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sexta-feira, 16 de maio de 2014

A Psicanálise e o autoconhecimento

"Face à dor psíquica... que a vida inevitavelmente provoca, o homem é capaz de criar uma neurose, uma psicose, um escudo caracterial, uma perversão sexual, sonhos, obras de arte e doenças psicossomáticas. (...) E embora o sujeito encontre aí sua morada, tem muito pouca consciência de seu significado...". (Joyce McDougall - "Em defesa de uma certa anormalidade", 1° parágrafo do ensaio Psicanálise e Soma)

É em busca deste significado que a neurose, por exemplo, tem para o sujeito, que a Psicanálise o acompanha em sua jornada de autoconhecimento.

sábado, 12 de abril de 2014

Sobre a Psicanálise (Freud, 1913 [1911])

Em março de 1911, Freud recebeu um convite do Dr. Andrew Davidson, secretário da Seção de Medicina Psicológica e Neurologia para escrever, ler e publicar um artigo nas Atas do Congresso Médico Australasiano (Sidney, setembro/1911). Trata-se de um texto muito curto, mas bastante elucidador sobre o papel da psicanálise. Vejamos os principais pontos.

Freud nos diz que a psicanálise, como um método de pesquisas das neuroses e sua etiologia (causas), não é fruto de especulação e sim de experiências científicas que precisam ser continuadas. Tudo teria começado com as pesquisas sobre a histeria (Estudos sobre a Histeria, 1895 - Freud e Breuer) que tomaram impulso a partir dos rastros de Charcot (histeria "traumática"), Liébeault e Berheim (hipnose) e Janet (processos inconscientes).

Aos poucos a psicanálise foi recusando várias explicações limitadas às questões hereditárias e congênitas e foi acentuando a importância dos processos psíquicos na formação de doenças. Um exemplo foi mostrar que os sintomas histéricos são resíduos (reminiscências) de experiências traumáticas e afastadas do consciente através de um processo de "repressão" onde parte do material psíquico é mantido no inconsciente.

Trata-se de uma visão "dinâmica" pois encara os processos psíquicos como deslocamentos de energia psíquica que podem ser medidos pelo valor de seu efeito sobre os elementos afetivos (p. 226). Na histeria isto é muito presente pois a "conversão" cria os sintomas pela transformação de boa quantidade de impulsos mentais em inervações somáticas.

No início, os primeiros tratamentos foram feitos com o auxílio do hipnotismo, logo abandonado pela "associação livre' que permitia estender o método a mais pessoas. Mas, com isso, foi necessário desenvolver uma técnica de "interpretação" sobre o que era dito pela pessoa. A partir daí começou a ficar claro que as dissociações psíquicas surgiam de "conflitos" e eram sustentadas por "resistências internas" que mantinham a "repressão". Superar os "conflitos" seria fundamental para o tratamento.

Mais tarde, chegou-se à conclusão que os conflitos se davam sempre entre os instintos sexuais (no sentido amplo) e os desejos e tendências do restante do ego. Nas neuroses, por exemplo, esses instintos sucumbem à repressão e se tornam a base mais importante para o surgimento de sintomas (encarados, então, como substitutos das satisfações sexuais reprimidas).

Outro desenvolvimento importante da psicanálise foi acrescentar o fato "infantil" ao somático e ao hereditário, chegando à conclusão que inibições no desenvolvimento mental ("infantilismos") apresentam uma disposição à neurose. Ou seja, existe uma "sexualidade infantil". O instinto sexual, desde muito cedo, atravessa um complicado curso de desenvolvimento cujo desfecho deveria ser a sexualidade "normal" nos adultos. Isso nos mostra que, por exemplo:
As enigmáticas perversões do instinto sexual que ocorrem em adultos parecem ser inibições de desenvolvimento, fixações ou crescimentos assimétricos. Assim, as neuroses são o negativo das perversões (p. 227).
Mais um desenvolvimento importante da psicanálise foi perceber que o "desenvolvimento cultural" da humanidade é um forte fator que torna inevitáveis as repressões do instinto sexual, proibindo a satisfação da libido e exigindo sua supressão.

Na sequência, percebeu-se que o instinto sexual tem a capacidade de ser "desviado" dos seus objetivos sexuais diretos para metas mais elevadas ("sublimação") como as realizações sociais e artísticas, por exemplo. Dessa forma,
O reconhecimento da presença simultânea dos três fatores de "infantilismo", "sexualidade" e "repressão" constitui a principal característica da teoria psicanalítica e assinala sua distinção de outras visões da vida mental patológica (p. 227).
Ao mesmo tempo,
A psicanálise demonstrou que não existe diferença fundamental, mas apenas de grau, entre a vida mental das pessoas normais, dos neuróticos e dos psicóticos. Uma pessoa normal tem de passar pelas mesmas repressões e lutar com as mesmas estruturas substitutas; a única diferença é que ela lida com estes acontecimentos com menos dificuldade e mais sucesso (p. 227).
Não à toa a psicanálise enveredou pela investigação dos fenômenos psíquicos normais, como os sonhos, os pequenos erros da vida cotidiana, os chistes, os mitos e as obras da imaginação, sempre com o objetivo de obter maior compreensão interna (insight) da vida psíquica inconsciente.

Porém, apesar de todas estas conquistas, Freud denuncia a tendência nos círculos médicos a contradizer a psicanálise sem estudos reais ou aplicações práticas, talvez porque as premissas e a técnica da psicanálise estejam mais próximas da psicologia que da medicina. Mas, Freud questiona: O que os ensinamentos puramente médicos fizeram pela compreensão da vida mental?

O fechamento da comunicação de Freud é impressionante. Faz um alerta com uma força esplendorosa!
O progresso da psicanálise é ainda retardado pelo termo que o observador médio sente de ver-se a si mesmo em seu próprio espelho. Os homens de ciência tendem a enfrentar resistências emocionais com argumentos e, assim, satisfaze-se a si mesmos para sua própria satisfação! Quem quer que deseje não ignorar uma verdade fará bem em desconfiar de suas antipatias e, se quiser submeter a teoria da psicanálise a um exame crítico, que primeiro se analise a si mesmo (p. 228).
_________

FREUD, S. Sobre a Psicanálise. In: Obras Psicológicas Completas: Edição Standard Brasileira. Volume XII – O Caso Schreber, Artigos sobre Técnica e outros trabalhos (1911-1913) , pág. 221-229.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Transferência (Laplanche e Pontalis)

De acordo com Laplanche e Pontalis (Vocabulário da Psicanálise) a transferência designa, 
o processo pelo qual os desejos inconscientes se atualizam sobre determinados objetos no quadro de um certo tipo de relação estabelecida com eles e, eminentemente, no quadro da relação analítica. Trata-se aqui de uma repetição de protótipos infantis vivida com um sentimento de atualidade acentuada ... terreno em que se dá a problemática de um tratamento psicanalítico, pois são a sua instalação, as suas modalidades, a sua interpretação e a sua resolução que caracterizam este.
O termo transferência implica em "movimento", "deslocamento" e, em psicanálise, nos fala da relação entre analista e paciente. Mas, o que nos diz Freud acerca desse fenômeno? 

A propósito do sonho, Freud nos falou de "pensamentos de transferência" como um deslocamento onde o desejo inconsciente se exprime e disfarça nos materiais fornecidos pelos restos do dia anterior, já presentes no consciente. É dessa forma, "disfarçada", que o inconsciente, então, manifesta-se no consciente. Surge uma espécie de "ligação" ou "conexão" que faz despertar o mesmo afeto que tempos atrás havia levado o paciente a rejeitar o desejo, visto como proibido. Assim, estamos falando do "deslocamento" de um afeto de uma representação que está no inconsciente.

Não à toa o analista, por vezes, é colocado na posição de figuras (protótipos, imagos) parentais, ou familiares, amadas ou temidas (em toda sua ambivalência). É aí que o analista entra na "série psíquica" já criada pelo paciente em sua vida. É esta relação anterior que é revivida na transferência. Foi assim que Freud falou de "Neurose de Transferência", uma "doença artificial" que substitui a neurose clínica, evidenciando que é com estas possibilidades de transferência que o tratamento se dá.

Para Freud, o mecanismo se desencadeia no momento em que conteúdos recalcados importantes ameaçam se revelar. É por isso que a transferência surge como uma forma de "resistência" à revelação do conflito inconsciente. Mas, justamente por isso, é uma maneira de o analista apreender, "a quente" os elementos do conflito infantil (fragmentos da vida sexual e do Complexo de Édipo), que se revela em sua atualidade. É por este fato que a transferência torna-se um poderoso instrumento terapêutico. Esta seria sua grande função na terapia. Estamos falando, então, de um compromisso entre as exigências da resistência (do Id) e as do trabalho terapêutico.

Quanto ao conteúdo da transferência, Freud já nos dizia que o doente não pode recordar-se de tudo o que está recalcado, nem mesmo talvez do essencial, mas é obrigado a revivê-lo no presente através de uma "atualização", de uma "repetição" de situações e emoções que exprimem a indestrutibilidade da fantasia inconsciente. Claro que não estamos falando de uma transferência literal, mas de "equivalentes simbólicos" do desejo inconsciente e suas fantasias conexas. No tratamento, as "construções" viriam para preencher as lacunas do passado infantil não revelado.

Reside aí, então, uma das mais fortes críticas e limitações ao processo de auto-análise, pois lhe faltaria uma relação interpessoal, onde o analista faz o papel de outro numa "comunicação" onde pode assumir, por exemplo, a posição de superego, revelando os mecanismos de identificação levados a cabo pelo paciente.

Outro aspecto interessante é que a transferência acrescenta uma outra forma de comunicação à forma tradicional que é a dimensão da palavra (verbalização das lembranças recalcadas, rememoração - talking cure). Trata-se da "atuação" ou repetição da experiência vivida.

É neste ponto, principalmente, que podemos apontar os limites da "auto-análise", pois lhe faltaria uma relação interpessoal. Sozinho o paciente não tem alguém (analista) que faça o papel de "outro" numa "comunicação". Daí a importância do analista perceber e facilitar o "ENLACE LIBIDINAL", ou seja, que o paciente se interesse pelo "objeto" analista, através da criação de um VÍNCULO. É isto que possibilita o tratamento. Não à toa dizemos que a transferência é o "motor" da análise. E não é à toa que se o paciente não sentir-se "confiante" nesta relação ele não continua o tratamento.

EM RESUMO: no vínculo analista-paciente determinados conteúdos recalcados ameaçam vir à tona e, como forma de resistência, surge a "transferência" revivendo estes conflitos infantis inconscientes e permitindo ao analista "enxergar" de forma mais clara o que foi vivido pelo paciente e que se tornou insuportável para ele.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Neutralidade na profissão de analista?

Um dos mecanismos psíquicos que colocamos em prática quando adquirimos algum conhecimento (diploma, curso, formação, profissão, experiência etc.) é o de nos colocarmos, teimosamente, e de modo bastante infantil, numa posição de "suposto saber" e, pior quando a ele logo colamos algo de "poder". Isso fascina a qualquer um, e muitas vezes é disfarçado através do "orgulho" e da "vaidade". 

É evidente que na atuação do psicanalista isso também ocorre (tanto por parte dele que se coloca com este saber-poder, quanto por parte do paciente que delega ao analista essa posição). No meio disso sobra a crença de uma suposta "neutralidade", como se ali, no consultório, existisse um "sujeito" (analista) e um "objeto" (paciente). Ora, isso não é tão simples assim, o que existe é um "par", um "vínculo", uma "relação" que é a principal responsável por todo o tratamento. Talvez este seja um dos grandes trunfos da ética psicanalítica (o que não significa que todos os profissionais a sigam).

Escrevi isso motivado por uma frase que ouvi ontem, mas que se repete sempre: "você não vai ficar lá só me ouvindo, fazendo hum rum e com um bloquinho nas mãos né?". Ora, isso nos fala de um estereótipo criado em torna da atuação do analista, mas que foi e é reforçado por muitos profissionais. E, por outro lado, fala de um forte pedido de "ajuda" por parte do paciente que quer e espera por intervenções de seu analista em prol de sua saúde. 

O fato é que, fazer análise, não é receber "conselhos" de alguém mais experiente ou que conhece mais, mas implicar-se com muita responsabilidade em um processo de transformação pessoal que se dá "na" e a partir "da" relação com o analista. E, nesse processo, é claro que o analista torce, e muito, pelo sucesso do paciente. Este é um vínculo afetivo que nenhuma suposta "neutralidade" terá capacidade de quebrar, sob o risco de perdermos boa parte de nossa capacidade de acolhimento e empatia.

Enquanto profissionais não podemos olhar no espelho e vermos algo diferente do que somos. Aliás, alguém deveria fazer isso? Talvez não... sob o risco de perder-se nas armadilhas do narcisismo!

(José Henrique P. e Silva)

segunda-feira, 17 de março de 2014

"Instinto": O papel da ilusão na ideia de "controle" e de "liberdade"

"Instinto" (1998) trata da história de um antropólogo (A. Hopkins) que, após ser dado como desaparecido, foi encontrado vivendo junto a gorilas e que, por matar e agredir guardas florestais, foi preso e colocado sob tratamento psiquiátrico. A avaliação inicial de sua agressividade é a de que sua convivência com animais o teria tornado um deles. O desafio, então, para levá-lo a julgamento, será obter uma avaliação mais completa de seu estado já que se recusa a falar com qualquer um.
 
Na instituição psiquiátrica (para pacientes psicóticos) em que se encontra preso é forte a sua identificação com os mais "fracos" e, apesar de estar fortemente medicado com Haldol (neuroléptico) seus médicos insistem que "ele não fala mesmo", reafirmando a visão dominante de que ele é um "selvagem" e seu silêncio é só uma demonstração dessa "violência contida". Mas, que silêncio é esse? Será que não quer dizer algo que acredita que não entenderão? O que gostaria de dizer? Mais tarde, uma das exigências para a continuidade de sua avaliação é a de que a medicação seja reduzida (decisão vital para o trabalho do terapeuta).
 
É somente ele (e não os médicos) que vai dizer que o momento de falar chegou, e para isso precisa sentir-se em algum "vínculo" (fundamental para o trabalho junto a psicóticos). As vezes um simples olhar já pode significar um forte "contato" e sua resposta, como o gesto de pegar algo ou dar atenção a algo que reconhece, já é uma demonstração de "contato". Assim, mostrar-lhe objetos, fotos etc, sempre com o intuito de estabelecer algum contato entre ele sua realidade passada, e entender que tipo de relação tinha com essa realidade, é sempre uma boa tática. Um dos fascínios que vai estar por trás dessa motivação do terapeuta é justamente a de poder estar muito próximo da condição mais "primitiva" (animalesca) de um homem e sua estratégia será a de "trazê-lo" de volta para o contato com a nossa "realidade". 
 
"...Descreva o que vê!" Pede o terapeuta diante de uma foto mostrada ao paciente. É uma boa forma de começar a entrar no delírio de um psicótico. O cuidado, entretanto, será sempre o de não permitir ser conduzido por ele nessa jornada. Nesse diálogo, então, deve-se ficar muito atento aos gestos do paciente pois é como se ele estivesse hipnotizado, vivendo outra situação que não expressará somente por palavras. Então, se ele para o olhar talvez seja porque esteja "vendo" algo de seu interesse ou realidade. Tudo bem que, apesar de ser tratado no filme como um psicótico, o que ocorre muito mais é um "mutismo voluntário" que surgiu em função de uma mudança de perspectiva vivida pelo sujeito que experimentou um afastamento muito intenso de nossa realidade. Mudança essa que significou uma recusa de determinados valores em troca de outros.
"fiquei feliz com minha lenta jornada ao encontro deles. Senti-me privilegiado. Senti-me como se estivesse voltando para algo que eu perdera há muito tempo e que só agora me lembrara. De repente aconteceu. Eu não estava mais fora do grupo. Pela primeira vez eu estava entre eles..." (A. Hopkins, descrevendo sua aproximação e aceitação na "família" dos macacos).
Com essa aceitação, ele passaria a experimentar uma afinidade, paz, segurança, que jamais conheceria em uma cidade, cercado por pessoas e violências. Trata-se da experimentação de uma verdadeira recusa do nosso "mal-estar", onde a loucura e a violência não encontram paralelo, e são assustadoras. Mas, o que estaria, de fato, por trás do "mutismo" do personagem?
"...Só temos que desistir de uma coisa. Nosso domínio. Não somos donos do mundo. Aqui não há reis nem deuses. Podemos desistir disso? Esse controle é tão precioso? Ser Deus é tanta tentação? ..." (A. Hopkins).
Então, segundo nosso personagem do que mais temos medo em perder? Nosso "controle"? Não! Nossa "liberdade"? Não! Nossas ILUSÕES! Afinal, o "controle" é somente uma ilusão, pois o que realmente controlamos? Da mesma forma, a "liberdade" é somente uma ilusão, pois somos mesmo livres? Nosso maior medo é mesmo o de perder nossas ilusões. Nesse sentido, a grande questão que intriga os avaliadores (é dos gorilas que vem a violência desse homem?) é uma falsa pergunta. Querem entender porque ele se tornou um assassino sem questionar as etapas desse processo de mudança e que o levou ao assassinato.
 
Um aspecto interessante no filme é que  descoberta de "verdades" dá ao nosso personagem certa arrogância para considerar qualquer um como um "idiota" da civilização. Onde estaria o problema? Na falta de confiança em relação a todos? Na sua ilusão de possuir a "verdade"? Ou na ilusão de acreditar em uma "verdade"? É assim que, nossa ilusão em sermos "superiores" nos impede de entender que fazemos parte, compartilhamos esse mundo. Essa "superioridade" (ilusão) nos impele ao "controle" (ilusão) e, para garantir a "liberdade" (ilusão), nos usamos da "violência" (real) como recurso necessário, justamente para manter as ilusões.
 
Onde entra, então, nosso tão forte desejo de "felicidade"? Para que ele surge? Porque dele temos necessidade? Ele vem para aplacar nossa angústia, sempre revelada quando diante da perda de nossas ilusões? Talvez só tenhamos que aprender a sentir e a viver, já que parece tão difícil escapar do jogo das ilusões. Talvez a felicidade seja vista como algo tão difícil porque sempre a colocamos do lado de fora das grades que nós mesmos construímos para uma suposta "proteção".

sábado, 25 de janeiro de 2014

"...Uma vez ou outra, quase todos nós nos sentimos aprisionados por coisas que pensamos ou fazemos, enredados por nossos impulsos ou escolhas idiotas; presos em alguma infelicidade ou medo, atolados em nossa própria história. Sentimo-nos incapazes de seguir adiante, mas apesar disso acreditamos que deve haver uma maneira (...) E como mudança e perda estão profundamente conectadas - não pode haver mudança sem perda..."

(Stepen Grosz, A Vida em Análise).

sábado, 14 de dezembro de 2013

Sobre a Interpretação na análise

Quando alguém inicia um processo de análise é claro que existem muitas fantasias acerca de tudo o que pode acontecer. Uma dessas fantasias é a de que o discurso do analista, quando ele faz a sua "interpretação" da fala do analisando, é algo muito poderoso e que traz uma "explicação" quase definitiva, ou um "conselho" superior. Besteira! E o pior é quando o analista começa a compartilhar dessa fantasia e acaba se colocando em uma posição de "poder". O que ocorre, pela experiência, é um processo de "construção" com o analisando permanentemente (não necessariamente "interpretação"). A interpretação, quando ocorre, se dá em raros momentos, e sempre de forma muito precisa e localizada. Afinal, tenho que ter o cuidado de só interpretar aquilo que o analisando tem condições de "metabolizar", do contrário... efeito zero, ou até contrário.

No caso de um sonho, por exemplo. É fundamental que ocorra um deciframento. Mas não é o analista que faz isto sozinho. Pelo contrário, ele pode até atrapalhar com sua ansiedade e teorização. O que ocorre, então? Um tremendo processo de "construção", onde o analista auxilia o analisando em seu discurso. É no contexto desse trabalho de "construção" que se forma o "vínculo" e ocorre a "transferência" das questões do analisando para o analista. Sair dessa posição de um "saber poderoso" é vital para um bom processo de análise.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

O pecado de falar sobre o desejo!

Tenho um grande débito para com a psicanálise. Depois que a descobri foi como se iniciasse um caminho de retorno a mim mesmo e foi isso que, profissionalmente, me possibilitou ir ao encontro de outras pessoas na tentativa de oferecer algum suporte para esse mesmo encontro. Não desmereço minha história, mas não tenho receio em dizer que devo à clínica psicanalítica o que sou hoje. E quando falo "clínica" falo dos meus atendimentos, de minha análise pessoal, de minha supervisão e de minha formação teórica que é permanente, interminável. Claro que têm dias que saio da clínica mais pensativo do que, de fato, gostaria. Intrigado, as vezes sem encontrar uma ideia que acalme o pensamento, as vezes até um pouco irritado. Sim, é normal, pois se temos que suportar as dores de outros, também precisamos de alguém que suporte as nossas. Ou o psicanalista não tem suas dores? Mas não é esta a questão exatamente. O ponto mesmo é o que por vezes deixa uma intriga.

É muito normal que a intriga fique sempre pairando o atendimento clínico. Lido, ali, com questões psíquicas muito próprias do indivíduo, mas que nunca deixam de refletir o conjunto de vivências e relacionamentos que ele experimentou ao longo de sua vida. Nunca acreditei estar ali acompanhando e analisando um indivíduo isolado, mas um indivíduo que se situa em uma densa e complexa teia de vivências sociais de toda ordem. E tudo isto se manifesta em suas angústias. Vou já oferecer um exemplo desta complexa e densa teia social.

Na clínica, portanto, a condição humana se revela em sua face, não diria nua, mas mais enigmática. Sim, porque mesmo nus não deixamos de ser enigmas. E é sobre um desses enigmas que quero comentar um pouco mais. Há alguns dias, numa quinta-feira a noite, me surpreendi, intrigado, com o quanto se andava falando, na clínica, sobre a questão do casamento, de modo mais específico, e do relacionamento, de forma mais geral. Não tenho estatísticas que comprovem esse aumento de preocupação com esta questão mas, de fato, me parece estar ocupando um espaço crescente.

Casamento, relacionamento, no fundo estamos falando do "amor", seus dramas e angústias. Ora, vamos acertar logo algo aqui desde o início. Falar de amor é falar sim de sofrimento. É falar de algo que fantasiamos como solução definitiva mas que sabemos correr o risco permanente de perder. E isto se revela como fonte de uma angústia inesgotável. Pode até não atrapalhar tanto a felicidade, mas fica ali como algo ameaçador. Podemos perder um amor sim. Podemos perder a pessoa para a morte, ou para a vida. Há, portanto, sempre algo que nos fala de uma severa necessidade em lidar com o luto de uma separação. Mas tudo isto é muito amplo e geral, e queria mesmo pensar sobre algo mais específico.

Ou seja, e quando uma pessoa não revela seu desejo de separação com medo de magoar à outra? O que existe aqui? De que estamos falando? Logo o que me vem à cabeça é uma pergunta: o amor encontra seu mais perfeito contorno em um casamento? Ora, pode ser que sim! Existem casamentos, e relacionamentos, que são a mais "perfeita" materialização do amor. Mas, e quando o amor parece não mais caber em um casamento? O que se faz? É essa dúvida que leva muitas pessoas à clínica.

Alguns poderiam dizer apressadamente: "separem-se oras!". É, pode ser assim mesmo. Mas, em que pese acreditarmos em nossa capacidade de agir e tomar decisões conscientes e racionais, não é assim que agimos na maioria das vezes. Aliás, na grande maioria das vezes. Lógico que isso pode parecer frustrante para alguns, mas há como negar? Nem tentem me convencer que somos seres "racionais" 24 horas por dia! Já desisti desta crença há algum tempo.

E isto fica muito claro nas queixas dos pacientes justamente no momento que se descobrem ainda possuidores de uma enorme capacidade de amar, mas dramaticamente este amor não mais cabendo no seu casamento ou relacionamento. Ou seja, continuo podendo amar, mas amo outra pessoa agora! E aí? O que fazer? Os dramas são os mais diversos. Mas, existe um ponto bastante comum entre inúmeros casos. Uma espécie de fio condutor que ajudar a explicar várias situações que chegam à clínica. Não todas evidentemente.

Vou tentar, forçosamente, resumir a queixa na seguinte frase: "Como posso deixa-lo(a) se havia a promessa de um amor eterno?". Ufa! No dia a dia esta frase pode soar trivial, mas na clínica, diante da evidente angustia de um indivíduo, soa como um grito de desespero. Um beco sem saída. Uma caminho que só leva a um abismo.

Quando falei acima sobre um "fio condutor", um "ponto em comum" que ajuda a explicar esta queixa, estou falando da severa dificuldade, num primeiro momento, de reconhecimento do próprio desejo e, num segundo momento, de se trabalhar mais com "fantasias" que com a própria realidade. Mas, onde entra o peso do "social" nisto tudo? Vou por partes.

Entrar em contato, e reconhecer como legítimos nossos desejos não é mesmo uma tarefa fácil. Me arriscaria a dizer que talvez seja uma das principais tarefas da psicanálise, pois exemplifica bem o que seria esse "encontro consigo mesmo". Ora, quem é esse "outro" dentro de mim mesmo, que quero encontrar, senão meus desejos? É a busca por ele que pode significar uma atenuação das minhas dores e sofrimentos.

Mas, não se trata de um processo simples mesmo. Há momentos, por exemplo em que fantasias tomam conta, como uma sombra, e afastam qualquer possibilidade de enxergar a coisa com clareza e aí as decisões se tornam impossíveis. Por exemplo, se o indivíduo descobre que, de fato, quer continuar amando, mas amando outra pessoa, e tem um compromisso de relacionamento (casamento), começam a pesar sobre ele (a) severas questões.

Ele(a) pode acreditar, por exemplo, que não haverá qualquer possibilidade de diálogo com a pessoa com quem mantém o compromisso (fantasia), pode estar acreditando que ela(a) dirá algo que o coloque "contra a parede" e o(a) faça desistir da ideia de uma separação. Que fantasias são essas? Podem ser do tipo: "depois de tanto tempo, agora você quer me deixar?", "você jurou que nosso casamento seria eterno!", "minha família não vai aceitar!", "isso é pecado!", "o que as pessoas vão dizer de mim?", "eu não vou sobreviver sem você", "eu me anulei e me dediquei somente a você" etc.

Veja, tudo isto pode estar somente no nível de uma fantasia imaginada por quem quer se separar e não tem a coragem de iniciar um diálogo, ou pode se transformar em acusações bem reais quando do início de um diálogo. É justamente aqui que vemos o quanto um relacionamento pode ser invadido por questões egóicas (egoístas) e por pressões do social e até da religião, impedindo ou dificultando que as pessoas possam reformular suas vidas em busca de uma felicidade que imaginam poder conquistar.

Claro que estou tocando em questões socialmente sensíveis a muitas pessoas. Mas, quem disse que temos que ter esta preocupação como central na clínica. O que precisamos é escutar bem, ajudar a reconhecer o desejo e trabalhar no sentido de que o indivíduo seja competente e responsável o suficiente por suas escolhas. Mas, vamos voltar ao assunto.

Promessa, pecado, aceitação familiar, aceitação social, necessidades. O "social", o "egóico" e o "religioso", neste momento, surgem com toda força sobre aquele que está saindo de um casamento. Na voz daqueles que estão sendo "deixados" soa o grito de "traição", "abandono", "ingratidão", e na voz daqueles que estão "deixando" soa o peso de uma promessa não cumprida, o peso de estar se cometendo um "pecado".

Não é uma transição fácil, mas é bom que se lembre que a dor de uma separação, então, não está somente em quem "fica", mas também em quem "sai" de um relacionamento. Ambos têm que lidar com uma perda, um reencontro com seus desejos, com uma reestruturação. Isso não explica tudo, mas explica alguns dramas vividos em certos relacionamentos, honestos, mas que se perderam em algum momento.

Melhor seria se fizessem essa transição juntos, se escutando, se respeitando, buscando recuperar uma identidade que tem que sobreviver ao relacionamento que agora começa a se desfazer. É por uma recusa em buscar essa identidade, que é anterior e deve sobreviver mesmo durante o casamento, que muito casais acabam optando pelo comodismo, pelo abandono de seus desejos, pela infelicidade mútua, ao invés de se darem uma chance de liberdade e apostarem mais uma vez. É lamentável, mas é o que ocorre na grande maioria dos casos. O laço, que é frouxo e comporta sempre um risco, se transforma em uma corrente, dura e resistente, que aprisiona. estão como que "fadados a serem felizes", custe o que custar, inclusive a felicidade de ambos.

Só uma observação. Não vejo o casamento como uma instituição "falida", o que está falido mesmo é esse relacionamento egóico, que se utiliza de chantagens pessoais e pressões sociais e religiosas para sustentar um relacionamento quando ele, de fato, já se transformou. É por isso que, para muitos que chegam à clínica é sempre um "pecado" falar de seus próprios desejos, sentem-se "traidores" ou "traídos". Para não "magoar" o outro preferem calar a si mesmos e abandonar sua vontade de ser feliz. E aí só lhes restará, no lugar da busca pela felicidade, ou de mais uma chance, o contentamento com a paralisia e a acomodação. Terrível, quando se pensa que não teremos outra vida para colocar as coisas em ordem.

Porque não apostar em uma amizade eterna, em um carinho eterno, ao invés de um forçoso "casamento eterno"? Por que preferir a infelicidade do(a) outro(a), e a de si mesmo(a), que a possibilidade de novamente tentarem ser felizes, de outra forma? No fundo, ainda entendemos muito pouco de relacionamentos. No fundo temos medo de começar de novo. Mas, isso é da condição humana. Duvido que melhore muito no futuro, pois estaremos sempre trabalho com a fantasia do "eterno", com a vontade de "posse" e com a ideia de "pecado". Isso intriga, e muito!

Espero não ter deixado ninguém chateado, mas o tema está aí, no nosso dia a dia!

domingo, 20 de outubro de 2013

O papel do psicanalista

"Uma vez ou outra, quase todos nós nos sentimos aprisionados por coisas que pensamos ou fazemos, enredados por nossos impulsos ou escolhas idiotas; presos em alguma infelicidade ou medo, atolados em nossa própria história. Sentimo-nos incapazes de seguir adiante, mas apesar disso acreditamos que deve haver uma maneira (...) E como mudança e perda estão profundamente conectadas - não pode haver mudança sem perda..." (Stepen Grosz, A Vida em Análise).

É neste contexto que o papel do psicanalista consiste em ajudar na mudança, compreendendo, sabendo ouvir, e não somente as palavras, mas os intervalos entre elas.

sábado, 19 de outubro de 2013

Um trecho revelador acerca da Psicanálise

"Face à dor psíquica, às divisões internas, os traumatismos universais e pessoais que a vida inevitavelmente provoca, o homem é capaz de criar uma neurose, uma psicose, um escudo caracterial, uma perversão sexual, sonhos, obras de arte e doenças psicossomáticas. Artesão de si mesmo, tem poucas possibilidades de modificar a forma de suas criações psíquicas, essa estrutura que o ajuda a manter não somente o equilíbrio de sua economia pulsional, mas também o sentimento de ter uma identidade. Assim, existe uma resistência ferrenha contra tudo o que pode abalar essa fortaleza psíquica, e embora o sujeito encontre aí sua morada, tem muito pouca consciência de seu significado. É claro que esse conhecimento psíquico e as criações que ele origina não possuem um valor idêntico do ponto de vista de sua eficácia, nem aos olhos da sociedade. Todavia, todos visam os mesmos objetivos: o desejo de se manter vivo, de realizar-se nos planos pulsional e narcísico, de conservar intacta a identidade assim construída e defender-se contra tudo que ameaça estes propósitos. A força do sujeito reside nessa continuidade e nessa monotonia. Contudo, é aí também que encontramos a fonte do seu sofrimento e até mesmo de sua morte..." 

(Joyce McDougall - "Em defesa de uma certa anormalidade", 1° parágrafo do ensaio Psicanálise e Soma)

sexta-feira, 19 de julho de 2013

O Estranho Apelo do Ciúme - M. Blévis

Este texto é uma síntese de um capítulo I do livro de M. Blévis (1) intitulado "O Estranho apelo do ciúme".

A frase "você nunca saberá o quanto eu a teria amado", dita pelo namorado, quase fez Cléa desmaiar. Ela estava muito próxima do fundo do poço. Lúcida, mas em desespero, ela sabia que o ciúme a estava consumindo e tudo lhe parecia bem claro. Nesse ponto, se destaca a questão da "racionalização", tão típica do delírio de ciúmes.  É o que destaca Blévis.
O ciúme atesta um desvario perante o qual as suspeitas do ciumento parecem ser uma "racionalização", uma "roupagem do movimento de pavor que o suscita. Mas, que chaves fornecem estas máscaras? (p. 30).
A "racionalização" funciona, então, como uma máscara que esconde o pavor. Ora, segundo Cléa, como é que, naquele momento em que o namorado diz que a ama fala como se já não estivessem mais juntos? ("você nunca saberá o quanto eu a teria amado") Cléa já não sabia se era a mulher amada do "presente" ou a mulher esquecida do "futuro". pode parecer a alguns estranho o fato de poucas palavras dispararem tão forte angústia, mas
O ciúme é uma tortura que se alimenta das mínimas palavra e as deturpa em seu proveito (p. 31).
O resultado foi Cléa adentrar em uma crise de angústia, abrindo um abismo com relação a seu namorado. Mas, como nomear este abismo? Na impossibilidade, Cléa se alimenta de "ruminações" infindáveis sobre qualquer palavra que lhe era dirigida pelo namorado, afinal:
O ciumento é alvo permanente de batalhas internas, tão exaustas quanto estéreis (p. 33).
Sim, porque quem dota os rivais de tantos encantos e sedução é o próprio ciumento. No fundo, então, suas racionalizações e convicções acerca de numa traição são "fantasmas sem consistência". Fundamental, então, buscar a linguagem de Cléa na sua infância. Nesse momento,
O psicanalista precisa de toda a sua habilidade para conseguir se colocar na "pele infantil" do paciente, imaginá-la e descobrir as palavras que lhe faltaram (p. 34).
Qual, então, o curso das sensações de rejeição experimentadas por Cléa ao longo de sua vida? Não demorou para que uma lembrança lhe viesse à mente. Tratava-se de uma imagem que era recorrente. Em uma cidade devastada, um cachorro vadio e faminto andava por fachadas de prédios em ruínas.

Não havia dúvida que Cléa imaginava-se sendo esse cão desamparado e aflito, e a recorrência dessa imagem não era mais que um pedido de socorro. Mas, que conflito vivenciado por Cléa poderia ter causado toda essa cena sombria e destrutiva? Que acontecimentos foram esses, tão fortes, que foram silenciados por Cléa? O que a teria deixada tão faminta por palavras e vínculos?

No decorrer das sessões, suas associações iam em direção às "guerras" familiares. Ela sabia que a mãe fora enganada pelo pai. Logo em seguida o pai viria a morrer, mas sobre a traição e sobre o próprio pai passou a imperar um "silêncio". Cléa, na realidade, só possuía algumas fotos dele, de seu rosto ("fachadas").

Esse silêncio hostil por parte da mãe privara Cléa de todo o Luto necessário. Sem ele, sua dor permanecia "real", não simbolizada. Talvez por isso, andasse "vagando", faminta de significados, como aquele cão bem representava, diante de fachadas em ruínas.

Cléa, portanto, não havia explorado a realidade de suas emoções. E a impossibilidade do luto pelo pai, imposta pelo silêncio, deixara em suspenso sua feminilidade. O ciúme, então, a levava sempre a imaginar uma mulher a quem seu namorado poderia se dirigir. Uma rival que possuiria esta feminilidade. O abismo, então, era longo e profundo. De acordo com M. Blévis,
Uma construção de hipóteses erigida por um psicanalista só é pertinente quando faz reviver na memória do paciente fragmentos de lembranças que ajudem a preencher as omissões causadas pelos diversos recalcamentos, censuras, foraclusões ou renegações. O tratamento psicanalítico restitui força e vida a todos os vestígios e significações de acontecimentos que foram vividos, mas permaneceram fixados sem alteração no psiquismo. Com isso, eles persistem sob a forma de enigmas perigosos (...) O psicanalista, no espaço da transferência vai em busca das lembranças escondidas e cristalizadas nas palavras do paciente, a fim de "reativá-las" (p. 38).
Mas, o avanço definitivo de Cléa veio através de um sonho. Neste sonho, ela cruzava, na rua, com um homem com uma máscara de carnaval veneziana, com um bico assustador. Ela tinha que transar com ele, mas ela parecia um bebê. Ela sentia uma excitação sexual, mas desprovida de prazer. Logo, isto foi interpretado como uma revivência do amor intenso que Cléa sentia pelo pai, então proibido e silenciado pela mãe.
O trabalho da análise suspende esse tipo de proibição, desarticulando o pavor que ela encerra, e reabre o espaço do desejo de viver; nesse sentido, toda análise é também um "renascimento" (...) Cléa não poderia fazer o luto do pai enquanto ele não voltasse a ocupar um lugar "vivo", em palavras que o arrancassem do silêncio em que a mãe o havia escondido (p. 44).
Seu ciúme era, ao mesmo tempo, uma proibição de pensar no vínculo amoroso em seu lugar próprio e um apelo para arrancar essa preciosa ligação de sua ganga de proibições (p. 41).
Se era um destruidor de vínculos, o ciúme era também o lembrete de uma dor de amor perdida. Assim,
A saída do ciúme veio da possibilidade de lhe ser restituído o direito de amar a um pai, um homem, e também a si mesma como "apaixonada" (p. 41).
A proibição e o silêncio da mãe haviam amputado uma dimensão essencial da sua "identidade feminina". Há, no ciúme, uma oscilação entre o amor e a fúria (angústia) e essa raiva não é, ingenuamente, um "sinal de amor", é pura hostilidade. O ciumento tem raiva por não poder "consertar" o amado para que este lhe dê o reconhecimento e o amor que acha merecer. Mas, isto é impossível que alcance, até porque a demanda do ciumento é impossível de satisfazer. De acordo com Blévis,
No ciúme, é uma proibição de amar - no sentido como a infância ama, de forma intransigente, total e libertária - que o sujeito procura expulsar de si (p. 42).
Se ele conseguir essa expulsão, passará a amar como um "adulto". O ciúme, então, serve de anteparo para uma falha íntima. E a liberdade contra o ciúme vem quando se simboliza essa falha, como compreendendo que era possível reconquistar o direito de amar, sem mergulhar numa angústia mental. Afinal,
Amamos contra a morte, para vencê-la, para esquecer que somos mortais e, ao mesmo tempo, sabemos perfeitamente que nossos laços amorosos podem romper-se a qualquer momento. Assim, somos reconvocados à vida por eles e expostos ainda mais à angústia de nossa finitude ao perdê-los (p. 42).
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BLÉVIS, Marcianne. O Ciúme - Delícias e Tormentos. - São Paulo: Editora Martins Fontes, 2009, p. 27-42

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Quando fala o coração (Spellbound) - Os sonhos na análise

Quando fala o coração (Spellbound, 1945, Dir. de A. Hitchcock) é uma adaptação de "The house of Dr. Edwards", de Francis Beending's, e se destaca numa época de pioneirismo no trato da psicanálise por Hollywood. 

O filme começa com uma frase de Shakespeare: "O erro não está nos astros, mas em nós mesmos", numa clara advertência de que nossos dramas não têm uma origem externa, e que somos responsáveis por eles. É um chamado a desviarmos o olhar "para dentro". 

Há ainda, uma introdução em legendas reforçando isto.
Este filme é sobre a psicanálise. O método usado pela ciência moderna para tratar problemas emocionais. O analista busca apenas induzir o paciente a falar de seus problemas mais escondidos para abrir as portas de sua mente. Quando os problemas que afligem os pacientes são descobertos e interpretados a doença e a confusão desaparecem e os demônios internos são exorcizados da alma.
O filme fala da Psicanálise em meio a um romance entre uma analista e seu colega de profissão, que acaba tornando-se paciente. Um homem que, aos poucos, vai expressando incômodos cada vez maiores com situações onde traços (rabiscos) se desenham sobre superfícies brancas. Um homem que, após uma série crise, se descobre com amnésia e passa a ser tomado por um "complexo de culpa" (Paranóia) onde atormenta-se pelo fato de acreditar ter matado uma pessoa e assumido sua identidade. 

É na tentativa de desenrolar esta trama que o filme se desenvolve, tendo como protagonistas a Dra. Peterson e o Dr. Edwards, mas não se trata de um bom suspense, daqueles que Hitchcock viria a se especializar. O filme se torna interessante mesmo pela tentativa que faz em introduzir temas da Psicanálise, até então muito pouco conhecidos pelo público em geral.

Mas, seguindo este seu "propósito" o filme se utiliza da interpretação dos "sonhos" como principal ferramenta para desvendar a trama psicológico-policial (existem, contra o Dr. Edwards acusações de assassinato). É nesse momento que se percebe que um dos grandes estereótipos da Psicanálise é utilizados pelo filme: o do papel do analista-detetive, como uma figura que faz da mente humana o seu campo de investigação policial em busca do mal. O sonho, no caso, será a ferramenta através da qual a investigação ocorrerá na tentativa de reconstruir o passado e entender os últimos passos do paciente.

O filme, na realidade, é uma sucessão de estereótipos da Psicanálise. A presença da típica histérica que destila seu "desprezo" pelos homens; o ódio que o paciente revela por seu analista; a analista que, de tão profissional nem parece "humana"; a presença de um personagem que, em muito, lembra Freud na sua velhice; a ideia do analista como alguém que "vive no mundo da lua"; o sonho como "quebra-cabeças"; a presença de um fato infantil marcante e recalcado como detonador de todo o sofrimento futuro etc. Mas, o fato é que alguns destes estereótipos acabam funcionando como recursos estéticos para evidenciar este algo novo que surgira, ou seja, a Psicanálise, com suas técnicas e procedimentos específicos. 

Como num enredo mocinho x vilão, ao final a Psicanálise vence. Consegue-se desvendar a trama e a paixão entre os protagonistas impera. Mas, precisava ser tudo tão carregado de tantos estereótipos? Acredito que sim. Trata-se de um filme introdutório da Psicanálise para o grande público; a linguagem do cinema é uma linguagem muito distante da Psicanálise e precisa, imensamente, de estereótipos para retratar algo que desconhece. Por fim, a própria Psicanálise da época vivia seu momento clássico. 

Era o tempo das "neuroses clássicas" onde predominava a tese de que o "neurótico" nada mais era que uma personalidade integrada que, de súbito, era transtornada por impulsos ou atos inadequados. Isso deixava flagrante a "irrupção" da neurose, com todos os seus sintomas, em uma pessoa "comum e normal". Ao contrário de hoje em dia, quando acredita-se muito mais numa quase inexistente fronteira entre a personalidade e o sintoma, uma situações onde a "irrupção" praticamente não tem como acontecer, de tão fortemente "misturada" que se encontra à "personalidade".

Não à toa o filme está repleto de situações onde um personagem neurótico de comportamento absolutamente normal, vez por outra, é tomado de assalto por impulsos incontroláveis que o levam, praticamente, tonturas, desmaios, crises, mudanças abruptas de comportamento, falas inadequadas. Era assim que o "neurótico" era visto e era assim que a Psicanálise era retratada.

Para finalizar, destaco a sequência de sonhos ser baseada no surrealismo de Salvador Dali, o que esteticamente fica bem interessante. Além disso, uma belíssima trilha sonora (vencedora do Oscar em 1946) e, lógico, as participações de Gregory Peck (cuja semelhança com Rodrigo Santoro é impressionante) e da linda Ingrid Bergman, uma das mulheres mais belas do cinema.