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domingo, 26 de janeiro de 2014

"Mata-me de Prazer" e a paixão que fusiona!

"Talvez alguém da planície como eu não esteja pronta pra viver nas alturas. Talvez!...Talvez!".


Esta é uma das últimas frases de Alice no filme "Mata-me de Prazer" (2001). Alice e Adam vivem uma daquelas aventuras onde só há espaço para uma tremenda atração e paixão na sua forma mais ardente e alienante, ou seja, naqueles momentos em que fechamos os olhos e deixamos que os sentidos tomem conta do resto. É o momento em que o desejo fala mais alto, praticamente não deixando espaço para racionalizações, culpas ou indecisões.

O impressionante nesses momentos de intensa paixão é a quase dissolução da individualidade e o surgimento de outro campo onde ambos estão em "fusão". Claro que, num momento assim, de fusão, é muito alto o risco de uma "idealização" da outra pessoa, como se ela fosse a "única", absolutamente indispensável. É esta "idealização" que, entretanto, por vezes, não resiste às contingências da realidade que vai se impondo lentamente com suas exigências e responsabilidades, e trazendo consigo algumas "frustrações" e amarguras, fazendo com que a continuidade da paixão, naquele mesmo ritmo intenso, se torne uma impossibilidade.

Sempre vou respeitar e admirar a paixão, afinal, não é porque ela traz um forte risco de frustração que deve ser abandonada. Aliás, conseguimos mesmo abandoná-la? Afinal, quem já não enfrentou tudo isto? Quem não corre o risco de enfrentar tudo isto? Quem não deseja e torce por tudo isto? Apesar de ser um momento de absoluta ausência de racionalidade, está repleto de... vida! Está aí para ser vivida, nem tanto para ser pensada. Pode trazer consequências dolorosas? Pode! Mas há como evitar senti-la em alguns momentos da vida?

(José Henrique P. e Silva)

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Os riscos da fantasia da "união incondicional" no casamento

Os questionamentos acerca da qualidade da vida do casal, e seu vínculo, estão muito presentes na clínica, quase sempre tendo como pano de fundo as mágoas, tristezas, omissões e ocultações vindas à tona numa crise. Na maioria das vezes, a presença destes casais, são tentativas de "colar cacos". Não se trata, simplesmente, de uma traição "sexual". Essa, muitas vezes até permite certa acomodação de interesses e fica como uma espécie de "arranhão". O que está em jogo é algo que pode até ser considerado mais profundo: uma quebra de confiança total. Este é um tema recorrente, e grave.

A traição de uma intimidade que se fantasia como total e absoluta, de um compromisso que se sonha incondicional. Hoje, a infidelidade não é tão sexual quanto moral¹.

Mas, o que é, exatamente, esta quebra de "confiança total" depositada, por sua vez, sobre uma fantasia de "união incondicional"? desejo responde essa fantasia? Essa pergunta é fundamental ter sempre em órbita.

É interessante notar que boa parte dos casais que vão à clínica não têm como preocupação central fazer "evoluir" o vínculo conjugal, em transformá-lo. Parecem mais preocupados com algo anterior, mais básico: a própria criação de um laço. Esse processo ainda se torna mais angustiante pelo fato de, desde cedo, conviverem com a fantasia de um casal idealizado. Aquele casal que é glorificado na mídia, nos filmes, na literatura, nos contos de fada.

Esta é a fantasia que praticamente torna impossível a continuação de um vínculo baseado na transformação mútua. É como se esperassem por alguém "inteiro", "pronto", para ser seu eternamente. Como se trata de uma fantasia, e não encontra correspondência no real, vem o desespero.

É neste contexto que a traição sexual perde muita importância diante da quebra da fantasia da "união indissolúvel". Ficar só, ser deixado, adquire fortes proporções de "abandono" e toca em questões narcísicas muito profundas.

Antes mesmo, então, que se construa um laço que é mutuamente transformador, já existe a fantasia de uma fusão completa que, caso quebre, gera intensa angústia de separação. Nada impede que uma união seja eterna, mas o que vai garantir essa eternidade não é uma fantasia, e sim um trabalho de transformação permanente e mútuo do laço. E é sobre isso que se precisa pensar e conversar.

________

¹ HEFEZ, Serge. Cenas da Vida Conjugal. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 28

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Lacan e o Estádio do Espelho

A postagem abaixo é uma síntese da comunicação feita por J. Lacan ao XVI Congresso Internacional de Psicanálise, em Zurique, a 17.06.1949, sob o título "O estádio do espelho como formador da função do Eu tal como nós é revelada na experiência psicanalítica".
 
Trata-se de um momento espetacular em que a criança reconhece sua imagem no espelho a partir de uma série de gestos em que experimenta, ludicamente, os movimentos de sua imagem refletida, e dos objetos que estão à sua volta. Ocorre a partir dos seis meses de idade, e é uma atividade libidinal que muito nos fala da estrutura ontológica do ser humano.
 
É um momento de IDENTIFICAÇÃO, matriz de todas as identificação secundárias posteriores, ou seja, o sujeito assume uma imagem (imago) e o EU se precipita nesta fase de ainda impotência motora e dependência, antes mesmo de afirmar-se diante do outro e antes que a linguagem lhe dê a função de sujeito. Trata-se de um "Eu-Ideal". Diante do espelho, portanto, a criança vê a forma do seu corpo (uma "miragem" do seu poder) como Gestalt, numa exterioridade. O que vê, entretanto, tem forte efeito constituinte, afinal, já está mais que comprovado que uma Gestalt tem efeitos normativos sobre o organismo. Estamos em um momento de pura dialética entre o organismo e sua própria realidade. É nesta relação que entra a função da imago. Assim,
O estádio do espelho é um drama cujo impulso interno se precipita da insuficiência à antecipação - e que, para o sujeito, apanhado na armadilha da identificação espacial, maquina os fantasmas que se sucedem, de uma imagem retalhada do corpo a uma forma que chamaremos ortopédica da sua totalidade - e à armadura enfim assumida de uma identidade alienante, que vai marcar com sua estrutura rígida todo o desenvolvimento mental. 
Mais à frente, quando do momento de término do estádio do espelho e passagem do "eu especular" para o "eu social", a armadura fortificada do eu se verá diante de situações socialmente elaboradas e será sempre mediado pelo desejo do outro (um "intermediário cultural"), tornando, então, perigoso, qualquer levantamento de instintos. Dono de uma liberdade que se afirma como autêntica entre os muros de uma prisão o eu verá a loucura (neuroses e psicoses) nascer por entre esses muros, sempre nos falando de paixões que foram amortizadas.
Nesse ponto de junção da natureza à cultura que a antropologia dos nossos dias perscruta obstinadamente, a psicanálise somente é que reconhece esse nó de servidão imaginária que o amor vem sempre redesfazer ou retalhar.

sábado, 14 de dezembro de 2013

Quem disse que um instante de amor não salva uma vida?

Vindos de histórias de vida amargas, Dodge e Penny conheceram-se a poucos dias, experimentam momentos tensos e divertidos e agora, instantes antes do fim do mundo, se encontram. Se abraçam, deitam lado a lado, com as mãos dadas e olhares voltados um para o outro. Enquanto aguardam o momento final travam o seguinte diálogo (do filme "Procura-se um amigo para o fim do mundo").
 
- Eu não quero dormir, tudo bem? Não me deixe dormir, prometa, diz Penny.
- Eu prometo. E seus pais?
- Eles são românticos e entenderão. Além disso eles têm um ao outro. Eu só quero ficar com você.
- E eu com você.
- Eu não poderia viver sem você. Não importa por quanto tempo. O que fazemos agora?
- Só quero ficar deitado com você. Só quero conversar com você.
- Sobre o que quer conversar?
- Onde você cresceu?
 
(ela conta um pouco de sua história, e enquanto o barulho de explosões na cidade começa a acontecer ele continua a lhe acariciar os cabelos e  lhe fazer perguntas sobre sua vida, sem tirar os olhos dela)
 
- Queria ter conhecido você há muito tempo, quando éramos crianças, diz Penny.
- Não poderia acontecer de outro jeito. Tinha que ser agora.- Mas não temos tempo suficiente
- Nunca teríamos tido
- Estou com medo
- Eu estou loucamente apaixonado por você Penny. Você é a minha coisa preferida em todo o mundo
- Achei que, de alguma forma, salvaríamos um ao outro
- Nós salvamos Penny. Estou muito feliz por ter conhecido você.

  (ela chora... e sorri)
 
Quem disse, então, que alguns instantes de pleno amor não são suficientes para uma vida inteira ter valido a pena? São estes momentos que adquirem uma capacidade de ordenação de tudo o que aconteceu em nossa vida, nos oferecendo um sentido e nos trazendo uma serenidade nunca conquistada. Não acham? Não é isso que, no fundo, buscamos?

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013


É interessante como podemos ser corajosos, heroicos e aceitar doar, mesmo com muita dor, a nossa própria vida por um amor. Mas, por outro lado, também podemos negar, resistir fortemente a aceitação da perda daquela(e) a quem amamos, como se nossa própria vida tivesse menor significado que a dela(e). Ou seja, enfrentamos com tranquilidade o desconhecido da morte por quem amamos, mas não enfrentamos a presença esmagadora da realidade da perda de quem amamos. Talvez pelo simples fato de que, a partir deste momento estaremos morrendo um pouco a cada dia e, "morrer em vida", é bem pior que a simples morte.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

O pecado de falar sobre o desejo!

Tenho um grande débito para com a psicanálise. Depois que a descobri foi como se iniciasse um caminho de retorno a mim mesmo e foi isso que, profissionalmente, me possibilitou ir ao encontro de outras pessoas na tentativa de oferecer algum suporte para esse mesmo encontro. Não desmereço minha história, mas não tenho receio em dizer que devo à clínica psicanalítica o que sou hoje. E quando falo "clínica" falo dos meus atendimentos, de minha análise pessoal, de minha supervisão e de minha formação teórica que é permanente, interminável. Claro que têm dias que saio da clínica mais pensativo do que, de fato, gostaria. Intrigado, as vezes sem encontrar uma ideia que acalme o pensamento, as vezes até um pouco irritado. Sim, é normal, pois se temos que suportar as dores de outros, também precisamos de alguém que suporte as nossas. Ou o psicanalista não tem suas dores? Mas não é esta a questão exatamente. O ponto mesmo é o que por vezes deixa uma intriga.

É muito normal que a intriga fique sempre pairando o atendimento clínico. Lido, ali, com questões psíquicas muito próprias do indivíduo, mas que nunca deixam de refletir o conjunto de vivências e relacionamentos que ele experimentou ao longo de sua vida. Nunca acreditei estar ali acompanhando e analisando um indivíduo isolado, mas um indivíduo que se situa em uma densa e complexa teia de vivências sociais de toda ordem. E tudo isto se manifesta em suas angústias. Vou já oferecer um exemplo desta complexa e densa teia social.

Na clínica, portanto, a condição humana se revela em sua face, não diria nua, mas mais enigmática. Sim, porque mesmo nus não deixamos de ser enigmas. E é sobre um desses enigmas que quero comentar um pouco mais. Há alguns dias, numa quinta-feira a noite, me surpreendi, intrigado, com o quanto se andava falando, na clínica, sobre a questão do casamento, de modo mais específico, e do relacionamento, de forma mais geral. Não tenho estatísticas que comprovem esse aumento de preocupação com esta questão mas, de fato, me parece estar ocupando um espaço crescente.

Casamento, relacionamento, no fundo estamos falando do "amor", seus dramas e angústias. Ora, vamos acertar logo algo aqui desde o início. Falar de amor é falar sim de sofrimento. É falar de algo que fantasiamos como solução definitiva mas que sabemos correr o risco permanente de perder. E isto se revela como fonte de uma angústia inesgotável. Pode até não atrapalhar tanto a felicidade, mas fica ali como algo ameaçador. Podemos perder um amor sim. Podemos perder a pessoa para a morte, ou para a vida. Há, portanto, sempre algo que nos fala de uma severa necessidade em lidar com o luto de uma separação. Mas tudo isto é muito amplo e geral, e queria mesmo pensar sobre algo mais específico.

Ou seja, e quando uma pessoa não revela seu desejo de separação com medo de magoar à outra? O que existe aqui? De que estamos falando? Logo o que me vem à cabeça é uma pergunta: o amor encontra seu mais perfeito contorno em um casamento? Ora, pode ser que sim! Existem casamentos, e relacionamentos, que são a mais "perfeita" materialização do amor. Mas, e quando o amor parece não mais caber em um casamento? O que se faz? É essa dúvida que leva muitas pessoas à clínica.

Alguns poderiam dizer apressadamente: "separem-se oras!". É, pode ser assim mesmo. Mas, em que pese acreditarmos em nossa capacidade de agir e tomar decisões conscientes e racionais, não é assim que agimos na maioria das vezes. Aliás, na grande maioria das vezes. Lógico que isso pode parecer frustrante para alguns, mas há como negar? Nem tentem me convencer que somos seres "racionais" 24 horas por dia! Já desisti desta crença há algum tempo.

E isto fica muito claro nas queixas dos pacientes justamente no momento que se descobrem ainda possuidores de uma enorme capacidade de amar, mas dramaticamente este amor não mais cabendo no seu casamento ou relacionamento. Ou seja, continuo podendo amar, mas amo outra pessoa agora! E aí? O que fazer? Os dramas são os mais diversos. Mas, existe um ponto bastante comum entre inúmeros casos. Uma espécie de fio condutor que ajudar a explicar várias situações que chegam à clínica. Não todas evidentemente.

Vou tentar, forçosamente, resumir a queixa na seguinte frase: "Como posso deixa-lo(a) se havia a promessa de um amor eterno?". Ufa! No dia a dia esta frase pode soar trivial, mas na clínica, diante da evidente angustia de um indivíduo, soa como um grito de desespero. Um beco sem saída. Uma caminho que só leva a um abismo.

Quando falei acima sobre um "fio condutor", um "ponto em comum" que ajuda a explicar esta queixa, estou falando da severa dificuldade, num primeiro momento, de reconhecimento do próprio desejo e, num segundo momento, de se trabalhar mais com "fantasias" que com a própria realidade. Mas, onde entra o peso do "social" nisto tudo? Vou por partes.

Entrar em contato, e reconhecer como legítimos nossos desejos não é mesmo uma tarefa fácil. Me arriscaria a dizer que talvez seja uma das principais tarefas da psicanálise, pois exemplifica bem o que seria esse "encontro consigo mesmo". Ora, quem é esse "outro" dentro de mim mesmo, que quero encontrar, senão meus desejos? É a busca por ele que pode significar uma atenuação das minhas dores e sofrimentos.

Mas, não se trata de um processo simples mesmo. Há momentos, por exemplo em que fantasias tomam conta, como uma sombra, e afastam qualquer possibilidade de enxergar a coisa com clareza e aí as decisões se tornam impossíveis. Por exemplo, se o indivíduo descobre que, de fato, quer continuar amando, mas amando outra pessoa, e tem um compromisso de relacionamento (casamento), começam a pesar sobre ele (a) severas questões.

Ele(a) pode acreditar, por exemplo, que não haverá qualquer possibilidade de diálogo com a pessoa com quem mantém o compromisso (fantasia), pode estar acreditando que ela(a) dirá algo que o coloque "contra a parede" e o(a) faça desistir da ideia de uma separação. Que fantasias são essas? Podem ser do tipo: "depois de tanto tempo, agora você quer me deixar?", "você jurou que nosso casamento seria eterno!", "minha família não vai aceitar!", "isso é pecado!", "o que as pessoas vão dizer de mim?", "eu não vou sobreviver sem você", "eu me anulei e me dediquei somente a você" etc.

Veja, tudo isto pode estar somente no nível de uma fantasia imaginada por quem quer se separar e não tem a coragem de iniciar um diálogo, ou pode se transformar em acusações bem reais quando do início de um diálogo. É justamente aqui que vemos o quanto um relacionamento pode ser invadido por questões egóicas (egoístas) e por pressões do social e até da religião, impedindo ou dificultando que as pessoas possam reformular suas vidas em busca de uma felicidade que imaginam poder conquistar.

Claro que estou tocando em questões socialmente sensíveis a muitas pessoas. Mas, quem disse que temos que ter esta preocupação como central na clínica. O que precisamos é escutar bem, ajudar a reconhecer o desejo e trabalhar no sentido de que o indivíduo seja competente e responsável o suficiente por suas escolhas. Mas, vamos voltar ao assunto.

Promessa, pecado, aceitação familiar, aceitação social, necessidades. O "social", o "egóico" e o "religioso", neste momento, surgem com toda força sobre aquele que está saindo de um casamento. Na voz daqueles que estão sendo "deixados" soa o grito de "traição", "abandono", "ingratidão", e na voz daqueles que estão "deixando" soa o peso de uma promessa não cumprida, o peso de estar se cometendo um "pecado".

Não é uma transição fácil, mas é bom que se lembre que a dor de uma separação, então, não está somente em quem "fica", mas também em quem "sai" de um relacionamento. Ambos têm que lidar com uma perda, um reencontro com seus desejos, com uma reestruturação. Isso não explica tudo, mas explica alguns dramas vividos em certos relacionamentos, honestos, mas que se perderam em algum momento.

Melhor seria se fizessem essa transição juntos, se escutando, se respeitando, buscando recuperar uma identidade que tem que sobreviver ao relacionamento que agora começa a se desfazer. É por uma recusa em buscar essa identidade, que é anterior e deve sobreviver mesmo durante o casamento, que muito casais acabam optando pelo comodismo, pelo abandono de seus desejos, pela infelicidade mútua, ao invés de se darem uma chance de liberdade e apostarem mais uma vez. É lamentável, mas é o que ocorre na grande maioria dos casos. O laço, que é frouxo e comporta sempre um risco, se transforma em uma corrente, dura e resistente, que aprisiona. estão como que "fadados a serem felizes", custe o que custar, inclusive a felicidade de ambos.

Só uma observação. Não vejo o casamento como uma instituição "falida", o que está falido mesmo é esse relacionamento egóico, que se utiliza de chantagens pessoais e pressões sociais e religiosas para sustentar um relacionamento quando ele, de fato, já se transformou. É por isso que, para muitos que chegam à clínica é sempre um "pecado" falar de seus próprios desejos, sentem-se "traidores" ou "traídos". Para não "magoar" o outro preferem calar a si mesmos e abandonar sua vontade de ser feliz. E aí só lhes restará, no lugar da busca pela felicidade, ou de mais uma chance, o contentamento com a paralisia e a acomodação. Terrível, quando se pensa que não teremos outra vida para colocar as coisas em ordem.

Porque não apostar em uma amizade eterna, em um carinho eterno, ao invés de um forçoso "casamento eterno"? Por que preferir a infelicidade do(a) outro(a), e a de si mesmo(a), que a possibilidade de novamente tentarem ser felizes, de outra forma? No fundo, ainda entendemos muito pouco de relacionamentos. No fundo temos medo de começar de novo. Mas, isso é da condição humana. Duvido que melhore muito no futuro, pois estaremos sempre trabalho com a fantasia do "eterno", com a vontade de "posse" e com a ideia de "pecado". Isso intriga, e muito!

Espero não ter deixado ninguém chateado, mas o tema está aí, no nosso dia a dia!

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Os homens e a questão da fidelidade

A fidelidade masculina é praticamente uma questão de honra para as mulheres, que parecem não querer abrir mão dessa exigência. Por outro lado, "traição" praticamente virou um sobrenome masculino. Diante de todo este quadro, os homens têm tido a oportunidade de se explicar? Não é uma tarefa fácil, praticamente para quem se dispõe a ser advogado do diabo.
 
O texto abaixo foi escrito a partir das considerações trazidas por Maryse Vaillant¹ e seu método foi o de, pós fazer a escuta (nem um pouco "moralista") de inúmeros casos, elencar aqueles que considerou de "infidelidade (ou fidelidade) extrema" e compreendê-los em seus pormenores para, a partir daí, lançar luz sobre as chamadas "pequenas fraquezas corriqueiras". Importante lembrar que a autora se concentrou nas uniões heterossexuais, plenamente estabelecidos. Sobre a escuta, ela nos diz:
Ao deixar que a história de cada um explique a aventura passageira, avassaladora ou discreta, que pode abalar um casal ou levá-lo à ruptura, sem dar definição a alguém, procurei as forças profundas que sustentam os discursos dos homens nos que diz respeito à sua maneira de conceber o compromisso, o amor e o casamento (p. 176).
Dentre os principais temas investigados podemos elencar os seguintes:
  • Que motivos levam um homem a enganar a mulher que ama?
  • Que motivos levam um homem a amar a mulher que engana?
  • Por que diversos maridos adúlteros jamais deixam suas esposas?
  • Que motivos levam as mulheres a praticamente não desconfiarem de quase nada?
  • Quais as dificuldades em manter-se monogâmico?
  • Por que motivos consideram as conquistas como garantia de virilidade?
  • O que definem como mentira, escapada, traição e adultério?
  • Por que consideram a existências de "mentiras protetoras"?
Parece-me, entretanto, que duas grandes questões rondam todo o trabalho de Maryse Vaillant:
  • Até que ponto a (in) fidelidade está relacionadas às qualidades de homens que traem ou mulheres amadas?
  • E, qual a relação, de fato, entre a (in) fidelidade e o amor?
Então, o que alegam os fiéis e os infiéis?
 
Para tentar responder à esta questão, e todas as demais, citadas acima, a autora nos apresentará cinco grandes "tipos" comportamentais:
  1. O monogâmico mentiroso e sua "arte de acomodar o casamento"
  2. O poligâmico ansioso e seu "desejo de ter todas as mulheres"
  3. O poligâmico indeciso e seu "sonho de amar todas as mulheres"
  4. O monogâmico cativo e sua "concepção específica de homem"
  5. O poligâmico resolvido / monogâmico perdido e a "possibilidade de mudança"
 É a partir, então, da análise destes "tipos" que a autores vai chegar  a algumas conclusões:
  • Não veio à tona um "modo amoroso masculino" específico, distinto daquilo que serve de âncora para as mulheres (amor pelo pai, dedicação ao filho, arte de apoiar ou forjar os homens). Os homens, então, não falam das mulheres, nem de suas figuras sedutoras e maternas. Se ocorre, é de forma muito ocasional. Os homens falam de si mesmos, suas dúvidas  identitárias, sonhos, dificuldades com o compromisso. Falam mais de suas angústias e limitações que de seus amores e amantes;
  • Duas grandes angústias emergem: a clássica "castração" e o medo de ver o "desejo" acabar ("afânise"). Por isso, para o homem, independente da fase de sua vida, a necessidade de amar e ser amado assume uma nuance fálica;
  • Há uma clara dificuldade por parte dos homens em deixar a infância para trás, e isso, fundamentalmente, pelo fato de que o que faz mesmo diferença em matéria de fidelidade é a capacidade (não de amar) mas de renunciar ou separar-se do outro;
SOBRE OS INFIÉIS - Reivindicam a liberdade sexual e o pleno direito ao desejo. Praticam o adultério de forma crônica e mentem para preservar o casamento. Possuem uma fome insaciável de amor. "...Acham impossível abrir mão da liberdade de seduzir, uma vez que a única coisa que importa aos homens atormentados pelo medo da castração é a disponibilidade sexual" (p. 177). Estamos sempre presos à equação que une masculinidade e virilidade. "...As infidelidades daí decorrentes são apenas a consequência de um drama íntimo de um homem que, por detrás de sua profissão e fé, oculta autêntica fragilidade. Assim, a infidelidade é o sintoma da dificuldade de assumir as escolhas e as imposições inerentes a qualquer existência" (p. 178). Existem os "poligâmicos indecisos" que cultivam amores múltiplos e paralelos. Geralmente ficam infelizes por terem que se utilizar de mentiras e acham que suas companheiras são intolerantes.

SOBRE OS FIÉIS - Alguns podem ser indiscutivelmente fiéis, seja por uma questão de natureza, estrutura ou cultura. São homens de uma única mulher, enclausurados na monogamia, seja por imposições, honra ou loucura, prisioneiros de si mesmo ou de seu passado. São homens que mentem para si mesmos, pois estar com a consciência tranquila é fundamental para eles. "Todos são incapazes de escolher ou de se desvencilhar das imposições que os amarram. São fiéis por medo, por inibição, por adição, porém também por preguiça. Incapazes de escolher ou de se desvencilhar, só lhes resta serem fiéis. Duplicadas ao infinito pelas suas uniões e seus casamentos, as figuras parentais arcaicas que os enquadram não lhes deixam nenhuma esperança de liberdade intima. Então, a felicidade é o sintoma de sua dificuldade de se desvencilhar - da história de sua infância, por exemplo - para construir sua vida de homem" (p. 178).

Mas, o que é um HOMEM? O fato é que nestas últimas décadas a figura masculina se tornou muito complexa e seus esquemas comportamentais e identitários não estão mais tão bem estruturados, estão obsoletos. Isso implica em que os homens de amanhã terão que inventar novas estruturas amorosas de longo prazo. Não bastará mais tomar seu pai como modelo (ou contraexemplo) para poder deixar a mãe e as ilusões da infância. "...Entre os desafios mais difíceis, ele talvez tenha de procurar outra unidade de medida identitárias em vez do tamanho ou do vigor do seu órgão reprodutor e dos seus substitutos, como o poder e o dinheiro..." (p. 179). São mudanças no imaginário masculino que precisam se refletir na realidade, pois a libido não pode mais ser a única força motriz de sua existência e razão única para viver. Os homens, então, devem abandonar o amor de uma mulher (mãe) e a promessa do pênis, para procurar em seu pai e em seus pares o modo de se tornarem si mesmos.

 
___________
 
¹ VAILLANT, Maryse. Os Homens, o Amor e a Fidelidade; Tradução: Elena Gaidano. - Rio de Janeiro: BestSeller, 2013 (c) 2009. A autora foi uma psicóloga francesa, prof. da Universidade de Paris.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Sobre o amor e o casamento: "antes" era melhor que hoje?

Amar, hoje em dia é mais fácil que antes? Antes, o casamento era melhor que hoje? Ser um casal hoje em dia garante que vou continuar sendo livre? Perguntas como estas, e tantas outras, povoam o imaginário de homens e mulheres na atualidade. São como que sombras de um passado, de que se ouviu falar, principalmente dos pais e avós, e que não consegue mais se sustentar tão facilmente e com tanta naturalidade. 

Ora, os casais continuam indo às terapias com suas angustias e incertezas. Mas, se antes estas eram provocadas, na sua maioria, por uma espécie de "confinamento" (no casamento) que exigia uma mudança, hoje, muito são muito mais motivadas por uma "liberdade" (individual) que se conquistou e que é difícil dividir com o outro, não se sabendo bem, portanto, o que fazer com ela. No meio de tudo isto, aquela fantasia tão nos ensinada pelos contos de fada: "antes tudo era melhor". Será mesmo? Em que aspectos?

Antes de mais nada, é bom lembrar o quanto é difícil se trabalhar com categorias assim tão fechadas como "antes" e "hoje", pois sabemos que esses tempos se misturam de formas específicas em cada imaginário e produzem fantasias as mais distintas em cada pessoa, onde a realidade de um casal e do amor não é a mesma de outro e precisa ser investigada na sua especificidade. Isso, entretanto, não invalida que apontemos certas "regularidades", situações compartilhadas por muitos, e são estas que nos permitem falar, ainda que com cautela, em um "antes" e um "hoje".

Mas, o que era este "antes"? Cada vez mais, o "antes" dos relacionamentos amorosos e conjugais entra para aquela categoria dos "paraísos perdidos", dos quais nada sabemos, nada experimentamos, nada vivemos, mas que somos capazes de jurar que foram bem melhores do que aquilo que vivemos hoje. São como que um refúgio para onde escapamos, em nossos pensamentos, quando as incertezas do momento atual nos afligem. 

Uma necessária regressão a tempos "primitivos" onde apostamos na existência de uma felicidade sincera e duradoura. Melhor seria olhar para frente? Talvez! Mas, convenhamos, é bem mais fácil e simples se olhar para trás com alguma nostalgia, essa saudade idealizada e quase sempre irreal, alguma segurança, do que olhar para frente com todos os riscos que o futuro traz embutidos.

O "paraíso perdido", então, nada mais é do que uma construção imaginária que utilizamos para combater nossas angústias. Por isso soa tão fácil na boca de muitas pessoas ouvir que, "antes", mesmo quando o amor não estava tão em questão no casamento, tudo era "melhor". Não há nada que comprove isto. Para os que se apegam demasiadamente em estatísticas talvez o tempo de duração dos casamentos hoje comprove algo. Mas, na verdade, isso não explica quase nada. 

Então, o retorno ao "paraíso perdido" é só um recurso de que nos utilizamos quando estamos sem saber bem o que fazer "hoje". Mas, de fato, o que era esse "antes", tão idealizado por homens e mulheres? E quais os desafios que o "hoje" coloca aos relacionamentos amorosos?

A respeito do "antes", acho que dá para se chegar a algum consenso: o "casal" era algo bastante idealizado, principalmente pelas mulheres, e muito buscado. Os papéis de homem e mulher já estavam bem definidos, enquanto um buscava prover e proteger, outro buscava cuidar e procriar, tudo segundo regras culturais bem claras e que deixavam o destino bem visível para os dois. Neste contexto, havia uma ideia de complementaridade, como se fossem "duas metades", ou como se diz, "a tampa da panela". Os filhos, quase sempre muitos, eram como que a garantia e o atestado de uma família feliz. 

Esse é um panorama muito geral, que quase sempre é idealizado mesmo. Mas, em seu interior haviam problemas. E é muito natural que houvessem. Num contexto assim, como o de "antes", não era difícil o marasmo, a inércia, e a luta pela "transformação" do vínculo entre os dois talvez estivesse no inconsciente de cada um, mas sem grandes possibilidades de sucesso. Estavam como que "amarrados", mas no sentido ruim mesmo do termo, e a palavra de ordem era "transformar" para se tentar ser feliz. 

Mas, e o "hoje", o que apresenta de novidade? Existem sim algumas características que transformam o "hoje" em algo bem distinto de "antes". Duas me parecem muito fortes e ajudam a explicar muitas situações: 1) O narcisismo individual, e 2) A ideia de igualitarismo e similaridade na relação. O que isto tudo implica? Como podemos resumir o cenário?

"Hoje", homens e, especialmente mulheres, tendo conquistado uma maior liberdade em diversos aspectos, e sendo convidados a participar de uma sociedade cada vez mais competitiva, viram o ressurgimento de um individualismo muito feroz, que trouxe à tona o narcisismo, muitas vezes, em suas piores versões. Trata-se de um narcisismo que praticamente se resume à busca e conservação, a todo custo, do bem-estar pessoal. Um narcisismo tão arraigado que, diante de uma dificuldade maior em realizar um desejo busca-se logo uma alternativa e abandona-se tudo.

Na prática dos relacionamentos isso significa, de imediato, uma "desconfiança" em relação ao outro. O que ele(a) quer mesmo de mim? Vou perder minha liberdade diante dele(a)? Vou ter que dividir algo com ele(a)? Ora, é essa desconfiança que está na base das dificuldades em se construir laços na atualidade. Se antes, então, o laço se formava através de um casamento que era facilmente buscado e desejado, hoje esse laço é visto com desconfiança. Como criar um laço com o(a) outro(a) se o que busco, em primeiro lugar é minha felicidade pessoal? Nada pode abalar minha onipotência narcísica de buscar o que é bom para mim.

Não à toa, diversas formas de laços têm surgido, formas alternativas de amor e de amar, situações diferentes de estar junto, de conviver. Cada um de nós não quer mais ficar "refém" de um destino, ou de um casamento que parecia ser o único resultado a esperar da vida. Nos sentimos no direito de inventar, de transformar, de forjar nosso próprio destino. Não queremos mais dividir papéis de forma tão clara. Não queremos mais transar de forma tão convencional. Sempre desejamos isso? Tudo bem, só que agora estamos fazendo isso, com muito mais liberdade.

Ora, de acordo com esta lógica narcísica, como entender o laço de um casal? É aí que passa a predominar o que Serge Hefez (psicanalista francês) chama de "miragem da similaridade", do igualitarismo, onde tentamos desesperadamente preservar nossa identidade diante da outra pessoa. Talvez por isso mesmo seja fácil "jogar a toalha" diante das primeiras dificuldades. Talvez por isso mesmo, os casais, hoje, visitem os terapeutas cada vez mais jovens e no início do casamento, justamente porque não "sabem" criar um laço. Embora, saibam defender bem, cada um, a sua liberdade, a sua individualidade, o seu desejo, o direito de ser amado. Mas e o laço? Onde fica o laço? Não podemos esquecer que:
Cada um se engaja inteiramente na relação amorosa, colocando em jogo tudo o que o constitui como pessoa: o sentimento dos próprios limites, da posse de si mesmo e de seus desejos, com o risco de uma perda de si ou pelo menos de uma certa imagem de si. Mas a vida amorosa é precisamente o que coloca em causa as fronteiras do eu, entre "eu" e "nós", entre mundo interior e a realidade externa. Ser amado "por completo" faz bem e traz segurança, mas o perigo de aniquilamento ou de fusão nunca estará muito distante"¹
Para finalizar, acho que na ânsia de superarmos os limites desastrosos dos casamentos de "antes" (uniões normatizadas) conquistamos liberdades que despertaram em nós um sentimento narcísico de onipotência que nos faz sentir, permanentemente "melhores" que o outro. Este passa a ser necessário somente para o "meu" prazer. Mas e o laço? O laço amoroso é tecido pelo amor. E o amor exige uma entrega do "eu" para o "nós". Estamos dispostos a correr este risco? Ou vamos nos atolar neste pântano narcísico e individualista onde buscamos nosso prazer a todo custo, mesmo à custa do(a) outro(a)?

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¹ HEFEZ, Serge. Cenas da vida conjugal: como os casais enfrentam a crise do relacionamento. - São Paulo: Saraiva, 2012, "Introdução", pág. 23.


sexta-feira, 19 de julho de 2013

O Estranho Apelo do Ciúme - M. Blévis

Este texto é uma síntese de um capítulo I do livro de M. Blévis (1) intitulado "O Estranho apelo do ciúme".

A frase "você nunca saberá o quanto eu a teria amado", dita pelo namorado, quase fez Cléa desmaiar. Ela estava muito próxima do fundo do poço. Lúcida, mas em desespero, ela sabia que o ciúme a estava consumindo e tudo lhe parecia bem claro. Nesse ponto, se destaca a questão da "racionalização", tão típica do delírio de ciúmes.  É o que destaca Blévis.
O ciúme atesta um desvario perante o qual as suspeitas do ciumento parecem ser uma "racionalização", uma "roupagem do movimento de pavor que o suscita. Mas, que chaves fornecem estas máscaras? (p. 30).
A "racionalização" funciona, então, como uma máscara que esconde o pavor. Ora, segundo Cléa, como é que, naquele momento em que o namorado diz que a ama fala como se já não estivessem mais juntos? ("você nunca saberá o quanto eu a teria amado") Cléa já não sabia se era a mulher amada do "presente" ou a mulher esquecida do "futuro". pode parecer a alguns estranho o fato de poucas palavras dispararem tão forte angústia, mas
O ciúme é uma tortura que se alimenta das mínimas palavra e as deturpa em seu proveito (p. 31).
O resultado foi Cléa adentrar em uma crise de angústia, abrindo um abismo com relação a seu namorado. Mas, como nomear este abismo? Na impossibilidade, Cléa se alimenta de "ruminações" infindáveis sobre qualquer palavra que lhe era dirigida pelo namorado, afinal:
O ciumento é alvo permanente de batalhas internas, tão exaustas quanto estéreis (p. 33).
Sim, porque quem dota os rivais de tantos encantos e sedução é o próprio ciumento. No fundo, então, suas racionalizações e convicções acerca de numa traição são "fantasmas sem consistência". Fundamental, então, buscar a linguagem de Cléa na sua infância. Nesse momento,
O psicanalista precisa de toda a sua habilidade para conseguir se colocar na "pele infantil" do paciente, imaginá-la e descobrir as palavras que lhe faltaram (p. 34).
Qual, então, o curso das sensações de rejeição experimentadas por Cléa ao longo de sua vida? Não demorou para que uma lembrança lhe viesse à mente. Tratava-se de uma imagem que era recorrente. Em uma cidade devastada, um cachorro vadio e faminto andava por fachadas de prédios em ruínas.

Não havia dúvida que Cléa imaginava-se sendo esse cão desamparado e aflito, e a recorrência dessa imagem não era mais que um pedido de socorro. Mas, que conflito vivenciado por Cléa poderia ter causado toda essa cena sombria e destrutiva? Que acontecimentos foram esses, tão fortes, que foram silenciados por Cléa? O que a teria deixada tão faminta por palavras e vínculos?

No decorrer das sessões, suas associações iam em direção às "guerras" familiares. Ela sabia que a mãe fora enganada pelo pai. Logo em seguida o pai viria a morrer, mas sobre a traição e sobre o próprio pai passou a imperar um "silêncio". Cléa, na realidade, só possuía algumas fotos dele, de seu rosto ("fachadas").

Esse silêncio hostil por parte da mãe privara Cléa de todo o Luto necessário. Sem ele, sua dor permanecia "real", não simbolizada. Talvez por isso, andasse "vagando", faminta de significados, como aquele cão bem representava, diante de fachadas em ruínas.

Cléa, portanto, não havia explorado a realidade de suas emoções. E a impossibilidade do luto pelo pai, imposta pelo silêncio, deixara em suspenso sua feminilidade. O ciúme, então, a levava sempre a imaginar uma mulher a quem seu namorado poderia se dirigir. Uma rival que possuiria esta feminilidade. O abismo, então, era longo e profundo. De acordo com M. Blévis,
Uma construção de hipóteses erigida por um psicanalista só é pertinente quando faz reviver na memória do paciente fragmentos de lembranças que ajudem a preencher as omissões causadas pelos diversos recalcamentos, censuras, foraclusões ou renegações. O tratamento psicanalítico restitui força e vida a todos os vestígios e significações de acontecimentos que foram vividos, mas permaneceram fixados sem alteração no psiquismo. Com isso, eles persistem sob a forma de enigmas perigosos (...) O psicanalista, no espaço da transferência vai em busca das lembranças escondidas e cristalizadas nas palavras do paciente, a fim de "reativá-las" (p. 38).
Mas, o avanço definitivo de Cléa veio através de um sonho. Neste sonho, ela cruzava, na rua, com um homem com uma máscara de carnaval veneziana, com um bico assustador. Ela tinha que transar com ele, mas ela parecia um bebê. Ela sentia uma excitação sexual, mas desprovida de prazer. Logo, isto foi interpretado como uma revivência do amor intenso que Cléa sentia pelo pai, então proibido e silenciado pela mãe.
O trabalho da análise suspende esse tipo de proibição, desarticulando o pavor que ela encerra, e reabre o espaço do desejo de viver; nesse sentido, toda análise é também um "renascimento" (...) Cléa não poderia fazer o luto do pai enquanto ele não voltasse a ocupar um lugar "vivo", em palavras que o arrancassem do silêncio em que a mãe o havia escondido (p. 44).
Seu ciúme era, ao mesmo tempo, uma proibição de pensar no vínculo amoroso em seu lugar próprio e um apelo para arrancar essa preciosa ligação de sua ganga de proibições (p. 41).
Se era um destruidor de vínculos, o ciúme era também o lembrete de uma dor de amor perdida. Assim,
A saída do ciúme veio da possibilidade de lhe ser restituído o direito de amar a um pai, um homem, e também a si mesma como "apaixonada" (p. 41).
A proibição e o silêncio da mãe haviam amputado uma dimensão essencial da sua "identidade feminina". Há, no ciúme, uma oscilação entre o amor e a fúria (angústia) e essa raiva não é, ingenuamente, um "sinal de amor", é pura hostilidade. O ciumento tem raiva por não poder "consertar" o amado para que este lhe dê o reconhecimento e o amor que acha merecer. Mas, isto é impossível que alcance, até porque a demanda do ciumento é impossível de satisfazer. De acordo com Blévis,
No ciúme, é uma proibição de amar - no sentido como a infância ama, de forma intransigente, total e libertária - que o sujeito procura expulsar de si (p. 42).
Se ele conseguir essa expulsão, passará a amar como um "adulto". O ciúme, então, serve de anteparo para uma falha íntima. E a liberdade contra o ciúme vem quando se simboliza essa falha, como compreendendo que era possível reconquistar o direito de amar, sem mergulhar numa angústia mental. Afinal,
Amamos contra a morte, para vencê-la, para esquecer que somos mortais e, ao mesmo tempo, sabemos perfeitamente que nossos laços amorosos podem romper-se a qualquer momento. Assim, somos reconvocados à vida por eles e expostos ainda mais à angústia de nossa finitude ao perdê-los (p. 42).
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BLÉVIS, Marcianne. O Ciúme - Delícias e Tormentos. - São Paulo: Editora Martins Fontes, 2009, p. 27-42

domingo, 14 de julho de 2013

"Outono em Nova York" e a promessa de não amar

Hoje, grande parte do cinema está tomado pelo gênero "comédias românticas", geralmente leves e bobinhas, que não exigem maiores esforços de compreensão, nem causam qualquer maior identificação, mas que ajudam a relaxar um tempinho. O filme Outono em Nova York (EUA, 2000) não segue bem esta linha e apresenta uma temática bem interessante. 
- Só posso lhe oferecer o que temos agora, nada mais.
- Como sabe? Estamos juntos a tão pouco tempo! Os sentimentos mudam. Você nem me conhece direito.
- Pode ser, mas eu me conheço!
Este é o diálogo inaugural que mostra Will terminando um relacionamento como de costume. Will Keane, é um empresário cinquentão, bonitão e sedutor. Não precisa fazer muito esforço para “colecionar” seus relacionamentos, sempre fortuitos e jovens. 
Certo dia, porém, seu olhar se desvia e se fixa, por alguns instantes, em uma linda jovem cujas feições são melancólicas. É isso que atrai Will? Houve alguma identificação? A quem ele vê quando fixa seu olhar na linda e triste Charlotte? De qualquer forma, após serem apresentados formalmente por uma velha amiga, Will parece seguir o seu “ritual” de sedução e faz contato. Claro que ele tem um pretexto. Quer que ela lhe faça um chapéu para a namorada. Charlotte está encantada, como se fosse sua primeira paixão. As vezes até se comporta como uma adolescente. Uma espontaneidade que parece encantar ainda mais a Will. De novo, o que teria Will visto neste comportamento tão espontâneo, generoso e encantador, que tanto contrasta com sua frieza?
Um passeio a dois, um local bonito e ela praticamente se oferece para um beijo. Mas, algo rompe o “ritual”. Will, por alguns instantes, recusa, parece sentir-se ameaçado, desconfortável. Ele passa a observá-la como quem "contempla" e não como quem simplesmente “olha”. Há algo nela que o faz fixar-se, mas de forma diferente do seu ritual de conquista que serve a todas as mulheres. Mas quem disse que é tão simples romper um ritual? Mais tarde, ele tenta uma “conversa séria”, é o momento em que seu ritual continua, com a “sedução” dando lugar à “advertência”:
Eu podia dizer isso depois, mas gosto mesmo de você. Quero ser bem claro para que não haja problema depois. Quero lhe dizer que o que posso lhe oferecer é isso, o que temos agora. Nada mais. Somente isso. Até terminar. O que quero dizer é que não temos futuro.
Eu sei… eu estou doente”, ela responde. E seu olhar volta àquela melancolia inicial. Mas, só por alguns instantes, pois seu espírito alegre e brincalhão logo se impõe. Charlotte, em suas brincadeiras sobre a ausência de um futuro coloca Will diante de seus próprios “truques”. Ela diz, por exemplo, que logo será uma bela história triste para ele usar em suas cantadas. Isso começa, de alguma forma, a abalar Will. Parece estar diante de algo muito “real” sobre si mesmo e que o incomoda agora. Ela insiste em ser só um tempo “presente”, sem futuro, mas isso, ao contrário do que se poderia esperar, não deixa Will mais à vontade.
Se Will é um sedutor daqueles que "parte para cima" com seu charme, Charlotte tem o dom de “encantar”, com a verdade e a sua simplicidade – aliás, coisas bem distintas na sedução. Não à toa Charlotte nos presenteia com uma frase de Emily Dickinson, poeta americana que, apaixonada e melancólica disse: “A esperança é um pássaro que se empoleira na alma”. Mas, no fundo, Charlotte recusa a esperança. Ela sabe que vai morrer!
Aos poucos a curiosidade de Charlotte em saber mais da antiga amizade de Will com sua mãe vai fazendo-o relembrar situações que parecem ter sido muito especiais para ele. Talvez mesmo uma antiga e verdadeira paixão. Mas, Will resiste em sua promessa de jamais voltar a se apaixonar. Quando Will a trai com uma antiga ex-namorada, Charlotte lhe questiona: “E o amor?”… “E o amor?”. Por que Will a traíra? Ela não aceita e lhe questiona: “E o amor?”, mas ele não tem respostas. Ela o deixa.
Este é o momento em que se instala em Will um terrível combate em torno de sua promessa e seu medo de amar, e ele diz: “Ah, vou voltar a ser como eu era!”. Mas, não é mais tão simples assim. Nesse ínterim, Will reencontra sua filha (de um caso fortuito de antes). Na verdade, é ela quem o está “rondando”. Queria lhe falar que estava grávida e que ele ia ter um neto. Ela sempre fantasiou uma reaproximação, um pedido de desculpas do pai.
São dramas que correm em paralelo, como se um “reforçasse” o outro. Will vai até Charlotte e pede para que ela o deixa amá-la, “tentar outra vez”. Parece estar em curso uma “reconciliação” de Will consigo mesmo, um “reencontro”. Ele passa a lutar cada vez mais para que Charlotte aceite ser operada, como numa última tentativa.
E mais uma vez reencontra-se com Lisa, sua filha. Lhe pede perdão. E ela se torna sua parceira em buscar encontrar um médico para Charlotte. São laços afetivos sendo reconstituídos lentamente na vida de Will. Charlotte tenta fazer Will lembrar do “amor”, e ele tenta mostrar-lhe a necessidade da “esperança”. Lisa, em meio a tudo isto, quer resgatar sua “história” e fazer Will voltar os olhos para a sua também, tendo que trabalhar com outros “tempos” que não só o presente, mas também o passado (enquanto "pai") e o futuro (sozinho?).
Entretanto, em um momento de intensa felicidade Charlotte tem sua crise que parece definitiva. Não é assim que sonhamos morrer?… felizes! Enquanto se prepara para a cirurgia, Will diz que ela o matou para outras mulheres, pois está apaixonado, mas ela diz o que seria a frase-síntese deste filme: “eu o salvei para as outras mulheres”. Sim, ele poderia voltar a amar. Sua tristeza e sua dor precisavam vir á tona. Eram a demonstração mais clara de que estava vivo e pronto para novos encontros, mais verdadeiros. Um belo filme!

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Sobre a Transitoriedade (Freud, 1915)

Em 1915, Freud escreveu um pequeno texto, a partir das lembranças de um passeio com um amigo. Trata-se de "Sobre a Transitoriedade", um dos seus mais belos escritos. No passeio por um jardim o amigo de Freud, de súbito, entristeceu-se diante da efemeridade das flores que murchavam aos seus olhos. Nesse momento, teria comentado que a "a beleza se vai com o tempo".

Foi sobre isto que Freud especulou e nos disse que duas noções psíquicas podem surgir quando reconhecemos que tudo o que é belo se deteriora com o tempo: uma levaria à revolta contra essa fatalidade, e outra levaria à "aflição", que era o que seu amigo estaria sentindo. Mas, o que existiria por trás dessa aflição? Segundo Freud, uma EXIGÊNCIA DE ETERNIDADE, uma exigência de que o belo seja eterno, supere o tempo. É aí que Freud faz associações com o "luto" e a "guerra".

Ora, o luto seria aquele momento em que há uma "rebelião psíquica" que nos tira o prazer pela apreciação da vida. Era o que seu amigo experimentava, de forma "antecipada", ou seja, sofria pela iminente morte das flores e, com isso, se "aprisionava" a este objeto, não conseguindo desligar-se desta aflição. Sobre a guerra, nos lembrou que ela destrói belezas, arruína a cultura, rouba o que amamos, e expõe a efemeridade das coisas. Mas, Freud se questiona: SÓ NOS RESTA MESMO SOFRER DIANTE DAQUILO QUE NOS FOI RETIRADO, DAQUILO QUE FOI PERDIDO? Não! Podemos reconstruir tudo sobre uma base mais firme duradoura.

É aí que Freud nos lembra, então, que É JUSTAMENTE PORQUE AS COISAS SÃO TRANSITÓRIAS QUE MAIS AS AMAMOS, ou seja, se eu sei que posso perder algo (e vou perder) tenho uma grande chance de lhe dedicar mais amor. É por isto que aquilo que amamos não desaparece, nem com sua própria destruição, ou com sua morte, pois nos significou algo muito forte. O sentimento, então, fica conosco, incorporado, não mais como luto, mas como uma "lembrança" de que a felicidade é sempre possível, e que pode ser buscada a todo instante. Mas, pensar assim exige certa sensibilidade, contato maior com nossos sentimentos, capacidade de olhar com respeito as coisas mais simples, respeito ao amor que dedicamos a algo ou alguém.

Mas, é desta forma que agimos? Hoje, vivemos um momento em que, paradoxalmente, a "transitoriedade" não nos deixa perceber com atenção as coisas, as pessoas, os sentimentos. Hoje, já não é a vida, e o belo, que são transitórios. TUDO é transitório e, de uma forma ainda mais cruel, "descartável". Já não temos mais o "tempo" e a dedicação à contemplação e ao amor. Somos como que "forçados" a saltar rapidamente de uma preferência para outra, de uma marca para outra, de uma celebridade para outra, de uma paixão para outra. Como encontrar o que é belo assim? Como amar algo assim?

A velocidade com que tudo se torna descartável impede a contemplação, tão necessária ao alimento de nosso espírito. A aceleração, por outro lado, nos cria a ilusão de estarmos sempre indo em direção ao futuro, ao melhor, ao perfeito. Não! Não estamos indo nessa direção, estamos abdicando do conhecimento sobre o que é belo e do que é o amor. Já não somos autorizados a nos apegar a nada, nem mesmo a ninguém. A velocidade das mudanças é tal que, como a fala do esquizofrênico, impede o tempo de "parar" e, ao refletir e sentir, se apegar. Dessa forma, imagino que o transitório hoje, não pode ficar a serviço do descartável, ele tem que voltar a ficar a serviço do que é belo, como dizia Freud.

Estaríamos, portanto, nos tornando uma sociedade de "autômatos", incapazes de sentir? Sempre prontos a concorrer, a disputar, a agredir, a ultrapassar o outro, a ter sempre o que é melhor e mais novo. O "novo" substituiu o "belo"... que pena! Isto é muito ruim para a cultura, para a civilização, para a humanidade. Esta é a nossa guerra atual. A guerra que Freud presenciou lhe dava esperanças de reconstrução, mas e esta, será que nos permite esperanças?


Abaixo, a íntegra do texto de Freud. 
Não faz muito tempo empreendi, num dia de verão, uma caminhada através de campos sorridentes na companhia de uma amigo taciturno e de um poeta jovem mas já famoso. O poeta admirava a beleza do cenário à nossa volta, mas não extraia disso qualquer alegria. Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava fadada à extinção, de que desapareceria quando sobreviesse o inverno, como toda a beleza humana e toda a beleza e esplendor que os homens criaram ou poderão criar. Tudo aquilo que, em outra circunstância, ele teria amado e admirado, pareceu-lhe despojado de seu valor por estar fadado à transitoriedade.
A propensão de tudo que é belo e perfeito à decadência, pode, como sabemos, dar margem a dois impulsos diferentes na mente. Um leva ao penoso desalento sentido pelo jovem poeta, ao passo que o outro conduz à rebelião contra o fato consumado. Não! É impossível que toda essa beleza da Natureza e da Arte, do mundo de nossas sensações e do mundo externo, realmente venha a se desfazer e nada. Seria por demais insensato, por demais pretensioso acreditar nisso. De uma maneira ou de outra essa beleza deve ser capaz de persistir e de escapar a todos os poderes de destruição. Mas essa exigência de imortalidade, por ser tão obviamente um produto dos nossos desejos, não pode reivindicar seu direito à realidade; o que é penoso pode, não obstante, ser verdadeiro.. Não vi como discutir a transitoriedade de todas as coisas, nem pude insistir numa exceção em favor do que é belo e perfeito. Não deixei, porém, de discutir o ponto de vista pessimista do poeta de que a transitoriedade do que é belo implica uma perda de seu valor.  
Pelo contrário, implica um aumento! O valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição. Era incompreensível, declarei, que o pensamento sobre a transitoriedade da beleza interferisse na alegria que dela derivamos. Quanto à beleza da Natureza, cada vez que é destruída pelo inverno, retorna no ano seguinte, do modo que, em relação à duração de nossas vidas, ela pode de fato ser considerada eterna. A beleza da forma e da face humana desaparece para sempre no decorrer de nossas próprias vidas; sua evanescência, porém, apenas lhes empresta renovado encanto. Uma flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela. Tampouco posso compreender melhor porque a beleza e a perfeição de uma obra de arte ou de uma realização intelectual deveriam perder seu valor devido à sua limitação temporal. Realmente, talvez chegue o dia em que os quadros e estátuas que hoje admiramos venham a ficar reduzidos a pó, ou que nos possa suceder uma raça de homens que venha a não mais compreender as obras de nossos poetas e pensadores, ou talvez até mesmo sobrevenha uma era geológica na qual cesse toda a vida animada sobre a terra; visto, contudo, que o valor de toda essa beleza e perfeição é determinado somente por sua significação para nossa própria vida emocional, não precisa sobreviver a nós, independendo, portanto, da duração absoluta.  
Essas considerações me parecem incontestáveis, mas observei que não causara impressão quer no poeta quer em meu amigo. Meu fracasso levou-me a inferir que algum fator emocional poderoso se achava em ação, perturbando-lhes o discernimento, e acreditei, depois, ter descoberto o que era. O que lhes estragou a fruição da beleza deve ter sido uma revolta em suas mentes contra o luto. A ideia de que toda essa beleza era transitória comunicou a esses dois espíritos sensíveis uma antecipação de luto pela morte dessa mesma beleza; e, como a mente instintivamente recua de algo que é penoso, sentiram que em sua fruição de beleza interferiam pensamentos sobre sua transitoriedade.  
O luto pela perda de algo que amamos ou admiramos se afigura tão natural ao leigo, que ele o considera evidente por si mesmo. Para os psicólogos, porém, o luto constitui um grande enigma, um daqueles fenômenos que por si sós não podem ser explicados, mas a partir dos quais podem ser rastreadas outras obscuridades. Possuímos, segundo parece, certa dose de capacidade para o amor - que denominamos de libido - que nas etapas iniciais do desenvolvimento é dirigido no sentido de nosso próprio ego. Depois, embora ainda numa época muito inicial, essa libido é desviada do ego para objetos, que são assim, num certo sentido, levados para nosso ego. Se os objetos forem destruídos ou se ficarem perdidos para nós, nossa capacidade para o amor (nossa libido) será ais uma vez liberada e poderá então ou substituí-los por outros objetos ou retornar temporariamente para o ego, Mas permanece um mistério para nós o motivo pelo qual esse desligamento da libido de seus objetos deve constituir um processo tão penoso, até agora não fomos capazes de formular qualquer hipótese para explicá-lo. vemos apenas que a libido se apega a seus objetos e não renuncia àqueles que se perderam, mesmo quando um substituto se acha bem à mão. Assim é o luto.  
Minha palestra com o poeta ocorreu no verão antes da guerra. Um ano depois irrompeu o conflito que lhe subtraiu o mundo das belezas. Não só destruiu a beleza dos campos que atravessava e as obras de arte que encontrava em seu caminho, como também destroçou nosso orgulho pelas realizações de nossa civilização, nossa admiração por numerosos filósofos e artistas, e nossas esperanças quanto a um triunfo final sobre as divergências entre as nações e as raças. Maculou a elevada imparcialidade da nossa ciência, revelou nossos instintos em toda a sua nudez e soltou de dentro de nós os maus espíritos que jugávamos terem sido domados para sempre, por séculos de ininterrupta educação pelas mais nobres mentes. Amesquinhou mais uma vez nosso país e tornou o resto do mundo bastante remoto. Roubou-nos do muito que amáramos e mostrou-nos quão efêmeras eram inúmeras coisas que consideráramos imutáveis.  
Não pode surpreender-nos o fato de que nossa libido, assim provada de tantos dos seus objetos, se tenha apegado com intensidade ainda maior ao que nos sobrou, que o amor pela nossa pátria, nossa afeição pelos que se acham mais próximos de nós e nosso orgulho pelo que nos é comum, subitamente se tenham tornado mais vigorosos. Contudo, será que aqueles outros bens, que agora perdemos, realmente deixaram de ter qualquer valor para nós por se revelarem tão perecíveis e tão sem resistência? Isso parece ser o caso de muitos de nós; só que, na minha opinião, mais uma vez, erradamente. Creio que aqueles que pensam assim, e parecem prontos a aceitar uma renúncia permanente porque o que era precioso revelou não ser duradouro, encontram-se simplesmente num estado de luto pelo que se perdeu. O luto, como sabemos, por mais doloroso que possa ser, chega a um fim espontâneo. Quando renunciou a tudo o que foi perdido, então consumiu-se a si próprio, e nossa libido fica mais uma vez livre (enquanto ainda formos jovens e ativos) para substituir os objetos perdidos por novos igualmente, ou ainda mais, preciosos. É de esperar que isso também seja verdade em relação às perdas causadas pela presente guerra. Quando o luto tiver terminado, verificar-se-á que o alto conceito em que tínhamos as riquezas da civilização nada perdeu com a descoberta de sua fragilidade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de forma mais duradoura do que antes.
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FREUD, Sigmund. Sobre a Transitoriedade. In: Obras Psicológicas Completas: edição standard brasileira. Volume XIV – A história do movimento psicanalítico, artigos sobre a metapsicologia e outros trabalhos (1914-1916), pág. 313-319.