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sábado, 12 de abril de 2014

O encontro entre o meu olhar e o do abismo!

Esta frase de Nietzsche está em "Genealogia da Moral" (1887), que considero o mais instigante texto de Nietzsche. 

A frase é poderosa e nos lembra que que há um reconhecimento do "mal" em nós mesmos, afinal há um encontro de olhares entre o meu olhar e o do abismo, sempre permeado pela sedução e tentação, um encontro de olhares que fala de uma "atração irresistível" e que nos exige estar em "prontidão" sempre. 

Um bom filme que retrata bem o potencial desta frase é "Justiça a Qualquer Preço" (The Flock, 2007), onde um monitor de criminosos sexuais se vê confrontado com seus próprios limites a todo instante. O filme é interessante inclusive para se trabalhar de forma didática (em curso, seminário etc.) a "perversão".

(José Henrique P. e Silva)

segunda-feira, 17 de março de 2014

"Instinto": O papel da ilusão na ideia de "controle" e de "liberdade"

"Instinto" (1998) trata da história de um antropólogo (A. Hopkins) que, após ser dado como desaparecido, foi encontrado vivendo junto a gorilas e que, por matar e agredir guardas florestais, foi preso e colocado sob tratamento psiquiátrico. A avaliação inicial de sua agressividade é a de que sua convivência com animais o teria tornado um deles. O desafio, então, para levá-lo a julgamento, será obter uma avaliação mais completa de seu estado já que se recusa a falar com qualquer um.
 
Na instituição psiquiátrica (para pacientes psicóticos) em que se encontra preso é forte a sua identificação com os mais "fracos" e, apesar de estar fortemente medicado com Haldol (neuroléptico) seus médicos insistem que "ele não fala mesmo", reafirmando a visão dominante de que ele é um "selvagem" e seu silêncio é só uma demonstração dessa "violência contida". Mas, que silêncio é esse? Será que não quer dizer algo que acredita que não entenderão? O que gostaria de dizer? Mais tarde, uma das exigências para a continuidade de sua avaliação é a de que a medicação seja reduzida (decisão vital para o trabalho do terapeuta).
 
É somente ele (e não os médicos) que vai dizer que o momento de falar chegou, e para isso precisa sentir-se em algum "vínculo" (fundamental para o trabalho junto a psicóticos). As vezes um simples olhar já pode significar um forte "contato" e sua resposta, como o gesto de pegar algo ou dar atenção a algo que reconhece, já é uma demonstração de "contato". Assim, mostrar-lhe objetos, fotos etc, sempre com o intuito de estabelecer algum contato entre ele sua realidade passada, e entender que tipo de relação tinha com essa realidade, é sempre uma boa tática. Um dos fascínios que vai estar por trás dessa motivação do terapeuta é justamente a de poder estar muito próximo da condição mais "primitiva" (animalesca) de um homem e sua estratégia será a de "trazê-lo" de volta para o contato com a nossa "realidade". 
 
"...Descreva o que vê!" Pede o terapeuta diante de uma foto mostrada ao paciente. É uma boa forma de começar a entrar no delírio de um psicótico. O cuidado, entretanto, será sempre o de não permitir ser conduzido por ele nessa jornada. Nesse diálogo, então, deve-se ficar muito atento aos gestos do paciente pois é como se ele estivesse hipnotizado, vivendo outra situação que não expressará somente por palavras. Então, se ele para o olhar talvez seja porque esteja "vendo" algo de seu interesse ou realidade. Tudo bem que, apesar de ser tratado no filme como um psicótico, o que ocorre muito mais é um "mutismo voluntário" que surgiu em função de uma mudança de perspectiva vivida pelo sujeito que experimentou um afastamento muito intenso de nossa realidade. Mudança essa que significou uma recusa de determinados valores em troca de outros.
"fiquei feliz com minha lenta jornada ao encontro deles. Senti-me privilegiado. Senti-me como se estivesse voltando para algo que eu perdera há muito tempo e que só agora me lembrara. De repente aconteceu. Eu não estava mais fora do grupo. Pela primeira vez eu estava entre eles..." (A. Hopkins, descrevendo sua aproximação e aceitação na "família" dos macacos).
Com essa aceitação, ele passaria a experimentar uma afinidade, paz, segurança, que jamais conheceria em uma cidade, cercado por pessoas e violências. Trata-se da experimentação de uma verdadeira recusa do nosso "mal-estar", onde a loucura e a violência não encontram paralelo, e são assustadoras. Mas, o que estaria, de fato, por trás do "mutismo" do personagem?
"...Só temos que desistir de uma coisa. Nosso domínio. Não somos donos do mundo. Aqui não há reis nem deuses. Podemos desistir disso? Esse controle é tão precioso? Ser Deus é tanta tentação? ..." (A. Hopkins).
Então, segundo nosso personagem do que mais temos medo em perder? Nosso "controle"? Não! Nossa "liberdade"? Não! Nossas ILUSÕES! Afinal, o "controle" é somente uma ilusão, pois o que realmente controlamos? Da mesma forma, a "liberdade" é somente uma ilusão, pois somos mesmo livres? Nosso maior medo é mesmo o de perder nossas ilusões. Nesse sentido, a grande questão que intriga os avaliadores (é dos gorilas que vem a violência desse homem?) é uma falsa pergunta. Querem entender porque ele se tornou um assassino sem questionar as etapas desse processo de mudança e que o levou ao assassinato.
 
Um aspecto interessante no filme é que  descoberta de "verdades" dá ao nosso personagem certa arrogância para considerar qualquer um como um "idiota" da civilização. Onde estaria o problema? Na falta de confiança em relação a todos? Na sua ilusão de possuir a "verdade"? Ou na ilusão de acreditar em uma "verdade"? É assim que, nossa ilusão em sermos "superiores" nos impede de entender que fazemos parte, compartilhamos esse mundo. Essa "superioridade" (ilusão) nos impele ao "controle" (ilusão) e, para garantir a "liberdade" (ilusão), nos usamos da "violência" (real) como recurso necessário, justamente para manter as ilusões.
 
Onde entra, então, nosso tão forte desejo de "felicidade"? Para que ele surge? Porque dele temos necessidade? Ele vem para aplacar nossa angústia, sempre revelada quando diante da perda de nossas ilusões? Talvez só tenhamos que aprender a sentir e a viver, já que parece tão difícil escapar do jogo das ilusões. Talvez a felicidade seja vista como algo tão difícil porque sempre a colocamos do lado de fora das grades que nós mesmos construímos para uma suposta "proteção".

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Precisamos de respostas! (a angústia do desconhecido - texto 6)

Gosto de filmes de ficção científica! Mesmo contrariando alguns colegas que torcem o bico, como se eu só devesse gostar de filmes de Bergman, dos iranianos ou franceses. Não é o caso, pois em se tratando de cinema, não tenho preconceitos. Assisto aquilo que geralmente considero que possa ser interessante e não dou bola para nacionalidades, diretores, prêmios, publicidades, críticos, etc. Acho que tenho minha própria forma de avaliar se vale a pena comprar o ingresso. O fato é que adoro sair do cinema com a certeza de que algo ficou e não que fui lá à somente para passar o tempo (embora isto seja absolutamente legítimo, e necessário!). Claro que já entrei algumas vezes, quebrei a cara e saí na metade do filme. É um risco, mas já me surpreendi inúmeras vezes. E essas são as melhores.
Mas, por que mesmo falei tudo isso? Ah, só para dizer que também gosto de filmes de ficção científica. Sim, adoro! 2001, uma Odisséia no espaço foi o primeiro que me deixou marcas. Filme inteligente, em todos os aspectos. E quando Roger Waters compôs a música Perfect Sense achei que o filme tinha recebido uma bela homenagem, destacando que o “salto” que demos do passado para este futuro pode ter sido, tecnologicamente interessante mas, ainda deixa muito a desejar em termos de evolução moral e ética. Mas, onde mesmo quero chegar? A ficção científica, quando não é feita só de bichinhos estranhos e bonitinhos, ou só de batalhas com raio laser, pode revelar algo bem interessante e que diz respeito a algo muito íntimo nosso. Algo que dificilmente expomos para os outros. Pode dizer respeito à nossa necessidade e ânsia por respostas.

Mais uma vez o “sentimento oceânico” que nos inunda e nos faz mergulhar em um desejo de respostas vem à tona. É este sentimento que nos leva, finalmente, a abrir os olhos e perceber nosso real tamanho. Bem diminuto, por sinal. Mas, nem por isso, menos interessante. Mas, diminuto frente às perguntas que fazemos e não conseguimos oferecer respostas. É um sentimento que nos faz desejar respostas para obter segurança, algum conforto, uma espécie de proteção. E a ficção científica tem evoluído bem para essa direção, nos levando a pensar em algumas coisas. Uma direção em que mostra que uma de nossas maiores necessidades é a de “respostas” para aplacar algumas de nossas angústias.
O filme Prometheus (2012), por exemplo, segue esta linha. Aqui um parêntese. Nos anos 80, quando assisti Alien, o oitavo passageiro, o fascínio foi imenso. O filme já se tornou um clássico e, agora, Prometheus veio para oferecer uma espécie de "origem" àquele assustador "Alien". Naquele momento, com "Alien" sabia-se que havia algo "além", pois a criatura que tinha dizimado uma nave, agora atacava outra que viera em socorro na tentativa de encontrar sobreviventes. Mas, uma resposta nunca havia sido dada: de onde vinham tais criaturas?

Somente agora Ridley Scott, o diretor, começou a oferecer alguma explicação. A criatura seria uma criação, por parte de uma espécie (os "engenheiros"). Espécie que teria sido a responsável também, por nossa criação, enquanto humanos. O problema é que as criaturas (aliens) haviam sido criadas com o objetivo de destruição da espécie humana. Algo deu errado, entretanto, e os próprios "engenheiros" foram destruídos, antes, em seu "laboratório". Mas, por quê destruir a nossa espécie? É aí que o filme fica interessante em minha opinião. Inicialmente motivados pela ideia de encontrar nossos "criadores" uma equipe de exploração parte em sua busca tentando responder às eternas questões: de onde viemos? Quem somos? Questões filosóficas e científicas que as religiões tentam também oferecer algum tipo de resposta.

Mas, quando tal equipe se depara com a questão da possível destruição da nossa espécie, outra pergunta se sobrepõe: o que fizemos de errado para ter que encarar nossa extinção? Essa mesma questão já havia sido colocada por outro filme clássico da ficção científica, "O dia em que a terra parou" (que teve uma refilmagem recente). Mas, infelizmente essa polêmica só aparece de forma subjacente ao filme, embora fique bem nítida para mim, e acho que é o grande barato do filme. Desse modo, entendo que as questões filosóficas e científicas que sempre colocamos sobre nossa origem e destino perdem totalmente qualquer relevância diante de outra questão: o que estamos fazendo? O que está dando errado em nossa evolução?

Acredito que buscar explicações para nossa origem e destino pode ser legítimo e a expressão máxima de nossa racionalidade, mas poderão ser sempre questões sem resposta, como que fadadas a manter nossa racionalidade prisioneira de si mesmo. Entretanto, pensar sobre o que estamos fazendo com nossas oportunidades de vida também é legítimo e pode ter resultados concretos. Quantas vezes já não parei e pensei comigo mesmo diante de tantas barbaridades cometidas pelo ser humano: "nós não demos certo", "falimos enquanto espécie". Buscar respostas para nossa origem e destino, de forma racional, pode ser mesmo só um artifício que usamos para escapar à pergunta mais importante e que diz respeito, mais de perto, à nossa existência e nossas responsabilidades: o que estamos fazendo? Saber de onde vim e para onde vou pode me dar alguma ilusão em me acreditar importante, escolhido, mas é quando me deparo com a questão do que faço com minha existência é que sinto o peso da responsabilidade e a angústia cresce.

Talvez por isso eu tenha gostado tanto de Prometheus, pois nos lembra de nosso iminente "fracasso" enquanto espécie. Lembra-nos de nossa maior tragédia enquanto seres humanos: diante da possibilidade de paz, teimamos em fracassar, pois a solução agressiva e violenta sempre nos parece mais fácil e adequada. Não é assim no nosso dia a dia? Não é assim quando nos revelamos absurdamente preconceituosos e intolerantes com quem é diferente de nós mesmos? Não é assim quando acreditamos que somos sempre melhores que os outros e não lhes devemos nenhum tipo de obrigação? A raiva e a agressividade talvez sejam o maior símbolo de nosso fracasso. Arrefecê-las, é o sinônimo de nosso sucesso. Por que não apostar nisso e olhar para o outro como alguém de quem realmente necessitamos, para nossa sobrevivência e felicidade? Talvez seja impossível, mas estamos aqui para tentar provar o contrário! A raiva e a agressividade talvez sejam o maior símbolo de nosso fracasso. Arrefecê-las, é o sinônimo de nosso sucesso. Por que não apostar nisso e olhar para o outro como alguém de quem realmente necessitamos, para nossa sobrevivência e felicidade? Talvez seja impossível, mas estamos aqui para tentar provar o contrário!

Já que falei em "tragédia", numa hora dessas não há como esquecer a mitologia. “Prometeu” foi um titã que tentou dar a inteligência aos homens, e foi punido severamente por isto. Assim, talvez no fundo, ainda estejamos mesmo ainda buscando nossa maior inteligência: Não necessariamente saber de onde viemos ou para onde vamos, mas entender o que estamos fazemos a nós mesmos aqui, nesta vida. A ciência, a filosofia e a religião lutam para nos oferecer respostas e nos acalmar sobre nossa origem e destino, mas ainda suspeito que nossa principal fonte de angústia é nos depararmos com o real significado de nossa existência, no aqui e no agora, e com o que estamos fazendo! Esse talvez seja o maior “desconhecido”, aquele que mais nos assusta!

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Reunindo meus pedaços! (texto 5 - os contos de fada e a perfeição)

Todos somos, em algum grau, neuróticos. E sei que esta é uma frase que incomoda e assusta a algumas pessoas que temem, com isso, uma proximidade com a “loucura”. Mas, não se trata disso. A loucura está mais próxima de uma violenta dissociação com a realidade, que nos aliena e incapacita para a construção de laços de forma quase permanente. A neurose, por seu lado, traz alguns traços desse tipo, mas num grau quase sempre bastante atenuado. Estamos falando, então, de outra ordem de sofrimento, de outro tipo de defesa que nós buscamos para controlar nossas angústias. E que é um tipo de defesa muito mais comum do que imaginamos. 

Quando se diz, então, que a “normalidade” é neurótica é porque, em nosso processo de constituição psíquica, em algum momento, nos deparamos com “limites” (pais, leis, regras sociais, valores etc.) que restringem nossos desejos e acabamos por sofrer com isso. Mas, sem este processo, sem estes “limites” como poderíamos olhar para o outro e respeitá-lo? Como poderíamos construir laços sociais se não tivéssemos restrições em nossos desejos? É uma boa questão! E não está fechada. Ou seja, conscientemente, sabemos da necessidade de limites para a vida social, mas a questão é que inconscientemente nossos desejos tentam “escapar” e é a luta por bloqueá-los que nos leva ao sofrimento. A grande saída é algum tipo de sublimação, que faça com que nossos desejos inconscientes se realizem de outra forma, como num relacionamento amoroso, num trabalho que nos causa felicidade, numa atividade em que nos sentimos bem etc. 

A neurose, então, nos fala de uma “submissão” à regra, ao limite. E é o sofrimento daí gerado que leva a mecanismos de defesa como a obsessividade e a compulsividade, por exemplo. Sofrer pelo nosso próprio desejo não realizado, então, nos aprisiona a uma “dívida”, como se estivéssemos em “falha” permanente, em “culpa”. Um sentimento de que somos devedores de algo que não sabemos bem o que é, e nem sabemos ao certo quem é o nosso credor. O fato é que nosso desejo fica soterrado em meio às obrigações e temores de punição ou de limites. É uma dívida que temos, então, em sentido metafórico, com o pai, com a lei, com o limite, e isso nos leva, nos casos mais graves, à possibilidade de nos comportarmos como escravos e ficarmos paralisados, sem futuro, condenados a repetições e com pouca chance de crescer e sentir-se bem.

Madonna, há pouco tempo, dirigiu um filme (“W. E.”, 2011) que, com muita força, traz um exemplo digno de chamar a atenção. Aliás, o filme traz uma trilha sonora que, no seu romantismo angustiante, parece sempre estar à beira da revelação de uma tragédia da qual não se pode escapar. Algo que marca os medos do neurótico obsessivo. No filme, duas histórias correm em paralelo. O que as liga? O desejo de um pai e de uma mãe que, ao dar o nome de uma nobre inglesa à filha, depositam ali todo o desejo de que sua vida transcorra como um “conto de fadas”, bem ao estilo daquilo que as monarquias tentam nos mostrar com sua pompa, beleza e delicadeza.

Isso é complicado. Para desespero da criança sua história seria construída tendo como espelho a vida daquela família real, considerada “perfeita”, como num “conto de fadas”. Ela teria, então, que realizar-se na busca por seu próprio conto de fadas. Mas, ela só conhecerá tragédias. Ficará, portanto, aprisionada ao desejo dos pais, e não ao seu. Não é a sua história que terá que viver, e isso lhe causa dor. Livrar-se da obsessão, portanto, significaria livrar-se de uma pulsão de morte poderosíssima, que a impulsiona sempre ao fracasso. O desejo não era seu e sim dos seus pais, era a eles que estava “obedecendo” ao tentar manter-se na linha de conquistar o “conto de fadas” para a sua vida. Quantas vezes, não levamos um tempo demasiado para perceber que o que estamos fazendo não é para nossa satisfação, e sim de nossos pais, ou outras pessoas? Isso quando percebemos!

Quantos pais, nesse exato instante, não estão arquitetando o “futuro” dos seus filhos, organizando “agendas” de educação e atividades que lhes tiram a chance de serem crianças ou adolescentes? Não! Não é assim. Contos de fada e histórias e “sucesso” individuais são criadas para amenizar nossas tragédias, para nos trazer de volta a esperança. Mas não podem se transformar em rígidos modelos de identificação, em exemplos aos quais devemos seguir e sermos fiéis incondicionalmente. Quem, de fato pode ser um super-homem? Quem, de fato pode ser uma princesa? Isso é puramente ideológico, e perigoso, pois nos adoece. Pelo contrário, é em meio aos tropeços de nossas vidas que vamos delineando um caminho que, muitas, vezes, já é o nosso próprio "conto de fadas". Basta às vezes, olhar atentamente para os lados e perceber, sentir. Ao final, o conto de fadas pode até estar se realizando sim, mas não daquela forma idealizada. Reconhecer isto é que é difícil, pois nos espelhamos severamente em modelos quase que inalcançáveis.

São estes “modelos inalcançáveis” e “irrealizáveis”, como os dos contos de fadas, que podem fazer com que pais e crianças se envergonhem de suas “imperfeições”, daí a busca em tornarem-se “super-adultos”. Isto é um massacre ao psiquismo da criança, ainda não plenamente constituído, e que já é submetido a tal ordem de obrigações neurotizantes. É nesse processo que a relação afetiva vai dando lugar a um sistema de obrigações morais e “educativas” que proporcionam uma boa dose de tormento às crianças. Crianças assim, preparadas para serem “super-adultos” e realizarem seu conto de fadas a todo custo, acabam se revelando egocêntricas, narcisistas, ou estarão condenadas a um sofrimento por se sentirem sempre “pequenas”. Por isso a dificuldade em enxergar o outro na sua totalidade. Afinal, se a sua própria integridade está corrompida, como enxergará a integridade dos outros? Os outros serão apenas “pedaços” dos quais se aproveita para buscar uma ilusória “completude”. 

E essa completude tem um nome: “perfeição”. É isso que muitos buscam como forma de sentirem-se, finalmente, bem, sem divida, sem culpa, sem sofrimento. Nesse terreno, portanto, não suportamos lidar com nossas “imperfeições”. Buscamos corrigi-las a todo custo, e cada vez mais cedo. Ou as cirurgias plásticas estéticas, por exemplo, não estão cada vez mais disseminadas e em idade cada vez mais precoce? Que modelo é esse que buscamos seguir? Que perfeição é esta que nos fascina? Metaforicamente poderia dizer que é a perfeição dos contos de fadas, mas na concretude do dia a dia, a perfeição está identificada nas atuais “celebridades”, por exemplo. São estas celebridades que “denunciam” nossas imperfeições. Não seria melhor pensar que todos somos “diferentes”? Não seria um comportamento mais saudável e humano?

É nos sentindo sem integridade, despedaçados, que buscamos os lábios de uma, o cabelo da outra, as pernas de outra ainda, os seios de uma outra. Ou, o cargo do outro, a casa maravilhosa de outro, o carro mais moderno de outro ainda. E por aí se caminha, tentando-se construir a completude, a perfeição e, em última instância, a paz interna. É claro que é natural que busquemos no outro algo que nos agrade, mas isso às vezes se torna um comportamento obsessivo. Enxergar o outro como feito de “partes” acaba nos levando a nos enxergarmos como um jogo de quebra-cabeças onde cada parte tem que juntar-se necessariamente para compor um todo, preenchendo um vazio e dando ares de “normalidade” e “perfeição”. Difícil, então, em meio a tudo isto, as crianças aprenderem a lidar com as diferenças. Elas querem escondê-las a todo custo, corrigi-las de qualquer modo, sempre na esperança de completar a obra, o quebra-cabeças, a si mesmas. Um dia isso ocorrerá? Jamais! São heranças de obsessões, por vezes, paternas e maternas, às quais se somam as obsessões do mundo contemporâneo, e que nos tornam reféns desde muito cedo.

Voltando ao filme, vemos que o resultado é paradoxal. De um lado, nossa personagem se "liberta" de um "destino" traçado antes mesmo de seu nascimento. Ela não viverá para sempre com seu príncipe. Mas, é justamente essa libertação que a permitirá atuar sobre seu próprio destino, construindo-o com seus próprios desejos, e não os de seus pais. É um exemplo que nos mostra o "peso" gigantesco que o desejo dos pais pode ter sobre uma criança que, para defender-se, segue o caminho da patologia, da doença psíquica. Pior, tal desejo dos pais, herdado de forma incondicional, sem negociação, obscurece nossos próprios desejos e até a percepção de que já podemos estar vivendo nosso próprio conto de fadas, ao nosso modo, mesmo sem nos darmos conta disso. E, isso tudo ainda agravado pelo fato de, culturalmente, teimarmos em esperar que um suposto destino se revele esplendoroso sobre nossas vidas. Não dá! Esperança é importante, mas não a ponto de nos tirar a responsabilidade sobre a construção de nosso destino.

(José Henrique P. e Silva - out/2013)

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Por um sentido na vida! (texto 1 - o vazio e a morte)

São tempos difíceis. Guerras devastam as regiões e as pessoas estão famintas, frágeis e doentes. É quando nosso cavaleiro recebe a visita da "morte", que veio buscá-lo. Chegara o seu momento, mas ele resiste e diz que, apesar de seu corpo estar pronto, sua alma ainda não o está, e, num esforço de resistência, propõe um jogo de xadrez para ganhar um pouco mais de tempo. Os fãs de filmes clássicos já sabem que estou falando de “O Sétimo Selo” (1956, I. Bergman), um filme extraordinário que nos leva a pensar na vida a partir de nosso medo da morte.

Mas, pensando nesta partida de xadrez, ela já não estaria fadada ao fracasso, afinal, como se poderia vencer a morte? O fato é que nosso cavaleiro não leva isto em consideração e parte para a disputa. O que tem a perder? Bem, é a partir daí que uma angústia vai se instalando e ele passa a questionar-se: um tempo a mais de vida, mas viver para que? Num certo momento, uma confissão nos mostrará toda a carga desta angústia. É quando ele nos diz:
O vazio é um espelho que reflete meu rosto. Minha própria imagem me causa repulsa e medo. A indiferença que eu sinto pelo próximo me levou ao isolamento. Agora eu vivo em um mundo de assombrações, prisioneiro das minhas próprias fantasias (...) Como podemos ter fé, se não temos fé em nós mesmos? (...) Eu não quero fé ou suposição, eu quero conhecimento! Eu quero que Deus estenda a mão para mim, mostre seu rosto e fale comigo (...) Eu clamo por ele na escuridão, mas parece que não há ninguém lá (...) Então a vida é um terror sem sentido (...) Minha vida se resumiu em buscas sem sentido, a ações e conversas tolas e vazias. Uma vida inteira sem sentido. Não digo isso com amargura ou discriminação, como tantas outras pessoas que também vivem assim. Mas eu quero usar esta trégua [jogo de xadrez] para fazer algo que tenha significado (Antonius Block, o cavaleiro).
Confesso que sempre considerei este trecho do filme magnífico. Uma confissão que nos mostra como uma vida esvaziada de sentido pode intensificar o medo da morte. Não seria, portanto, a morte em si, ou o "nada" que viria após ela, que nos causaria medo e repulsa. Seria o olhar-se no espelho e ver que a vida está seguindo sem maiores significados o que realmente nos espanta, embora não o percebamos tão facilmente. É este espelho, que reflete meu vazio, que me traz, então, o medo da morte como companhia.

Na confissão de nosso cavaleiro ele diz buscar o conhecimento, quer ver Deus, quer uma prova de sua existência, quer algo que lhe dê algum significado além do vazio que sente. Ora, não há conhecimento ou racionalização suficiente que acabe com este medo. A ciência e a religião podem nos fornecer algum amparo e acolhimento, mas não eliminam esse sentimento que Freud, apesar de ter dúvidas sobre ele, o situava num nível muito primário de nossa vida. O tal "sentimento oceânico", que nos impele a ter a esperança de uma proteção contra nossas dores e angústias. Esse sentimento é algo com o que temos de lidar ao longo da vida e que nos impele, portanto, à transcender numa tentativa de encontrar respostas.

Talvez não haja mesmo como vencer a morte numa partida de xadrez, mas pode-se deixar de temê-la. Como? Talvez a resposta esteja na forma como lidamos com nossa finitude. Daí que o melhor talvez não seja especular sobre a morte em si ou o que vem após, e sim sobre nossa própria existência, neste momento. Não é o nosso "fim" que nos atemoriza, mas o fato de nos imaginarmos vivendo uma vida sem significados. Precisamos contrapor ao "medo" uma certa "ingenuidade" em nossa forma de viver. A leveza e a certeza de estarmos dando significados para nossas ações cotidianas é que nos manterá tranquilos e confiantes de ter encontrado um "sentido" para estar vivos. Só isto esvaziaria o sentido do “vazio” e do medo que ele nos impõe.

Mas, me parece que nos dias atuais existem sérios problemas quanto a isso, afinal somos alvos de uma intensa campanha para nos mantermos "imortais", "jovens", “belos” e “fortes”, o que só nos distancia dessa ingenuidade e leveza. Isso é devastador! Puro delírio! Arrogância! São tempos narcisistas, de uma infantil onipotência, de desconhecimento de limites, de não reconhecimento da castração, de forte perversão, enfim, tempos em que nos achamos espertos o suficiente para driblar a morte, numa tentativa de não a temermos. Não são poucas as pessoas que padecem deste mal. A individualidade e a competitividade estão enfraquecendo os laços sociais. Todos nos pedem que sejamos "melhores" que alcancemos logo o "sucesso", e atacam a simplicidade e a leveza como se fossem pragas. E, em grande parte, topamos a brincadeira.

Se continuarmos assim, não só estaremos perdendo a batalha do xadrez para a morte, como estaremos deixando de viver e deixando o vazio tomar conta. Lutar contra esse narcisismo, que só produz onipotências e ausência de limites, é uma tarefa dura, árdua, pois cresce como erva daninha nos lembrando, em muito, aquele homem “selvagem” de Thomas Hobbes que, se deixado à solta, devora ao outro como um lobo esfomeado.

Assim, não é o suposto "vazio" trazido pela morte que mais nos assusta, mas o vazio que permitimos em nossa vida e que, diante de um espelho, nos assusta tanto. É este vazio que também nos transforma em lobos, ou nos faz cair doentes. Não à toa os espelhos da atualidade só nos mostram a aparência de nossos corpos. Mal conseguimos ir além disso. Que interioridade possuímos? Qual a nossa subjetividade? Não a enxergamos mais, nem mesmo sabemos se ainda a possuímos. Nos limitamos severamente ao nosso corpo físico. Me parece muito pouco!

(José Henrique P. e Silva - out/2013)

domingo, 26 de janeiro de 2014

"Mata-me de Prazer" e a paixão que fusiona!

"Talvez alguém da planície como eu não esteja pronta pra viver nas alturas. Talvez!...Talvez!".


Esta é uma das últimas frases de Alice no filme "Mata-me de Prazer" (2001). Alice e Adam vivem uma daquelas aventuras onde só há espaço para uma tremenda atração e paixão na sua forma mais ardente e alienante, ou seja, naqueles momentos em que fechamos os olhos e deixamos que os sentidos tomem conta do resto. É o momento em que o desejo fala mais alto, praticamente não deixando espaço para racionalizações, culpas ou indecisões.

O impressionante nesses momentos de intensa paixão é a quase dissolução da individualidade e o surgimento de outro campo onde ambos estão em "fusão". Claro que, num momento assim, de fusão, é muito alto o risco de uma "idealização" da outra pessoa, como se ela fosse a "única", absolutamente indispensável. É esta "idealização" que, entretanto, por vezes, não resiste às contingências da realidade que vai se impondo lentamente com suas exigências e responsabilidades, e trazendo consigo algumas "frustrações" e amarguras, fazendo com que a continuidade da paixão, naquele mesmo ritmo intenso, se torne uma impossibilidade.

Sempre vou respeitar e admirar a paixão, afinal, não é porque ela traz um forte risco de frustração que deve ser abandonada. Aliás, conseguimos mesmo abandoná-la? Afinal, quem já não enfrentou tudo isto? Quem não corre o risco de enfrentar tudo isto? Quem não deseja e torce por tudo isto? Apesar de ser um momento de absoluta ausência de racionalidade, está repleto de... vida! Está aí para ser vivida, nem tanto para ser pensada. Pode trazer consequências dolorosas? Pode! Mas há como evitar senti-la em alguns momentos da vida?

(José Henrique P. e Silva)

domingo, 19 de janeiro de 2014

Estranha Compulsão

"Estranha Compulsão" (Richard Fleischer, 1959) é um filme clássico que mostra aquelas tentativas de se realizar um "crime perfeito", e se baseou no famoso caso dos criminosos Leopold e Loeb, nos EUA. "Festim Diabólico" (Hitchcock, 1948) já seguira essa mesma linha. Lembram de James Stewart em meios àqueles dois e o famoso baú em que se encontrava o corpo? Então, a trama do filme se desenvolve em torno do assassinato de um garoto, e dois amigos, Artie e Judd, com personalidades distintas, mas um mesmo desejo de reconhecimento, vão apostar no "crime perfeito" (aquele que jamais é descoberto). O diálogo abaixo retrata bem o quanto um precisa do outro para sua própria glorificação.
 
 Artie - Faremos os tiras de tolos, enquanto rimos deles.
 Judd - Sim, mas juntos Artie! Algo perfeito, algo genial! O verdadeiro teste do intelecto superior.
 Artie - E muito perigoso...para ser divertido!
 Judd - Sim!
 Artie - Não, você entraria em pânico novamente.
 Judd - Não, não entraria não! Deve ser uma experiência sem envolvimento emocional. Só para provarmos que somos capazes.
 Artie - Somos capazes!
 Judd - Juntos!
 
Judd é o "gênio", introvertido, que sente-se deslocado e rejeitado em sua família, e quando recebe de Artie a "atenção" necessária torna-se profundamente decidido a agir para provar o quanto é inteligente e receber aprovações. É ele quem busca justificavas "teóricas" para seus desejos. É em Nietzsche, por exemplo, que vai buscar o conceito de "super-homem" para justificar seu "super-intelecto".
 
Mas, Judd não é o homem de "ação", e sim Artie, que é o "típico" psicopata, não mede esforços em trapacear e desdenhar dos outros. Se compraz em ludibriar, desde que tudo sirva para sua própria glorificação. E, se for preciso, mata sem qualquer sinal de remorso. É disto, então, que nossos personagens falam: da realização de um "crime perfeito" para provarem a si mesmos sua grandeza intelectual e que, por outro lado, os demais são todos tolos.
 
Entretanto, pequenos detalhes vão levar à prisão dos dois. Uma cena do julgamento é marcante. Orson Welles faz o papel do advogado Wilk e fará uma forte defesa da insanidade de ambos para que escapem ao enforcamento:
"... (O. Welles falando ao juri) devem-lhes a mesma compaixão que vocês tiveram com a vítima. Se nosso Estado não for mais bondoso, humano, prudente e inteligente que o ato de loucura desses rapazes perturbados, vou lamentar por ter vivido tanto...".
 
O término do filme parece ser um apelo à nossa capacidade civilizatória, de sermos melhores que os "maus", que os "doentes", e de que o progresso moral está acima de qualquer desejo de vingança e punição. Ok, concordo! Mas, um equívoco que é rotineiro é imaginar-se que, cometer um crime e alegar insanidade pode trazer inocência, perdão ou isenção de responsabilidade. Não! Cometer um crime implica em pagar por ele. Isso é responsabilização. E a saúde mental, se for um atenuante, o é para outras situações, jamais para a isenção de responsabilidade.
 
Isso seria impunidade e "infantilização" dos crimes! E responsabilização é o primeiro passo até mesmo para a melhora da saúde mental. Não concordo mesmo com o enforcamento deles, mas seu afastamento total em relação à sociedade era uma necessidade. Nesse sentido, o discurso de O. Welles me parece bem razoável, e civilizatório.

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

"Tormentos da alma" e a contratransferência do analista

Um tempinho atrás, num desses canais fechados de filmes clássicos, descobri "Tormentos da Alma" (Pressure Point, EUA, 1962, com Sidney Poitier). Em sua face mais aparente o filme trata do racismo, afinal está centrado nos embates entre um psiquiatra negro e seu paciente branco de ideologia nazista. Numa situação assim o racismo muito dificilmente deixaria de se destacar. Mas, há bem mais que isso.
 
Chefe de um setor psiquiátrico em um hospital nosso personagem central se vê diante da iminente desistência de um de seus médicos no tratamento de um paciente considerado "difícil". É nesse momento que ele passa a relembrar-lhe uma experiência pessoal de 20 anos atrás. Nessa época, trabalhava na psiquiatria de uma penitenciária federal e tinha um paciente, branco, de 29 anos, cumprindo pena por rebelião em prol da derrubada do governo Roosevelt.
 
De imediato, a partir destas lembranças, o que vemos é uma forte contratransferência do psiquiatra que passa a nutrir forte intolerância com seu paciente e suas ideias nazistas. O diagnóstico inicial? um psicopata (paranóico, agressivo e antissocial), para quem recomendara isolamento, principalmente para não espalhar suas ideias na cadeia. No isolamento, entretanto, o paciente continua com suas angústias: insônia, pesadelos, sentimentos paranóicos, "ausências", desmaios, alucinações (se vê prestes a cair pelo ralo de uma pia em direção a um possível abismo).
 
Sempre agressivo, e tentando desmoralizar o psiquiatra por ser negro, tudo o que parece buscar é um remédio para que possa dormir. Mas, o psiquiatra passa a investigar seus sintomas e começa a lhe perguntar sobre as "ausências", seguidas de enjôo e dificuldade de respiração. Em determinado momento o paciente lembra que só chegou a desmaiar uma vez, ainda quando criança. Nesse exato momento, ele tem uma crise e desmaia. Pede ajuda ao médico, que insiste em que precisa "conhecê-lo melhor para poder ajudar".
 
As consultas se sucedem e, no processo de investigação, um quadro mais claro vai surgindo. Ele era filho único e seu nascimento só acelerou o fracasso do casamento dos pais. Um pai irritável e descontente, com forte ressentimento vingativo contra o filho. A mãe, fraca, deprimida, cada vez mais isolada na cama. Assistindo a tudo isso, ele, criança, só prometia a si mesmo não chorar. Acabou isolando-se muito na infância, e sempre revelava-se envergonhado em relação ao pai. Aqui, um destaque para o filme. São impressionantes as cenas de revivência desses momentos da infância que invadem o consultório. É a imagem completa do que chamo de "o retorno do infantil", trazido em flashbacks pelo filme.
 
Apesar de cuidar da mãe, não sentia pena. A via como uma "fraca" e passou sempre a ter raiva dos mais fracos. Sempre admirou aqueles que competem e superam barreiras, tornando-se mais fortes. Era como desejava ser. Em seu desenvolvimento isolado acaba por criar um amigo imaginário para buscar as satisfações negadas pela realidade. E a função deste amigo imaginário foi a de lhe permitir exercer sua pequena tirania, sua fantasia de indestrutibilidade. Gradativamente, porém, à medida que entra na escola, e vai tendo contatos sociais mais amplos, vai abandonando este amigo imaginário em troca de amigos reais, sempre tendo como elo de ligação os atos arriscados e indisciplinados.
 
A mãe "fraca" e deprimida, entretanto, lhe alimentava uma forte relação libidinal. Dizia que ele era o "único", o mais "forte", palavras que lhe enchiam de um desejo de vingança contra o pai, e raiva da fraqueza da própria mãe. Imaginava-se um príncipe oriental, poderoso, que punia implacavelmente, inclusive sua própria mãe. Era assim que se iniciava o padrão de seu comportamento sexual, satisfazendo seus desejos sempre com muita brutalidade e impondo aos outros os seus caprichos.
 
Certa vez, em meio a uma crise econômica, vendendo frutas na rua conheceu uma simpática e gentil moça. Parecia ter encontrado a chance de um relacionamento feliz, mas o pai dela, um judeu, o recusa. É aí que tem início a transferência de seu ódio para os judeus e aproximação com nazistas. O que o filme vai construindo, então, é uma clara associação entre o nazismo e o ressentimento individual com todas as suas perdas e incapacidade de preenchê-las com a sociabilidade. Há um forte didatismo do filme, nesse sentido, ao mostrar a lógica e o nascimento de movimentos como o nazismo, definidos como "movimentos de ódio" por parte daqueles que são rejeitados. Inegável aqui a leitura dominante do perfil psicológico de Hitler, sempre visto como um "rejeitado" e que se alimentara de ódio ao longo de toda a vida.
 
De imediato, nos grupos nazistas, seu ódio encontrava acolhida e era canalizado para alvos comuns, reais, e poderia, enfim, sentir-se forte. Com as reuniões de seu grupo nazista, saia do isolamento e ampliava sua força e poder. Aquela criança que detestava ver o sangue, tão presente no açougue do pai, agora era um adulta que clamava por esse mesmo sangue.
 
Voltando ao consultório, o psiquiatra insiste que continue falando de suas "ausências". Diz sentir medo, diz sentir que vai morrer. Ele diz que é seu pai que está caindo no ralo da pia, mas antes era ele. Como explicar? Misturam-se o desejo pela morte do pai e a punição que impõe a si mesmo por este desejo? Era, ao mesmo tempo, assassino e vítima, e esta fantasia o perseguia cruelmente. O reconhecimento aberto deste desejo fez com que os ataques de ausência desaparecessem. Parecia ter resgatado sua possibilidade de voltar a dormir melhor. Mas, uma outra questão toma conta do psiquiatra. Ele não quer liberá-lo para a condicional por acreditar que, embora curado do sintoma da insônia e dos pesadelos, sua personalidade continua a mesma, sem que tenha ocorrido nenhum tipo de mudança.
 
Mas, essa posição do psiquiatra contraria a dos demais médicos do hospital e o paciente acaba conseguindo a liberação. A questão para o psiquiatra era: mesmo com bom comportamento ele ainda era um homem perigoso, por suas ideias, sua obsessão. Nesse momento, num forte indício de contratransferência, o psiquiatra parece estar diante do próprio Hitler, e imagina poder detê-lo antes que cometa maiores males à sociedade. Para o psiquiatra, a rebeldia do paciente contra a autoridade refletia seu ódio pelo pai, e sua raiva contra os mais fracos (a raiva contra a mãe). Continuava sentindo-se fraco e impotente mas buscaria, sempre, compensar isto com atos perversos, intolerantes e agressivos. Enfim liberto, 10 anos depois seria enforcado por espancar um estranho até a morte.
 
Ao final do filme, já em sua época atual, o médico relembra, numa autocrítica, que o tratamento e a disposição profissional para a "ajuda" devem ser maiores que qualquer ressentimento ou preconceito. É com essa história que ele convencerá o membro de sua equipe a continuar o tratamento com um paciente negro, também agressivo. Estávamos nos anos 60 e a situação invertera-se. Eram os negros que agora se mobilizavam nas ruas por direitos, num momento de acirramento das questões raciais nos EUA.
 
Claro que o filme parece uma coleção de clichês psicanalíticos, mas, ainda assim é um bom filme, principalmente pela ousadia em associar o conflito psíquico individual às pressões do ambiente social. E, se a contratransferência do psiquiatra (sua raiva do paciente) revelava uma clara influência do social em seu psiquismo (a luta contra a ideologia nazista), também nos mostra o quanto, como profissionais, também estamos vulneráveis.
 
Com relação a este aspecto precisamente lembro a posição de Lacan acerca da contratransferência, como um conjunto de obstáculos imaginários que dificultam ao analista ocupar, de fato, seu lugar de "atrator". Mais tarde, Nasio iria situar a contratransferência como algo, então, que se define não no interior da relação do psicanalista com o seu paciente, mas no interior da relação do psicanalista com esse lugar que deve ocupar. O seu "desejo" pelo tratamento, como o próprio personagem do filme ressalta, deveria ser maior que o preconceito (obstáculo).

domingo, 15 de dezembro de 2013

A "errância psicótica"

Durante algum tempo lidei muito de perto com diversas situações psicóticas (álcool e drogas) e um dos pontos em comum mais evidentes era a chamada "errância psicótica". Sempre vi este comportamento como o de alguém que está "trancado pelo lado de fora", ou seja, apesar de estar do lado de fora e possuir a liberdade ele não tem nenhuma "direção". Seu caminhar seria como um daqueles jogos de "liga pontos" que, entretanto, não forma imagem alguma. Não se trata de uma experimentação da liberdade (como aquela vontade de simplesmente sair por aí sem rumo), pois não há liberdade a ser experimentada por mais que ele tenha o mundo inteiro para andar. Ele está na situação de vítima de um delírio que não lhe permite ancorar em porto algum. Um razoável exemplo desta situação está no filme "Na Natureza Selvagem" (Into the Wild), cuja busca do personagem por chegar ao Alasca, e alcançar sua maior integração com a natureza, era só um motivo para não chegar a lugar algum. É um belo filme, e a trilha sonora de Eddie Vedder é um show a parte.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

"Um Doce Olhar" e o silêncio na vida

Despretensiosamente fui assistir ao filme Um doce olhar (Bal, 2010). Digo despretensiosamente porque realmente não tinha nenhuma informação sobre o filme ou sua direção. Nem mesmo sabia que fazia parte de uma trilogia. O resultado foi muito interessante. Um filme lento e silencioso, muito silencioso. Foi o que mais me chamou a atenção.
 
O filme só pode ser compreendido a partir daquele recurso que é tão típico às crianças, o recurso às fantasias, e sua consequente dificuldade de representação e simbolização. Dessa forma, tudo o que precisamos entender, o fazemos através do olhar de Yusuf, a criança. Um olhar, ao mesmo tempo terno e cheio de vitalidade, mas reflexivo e apreensivo. É esse olhar que nos conduzirá à seus desejos e fantasias. 
 
Sua rotina está marcada pela doença da mãe, o pouco carinho por parte do pai, as dificuldades na escola mas, nada disso, porém, impede Yusuf de imaginar-se feliz. E, não são poucas as vezes que ele se coloca como o esteio daquela família, seja auxiliando o pai, seja dando carinho para a mãe. Suas esperanças parecem ser poucas, mas suficientes para qualquer um de nós: a certeza de que nossa família estará marcada pela felicidade. 
 
Num mundo marcado pelo silêncio, ele praticamente não sorri. Mas, ele quer dar alegria para a mãe doente, ele quer estar ao lado do pai no seu difícil trabalho, ele quer superar suas dificuldades na escola. É na realização destes desejos que ele imagina construir sua felicidade. Yusuf nos revela aquele conflito que parece nos acompanhar permanentemente: seu olhar, ao mesmo tempo reflete um vazio, e uma tremenda esperança. Mas, essa esperança parece se esvair quando se revela para ele a morte do pai.
 
Nesse momento, ele corre, a noite cai, e ele só para nos galhos, ou melhor, nos "braços" de uma imensa árvore. Lá ele se deita, se aconchega, como nos braços da mãe, ou do pai. Lá, talvez, ele se volte ainda mais para seu silêncio tentando, quem sabe, dar conta da violência que o realismo da vida lhe impõe naquele instante. Lá, o olhar de Yusuf se perde na escuridão, mas, certamente, suas fantasias deverão estar trabalhando muito, para dar conta de sua dor. Não há como, em muitos momentos, nos vermos em Yusuf, com todos os seus limites, medos, esperança... e dor.

"O preço do amanhã" e quem quer viver para sempre?

O filme "O Preço do Amanhã" é daquelas produções que trazem um bom tema para discussão, mas que não contribuem em nada com a própria discussão. Algo bem hollywoodiano. Sustentado no avanço tecnológico lança temas "humanos" para discussão e se perde pelo meio do caminho. Mas, como um passatempo não diria que é um filme ruim. Destaco seu tema central: a "monetarização do tempo".

De alguma forma, crescemos ouvindo dizer que "tempo é dinheiro" e este filme leva este clichê às últimas consequências. Ou seja, chegou o momento em que o "tempo" (segundos, minutos, horas, dias, meses, anos, décadas) é, de fato, a moeda que regula a todas as relações. Se você tem "tempo acumulado" em sua maquininha tem, não só dinheiro, mas tem tempo para viver mais. Se não tem, paciência, vai morrer mesmo assim que esgotarem-se seus segundos guardados. Surge, então, a grande metáfora: se fala de uma época em que o "tempo" representa o que o "capital" faz hoje ao produzir injustiças, concentrações de renda etc. Então, nada mais previsível que surgir um comportamento "Robin-Hoodiano" de tirar dos ricos para dar aos pobres.

Deixando de lado este clichê que comove a poucos, o fato é vivemos mesmo em uma época em que o desejo por ser eterno é o que move muitas pessoas. Morrer (ou, de outra forma... envelhecer) parece adquirir o significado do "fracasso" e disso todos parecem querer fugir. Não se consegue mais lidar com o futuro (muito menos com o passado), só com o presente, um eterno presente. Mas isso "cansa" e, embora o corpo esteja bem, a "mente cansa" e chega a hora em que você quer "descansar". Nossa maior maravilha talvez seja nossa capacidade psíquica, que nos faz pensar, ter emoções, sentir, enfim...viver! Mas é justamente essa capacidade psíquica que um dia nos leva a desejar o descanso, pois ela também pode nos... cansar. Talvez para alguns não! O fato é que parece que não evoluímos para sermos eternos... mas para sermos melhores! Só isso. Alguém aguentaria ser eterno?

Pode parecer uma pergunta ridícula. Mas, se o cansaço bater, ela fará sentido.

domingo, 20 de outubro de 2013

"Gravidade" e a decisão de voltar

Ontem assisti ao filme Gravidade (Dir. Alfonso Cuáron). Gostei muito. É um filme tenso e a todo instante remete a situações de possível pânico, pois o medo de estar sozinho e a impotência estão sempre presentes. O mesmo cenário (o espaço e o silêncio) que pode se transformar em paz e reencontro consigo mesmo, também pode significar o terror de sentir-se absolutamente sozinho. Tudo vai depender de como estamos em relação a nós mesmos. 
 
Matt, que vagou até a morte, simplesmente passou a ouvir sua música country e a admirar a beleza da visão que tinha da terra. Mas Ryan parecia desmanchar-se em seu pavor. Havia algo inconcluso ali. A morte de sua filha a havia colocado em um estado de suspensão onde a vida passava sem deixar absolutamente nada. Só em determinado momento percebeu que tinha que lutar pela sua sobrevivência.
 
A única metáfora que desenvolvi para este filme é essa:
 
Decidir voltar a viver é ter que seguir em frente, sem segurança, correndo riscos, mesmo o risco de ser machucado. Decidir voltar a viver é, de alguma forma, ter de reaprender a andar, sair daquele estado de suspensão, flutuação, onde a ausência de gravidade mal nos permite sentir o corpo, o chão, nem mesmo o que é real. Decidir voltar é decidir viver, com todos os seus riscos, mas viver. E isso pode ser uma experiência incrível!
 
Um belo filme, que nos mostra que não precisamos estar no espaço para nos sentirmos em um estado de suspensão da vida, cuja única finalidade é nos afastar do medo que sentimos.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

"W.E." e a obsessão herdada do desejo dos pais

Assisti a W.E. (R.U., 2011) há um tempo atrás e lembro que não estava muito empolgado, mas algumas coisas me chamavam a atenção, como o fato de ser uma produção inglesa, que sempre gostei, e a história do casal em questão, que me despertava curiosidade.

O filme nos primeiros minutos chega a ser confuso e não se entende bem a proposta da diretora (Madonna) mas, aos poucos, o filme encontra um fio condutor e as coisas vão ficando mais claras para o espectador. Logo se percebe duas histórias em paralelo mas, na verdade, uma só história.

Antes que deixe minhas impressões quero deixar dois destaques: a beleza estonteante de Abbie Cornish e a trilha sonora que, no seu romantismo, revela o prenúncio de uma tragédia. Chega a ser angustiante, mas, enquanto tragédia, não dá para escapar. São poucos os momentos, mas são marcantes. É uma trilha que te aprisiona.

O filme adquire todo o sentido quando vem a revelação de que o nome de Wally não foi à toa. Foi escolhido pelos pais em uma homenagem ao "conto de fadas" que teria significado o romance de Wallis Simpson e o herdeiro do trono britânico, Edward.

Previsível. O filme, então, iria transcorrer na desesperada luta de Wally (a personagem de época recente) para "realizar-se" como esposa e mãe, numa busca pelo seu próprio "conto de fadas". Mas, só conhece tragédias. 

Cada rememoração do passado, gradativamente, vai perdendo todo o glamour de um conto de fadas e vai mostrando o forte embate, a luta feroz, que nossa Wally leva a cabo para se libertar desse desejo que não é seu, e sim dos pais. Não haveria como conviver indefinidamente com aquela obsessão em torno da história de dois personagens que não lhe dizem respeito. Se livrar da obsessão era livrar-se de uma pulsão de morte poderosíssima.

O resultado é paradoxal. De um lado, ela se "liberta" de um "destino" traçado antes mesmo de seu nascimento, pois ela não é a Wallis que viveu ao lado do seu príncipe até o fim da vida. Por outro lado, é essa libertação que a permite atuar sobre seu próprio destino, construindo-o com seus próprios desejos, e não os de seus pais. 

O tema é interessante por nos mostrar o "peso" gigantesco que o desejo dos pais pode ter sobre uma criança que, para defender-se, segue o caminho da patologia. Pior, tal desejo dos pais, herdado de forma incondicional e sem negociação obscurece nossos próprios desejos e até a percepção de que já podemos estar vivendo nosso próprio conto de fadas, mesmo sem nos darmos conta disso. E, isso tudo ainda agravado pelo fato de, culturalmente, teimarmos em esperar que um suposto destino se revele esplendoroso sobre nossas vidas.

Não! Não é assim. Contos de fada são criados para amenizar nossas tragédias, mas não podem se transformar em rígidos modelos de identificação. Pelo contrário, é em meio às tragédias de nossas vidas que vamos delineando um caminho que, muitas, vezes, é o nosso próprio "conto de fadas". Basta, as vezes, olhar atentamente para os lados... e perceber, e sentir. Ao final, o conto de fadas se realiza sim, de alguma forma, se realiza. Mas aos olhos de quem o enxerga.

Mais do que o romantismo em si, me parece este um dos principais recados do filme. A cena final é um ato psicanalítico muito interessante. A despedida entre as duas Wallis é a despedida de nossa Wally de sua própria obsessão. Um bom filme, gostei!

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

"O Sétimo Selo" e o medo do vazio (morte)

São tempos difíceis. Guerras devastam as terras. As pessoas estão frágeis e doentes. É quando nosso cavaleiro recebe a visita da "morte". Ela veio buscá-lo, mas ele diz que se seu corpo está pronto, sua alma ainda não está. Ele quer ficar um pouco mais e propõe um jogo de xadrez para ter uma pouco mais de vida. 

Trata-se de “O Sétimo Selo” (I. Bergman, 1956, com Max Von Sidow). Uma partida de xadrez, desde o início fadada ao fracasso, afinal, como se pode vencer a morte? De qualquer forma, ele a enfrentará pois quer continuar vivendo. Mas, a questão é: continuar a viver para que? Em meio à disputa essa questão vai aflorar em um momento de confissão de nosso cavaleiro.
“O vazio é um espelho que reflete meu rosto. Minha própria imagem me causa repulsa e medo. A indiferença que eu sinto pelo próximo me levou ao isolamento. Agora eu vivo em um mundo de assombrações, prisioneiro das minhas próprias fantasias... O conhecimento... é tão inconcebível tentar compreender Deus? Por que ele precisa se esconder por trás de promessas vagas e milagres invisíveis? Como podemos ter fé, se não temos fé em nós mesmos? O que será de nós, que queremos acreditar, mas não conseguimos? E daqueles que não querem ou não podem acreditar? Por que não consigo arrancá-lo de dentro de mim? Por que persiste em viver em mim dessa forma tão dolorosa e humilhante, apesar de eu amaldiçoá-lo e tentar arrancá-lo de meu coração? Por que, apesar de ele ser uma falsa realidade, eu não consigo me livrar dele?... Eu quero conhecimento! Eu não quero fé ou suposição, eu quero conhecimento! Eu quero que deus estenda a mão para mim, mostre seu rosto e fale comigo... Eu clamo por ele na escuridão, mas parece que não há ninguém lá... Então a vida é um terror sem sentido. Ninguém consegue tolerar a morte sabendo que não há mais nada... temos que idolatrar nosso medo e chamá-lo de Deus... Minha vida se resumiu em buscas sem sentido, a ações e conversas tolas e vazias. Uma vida inteira sem sentido. Não digo isso com amargura ou discriminação, como tantas outras pessoas que também vivem assim. Mas eu quero usar esta trégua [conseguida pelo jogo de xadrez] para fazer algo que tenha significado. (Antonius Block, o cavaleiro)
Um trecho magnífico este. Como uma vida sem sentido, vazia, pode intensificar o medo da morte. Não é a morte, portanto, e em última instância, o "nada" que vem após ela, que causa medo e repulsa. É o olhar-se no espelho e ver que a vida seguiu sem um significado. É este medo que nos espanta, que nos assusta. 

É na ânsia de escapar a este medo que projetamos nossas esperanças. Esperanças de felicidade, de uma vida eterna, de um paraíso que venha a nos compensar por tantos erros. Mas, ainda assim o medo persiste. O espelho de hoje me impede de aceitar a morte.

Outro aspecto interessante deste trecho é a tentativa de se usar da racionalização (e do conhecimento) para se tentar entender um sentimento que Freud, apesar de ter dúvidas sobre ele, o situava num nível muito primário de nossa vida, o "sentimento oceânico" que nos move em direção à esperança da existência de um Deus que nos proteja, finalmente, e que não conseguimos, jamais, "explicar".

Vai ficando claro para nosso cavaleiro que não se pode vencer a morte, mas pode-se deixar de temê-la, dando-lhe também um significado. É esse significado que muitos dizem ser impossível dado o seu papel avassalador e destruidor. Mas, é preciso pensar melhor sobre isso, pois podemos muito bem lidar com nossa finitude. Temos um fim, isso é fato, mas não é isto que nos define, e sim o que fazemos e sentimos. Mas, é difícil esse lidar com a morte. Daí nossas infinitas indagações, como as do nosso cavaleiro.

- (morte) Você nunca vai parar de fazer perguntas?
- (cavaleiro) Não! Em tempo algum.
- (morte) Mas não terá respostas.

Não cansamos em querer entendê-la... e temê-la. Diante de uma cena dramática, a da morte de uma camponesa na fogueira, as interrogações continuam:

- (escudeiro, referindo-se à moça queimada viva) O que ela vê? Pode me dizer?
- (cavaleiro) Ela já não sente dor.
- (escudeiro) Quem vai olhar por ela? Os anjos? Deus? O Diabo? Ou apenas o vazio?
- (cavaleiro) Não pode ser
- (escudeiro) veja os olhos dela. Ela parece estar descobrindo algo.  O vazio!
- (cavaleiro) Não!
- (escudeiro) Estamos indefesos. Pois vemos o que ela vê e tememos também.

A presença da morte é tão intensa no filme como, por vezes, em nossa vida. Mas, o filme nos deixa algo a pensar: Por que temer tanto a morte se podemos levar a vida com mais pureza e leveza, fazendo da "arte" aquilo que, também, nos dá sentido? Sim, a arte tem um papel importante no filme. 

A resposta talvez seja não tentar vencer a morte, mas viver com maior felicidade, quase que num estado de "ingenuidade". A racionalidade não nos fornecerá armas adequadas para vencer a morte, mas a leveza nos manterá tranqüilos e confiantes de ter encontrado um "sentido" para a vida. Só isto esvazia o sentido do “vazio” e do medo que ele nos impõe.

Nos dias atuais, quando a meta é ser "imortal", quando o maior objetivo é parecer sempre "jovem", estamos cada vez mais distantes da leveza e da tranqüilidade, e isso é devastador. Não só estamos perdendo a batalha do xadrez para a morte, como estamos deixando de viver. O filme é clássico, afinal, a questão da morte não se desatualiza. 

Não é o suposto "vazio" trazido pela morte que mais nos assusta, mas o vazio que permitimos em nossa vida.

domingo, 14 de julho de 2013

"Outono em Nova York" e a promessa de não amar

Hoje, grande parte do cinema está tomado pelo gênero "comédias românticas", geralmente leves e bobinhas, que não exigem maiores esforços de compreensão, nem causam qualquer maior identificação, mas que ajudam a relaxar um tempinho. O filme Outono em Nova York (EUA, 2000) não segue bem esta linha e apresenta uma temática bem interessante. 
- Só posso lhe oferecer o que temos agora, nada mais.
- Como sabe? Estamos juntos a tão pouco tempo! Os sentimentos mudam. Você nem me conhece direito.
- Pode ser, mas eu me conheço!
Este é o diálogo inaugural que mostra Will terminando um relacionamento como de costume. Will Keane, é um empresário cinquentão, bonitão e sedutor. Não precisa fazer muito esforço para “colecionar” seus relacionamentos, sempre fortuitos e jovens. 
Certo dia, porém, seu olhar se desvia e se fixa, por alguns instantes, em uma linda jovem cujas feições são melancólicas. É isso que atrai Will? Houve alguma identificação? A quem ele vê quando fixa seu olhar na linda e triste Charlotte? De qualquer forma, após serem apresentados formalmente por uma velha amiga, Will parece seguir o seu “ritual” de sedução e faz contato. Claro que ele tem um pretexto. Quer que ela lhe faça um chapéu para a namorada. Charlotte está encantada, como se fosse sua primeira paixão. As vezes até se comporta como uma adolescente. Uma espontaneidade que parece encantar ainda mais a Will. De novo, o que teria Will visto neste comportamento tão espontâneo, generoso e encantador, que tanto contrasta com sua frieza?
Um passeio a dois, um local bonito e ela praticamente se oferece para um beijo. Mas, algo rompe o “ritual”. Will, por alguns instantes, recusa, parece sentir-se ameaçado, desconfortável. Ele passa a observá-la como quem "contempla" e não como quem simplesmente “olha”. Há algo nela que o faz fixar-se, mas de forma diferente do seu ritual de conquista que serve a todas as mulheres. Mas quem disse que é tão simples romper um ritual? Mais tarde, ele tenta uma “conversa séria”, é o momento em que seu ritual continua, com a “sedução” dando lugar à “advertência”:
Eu podia dizer isso depois, mas gosto mesmo de você. Quero ser bem claro para que não haja problema depois. Quero lhe dizer que o que posso lhe oferecer é isso, o que temos agora. Nada mais. Somente isso. Até terminar. O que quero dizer é que não temos futuro.
Eu sei… eu estou doente”, ela responde. E seu olhar volta àquela melancolia inicial. Mas, só por alguns instantes, pois seu espírito alegre e brincalhão logo se impõe. Charlotte, em suas brincadeiras sobre a ausência de um futuro coloca Will diante de seus próprios “truques”. Ela diz, por exemplo, que logo será uma bela história triste para ele usar em suas cantadas. Isso começa, de alguma forma, a abalar Will. Parece estar diante de algo muito “real” sobre si mesmo e que o incomoda agora. Ela insiste em ser só um tempo “presente”, sem futuro, mas isso, ao contrário do que se poderia esperar, não deixa Will mais à vontade.
Se Will é um sedutor daqueles que "parte para cima" com seu charme, Charlotte tem o dom de “encantar”, com a verdade e a sua simplicidade – aliás, coisas bem distintas na sedução. Não à toa Charlotte nos presenteia com uma frase de Emily Dickinson, poeta americana que, apaixonada e melancólica disse: “A esperança é um pássaro que se empoleira na alma”. Mas, no fundo, Charlotte recusa a esperança. Ela sabe que vai morrer!
Aos poucos a curiosidade de Charlotte em saber mais da antiga amizade de Will com sua mãe vai fazendo-o relembrar situações que parecem ter sido muito especiais para ele. Talvez mesmo uma antiga e verdadeira paixão. Mas, Will resiste em sua promessa de jamais voltar a se apaixonar. Quando Will a trai com uma antiga ex-namorada, Charlotte lhe questiona: “E o amor?”… “E o amor?”. Por que Will a traíra? Ela não aceita e lhe questiona: “E o amor?”, mas ele não tem respostas. Ela o deixa.
Este é o momento em que se instala em Will um terrível combate em torno de sua promessa e seu medo de amar, e ele diz: “Ah, vou voltar a ser como eu era!”. Mas, não é mais tão simples assim. Nesse ínterim, Will reencontra sua filha (de um caso fortuito de antes). Na verdade, é ela quem o está “rondando”. Queria lhe falar que estava grávida e que ele ia ter um neto. Ela sempre fantasiou uma reaproximação, um pedido de desculpas do pai.
São dramas que correm em paralelo, como se um “reforçasse” o outro. Will vai até Charlotte e pede para que ela o deixa amá-la, “tentar outra vez”. Parece estar em curso uma “reconciliação” de Will consigo mesmo, um “reencontro”. Ele passa a lutar cada vez mais para que Charlotte aceite ser operada, como numa última tentativa.
E mais uma vez reencontra-se com Lisa, sua filha. Lhe pede perdão. E ela se torna sua parceira em buscar encontrar um médico para Charlotte. São laços afetivos sendo reconstituídos lentamente na vida de Will. Charlotte tenta fazer Will lembrar do “amor”, e ele tenta mostrar-lhe a necessidade da “esperança”. Lisa, em meio a tudo isto, quer resgatar sua “história” e fazer Will voltar os olhos para a sua também, tendo que trabalhar com outros “tempos” que não só o presente, mas também o passado (enquanto "pai") e o futuro (sozinho?).
Entretanto, em um momento de intensa felicidade Charlotte tem sua crise que parece definitiva. Não é assim que sonhamos morrer?… felizes! Enquanto se prepara para a cirurgia, Will diz que ela o matou para outras mulheres, pois está apaixonado, mas ela diz o que seria a frase-síntese deste filme: “eu o salvei para as outras mulheres”. Sim, ele poderia voltar a amar. Sua tristeza e sua dor precisavam vir á tona. Eram a demonstração mais clara de que estava vivo e pronto para novos encontros, mais verdadeiros. Um belo filme!