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quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Pierre Bourdieu (Dossiê - Revista Cult 166/2012)

Impossível não registrar algo acerca do dossiê preparado pela Revista Cult (n. 166, março 2012) para relembrar alguns conceitos de Pierre Bourdieu neste momento de 10 anos de sua morte (1930-2002). Uma justa homenagem a um dos maiores intelectuais do século XX, principalmente num momento em que, como diz Daysi Bregantini (editora da Cult),
nossos poucos intelectuais públicos são desmotivados, assim como nossos bons criadores. A economia vive um momento inédito de crescimento, mas não é representada na produção cultural, que está desbotada e sem vigor. O jornalismo cultural, com poucas exceções, está quase desmoralizado e a reboque da indústria do entretenimento. Por que nos conformamos?
Bourdieu é aquele intelectual ao qual podemos atribuir duas grandes características: é "engajado" (segue a tradição francesa de participar ativamente de movimentos sociais, integrando a teoria com a prática) e é "total" (sua obra cobre uma gama extremamente variada de problemas, domínios e dimensões da vida social).
 
Sua produção é vasta e, recentemente, foi publicado na França o livro "Sobre o Estado", produto de um curso oral entre 1989 e 1992 onde discutiu o papel do Estado e do indivíduo na sociedade. Segundo Franck Poupeau, ali Bourdieu constrói um modelo de gênese do Estado, pensado no cruzamento da História, da Sociologia e da Filosofia Política, com referências ao contexto francês da época, quando da desconstrução dos serviços públicos, das políticas sociais e da própria ideia de "público".
 
O termo que usava era o do "abandono do Estado", imaginando que o neoliberalismo estaria esvaziando completamente o Estado de suas funções. Nesse aspecto talvez tivesse se surpreendido, hoje em dia, com a sobrevivência de inúmeras funções e, talvez, optasse por falar em "transformação" do Estado e suas funções. Mas, é esperar pra ver, com calma, como tratou esta questão do Estado num momento decisivo de seu questionamento.
 
Entretanto, apesar de ser um dos autores mais citados no mundo (e "descoberta" no mundo inglês), sua obra vem sendo muito atacada pelos sociólogos franceses. Para Bernard Lahire, um de seus  herdeiros, estaria ocorrendo um processo de "desqualificação" (muito típico nas Ciências Sociais) que obedeceria à lógica da moda*, onde não há espaço para argumentações e evidências empíricas, somente para o "novo" e o "ultrapassado".
 
O que existiria por trás disso, então, seria uma recusa de uma sociologia subjetiva, apegada aos estudos da dominação e da desigualdade, dos determinismos sociais. Predomina, na atualidade, uma sociologia consensual, ausente de relações de dominação.
 
Vê-se aí reflexos da ideologia consumista onde os intelectuais estariam se comportando como crianças que, em busca de reconhecimento por parte do poder, estariam se tornando dóceis e se recusando a denunciar as violências. Um comportamento que tira das Ciências Sociais qualquer possibilidade de se tornar um contrapoder.
 
É neste contexto que Geoffroy de Lagasnerie critica a relação de muitos intelectuais (como Alain Badiou) com a mídia, também expressão dessa busca frenética por um tipo de reconhecimento similar à das celebridades.
 
Para ele, tais autores estariam se tornando ensaistas de segunda linha e produzindo subpesquisas, fazendo praticamente desaparecer o debate intelectual. Entretanto, o autor não demoniza a mídia e vê que Bourdieu, por sua vez, não soube avaliar com clareza o papel da mídia, perdendo-se, junto a outros importantes teóricos, numa feroz crítica aos jornais e suplementos culturais. Havia um receio de se perder o "monopólio" do discurso acadêmico?
 
Não há como negar o importante papel destes outros espaços como "críticos" das práticas acadêmicas, papel importante para se atenuar as chamas "imposturas" acadêmicas (similares às imposturas midiáticas). A crítica feroz, portanto, mais parecia uma tentativa de salvaguardar de críticas o espaço acadêmico, contribuindo para isolá-lo cada vez mais da sociedade, fechando-o em si mesmo.
Quando refletimos sobre o jornalismo, insistimos com frequência na censura que exerce. Mas a contribuição essencial do jornalismo reside no fato de que se trata de uma instância exterior à universidade. Ele representa um espaço de acolhimento para as obras, os autores e questionamentos em ruptura com as normas científicas (p. 39).
Outra publicação de Bourdieu, que deve ser lançada ainda este ano no Brasil, é "Os Herdeiros". Segundo sua tradutora, Ione Ribeiro Valle (UFSC), o livro inspira-se na tradição weberiana de não considerar a relação de dominação como exclusivamente econômica, embora sustente (como o marxismo) a ideia de divisão da sociedade entre dominantes e dominados.
 
No livro, Bourdieu rompe com a "ingenuidade" da ideologia da igualdade de oportunidades assentada na ideia de uma escola que alcance a todos. Independente de qualquer coisa, a escola ainda tem a função de legitimadora das desigualdades, mais do que um instrumento de mobilidade social. Para Bourdieu, a cultura de elite ainda predomina e seria necessário uma socialização diversa daquela preconizada pela escola (**). Vejamos, em síntese, alguns dos principais conceitos de Bourdieu:
 
1) Capital Cultural - Conjunto de qualificações intelectuais produzidas pela escola ou transmitidas pela família. Pode ser "incorporado" (como a facilidade de expressão), "objetivo" (como livros) ou "institucionalizado" (como títulos escolares). É uma propriedade que se tornou parte integrante da pessoa através da aprendizagem e aculturação, e fortemente relacionado ao capital econômico do indivíduo;
 
2) Capital Econômico - Conjunto de recursos patrimoniais e de rendas ligados ao capital ou a um exercício profissional assalariado ou não assalariado;
 
3) Contato Social - Conjunto de contatos, relações, amizades, obrigações, relações socialmente úteis que podem ser mobilizadas ao longo da trajetória profissional ou pessoal do indivíduo. É uma variável que confere maior ou menor "espessura" social, poder de ação e reação. "A rede de relações é o produto de estratégias de investimento social", consciente ou não, a fim de criar, manter, reforçar, reativar ligações das quais pode esperar retirar "lucros materiais ou simbólicos";
 
4) Campo -Espaço social estruturado e conflitual no qual os agentes sociais ocupam uma posição definida pelo volume e pela estrutura do capital eficiente no campo, agindo segundo suas posições nesse campo. Cada campo - um "campo de força" de agentes e instituições em luta - é dotado de regras de funcionamento e de agentes investidos de hábitos específicos (campo universitário, jornalístico, literário, jurídico, econômico etc). São campos autônomos que resultam da diferenciação do mundo social e dos modos de conhecimento do mundo. Assim, cada campo tem um ponto de vista fundamental sobre o mundo e cria, portanto, seu objeto próprio;
 
5) Distinção - Corresponde a uma estratégia de diferenciação que está no âmago da vida social. É uma propriedade que marca um desvio, uma diferença em relação a outros e que funda uma hierarquia entre indivíduos e grupos;
 
6) Capital Simbólico - Conjunto de rituais (como a etiqueta e o protocolo) ligados à honra e ao reconhecimento. É o crédito e a autoridade que conferem a um agente o reconhecimento e a posse das três outras formas de capital (econômico, cultural e social). Ele é produto da "transfiguração de uma relação de força em relação de sentido", designando o efeito de violência imaterial das outras formas de capital sobre a consciência. Um exemplo típico das transmutações das outras espécies de capital em efeitos simbólicos é o "grande nome" (de uma "grande família"), que condensa todas as propriedades materiais e imateriais acumuladas e herdadas. A compreensão da lógica dos efeitos simbólicos de posições e de recursos advém de uma economia dos bens simbólicos;
 
7) Espaço Social -~Representação multidimensional e relacional da estrutura da sociedade de acordo com o volume e a estrutura do capital em posse das diferentes classes sociais em conflito. É aqui que se encontra a verdadeira lógica da dinâmica social, pois a sociedade não é mais que um espaço de distribuição, ou seja, um vasto conjunto de posições hierarquizadas através de múltiplas dimensões, recortado por tensões e dominações, definido pela exclusão mútua, ou distinção, das posições que o constituem;
 
8) Habitus - Talvez seja o conceito central em Bourdieu. É um sistema de disposições duráveis e transponíveis, que podem gerar práticas em outras esferas no curso do processo de socialização. São potencialidades objetivas que têm a tendência a se atualizar e a operar nas práticas e representações que elas moldam de forma duradoura. Embora Bourdieu negue um determinismo social rígido (pois há uma margem de manobra para o "jogo" e a improvisação) o habitus seria sempre produto do condicionamento histórico e social. Ele não pode ser revertido com uma mera tomada de consciência, pois está profundamente inscrito, internalizado, nos corpos, gestos e posturas, mas nem sempre percebido e muito menos entendido racionalmente.
 
9) Hysteresis - É estar atrasado, defasado, em descompasso.
 
10) Violência Simbólica - É a violência não percebida, obtida por um trabalho de inculcação da legitimidade dos dominantes sobre os dominados e que assegura a permanência da dominação e da reprodução social. Um exemplo é a transmissão da cultura escolar;
O dossiê elaborado pela revista ainda tráz uma série de revelações da trajetória de Sérgio Miceli, para muitos o maior divulgador de Bourdieu no Brasil. No texto se percebe o fascínio e o caminho percorrido por Miceli no encontro com as ideias de Bourdieu, sua forte preocupação com as questões culturais e o pouco espaço encontrado nas universidades brasileiras dos anos 70, que se concentravam demasiadamente em Marx e em O Capital. Era uma época de "má vontade" da Sociologia com a cultura.
 
Para Miceli, enquanto o marxismo tratava a cultura de forma reducionista, o trabalho de Bourdieu era mais complexo e fascinante. Ele trazia uma nova leitura, menos dogmática e mais simbólica. Era, segundo muitos, a consolidação daquilo que os frankfurtianos iniciaram: uma análise central da cultura. Trata-se de um belo texto, revelador de uma época. Assim como Bourdieu pode ser muito revelador para a época atual.
 
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(*) interessante como a Universidade e, em especial o competitivo campo das Ciências Sociais, se utilize justamente daquilo que mais critica: a descartabilidade. Na ânsia por um "lugar" na história se patrocina, seguidamente, o "enterro" de teorias e metodologias (e seus representantes) para dar lugar às novidades. Ora, o que mais isso é além da "lógica da moda"?
(**) um bom terreno para se avaliar esta questão é o Brasil atual com sua migração social e o papel da escolaridade nesse processo como um todo. se pode tentar observar como o "desprezo" pela educação pode, de um lado, continuar servido a uma reproduzção cultural elitista, mas, também, a uma outra socialização, que menospreza qualquer valor oriundo da cultura escolar e acadêmica.

terça-feira, 23 de julho de 2013

Mídia e Poder (Dossiê - Revista Cult)

A edição n. 154, fevereiro 2011, da Revista Cult trouxe um dossiê sobre a relação entre Mídia e Poder e algumas colocações me chamaram bastante a atenção e sobre elas gostaria de fazer alguns comentários.

Olgária Matos (prof. de filosofia da Unifesp), em seu texto “A democracia moderna e a estética da moeda“, destacou o fato da sociedade atual se ver atravessada, numa visibilidade sem paralelos, de figuras da corrupção.

Para exemplificar, a autora nos diz que com a institucionalização da sociedade de consumo aquela busca por símbolos culturais que antes a burguesia fazia para “aristocratizar-se” foi sendo abandonada, fazendo com que, hoje, a ideologia do “novo rico” prescinda de qualquer verniz cultural.

Esta é a ideologia dominante, onde se conhece o preço de tudo mas não o seu “valor”. É uma cultura que atrofia a sensibilidade e o pensamento, o conhecimento e a ética. Estaríamos vivendo em uma sociedade panóptica em que tudo se pauta pela exibição midiática, onde desaparece qualquer pudor e de moral social levando, por conseguinte, a uma flexibilização do sentimento de culpa na consciência moral. Segundo Olgária,
O fim da autoridade paterna e o “pai humilhado” coincidem com a sociedade infantilizada em que não se reconhece mais a diferença entre gerações, entre pais e filhos, masculino e feminino, bom gosto e mau gosto. Em tempos comandados pela ideologia “novo rico”, tudo pode ser dito e mostrado; cada um de nós é chamado a apresentar em público atos e sentimentos como se fossem ideias (p. 57).
É este contexto de ampla visibilização que, segundo Olgária, favorece a desconfiança de todos contra todos, como forma de sociabilidade, e a delação, por exemplo. E isto está se tornando cada vez mais reconhecido como uma espécie de “compensação” pelas impunidade. Num ambiente assim, proliferam a demagogia e a difamação no espaço público. O delator, hoje, surge como uma espécie de “delator público” com a missão de “proteger” o espaço comum (uma figura criada na Grécia antiga).
Resta saber se o recurso à delação voluntária mediante recompensa em dinheiro não induz à corrupção – dadas as oportunidades que se oferecem para quem procura desembaraçar-se de um adversário indesejado ou então para aquele que se deixa comprar por ele – e, ainda mais, quando vai se tornando um meio para o funcionamento da justiça (p. 57).
Assim, a estética da moeda, dando um preço a tudo (e retirando seu valor) vai transformando a esfera pública num ambiente onde a culpa não tem espaço.

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Em ”Mídia e Poder na Sociedade do Espetáculo“, Cláudio Novaes Pinto Coelho, prof. da Faculdade Cásper Líbero, nos diz que um dos equívocos sobre a sociedade contemporânea é o de que os meios de comunicação são uma instituição poderosa. Para ele, Guy Debord definiu o termo “sociedade do espetáculo” como o conjunto de relações sociais mediadas pelas imagens, e ela corresponderia a uma fase específica do capitalismo marcada pela interdependência entre o acúmulo de capital e o acúmulo de imagens, daí a onipresença do marketing.

Todas as relações sociais, nessa fase, estariam mercantilizadas e envolvidas por imagens. Ou seja, predomina o caráter cotidiano da produção de espetáculos e seu vínculo com a produção e consumo de mercadorias em larga escala, fazendo com que as imagens sejam cada vez mais fundamentais para legitimar as mercadorias e seu consumo.

É nesse sentido que a sociedade do espetáculo é um entrave para a emancipação humana (onde o indivíduo perde o controle sobre sua vida) e não simplesmente um conceito acadêmico. Cláudio Novaes nos lembra que, mais tarde, em 1988, Debord diria que a Sociedade do Espétaculo só se intensificou e espalhou por toda a sociedade, tomando conta de toda a vida social, fazendo surgir algo como um “poder espetacular” cada vez mais integrado.

Debord faz ainda uma ligação entre a expansão desse poder e o triunfo do neoliberalismo em escala mundial. É um momento em que se fortalecem os conglomerados comunicacionais e a indústria cultural transforma-se no porta-voz ideológico do capitalismo desqualificando as outras visões como “ultrapassadas” e promovendo o “pensamento único”.

Mas e o contexto brasileiro? Ele nos diz que, em que pese a diminuição das desigualdades sociais o marketing continua em franco crescimento. Mas, tanto a vitória de Lula em 2006, como a de Dilma, em 2010, mostram um eventual declínio da influência dos grandes conglomerados comunicacionais na formação na opinião pública, como foi no caso do alcance limitado das denúncias de corrupção.

O quadro ainda pode se acirrar, segundo o autor, pois pelo passado de Dilma é de se esperar uma postura ainda mais conservadora da mídia, caso ela realmente venha a romper com o neoliberalismo e diminuir o uso do marketing político.

Nesse ponto gostaria de fazer um comentário. É certo que nas duas eleições setores da mídia deram muito espaço a denúncias de corrupção e facilitaram um eventual segundo turno. Mas, o resultado final não seguiu esta linha. Isto, para o autor, mostra a relativização do poder da mídia, o que está correto.

Mas, o que foi que deu a vitória, nos dois casos, ao governo? A simples atitude ativa da opinião pública? Não necessariamente. Aí também entra o uso intenso do marketing político em uma guerra simbólica onde o governo foi muito mais competente que a oposição. Só acredito em um poder de influência forte do meio de comunicação se for sobre um consumidor passivo e em condições de ausência de disputa simbólica. Fora disso, sobra complexidade na formação da opinião pública.

Outro aspecto que gostaria de comentar é que nem Lula e nem, muito menos, Dilma fizeram qualquer sinal no sentido de rompimento com o neoliberalismo. Pelo contrário, o governo Lula marcou-se pela consolidação de políticas econômicas neoliberais e o de Dilma já está sendo marcado pelo melhor “gerenciamento” destas questões.

Por outro lado, que governo foi mais “espetacular” que o de Lula? Ele foi o “espetáculo” em si. E, quais as chances para Dilma assumir a “ideologia” e abandonar o “marketing político”? Nenhuma. É a ideologia perdendo força, a cada dia, diante do espetáculo. Mas quem disse que o espetáculo também não é ideológico? O que não dá pra fazer é criar um confronto entre “ideologia de esquerda” X “espetáculo”, isso seria simplismo e ingenuidade.

Será preciso, cada vez, um esforço gigantesco para escapar a essa ideologização total da sociedade através do espetáculo, e isso não é um privilégio da esquerda e sim daqueles que possuem forte senso crítico, e auto-crítico.

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Bem, em ”Indústria Cultural e Manutenção do Poder“, Rafael Cordeiro Silva, prof. na UFU, relembra que Tocqueville viu na busca pela igualdade uma perigosa tendência para a uniformização das pessoas, uma ameaça à liberdade individual. Liberdade e igualdade não eram vistas como valores complementares por Tocqueville.

Adorno e Horkheimer vão retomar esta questão e falam de uma dominação pela igualação e homogeneização que atua no inconsciente (aquilo que para Tocqueville era a “alma”). Domesticar desejos revelou-se mais eficaz que a sujeição física, e se realiza sob a aparência de total liberdade.

Esta é a indústria cultural. Para eles, isto não é arte. A indústria cultural é mais afeita ao gosto mediano das massas e está fortemente vinculada aos meios técnicos de produção e difusão da cultura padronizada, como o cinema, o rádio e a TV. Ela sacrifica a autonomia, a singularidade, a diferença, a autenticidade, a crítica. Por outro lado, é um fator de coesão social. Ela reforça as relações de poder estabelecidas e a passividade diante da realidade.
Depois de uma jornada dedicada à reprodução do capital nas fábricas e nos escritórios, nada mais salutar do que a necessidade de descanso e relaxamento que a diversão proporciona. O ciclo está completo! (p. 65).
No meio disto tudo, a publicidade tentando estabelecer uma identificação entre produto e consumidor, tentando realizar o indivíduo como tal quando, na realidade, o que ela faz é castrar a individualidade.
Não se define o indivíduo pelo incremento de sua capacidade de consumo; indivíduo e consumidor não são termos sinônimos. Na verdade, a publicidade sacrifica o indivíduo, porque reitera sua dependência em relação ao mundo das mercadorias. Em vez de fomentar as autênticas capacidades e qualidades humanas, a publicidade representa a conquista da alma (p. 65).
Aqui, também, gostaria de fazer um comentário, só para relembrar que é nesse sentido que levando a discussão para o terreno da política enxergo a mesma oposição só que entre “cidadão” e “consumidor” e aí uma boa pergunta seria: O que significa essa apologia do consumo entre as classes populares? Algo que Lula repetiu algumas vezes, e com muito orgulho. Que cidadão está nascendo? um cidadão emancipado? Mas, em que bases? Exclusivamente materiais? É um belo tema para se discutir.

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Em “Da Aldeia Global à Teia Global“, Vinícius Andrade Pereira, prof. de comunicação da UERJ, nos relembra que uma das mais comentadas “previsões” de McLuhan era a de que o mundo se transformaria em uma em uma “aldeia global”. Ele teria dito isso pensando na TV e seus satélites que fortaleceriam a cultura de massa e seus produtos.

É inegável que ele estava preocupado com a identidade canadense, espremida entre o gelo e a força descomunal da cultura norte-americana. Para ele, as novas tecnologias provocariam uma “crise de identidade” nas diversas culturas. Mas, isso se justifica hoje em dia? Para isso, Vinícius sugere explorar melhor sua ideia de “aldeia global”.

À esse termo sugere outro: “teia global”. Assim, em que aspectos a aldeia global ajuda a entender a teia global da atualidade? O termo aldeia global traz um paradoxo, pois ao mesmo tempo que evoca a ideia de uma cidadezinha do interior propõe um sentido global. A ideia expressa o fato de uma notícia de uma pequena cidade alcançar, de imediato, todo o mundo.

É um conceito que fala de um único emissor, de uma comunicação de tipo massiva, de uma pequena quantidade de notícias que ganham o mundo, e de um imenso público consumindo a mesma notícia. McLuhan, portanto, ao falar de aldeia global trabalhava com as categorias da comunicação de massa. Essa é a mesma dinâmica da teia global?

A teia trabalha, entretanto, com o modelo “todos para todos”, no qual a comunicação se dá de forma multidirecional, acentrada e conversacional, já que todos podem estar conectados à rede. O público, então, também é produtor de mensagens e as mensagens, portanto, são as mais variadas.
Isso significa ainda que, quanto mais houver gente se conectando à teia global, mais vozes e mensagens entrarão em cena, tornando progressiva e paulatinamente mais variada e complexa a rede de mensagens circulantes (p. 73).
Isso se manifesta claramente na pulverização das audiências. Mas, isso não significa desqualificar as ideias de McLuhan, pelo contrário, o importante é sair da figura e ir para o fundo da reflexão, ou seja, a velha questão da crise de identidade cultural que se experimenta diante do impacto de novas tecnologias. Nesse sentido, é extremamente atual e pertinente a preocupação de McLuhan,
pois, sua obra nos convida a estarmos atentos para os possíveis efeitos que as tecnologias digitais (meios) podem estimular nos aparatos perceptivos e cognitivos com os quais percebemos o mundo (a mensagem) (p. 73).
Esta, portanto, é a principal mensagem da reflexão de McLuhan, ou seja, não podemos esquecer que os meios, ainda que de forma sutis, continuam sendo as mensagens, seja na aldeia, seja na teia global.

Como se vê, as relações entre mídia e poder são um terreno escorregadio, mas fecundo em possibilidades de análise.

domingo, 16 de junho de 2013

O "sucesso" e o "fracasso" da ideologia consumista no "caos" das manifestações

Em tempos de manifestações de toda ordem, lembrei de um texto do Slavoj Zizek, publicado na Revista CULT*, n. 161, de setembro/2011, cujo título é: "Saqueadores, uni-vos!". Nele, Zizek discute rapidamente a natureza de algumas manifestações sociais como as de Paris em 2005, e as de Londres e Egito em 2011, e faz uma  associação entre os tumultos e a ideologia do consumo.

O texto é interessante porque traz à tona um assunto que geralmente escapa nas análises que se faz sobre os movimentos sociais recentes, como estes que tomam conta de São Paulo nos últimos dias. Acredito que todos concordam que não há uma análise que dê conta completamente do que está acontecendo. As redes sociais estão "perplexas" e proliferam as tentativas de se entender os acontecimentos recentes. 

Neste "caos" interpretativo proliferam explicações de toda ordem: "os manifestantes são apenas baderneiros"; "trata-se de um ataque a Alckmin visando 2014"; "a PM continua fascista"; "é o Brasil abrindo o olho contra a corrupção"; "são pequenos grupos tentando manipular as massas"... Enfim, talvez exista um pouco de verdade em tudo isso. Mas, o fato é que há um sentimento de "errância" nas análises e ninguém parece dar conta da explicação. Pior, com a dinâmica dos próprios movimentos, alterando suas "palavras de ordem", a tentativa de compreensão exige mais cuidados.

Assim, o texto de Zizek é só mais um no meio do turbilhão e traz algo novo para se pensar também. De cara, ele faz uma constatação: Segundo ele, os mais conservadores  enxergam nestes tumultos (incêndios, saques, destruições, etc.) somente caos e a falta de disciplina e responsabilidade, por outro lado, a esquerda enxerga somente o fracasso do bem-estar da população, mal tratada pelos que estão no poder, como no exemplo de Alckmin, aqui em São Paulo, atacado pela esquerda. Para Zizek, os diagnósticos conservadores e da esquerda são equivocados.

Por outro lado, segundo Zizek, não dá para se falar em "sujeitos revolucionários", pois estas manifestações (e aí incluo as de São Paulo e as demais que proliferam pelo Brasil afora) estariam muito mais para aquilo que Hegel chamou de "negatividade abstrata", ou seja, uma turba que se expressa de modo "violento" e "irracional", sem reivindicar nada de forma clara. Não dá pra esquecer que a luta pelos R$ 0,20 já se transformou em outra coisa que não sabemos bem o que é. 

Zizek nos lembra que, já a algum tempo vivemos sob o predomínio de teses como a do "fim da ideologia" e a ascensão da "sociedade pós-ideológica". Ora, o que é isso? Anunciou-se o predomínio do mercado, o império do consumismo. Chegou-se a imaginar o "fim da história". Besteira!

estágio atual do capitalismo se sustenta, portanto, sobre uma ideologia que convida todos a escolher e a consumir. Mais do que a classes ou grupos sociais , então, pertencemos ao mundo do consumo. E é neste mundo do consumo que vivemos a plenitude da "alienação". E a esquerda que hoje governa o Brasil, através do PT, não escapa à isso. É patrocinadora, por excelência da ideologia do consumo. Ou sobre o que está assentada toda a política econômica e o "sucesso" eleitoral de Lula e Dilma? Dessa forma, a ideologia consumista, através da esquerda, parece estar realizando de forma perfeita e acabada aquilo que Marx já denunciava como "alienação".

Este é o "sucesso" da ideologia consumista. Ela nos acomodou, nos tirou a vontade de sonhar, nos tirou a utopia pela mudança, o que faz é atiçar nossos desejos por aquilo que é novo, desde que oferecido pelo mercado.

Ora, enquanto dá para consumir, ótimo, vamos satisfazendo nossos desejos, por mais absurdos que sejam. Mas, e quanto àquelas pessoas tidas como "deficientes" e "desqualificadas" do ponto de vista do mercado? O que o mercado oferece para elas? Nada! O Estado, com seus populismos, ainda tenta ter uma postura paternalista, que sabemos insuficiente e distorcida. No caso brasileiro, a proliferação de "bolsas" visa simplesmente minimizar esse impacto que vem de baixo para cima. Não é emancipador!

O fato é que, no mercado e no paraíso do consumo, não há espaço para todos, pois a base do sistema é competitiva, e destrói sempre algo para que outra coisa sobreviva. E, para complicar ainda mais a situação, por cima desta ideologia do consumo existe outra, a "ideologia da liberdade", apoiada, evidentemente, na tese da oportunidade de consumo, ou seja, liberdade para escolher e consumir. Mas, não dá para todos. E aí? O que fazer? Ela, a "turba" parece estar fazendo algo.

Por vezes explodem em ondas de violência (como as manifestações) mas, no geral, essa "violência" vem como uma maré que, lentamente, parece ir engolindo a sociabilidade humana no nosso cotidiano (como no caso da criminalidade, que só cresce). Por isso, as manifestações causam raiva e indignação no início, mas, com o passar dos dias, vão causando perplexidade e exigindo maior atenção e explicação. E mais, vão gerando fortes sentimentos de "identificação", pois acabamos por nos enxergar "dentro" dela, por algum motivo, por alguma forte insatisfação. Por isso essas manifestações parecem difusas, mas não são vazias de conteúdo.

Os tumultos vêm daí, sem um sentido lógico, verdadeiro caos, sem uma direção certa, sem uma comunicação clara. Este é o "fracasso" da ideologia consumista. Ela obtém o sucesso quando nos aliena e domestica, mas fracassa quando não permite que todos possam consumir.

No fundo, o que precisa ser discutido, fortemente, é a democracia que, segundo Zizek, se assemelha àquela jangadinha que desliza em meio a um mar tumultuado repleto de ameaças e seduções paternalistas e autoritárias, e não cumpre seu papel de criar mais cidadãos que consumidores. É preciso transformá-la em uma embarcação maior, mais sólida, que resista a estas seduções populistas às quais parece que nenhum discurso escapa.

Para isso, é preciso "recuperar a política". Talvez estas manifestações não saibam exatamente contra o que estão lutando, mas o que importa? Elas sabem que a democracia está assentada sobre bases muito frágeis. De que adianta dizer que a democracia foi conquistada a "duras penas"? De que adianta pedir para que as manifestações sejam de "paz". Há uma "violência" implícita na ideologia do consumo e na forma como a democracia se dá no cotidiano que, para muitos, vai ficando cada vez mais clara. 

E aí? O que prometer e oferecer em troca para que essas manifestações saiam das ruas e voltem para casa? Talvez uma democracia mais clara, transparente, efetivamente inclusiva, com políticas públicas centradas no cidadão, respeito ao dinheiro público - não há garantias para que nada disso funcione e acalme a todos, mas pode ser um bom começo.

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quinta-feira, 16 de maio de 2013

Por que desprezar a morte?



Em sua coluna, na edição 176 (fev/2013) da Revista Cult, Alcir Pécora nos traz um trecho das “Reflexões ou Sentenças e Máximas Morais“, de François de La Rochefoucauld (1613-1680). No pequeno trecho, uma reflexão sobre a morte. 

Segundo La Rochefoucauld, apesar de muito já se ter escrito para mostrar que a morte não é um mal alguém acreditaria que não seja algo desprezível? Não à toa, “tudo o que a razão pode fazer por nós é aconselhar-nos a desviar os olhos para colocá-los em outros objetos”, evitando-se, com isso, maiores discussões sobre o assunto.

Mas, de acordo com Rochefoucauld, “se não quisermos acreditar que ela é o maior de todos os males" será necessário nos aproximarmos dela com menos indiferença, afinal:
A glória de morrer sem abatimento, a esperança de ser lembrado com saudade, o desejo de deixar uma bela reputação, a confiança em estar livre das misérias da vida e em não mais depender dos caprichos da fortuna são remédios que não devem ser desprezados.
Mas, quantos são os que levarão mesmo isto em conta?