Mostrando postagens com marcador Narcisismo. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Narcisismo. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 20 de maio de 2014

A "obsessão do mega"!

Muito bom este texto da Ruth de Aquino. Segundo ela, cultivamos uma "obsessão do mega”, uma mania de grandeza "cafona e perniciosa", onde tudo precisa ser o "maior do mundo”. É um tema muito corrente por aqui e desde sempre temos essa postura de tentar combinar o "moderno" com o "atraso". 

Na política, cada passo progressista leva consigo o apoio de oligarquias poderosas; Na economia, somos uma "potência mundial" com uma das maiores concentrações de riqueza...estamos sempre em busca daquilo que é o "melhor", o "maior", mas enquanto meros objetos que servem mais para esconder nossa incapacidade de criarmos uma verdadeira nação. 

Há algo de um transtorno narcisista aí, como se estivéssemos sempre correndo atrás daquilo que sabemos que jamais "seremos". Por isso "precisamos" tanto daqueles "símbolos" que nos autorizam a "esquecer" nosso verdadeiro tamanho! E daí se tivermos a "Copa das Copas" como sugeriu a presidente Dilma? O que isso significará de fato, além de nos emprestar, momentaneamente, um pouco de autoestima? Ora, é em outros lugares que devemos buscar alimento para a autoestima!

(José Henrique P. e Silva)

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Não quero ser somente ... "eu"!

As vezes pensamos tanto em buscar a nossa própria felicidade, as vezes nos concentramos tanto em sentir as nossas próprias dores que esquecemos que somos responsáveis por algo além de nós mesmos. Talvez isto não seja egoísmo, mas somente aquele desejo de ser feliz e ter alguma paz, e aí nos colocamos sempre em "primeiro lugar". 

Mas, e aquelas pessoas que dependem de nós? Existem momentos, então, que não podemos nos colocar em "primeiro lugar", afinal, quem sabe para sermos felizes não dependemos mesmo de lutar por fazermos os que estão mesmo do nosso lado felizes e retribuir um pouco do que já foi feito por nós? 

A felicidade e o fim de nossas dores, me parece, nunca é um processo "individual", uma conquista que alcanço "sozinho"! Eu preciso sempre de algo a mais, que seja mais do que simplesmente... "eu"! Não confundir isso com o fato de sermos "responsáveis" pela felicidade dos outros, embora sejamos, em parte, sim! Afinal os outros não são, também, responsáveis, um pouco, pela minha felicidade? Insistimos em ser felizes sozinhos, mas...

Isso parece ir um pouco de encontro aos pensamentos narcísicos, dominantes em nossa época. Mas quem disse que temos sempre que remar a favor da maré? As vezes é preciso coragem pra pensar e agir de forma diferente. 

(José Henrique P. e Silva)

terça-feira, 22 de abril de 2014

Limites e agressão!

O UOL trouxe uma matéria ontem sobre a questão dos "limites" na relação entre as pessoas, com contribuições da Terezinha Baptista, do Sedes Sapientiae. Há sempre méritos em discutir a questão da agressividade como modelo de educação e é desnecessário enfatizar que a agressividade é uma de nossas reações mais primitivas, e que exige alguma "domesticação" na própria infância.


E uma das formas mais utilizadas pela agressividade é a violência psicológica (não física), aquela que envergonha, humilha, diminui, destrói a identidade da pessoa. É claro que a irritabilidade, em situações ocasionais, é algo absolutamente normal e nos protege de internalizar ofensas, mas o problema está quando a irritabilidade e a agressividade se tornam modelo de conduta, tomam conta da personalidade. 

Gritar, berrar, agredir, se impor pela força, só demonstram a fraqueza e a incapacidade psíquica de lidar com o controle, o argumento, a reflexão e o respeito ao outro. Mostram forte egocentrismo, talvez como defesa para uma evidente identidade muito fragilizada e insegura. Sem dúvida, impor limites sem o uso da violência é uma habilidade que pode ser melhorada com o tempo. 

Mas, só treino de habilidades não resolve tudo. Trata-se de um indivíduo que precisa ter seu NARCISISMO observado com mais atenção, pois algo pode ter falhado e ele está tentando se manter forte e agressivo para simplesmente não "desabar".

Quando falei que a agressividade precisa ser "domesticada" é porque fica evidente em nossa evolução emocional, ainda na infância, que se não reconhecermos limites isso irá gerar seríssimos problemas mais tarde. E esses limites vem do modelo dos pais, principalmente. Não há como esperar por escolas ou pela sociedade. Essas estão, cada vez mais, falhando em seus papeis de mostrar limites e, principalmente, mostrar limites a partir da EDUCAÇÃO e não da força física ou psicológica.

(José Henrique P. e Silva)

domingo, 13 de abril de 2014

A Felicidade, entre a descartabilidade e a persistência

Há pouco tempo, em uma dessas sessões nada monótonas na clínica, um adolescente me questiona: Como ser feliz? A pergunta veio direta e objetiva, como é a fala de um adolescente. O que exemplificava seu incômodo era o fato de gostar de música dos anos 70 e seus amigos desaprovarem a ideia. Sentia um mal-estar que o deixava, por vezes, retraído e solitário pois imaginava não ser aceito.


Depois, já em casa, a pergunta teimava em não me sair da cabeça. Ela falava de felicidade, música, moda, consumo, e me levou de imediato a lembrar de alguns trabalhos de G. Lipovetsky, filósofo francês da atualidade. Lembrei dele por sua ousadia em rediscutir alguns temas como o da felicidade e as "frivolidades" do consumo contemporâneo. E sua discussão é bastante contextualizada, ou seja, deixa a filosofia um pouco de lado e discute a felicidade no interior das relações que os indivíduos estabelecem, consigo mesmo e com os outros, e isso tudo no contexto maior do "consumismo". 

O que dizer sobre isso? Hoje, por exemplo, é muito comum que uma pessoa "pressione" outra a consumir algo específico em função da marca, do preço, da beleza ou do status que representará. E, portanto, é muito comum que também critique os que já possuem suas preferências razoavelmente consolidadas, e não tão sujeitas à moda. De outro lado, também é comum "sentir-se" pressionado, afinal, consumir o mesmo que o outro é uma possibilidade de aprovação, pertencimento, aceitação, reconhecimento.

Segundo Lipovetsky a "hipermodernidade" atual ("hiper" porque a ênfase está no "excessivo") está marcada pela tendência em se fazer da "mercadoria" e de seu "consumo" o próprio sinônimo de "felicidade". Nesse contexto, o que escapa de transformar-se em mercadoria? A felicidade também não escapa a isso, afinal não se costuma dizer que se o dinheiro não traz a felicidade ele, pelo menos, a compra? É nesse sentido que a felicidade passou a inserir-se, cada vez mais, em embalagens de produtos sempre novos e, portanto, sempre descartáveis.

O resultado disso já conhecemos bem: um consumo interminável, que não sacia nunca, que não preenche nunca, um excesso que transborda sem tapar nenhum buraco em nós mesmos. Não à toa os maiores rivais dos psicanalistas hoje em dia são as viagens, os salões de beleza, os carros novos, as cirurgias plásticas etc., soluções bem mais rápidas e, melhor, que evitam o penoso trabalho de lidar consigo mesmo.

Mas, o fato é que o aumento do consumo na atualidade não implica em aumento da felicidade, do contrário não viveríamos uma "era de ansiedades", uma época de profunda inquietude e insatisfação. Apenas estamos, freneticamente, comprando momentos de um prazer muito instantâneo, pouco resistente e duradouro. A "novidade" dos produtos e a aceleração da tecnologia respondem a este frenesi, pois o que consumimos agora já não nos serve amanhã. Precisamos de algo "novo" para manter nossa esperança de satisfação. É assim que funciona, em linhas gerais, o "consumismo", seja ele de que ordem for.

Ora, se depositarmos todas as nossas esperanças de felicidade no consumo de mercadorias da moda estamos fadados ao vazio do deserto, a uma inesgotável carência, a uma falta absoluta, de onde só pode resultar o sentimento de queda, de vazio, embora o tênis de primeira linha possa até trazer um alívio imediato para alguns que se esforçam em comprá-lo, ou até roubá-lo. Mas, é só um alívio imediato!

Ora, todos queremos bons produtos. Mas, resumimos nossa existência a isso? A comprar bons produtos e, ao abrir a embalagem, esperar que a felicidade seja desempacotada junto com a mercadoria? Onde está a "vontade de potência" nietzschiana? Onde está aquele desejo de potência que nos impele a ultrapassar, ir sempre mais distante em nossa existência mais ampla? E quando falo "mais ampla" é no sentido de "além do consumo". 

Ora, o consumo só ocupa este espaço absurdo que alcança na atualidade porque em outros campos (educação, profissão, arte, política, etc.) abdicamos de qualquer busca, abdicamos de buscar a felicidade por ali. O resultado é uma vida cada vez mais centrada e direcionada para a "mercadoria". Isso deve ser motivo de orgulho para alguém? Como preencher nossa vida com algo (mercadoria) que, cada vez mais, é descartável? Somente nos tornando, também, descartáveis. Esse será sempre o preço a pagar por uma vida de "excessos".

Como diz Lipovetsky, é preciso "relativizar o consumo", ou seja, fazê-lo perder a importância absoluta que adquiriu. Mas, como? Lutando para não preenchermos nosso vazio simplesmente com a mercadoria; olharmos para outras direções, outros prazeres, outras satisfações, principalmente as mais duradouras, aquelas que possuem uma "história" e que não sejam tão descartáveis.

Afinal, é em torno destes "objetos duradouros" que temos a chance de darmos o contorno para nós mesmos e reforçarmos nossa identidade. Mergulhar neste rio de consumo exacerbado é ficar à deriva. O consumo não pode ser nosso único ideal, onde fica nossa "riqueza" afetiva, intelectual, profissional?

O fato é que, para o adolescente de que falei no início, gostar de um ritmo musical de 40 anos atrás, certamente lhe traz problemas entre seus amigos, mas também lhe garante uma boa possibilidade de contorno psíquico e uma tremenda sensação de prazer e orgulho, sentindo-se, porque não, especial, diferente, marcado por sua individualidade... algo tão raro na atualidade descartável.

Pois é, essa descartabilidade não é fácil, nem para quem opta por ela, nem para quem resiste a ela, pois a pressão ocorre por todos os lados. Há alguém nos mostrando algo novo, alguém nos facilitando a compra, alguém nos dizendo que temos que ser felizes a todo custo. Cada vez mais sou levado a pensar, por tudo o que presencio, que a "felicidade que se compra" é a felicidade dos solitários e narcisistas. É preciso ir mais além, isto é muito pobre, psiquicamente falando.

(José Henrique P. e Silva)

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Neutralidade na profissão de analista?

Um dos mecanismos psíquicos que colocamos em prática quando adquirimos algum conhecimento (diploma, curso, formação, profissão, experiência etc.) é o de nos colocarmos, teimosamente, e de modo bastante infantil, numa posição de "suposto saber" e, pior quando a ele logo colamos algo de "poder". Isso fascina a qualquer um, e muitas vezes é disfarçado através do "orgulho" e da "vaidade". 

É evidente que na atuação do psicanalista isso também ocorre (tanto por parte dele que se coloca com este saber-poder, quanto por parte do paciente que delega ao analista essa posição). No meio disso sobra a crença de uma suposta "neutralidade", como se ali, no consultório, existisse um "sujeito" (analista) e um "objeto" (paciente). Ora, isso não é tão simples assim, o que existe é um "par", um "vínculo", uma "relação" que é a principal responsável por todo o tratamento. Talvez este seja um dos grandes trunfos da ética psicanalítica (o que não significa que todos os profissionais a sigam).

Escrevi isso motivado por uma frase que ouvi ontem, mas que se repete sempre: "você não vai ficar lá só me ouvindo, fazendo hum rum e com um bloquinho nas mãos né?". Ora, isso nos fala de um estereótipo criado em torna da atuação do analista, mas que foi e é reforçado por muitos profissionais. E, por outro lado, fala de um forte pedido de "ajuda" por parte do paciente que quer e espera por intervenções de seu analista em prol de sua saúde. 

O fato é que, fazer análise, não é receber "conselhos" de alguém mais experiente ou que conhece mais, mas implicar-se com muita responsabilidade em um processo de transformação pessoal que se dá "na" e a partir "da" relação com o analista. E, nesse processo, é claro que o analista torce, e muito, pelo sucesso do paciente. Este é um vínculo afetivo que nenhuma suposta "neutralidade" terá capacidade de quebrar, sob o risco de perdermos boa parte de nossa capacidade de acolhimento e empatia.

Enquanto profissionais não podemos olhar no espelho e vermos algo diferente do que somos. Aliás, alguém deveria fazer isso? Talvez não... sob o risco de perder-se nas armadilhas do narcisismo!

(José Henrique P. e Silva)

A fantasia na relação com o Outro


Em um época onde o individualismo é tão enaltecido e muitos apostam que podemos ser "inteiros" e "únicos" é bom recordar a frase de John Donne. Acredito muito nisso, pois não me vejo como "um", ou muito menos "inteiro". 

Por mais que esteja me sentindo sozinho, isolado, afastado de todos e do mundo, ou mesmo, por mais que esteja me sentindo forte e autossuficiente, na pior das hipóteses, estou sempre repleto de FANTASIAS em relação ao "mundo" e aos "outros". Mesmo trancafiado em minha vida sempre trago o mundo e os outros para perto de mim mesmo em minhas fantasias. Jamais estamos sozinhos! 

De alguma forma, ainda que em nossas fantasias, estamos ligados ao mundo. Mesmo o psicótico, em seus delírios mais fortes e complexos, mantém suas fantasias a respeito dos outros e do mundo. O que isso significa? Que somos parte de algo maior, que a humanidade nos diz respeito, que o que acontece ao nosso redor nos atinge!

(José Henrique P. e Silva)

quarta-feira, 5 de março de 2014

Liderança "tarja preta": fenômeno antigo!

Em sua edição 174, a Revista Você S/A trouxe matéria com o título "Desempenho tarja preta", de onde busquei "inspiração" para o título deste post. O objetivo era mostrar o drama diário que muitos executivos enfrentam no ambiente de trabalho, tendo em vista melhor desempenho. A questão do (ab)uso de remédios calmantes e/ou estimulantes não é tão atual. Tem uma longa história, mas concordo que tem se tornado bem mais comum, não só pelo ritmo frenético da competitividade nas organizações, mas pela medicalização excessiva de qualquer dificuldade de lidar as questões psíquicas.

O que há por trás disso? cobranças, medos, obsessões pelo sucesso, impossibilidade de lidar com o "fracasso", ou o simples, cumprimento de metas. A muito já se fala do consumo excessivo de remédios antidepressivos e ansiolíticos, e no mundo corporativo não é diferente. Talvez até seja um pouco pior, dadas as exigências da competitividade. Por isso, concordo com a posição do psicanalista e colega Olivan Liger, citado na matéria da Você S/A. Segundo ele, o uso destas medicações no ambiente corporativo é simplesmente para tratar a competitividade.

Não se trata de combater o cansaço, o desânimo, a depressão etc., se trata de encontrar meios para superar obstáculos e se manter um sobrevivente no mundo corporativo. Quem não lembra dos filmes clássicos mostrando executivos terminando o dia com a cara enfiada em um copo de Whisky, tudo com muito glamour, é claro. Pois é, a coisa piorou um pouco mais.

O mundo, no dia a dia, por si só já se encarrega de nos apresentar diversas situações depressivas e que causam ansiedade. Mas, no mundo corporativo a situação se acelera um pouco mais. É isto que precisa ser observado pois não se trata apenas de um executivo que, por ventura diante de uma crise, tem que ser afastado, é um indivíduo que está prestes a perder sua saúde mental, sem falar no impacto que isso causa no meio e nas pessoas que o cercam.

Por isso, é bom sempre pensar. Por que estou tomando este remédio? Se for para um dia alcançar o "sucesso" no mundo dos negócios, esqueça! Não vai dar certo. E, se por acaso você chegar próximo disso, tenha certeza que o custo vai ser muito alto. Não existe mágica. Não dá pra se ter tudo. temos que fazer certas escolhas.

É claro que é mais fácil e simples imaginar-se que isso é um problema exclusivamente do indivíduo. Não é! Existe algo na cultura das organizações que acaba por potencializar essas situações. Sei que este apelo praticamente não encontra eco, mas não custa pensar sobre isso.

Também não adianta dizer que o sucesso é somente para os fortes ou mais preparados. Se assim for sou obrigado a perguntar: a felicidade é para quem mesmo?

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Quero meu Rosebud! (texto 3 - Consumo e coisificação)

Talvez estejamos vivendo uma época em que o consumo atingiu um fim em si mesmo. Muda-se, troca-se, compra-se qualquer coisa sem nem mesmo saber ao certo sua verdadeira utilidade. Mas, alguém nos diz que este é o procedimento padrão e passamos a consumir de uma forma que beira a irresponsabilidade. O bom senso  foi embora há muito tempo.
 
Tudo bem, vivemos numa sociedade onde o consumo é mesmo seu ponto central. Mas chegamos a absurdos, e como pensar sobre isto? Quem somos, na verdade, quando consumimos desenfreadamente? Não quero falar de evolução tecnológica, muito menos da severa competitividade entre as empresas que leva a uma disputa acirrada por mercados e pelo desejo do próprio consumidor. Quero pensar um pouco sobre que tipo de homens e mulheres estamos falando e estamos nos tornando?
Qualquer coisa que seja duradoura está sofrendo um enfraquecimento hoje em dia. Alguns definem a época atual como “flexível”, outros como “líquida”. O fato é que a perenidade e a durabilidade das coisas sofre ataques diariamente, e nos impele a buscar o “novo”, a “novidade”, a qualquer custo. Permanecer com algo por um tempo a mais é incorrer em "erro", é ficar para "trás", é ser ultrapassado, é não ser “moderno”, é não estar “antenado”.
Bem, isso já dá muito pano para manga. O fato é que em uma sociedade marcada pelo individualismo egocêntrico, pelo narcisismo, difícil falar-se em comportamento solidário, em valorização do outro. Não à toa, boa parte das doenças psíquicas atuais enveredam pelo campo das psicoses, das psicopatias mais graves, das perversões, das fixações naquele estágio da vida onde o reconhecimento da lei se torna uma impossibilidade.
Estamos sendo chamados a ser fortes e insuperáveis. “Podemos tudo o que queremos”! O narcisismo está à solta, e com vigor. Não à toa, também, os comportamentos violentos e criminosos aumentam assustadoramente. E não só os crimes da rua, mas aqueles que violam regras básicas, valores básicos. Não queremos perder em nenhum momento. Não admitimos a derrota. Tiramos a bola de campo e a levamos para casa, mas não aceitamos outra regra que não seja a nossa.
Este parece ser um possível retrato desse sujeito contemporâneo, que não submete sua vontade à nada, que desvaloriza o outro, que quer ganhar a todo custo, e com o mínimo de esforço possível. Os “meios” perderam qualquer importância diante dos “fins”. Maquiavel venceu! Teria tido um bom campo de estudo se vivesse nos dias atuais.
Este é o ser humano “total”, completamente cheio. Parece não conhecer o vazio, nenhum buraco sequer. Nada por onde escapar suas fraquezas, suas dúvidas, seus instantes de dor e sofrimento. Ele parece vestir-se como um super-homem, adquire um ar de indestrutibilidade. Sente-se poderoso e só enxerga vilões à sua frente. Vilões a quem tem que enfrentar e destruir, tirando-os do seu caminho.
Mas, ele está “cheio” mesmo”? Está completo? Não precisa de mais nada? Inevitável aqui lembrar da interpretação de Orson Welles em Cidadão Kane (1941). Dizer que o filme é maravilhoso é chover no molhado, pois está sempre nas listas de "melhores filmes" já produzidos. Mas, porque eu o acho fantástico? Todos devem ter o seu motivo e eu também tenho o meu. Para me explicar melhor vou reproduzir um rápido diálogo de nosso personagem principal, Charles F. Kane e o seu "guardião" financeiro, o Sr. Bernstein.
 
… Sabe Sr. Bernstein, se eu não tivesse sido um homem tão rico eu poderia ter sido um grande homem…
O que teria gostado de ser?
Tudo o que você odeia!
Kane veio de uma infância pobre, com pais endividados, e construiu um império, acumulou riquezas e prazeres que nenhum mortal poderia sonhar. Mas, e aí? Ele passou a vida conquistando… e perdendo tudo, como em uma montanha russa. Sua insaciável busca, entretanto, não era pelo dinheiro. Não à toa, diz ao Sr. Bernstein: Não é difícil ganhar muito dinheiro… quando a única coisa que se quer é ganhar muito dinheiro.
Ao morrer, e pronunciar a palavra “Rosebud”, nosso personagem simplesmente mostrou que existem coisas de que precisamos e que não podemos simplesmente descartar nessa busca ensandecida por dinheiro e poder. Pior, essas coisas não podem ser "compradas", como querem acreditar aqueles que se entregam facilmente à crença de que "o dinheiro pode tudo". Foster Kane tentou comprar a tudo, mas o preço que pagava era sempre muito alto: sua infelicidade, sua ruína pessoal.
A incessante busca, mostrada pelo filme, para se desvendar o mistério do significado da palavra "Rosebud", dita por Kane quando de sua morte, revela a própria incapacidade da sociedade em perceber o beco sem saída em que cada vez mais estamos entrando: o da supervalorização da imagem e do sucesso, e o esquecimento de nós mesmos. Quanta infelicidade isso está gerando. A busca incessante pelo significado da palavra “Rosebud”, então, é a busca que fazemos todos os dias por reencontrar algo que "perdemos" ou "deixamos de lado" em troca de alguma coisa que consideramos ou que nos dizem ser importante.
Nesse sentido, a palavra “Rosebud” definia sim nosso personagem: Kane era um homem que tinha saudades de uma época em que fora feliz, quando criança, em sua família. Isso o atormentava, fazia de sua vida uma aparente felicidade, corroída por uma destrutividade interna silenciosa, mortífera. Mas, no momento de sua morte, ele foi sincero consigo mesmo e "agarrou-se" à sua melhor lembrança, o seu "Rosebud".

Todos temos o nosso pequeno trenó, ou nosso brinquedo, aquilo que nos lembra de uma felicidade absolutamente honesta… ou não? Só precisamos saber o que fazer com isso. Vamos descartá-lo? Ou vamos lutar para mantê-lo por perto, como uma lembrança e uma certeza de que a felicidade é possível, e está sempre nas coisas mais simples ao nosso redor?
(José Henrique P. e Silva - out / 2013)

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

O Mito de Narciso

Um mito é sempre um relato polimorfo, ou seja, está sujeito a mudar de forma. Ele rompe com a linearidade tão típica do pensamento racional e lógico, pois sua estrutura, além de complexa, envolve o imaginário. Um mito também remete ao "excesso", à "desmedida", algo que, na psicanálise, está muito próximo da "loucura". Talvez, justamente por isso, a loucura só exija mesmo de nós uma "outra" leitura possível de um indivíduo que "extrapolou" a realidade. Nesse sentido, o mito te uma voz polifônica que rejeita qualquer possibilidade de uma única interpretação. Não à toa, cada época parece construir sua própria versão de um mito, sem preocupar-se tanto com sua coerência interna, supostamente fixa. É preciso lembrar que uma das funções do mito é a sustentação de uma estrutura social, e es nunca é rígida ou estática. A leitura variável do mito também corresponde às mudanças que essa estrutura social sofre ao longo dos tempos.
 
Em sua versão mais tradicional, Narciso nasce de Cefiso (Rio) e Liríope (Ninfa), e foi fruto de uma indesejada gravidez e de um parte apreensivo. E, no dia de seu nascimento, o adivinho Tirésias previu que ele teria vida longa desde que jamais contemplasse a si mesmo. Possuidor de uma beleza incomparável não cedia aos apelos e amores das mulheres. Eco, foi uma bela ninfa que não conformou-se com a rejeição, vagou e o desejou amargurada até a morte, deixando apenas um sussurro melancólico, um gemido. Nêmesis, para lhe impor um castigo o fez partir para a caça e, estando muito cansado deitou-se à margem do rio para beber água. Foi quando viu seu reflexo, e ali também definhou até sua morte, encantado por sua própria beleza. Não encontraram seu corpo, somente uma flor em seu lugar havia nascido. Entre Eco (que viveu em função de Narciso, sem ter um "si mesmo") e Narciso (fechado em "si mesmo") o encontro seria impossível.
 
Interessante lembrar que o termo "narcisismo", ou mesmo "Narciso", deriva da palavra grega narke ("entorpecido"), que simbolizava a vaidade e a insensibilidade, pois estamos falando de um "entorpecimento emocional", de uma não ligação com os outros. Há uma negatividade aí, um drama de nossa individualidade, no limite, um olhar em profundidade sobre si mesmo. Para algumas interpretações, ao voltar-se para si mesmo Narciso enxergou-se como mais que um simples mortal, e por isso apaixonou-se. O que parecia enxergar, então, era a "criação". De alguma forma, entretanto, as duas versões se aproximam em muito. Afinal, olhar para si e enxergar a "criação" é, de alguma forma, impossibilitar-se de relacionamento com os outros mortais.
 
Mas, o que é o narcisismo? Pode-se dizer que, segundo a psicanálise, é uma patologia auto-referencial. Está marcado pelo Solipsismo (do latim "solu, «só» + ipse, «mesmo» + ismo"), uma concepção filosófica segundo a qual, além de nós mesmos, só existem as nossas próprias experiências, de tal modo que tudo o que resta é o eu no seu estado presente. Fora do "eu" tudo o mais pode ser posto em dúvida. O "eu" é a única realidade. Ora, em si, o narcisismo não é um problema, mas se torna patológico quando impede o avanço em direção ao outro, ao objeto, e permanece em si mesmo. Nesse caso, a libido fico endo-psíquica. O narcisismo é o primeiro caminho em direção ao outro, à alteridade. Trata-se de um processo que, se interrompido, transformasse em patologia.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

A "interação" (e a responsabilização) na base do conceito de Política

Conceituar "política", como nos diz Iain Mackenzie¹, já é assumir uma determinada posição política. Apesar das dificuldades, entretanto, ele nos oferece um bom caminho para se pensar um conceito de política, claro que sem qualquer pretensão de esgotar o assunto. 

A política seria uma "atividade", realizada em "conjunto", em "interação", visando a "solução" de "problemas" (divergências, conflitos, bem comum), através de "consensos" e maiorias (o que implica cooperação) que resultem em "normas" e padrões comuns a todos. Em síntese,
Política tem a ver não só com discordâncias sobre se a política trata da resolução de conflitos ou da cooperação em prol de valores comuns, mas tem a ver com o que somos: será que "nós" somos agentes individuais em controle dos próprios interesses, desejos, valores, costumes, e assim por diante, ou será que "nós" somos indivíduos profundamente moldados pela maneira como essas coisas são transmitidas em termos de prática e estrutura social (p. 16).²
Me parece que existe aí uma questão acerca de nossa "RESPONSABILIDADE" sobre a política e seus resultados. De qualquer forma, em uma definição deste tipo a "política" escapa ao campo meramente institucional e ganha uma dimensão de "interação" e "cooperação". Isso faz com que tenhamos a oportunidade de pensar a ação política como resultado não somente da ação de atores institucionais (parlamentos, políticos, partidos, lideranças etc.) mas, fundamentalmente, a partir das mais simples interações no cotidiano.
O que fica de lição? Que não se pode ficar esperando que a solução de problemas ou a adoção de medidas que favoreçam o bem comum venham somente das instituições e governos. Essas agem, em grande parte, sob a pressão, que nelas se reflete, oriunda de outros atores da opinião pública (imprensa, grupos organizados e a própria opinião pública). Abdicar a esta concepção de política significa ficar refém de concepções que negam ao indivíduo sua responsabilidade sobre seu destino. Exemplos? Populismos demagógicos e autoritarismos de toda espécie, seja de "esquerda" ou de "direita" (confesso que não coloco uma unha no fogo por estes conceitos).
A política, então, só se torna "perversa" quando é abandonada pelos cidadãos e deixada aos "especialistas" e "técnicos". Não à toa, hoje em dia, quando cidadania e emancipação são, em grande parte, entendidas como "bem-estar material" (consumismo) vivemos um momento de "refluxo" do interesse pela política e, em consequência, maior possibilidade de "aventuras populistas" dentro da "democracia". Se não nos mantivermos, portanto, em permanente contato, em interação sobre os rumos de nossa política, como poderemos nos queixar quando intervierem negativamente em nossos destinos?

Se na psicanálise clínica nos utilizamos do conceito de "responsabilização" para enfatizar que somos, nós mesmos, os principais responsáveis por nossas atitudes e por nossos dramas, porque não extrapolar esse conceito para o campo da política, através da "interação social". É nesse espaço de interação que se constrói e se mantém, portanto, uma mútua responsabilidade sobre nosso destino, tanto individual, quanto coletivo, se é que é possível pensar nesta divisão.

Assim, tanto no campo de nossas ações individuais, quanto no campo das interações para a ação política, não conquistamos nossa liberdade sem o preço da responsabilidade. Desfrutar de uma liberdade sem responsabilidade seria, simplesmente, ceder a um espaço inconsciente de gozo absoluto, destrutivo, absolutamente narcísico, e incapaz de gerar laço social.

Não precisamos negar a política, mas podemos negar as formas como ela vem sendo praticada e entregue nas mãos de supostos "especialistas" e "técnicos" que, encastelados em suas "instituições" se colocam como benfeitores e "protetores" do povo. É preciso ter cuidado com isso, pois cada vez que acreditamos em um "herói" abdicamos um pouco mais de nossa própria força.

___________
¹ MACKENZIE, Iain. Política: conceitos-chave em filosofia; tradução: Nestor Luiz João Beck. - Porto Alegre: Artmed, 2001, p. 9-17.
² Neste ponto, o autor nos parece falar de uma dicotomia entre um sujeito "individual e racional" versus um sujeito que "resulta do social". É um momento muito interessante pois talvez aqui precisemos recorrer à Psicologia Social para nos apegarmos a uma concepção de sujeito que, ao mesmo tempo que possui sua singularidade individual, vai formando-se e ganhando especificidade justamente na interação social. A dicotomia, portanto, pode revelar-se falsa.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

O gerenciamento do narcisismo tem altos custos

Se tem algo que está se tornando razoavelmente insuportável para os relacionamentos sociais é o crescimento exacerbado de pessoas que ostentam uma forte autopromoção. Não se trata de uma simples questão de mostrar ao mundo sua autoestima. Se fosse isso vá lá, tudo bem. Seria só motivo de parabenizar a pessoa e ficar feliz por ela. Mas, o problema é que essa ostentação quase sempre vem acompanhada de pouco ou nenhum reconhecimento do outro e, por vezes, de comportamentos violentos.
 
Estou falando, então, de indivíduos que se colocam em ambientes sociais e situações de alta competitividade, seja no trabalho, seja na família, seja com amigos, e cuja atenção está sempre voltada para esta anormal promoção de si mesmo, onde tudo deve girar em torno dele mesmo. Para isso, ele manipula e explora as pessoas, vistas quase sempre como "objetos". Para ele, a "imagem" é tudo, pouco existe para "sentir" e quase tudo é para se "ver".
 
Em sua manipulação, ele pode se utilizar de mecanismos como o charme, a beleza, a sedução, a benevolência, a filantropia, o dom da palavra, a crença em possuir uma família perfeita, o fato de possuir todos os "sonhos de consumo" que os demais mortais desejam para si etc. São todos artifícios para suas conquista da atenção e do olhar do outro.
 
É comum que queira cercar-se de "insígnias" que os diferencie de outras pessoas, dando a ele um caráter de "pessoa melhor". Assim, geralmente procura fazer coisas diferentes que acredita que fornecerão estas "insígnias". Então, de repente, ele pode se tornar o "melhor nisso" ou o "melhor naquilo", sempre enfatizando suas próprias qualidades, numa promoção de si mesmo sem controle. É um "vencedor", um "poderoso", nem parece "humano" de tão "perfeito" que se mostra.
 
Como disse, pode se "utilizar" da família como um elemento a mais para sua promoção de si mesmo, ou do seu trabalho, ou do que possui. Mas, sempre como uma espécie de "extensão", uma "prótese" de seu enorme ego narcisista. O que ele tem é, portanto, sempre "o melhor" e, perder isso seria colocar em risco o seu projeto de sempre vangloriar a si mesmo. O que possui, então, ajuda a sustentar seu delírio. É assim que todos e tudo existe e funciona, para sua própria promoção descontrolada.
 
Não é anormal, portanto, que, com esta ânsia de sucesso, crie várias identidades para si. Literalmente, para aqueles que partem para a vida criminosa e, metaforicamente, no seu dia a dia. São novos papéis que assume e troca constantemente como se nenhum lhe coubesse muito bem. Por isso a busca permanente por novas insígnias que lhe forneçam uma distinção em relação aos demais. Um dia ele pode mostrar que sabe "isso", outro dia pode mostrar que sabe "aquilo".
 
O problema é que "gerenciar" estas identidades e papéis, que assume e descarta constantemente, é um alto fator de stress, podendo levar a atitudes percebidas pelos demais como "estranhas", como que mudando muito rapidamente de humor, por exemplo. Quando se vê questionado em um de seus papéis, ou identidades, quando tem a sua certeza abalada, ou quando sua "farsa" ameaça ser revelada, ele parece "desabar", sua expressão muda muito rapidamente e pode se tornar agressivo sem maiores razões. A "farsa" funciona como algo que "tapa" boa parte do "buraco" que está presente em sua existência. Se ela, a farsa, deixa de funcionar, o buraco surge à sua frente, ameaçador, insuportável.
 
Nesses momentos, algo em que está se sustentando parece estar ruindo e ele se sente ameaçado em sua construção delirante de ser alguém "melhor que os demais". Esse é um momento muito perigoso, justamente quando ele começa a se ver diante do horror que pode ser a sua verdade. A metáfora que gosto de utilizar para entender bem este momento é a da "desfragmentação", ou "desintegração", ou seja, enquanto seu delírio estiver funcionando ele parece não ter limites, mais parece um muro bem sólido, mas quando há algum contato com a realidade que ameace a constituição desse delírio, esse muro começa a se desfragmentar, desfazendo-se, em pedaços. É neste momento que ele pode se tornar especialmente doente e, perigoso para quem está ao seu redor.
 
Então, sustentar tantas mentiras cansa, e muito. É um forte fator de stress emocional e pode liberar raiva e violência, pois se houver uma falha nesse "gerenciamento" é a própria estrutura do delírio que se vê ameaçada, podendo ruir. Ou seja, o indivíduo ludibria, mente, manipula, mas tudo isso exige a construção de uma trama muito complexa de farsas. Até quando se consegue sustentar isso? Infelizmente esta patologia está se multiplicando, estimulada por ambientes fortemente competitivos por aí afora. Basta olhar, com atenção, para alguns dos "casos de sucesso" que estão ao nosso redor, ou melhor, "acima" de nós.
 
Pelo seu profundo vazio existencial esse indivíduo se torna presa muito fácil de qualquer ideologia competitiva. Ele vai ser o primeiro a topar uma competição, pois o ambiente de disputa lhe permite sempre uma possibilidade de "vencer", sentir-se "maior" e, consequentemente, sair deste "vazio", ainda que seja através da "farsa". A questão é saber quantas mentiras ele vai construir e o quão forte será seu delírio para sustentar-se. No meio de tudo isto, a delicada questão de ter que gerenciar esta trama repleta de farsas.
 
Quando olho para o futuro fico imaginando que tipo de sociedade teremos com tantos pais, hoje em dia, estimulando, desenfreadamente, a competição em seus filhos, ensinando-os a vencer a qualquer custo e cobrando deles somente... o sucesso! O que significa mesmo o "sucesso"? Qual mesmo a sua relação com a felicidade? É bom estarmos sempre pensando nisso! A competição e o sucesso, em si, não são o maior problema, mas que uso queremos fazer deles? Melhor não busca-los para simplesmente tapar algo com o que imaginamos não poder lidar.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Vergonha, Depressão e Narcisismo: O conflito que vive o "envergonhado"

Hoje se dá uma maior atenção à "vergonha" como objeto de estudo. E isto se deve ao fato de que a disseminação de novas configurações neuróticas após Freud não cessa, sempre mostrando facetas até então ocultas ao olhar da metapsicologia. Assim, o caso das fobias sociais é um exemplo, pois, tradicionalmente vistas sob o ângulo do "medo", hoje pode-se colocar em relevo a "vergonha".
 
Na edição de out/2013 da Revista Mente&Cérebro o psicanalista Jurandir Freire Costa nos oferece um artigo justamente sobre a "vergonha" (Os sobrenomes da vergonha: melancolia e narcisismo), aquele sentimento que reflete bem o paradoxo de querer ser visto e reconhecido pelo outro, ao mesmo tempo que recusa ser visto por acreditar não possuir o que o outro deseja. É este paradoxo que é o cerne do conflito envergonhado. 

Neste conflito, depressão e narcisismo estão presentes. Segundo Jurandir, a DEPRESSÃO se faz notar através da "ausência de culpa", ou seja, o envergonhado não sente culpa por um dano real ou imaginário causado a outro, mas pelo "sentimento de insuficiência diante do desejo do outro". A marca principal da culpa é o "traço vergonhoso" que chega como uma sombra que recai sobre o sujeito. Mas, não confundir com a melancolia, pois esta é uma desorganização mental grave que pode levar à morte ou paralisia da atividade psíquica. Na vergonha o que há é uma desproporção entre a natureza dos mecanismos de defesa (semelhantes à melancolia) e os efeitos sintomáticos (próximos da neurose fóbica e das depressões por culpa) e o alvo do ódio é o próprio sujeito e não o objeto incorporado. É neste contexto que "a imagem corporal é submetido à mais cruel inspeção persecutória, racionalizada como prova de 'inferioridade real...", com consequências desastrosas. É a partir daí que o indivíduo lança mão, como defesa, da "recusa da intenção" (conceito de Marie-Claude Lambotte), que abandonando a intencionalidade (ação) tenta calar o psiquismo. É assim que o sujeito acabar por encenar para si e os outros a pantomima (abuso dos gestos para se comunicar e chamar a atenção).

É na tentativa de explicar melhor esta dinâmica melancólica que se recorre ao NARCISISMO. O que se percebe na vergonha é uma "precariedade narcísica" marcada por um olhar materno sem a intenção e amor, como uma moldura vazia do desejo do outro. A criança é despida de qualidades, seu imaginário se cristaliza no vácuo de ideais de eu maternos. Daí a inconsistência da formação egóica (baixa autoestima) e a dificuldade em sentir-se como suporte de narrativas positivas. Predomina uma história marcada por subtrações: eu não sou, eu não posso, eu não sei, eu não quero, eu não penso etc.

Como, então, analisar este indivíduo que não tem o ímpeto necessário para preencher sua moldura vazia com histórias e conteúdos suficientemente bons? Parece que o conceito de "perdão" terá uma importância decisiva. Mas, o que é o perdão? De original conotação religiosa passou a ter um sentido leigo como algo indispensável à manutenção da imprevisibilidade das ações humanas, pois sem o perdão não nos arriscaríamos a agir, já que não conseguimos prever ou controlar os efeitos de nossas ações. O perdão seria como um passaporte para a entrada no universo simbólico da relação com o outro, que precisa de nossa confiança em sua suposta benevolência. Na psicanálise, o "perdoar a si" é fundamental para este processo com o outro, já que seria reconhecer em nós mesmos a existência do gozo e do real, ou seja, daquilo que é "abjeto" (desprezível). É este reconhecimento que implica em nos tornarmos agentes de nossa história, que deixa de ser contada somente como se tudo fosse resultado da intenção do outro.

Daí é um passo para se concluir que a própria "moldura vazia" é uma fantasia defensiva, uma cena congelada pelo ego em favor de sua própria homeostase. Como nos diz Jurandir:

No começo, o vazio da moldura se impõe como o espelho da impotência da mãe-ambiente para criar uma imagem narcísica suficientemente boa do próprio sujeito. Depois esse vazio é progressivamente engessado numa outra fantasia, desta feita de autoria egóica: a do sujeito como replicante do não-desejo do outro (p. 73).

Ou seja, a vergonha não é só efeito da incapacidade do outro em projetar conteúdos bons e positivos, mas também uma resistência do ego em aceitar um sujeito que resiste à "intrusão" do outro.

A vergonha, a vitimização do ego pelo ego, faz da "moldura vazia" uma fachada que esconde a existência de um sujeito coautor de seu destino psíquico. Ao apegar-se à posição de traído pelo desejo do outro, o ego, inconscientemente, buscar furtar-se ao trabalho de desejar segundo a castração (p. 73).

Desse modo, "perdoar a si mesmo é tornar-se responsável inclusive pelo que o outro fez de 'irresponsável'...".