Um tempinho atrás, num desses canais fechados de filmes clássicos, descobri "Tormentos da Alma" (Pressure Point, EUA, 1962, com Sidney Poitier). Em sua face mais aparente o filme trata do racismo, afinal está centrado nos embates entre um psiquiatra negro e seu paciente branco de ideologia nazista. Numa situação assim o racismo muito dificilmente deixaria de se destacar. Mas, há bem mais que isso.
Chefe de um setor psiquiátrico em um hospital nosso personagem central se vê diante da iminente desistência de um de seus médicos no tratamento de um paciente considerado "difícil". É nesse momento que ele passa a relembrar-lhe uma experiência pessoal de 20 anos atrás. Nessa época, trabalhava na psiquiatria de uma penitenciária federal e tinha um paciente, branco, de 29 anos, cumprindo pena por rebelião em prol da derrubada do governo Roosevelt.
De imediato, a partir destas lembranças, o que vemos é uma forte contratransferência do psiquiatra que passa a nutrir forte intolerância com seu paciente e suas ideias nazistas. O diagnóstico inicial? um psicopata (paranóico, agressivo e antissocial), para quem recomendara isolamento, principalmente para não espalhar suas ideias na cadeia. No isolamento, entretanto, o paciente continua com suas angústias: insônia, pesadelos, sentimentos paranóicos, "ausências", desmaios, alucinações (se vê prestes a cair pelo ralo de uma pia em direção a um possível abismo).
Sempre agressivo, e tentando desmoralizar o psiquiatra por ser negro, tudo o que parece buscar é um remédio para que possa dormir. Mas, o psiquiatra passa a investigar seus sintomas e começa a lhe perguntar sobre as "ausências", seguidas de enjôo e dificuldade de respiração. Em determinado momento o paciente lembra que só chegou a desmaiar uma vez, ainda quando criança. Nesse exato momento, ele tem uma crise e desmaia. Pede ajuda ao médico, que insiste em que precisa "conhecê-lo melhor para poder ajudar".
As consultas se sucedem e, no processo de investigação, um quadro mais claro vai surgindo. Ele era filho único e seu nascimento só acelerou o fracasso do casamento dos pais. Um pai irritável e descontente, com forte ressentimento vingativo contra o filho. A mãe, fraca, deprimida, cada vez mais isolada na cama. Assistindo a tudo isso, ele, criança, só prometia a si mesmo não chorar. Acabou isolando-se muito na infância, e sempre revelava-se envergonhado em relação ao pai. Aqui, um destaque para o filme. São impressionantes as cenas de revivência desses momentos da infância que invadem o consultório. É a imagem completa do que chamo de "o retorno do infantil", trazido em flashbacks pelo filme.
Apesar de cuidar da mãe, não sentia pena. A via como uma "fraca" e passou sempre a ter raiva dos mais fracos. Sempre admirou aqueles que competem e superam barreiras, tornando-se mais fortes. Era como desejava ser. Em seu desenvolvimento isolado acaba por criar um amigo imaginário para buscar as satisfações negadas pela realidade. E a função deste amigo imaginário foi a de lhe permitir exercer sua pequena tirania, sua fantasia de indestrutibilidade. Gradativamente, porém, à medida que entra na escola, e vai tendo contatos sociais mais amplos, vai abandonando este amigo imaginário em troca de amigos reais, sempre tendo como elo de ligação os atos arriscados e indisciplinados.
A mãe "fraca" e deprimida, entretanto, lhe alimentava uma forte relação libidinal. Dizia que ele era o "único", o mais "forte", palavras que lhe enchiam de um desejo de vingança contra o pai, e raiva da fraqueza da própria mãe. Imaginava-se um príncipe oriental, poderoso, que punia implacavelmente, inclusive sua própria mãe. Era assim que se iniciava o padrão de seu comportamento sexual, satisfazendo seus desejos sempre com muita brutalidade e impondo aos outros os seus caprichos.
Certa vez, em meio a uma crise econômica, vendendo frutas na rua conheceu uma simpática e gentil moça. Parecia ter encontrado a chance de um relacionamento feliz, mas o pai dela, um judeu, o recusa. É aí que tem início a transferência de seu ódio para os judeus e aproximação com nazistas. O que o filme vai construindo, então, é uma clara associação entre o nazismo e o ressentimento individual com todas as suas perdas e incapacidade de preenchê-las com a sociabilidade. Há um forte didatismo do filme, nesse sentido, ao mostrar a lógica e o nascimento de movimentos como o nazismo, definidos como "movimentos de ódio" por parte daqueles que são rejeitados. Inegável aqui a leitura dominante do perfil psicológico de Hitler, sempre visto como um "rejeitado" e que se alimentara de ódio ao longo de toda a vida.
De imediato, nos grupos nazistas, seu ódio encontrava acolhida e era canalizado para alvos comuns, reais, e poderia, enfim, sentir-se forte. Com as reuniões de seu grupo nazista, saia do isolamento e ampliava sua força e poder. Aquela criança que detestava ver o sangue, tão presente no açougue do pai, agora era um adulta que clamava por esse mesmo sangue.
Voltando ao consultório, o psiquiatra insiste que continue falando de suas "ausências". Diz sentir medo, diz sentir que vai morrer. Ele diz que é seu pai que está caindo no ralo da pia, mas antes era ele. Como explicar? Misturam-se o desejo pela morte do pai e a punição que impõe a si mesmo por este desejo? Era, ao mesmo tempo, assassino e vítima, e esta fantasia o perseguia cruelmente. O reconhecimento aberto deste desejo fez com que os ataques de ausência desaparecessem. Parecia ter resgatado sua possibilidade de voltar a dormir melhor. Mas, uma outra questão toma conta do psiquiatra. Ele não quer liberá-lo para a condicional por acreditar que, embora curado do sintoma da insônia e dos pesadelos, sua personalidade continua a mesma, sem que tenha ocorrido nenhum tipo de mudança.
Mas, essa posição do psiquiatra contraria a dos demais médicos do hospital e o paciente acaba conseguindo a liberação. A questão para o psiquiatra era: mesmo com bom comportamento ele ainda era um homem perigoso, por suas ideias, sua obsessão. Nesse momento, num forte indício de contratransferência, o psiquiatra parece estar diante do próprio Hitler, e imagina poder detê-lo antes que cometa maiores males à sociedade. Para o psiquiatra, a rebeldia do paciente contra a autoridade refletia seu ódio pelo pai, e sua raiva contra os mais fracos (a raiva contra a mãe). Continuava sentindo-se fraco e impotente mas buscaria, sempre, compensar isto com atos perversos, intolerantes e agressivos. Enfim liberto, 10 anos depois seria enforcado por espancar um estranho até a morte.
Ao final do filme, já em sua época atual, o médico relembra, numa autocrítica, que o tratamento e a disposição profissional para a "ajuda" devem ser maiores que qualquer ressentimento ou preconceito. É com essa história que ele convencerá o membro de sua equipe a continuar o tratamento com um paciente negro, também agressivo. Estávamos nos anos 60 e a situação invertera-se. Eram os negros que agora se mobilizavam nas ruas por direitos, num momento de acirramento das questões raciais nos EUA.
Claro que o filme parece uma coleção de clichês psicanalíticos, mas, ainda assim é um bom filme, principalmente pela ousadia em associar o conflito psíquico individual às pressões do ambiente social. E, se a contratransferência do psiquiatra (sua raiva do paciente) revelava uma clara influência do social em seu psiquismo (a luta contra a ideologia nazista), também nos mostra o quanto, como profissionais, também estamos vulneráveis.
Com relação a este aspecto precisamente lembro a posição de Lacan acerca da contratransferência, como um conjunto de obstáculos imaginários que dificultam ao analista ocupar, de fato, seu lugar de "atrator". Mais tarde, Nasio iria situar a contratransferência como algo, então, que se define não no interior da relação do psicanalista com o
seu paciente, mas no interior da relação do psicanalista com esse lugar que deve ocupar.
O seu "desejo" pelo tratamento, como o próprio personagem do filme ressalta, deveria ser maior que o preconceito (obstáculo).
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