muitas situações: 1) O narcisismo individual, e 2) A ideia de igualitarismo e similaridade na relação. O que isto tudo implica? Como podemos resumir o cenário?

"Hoje", homens e, especialmente mulheres, tendo conquistado uma maior liberdade em diversos aspectos, e sendo convidados a participar de uma sociedade cada vez mais competitiva, viram o ressurgimento de um individualismo muito feroz, que trouxe à tona o narcisismo, muitas vezes, em suas piores versões. Trata-se de um narcisismo que praticamente se resume à busca e conservação, a todo custo, do bem-estar pessoal. Um narcisismo tão arraigado que, diante de uma dificuldade maior em realizar um desejo busca-se logo uma alternativa e abandona-se tudo.

Na prática dos relacionamentos isso significa, de imediato, uma "desconfiança" em relação ao outro. O que ele(a) quer mesmo de mim? Vou perder minha liberdade diante dele(a)? Vou ter que dividir algo com ele(a)? Ora, é essa desconfiança que está na base das dificuldades em se construir laços na atualidade. Se antes, então, o laço se formava através de um casamento que era facilmente buscado e desejado, hoje esse laço é visto com desconfiança. Como criar um laço com o(a) outro(a) se o que busco, em primeiro lugar é minha felicidade pessoal? Nada pode abalar minha onipotência narcísica de buscar o que é bom para mim.

Não à toa, diversas formas de laços têm surgido, formas alternativas de amor e de amar, situações diferentes de estar junto, de conviver. Cada um de nós não quer mais ficar "refém" de um destino, ou de um casamento que parecia ser o único resultado a esperar da vida. Nos sentimos no direito de inventar, de transformar, de forjar nosso próprio destino. Não queremos mais dividir papéis de forma tão clara. Não queremos mais transar de forma tão convencional. Sempre desejamos isso? Tudo bem, só que agora estamos fazendo isso, com muito mais liberdade.

Ora, de acordo com esta lógica narcísica, como entender o laço de um casal? É aí que passa a predominar o que Serge Hefez (psicanalista francês) chama de "miragem da similaridade", do igualitarismo, onde tentamos desesperadamente preservar nossa identidade diante da outra pessoa. Talvez por isso mesmo seja fácil "jogar a toalha" diante das primeiras dificuldades. Talvez por isso mesmo, os casais, hoje, visitem os terapeutas cada vez mais jovens e no início do casamento, justamente porque não "sabem" criar um laço. Embora, saibam defender bem, cada um, a sua liberdade, a sua individualidade, o seu desejo, o direito de ser amado. Mas e o laço? Onde fica o laço? Não podemos esquecer que:
Cada um se engaja inteiramente na relação amorosa, colocando em jogo tudo o que o constitui como pessoa: o sentimento dos próprios limites, da posse de si mesmo e de seus desejos, com o risco de uma perda de si ou pelo menos de uma certa imagem de si. Mas a vida amorosa é precisamente o que coloca em causa as fronteiras do eu, entre "eu" e "nós", entre mundo interior e a realidade externa. Ser amado "por completo" faz bem e traz segurança, mas o perigo de aniquilamento ou de fusão nunca estará muito distante"¹
Para finalizar, acho que na ânsia de superarmos os limites desastrosos dos casamentos de "antes" (uniões normatizadas) conquistamos liberdades que despertaram em nós um sentimento narcísico de onipotência que nos faz sentir, permanentemente "melhores" que o outro. Este passa a ser necessário somente para o "meu" prazer. Mas e o laço? O laço amoroso é tecido pelo amor. E o amor exige uma entrega do "eu" para o "nós". Estamos dispostos a correr este risco? Ou vamos nos atolar neste pântano narcísico e individualista onde buscamos nosso prazer a todo custo, mesmo à custa do(a) outro(a)?

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¹ HEFEZ, Serge. Cenas da vida conjugal: como os casais enfrentam a crise do relacionamento. - São Paulo: Saraiva, 2012, "Introdução", pág. 23.