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quarta-feira, 23 de abril de 2014

Sobre as "salvacionices" paranóicas no mundo da Política

Em sua sempre interessante coluna no Estadão Roberto Damatta¹ transcreve uma carta que teria recebido do professor e amigo Richard Moneygrand. Trata-se de um intelectual aposentado, norte-americano e "brasilianista" (aliás, como já nos tinha chamado a atenção o prof. Moniz Bandeira², o termo só se aplica aos norte-americanos que pensam o Brasil. Na Europa são chamados de "africanistas"). Moneygrand é um personagem inventado por Roberto Damatta para pensar o Brasil e, desta vez, nos falou sobre um aspecto interessante que está em questão nesta conjuntura político-eleitoral que vivemos: as "resoluções messiânicas" para os nossos problemas.

De acordo com Moneygrand, atuar sobre uma conjuntura de disputa eleitoral deste porte não é nada simples e fácil pois exige atitudes nem sempre confortáveis de um lado ou de outro. Ações, valores e princípios são questionados e a crítica é promovida em alta escala. 

No caso brasileiro, o que estaria sob avaliação seria "uma história transcendental que iria libertar os oprimidos e os miseráveis e os diretores dessa fase tidos como politicamente invencíveis. Para Moneygrand, será inevitável entender-se melhor ("desmascarar") os chamados "salvadores do Brasil" e contrastá-los com a proliferação de escândalos de corrupção, a avidez pelo enriquecimento pessoal e uso de privilégios, e o aparelhamento do Estado para fins de interesse pessoal. 

Ainda segundo Moneygrand, esta seria uma sina brasileira, ou seja, a "crença numa resolução messiânica para todos os seus problemas; daí a atração pelo conceito de "revolução" em toda a latinidade americana". O tema é dos mais interessantes e gostaria de trazer algo da Psicanálise para ajudar no debate sobre o entendimento do poder e seus arredores. 

Se estamos falando de "crença messiânica" estamos nos referindo a algo que, em maior ou menor proporção, está muito próximo dos conceitos de "líder carismático" e de "populismo". Vejamos. Um esclarecimento inicial: A sucessão é para o governo da presidente Dilma, mas não nos enganemos, se há um projeto "messiânico" em questão, como nos sugeriu Moneygrand, ele foi construído pelo ex-presidente Lula, que é, para quem, o nosso olhar deve se voltar. Claro que seria um grande equívoco metodológico tentar trazer o ex-presidente para o divã, mas podemos olhar com atenção os "estilos de atuação na política" e nos arriscarmos a algumas considerações. 

Para isso, Eugène Enriquez (“As Figuras do Poder”), é um exemplo de autor que fornece subsídios teóricos interessantes para entender o campo da política sob o olhar da psicanálise. Segundo ele, o poder tem sempre uma "face" encarnada em um indivíduo ou grupo, e desvelar essa "face" é fundamental para se entender alguns dos motivos das ações e palavras dos agentes políticos. Se olhássemos, então, com atenção, para o estilo de atuação do ex-presidente Lula não seria tão arriscado defini-lo como predominantemente carismático/paranóico. 

Trata-se de um estilo de atuação que está assentado sobre algumas "fantasias". Quais? E de que liderança, então, estamos falando?

·   A fantasia de que a “fala” organiza o mundo – Para este líder, tudo depende, essencialmente, do "discurso". Qualquer dado da realidade parece sem valor diante da "fala" do líder, que a tudo avaliza. Se o discurso é peça fundamental no campo da política, com este líder ele ganha uma relevância exagerada. Ele quer ser ouvido, pois com sua fala, organiza e explica o mundo de acordo com os seus interesses. O viés carismático vem de uma habilidade de ensaiar metáforas populares a todo instante, como, por exemplo, no recorrente uso do futebol pra explicar diversos fatos;

·    A fantasia de que existem “explicações definitivas” – É um líder que não abre mão de suas certezas absolutas. Suas convicções são o espelho de sua "grandeza", e sua mensagem é de "salvação" para a sociedade. É um "messias" que anuncia uma "nova origem" a partir de sua chegada ao poder, como se tudo se explicasse a partir de um "... nunca antes na história desse país...";

·   A fantasia de que há inimigos por toda parte – Neste líder, há uma idealização da imagem de “conspiradores” (a “elite golpista”, a “mídia de direita”, a “classe média egoísta”, os “brancos de olhos azuis”, os “inimigos do povo” etc.). Assim, só existem dois tipos de indivíduos para este líder: aqueles que ele reduz a objetos de sua dádiva e aqueles que precisam ser “destruídos”. Muito comum que esses “inimigos” sejam fabricados pelo próprio discurso deste líder. Um exemplo está na recorrente e obsessiva comparação estatística com tudo o que antecedeu ao governo Lula, especialmente o governo Fernando Henrique Cardoso. Manter esta obsessão pela comparação é fundamental para a existência de sua “liderança” e demarcação de um "território", pois lhe garante uma "identidade" e um “lugar” na política e na vida;

·    A fantasia de ser uma figura “central” no mundo – Coloca-se, então, na posição de “centro” do mundo. Com ele que surge uma nova "lei" (o desprezo ao STF e incapacidade de assumir erros nos falam um pouco dessa quase impossibilidade de sujeitar-se às regras), é uma espécie de "herói criador", um "pai único e verdadeiro", que se pretende "onipotente", sem limites, e livre de qualquer ameaça. Não acredita na história, pois é ele quem a "começa" a partir de sua chegada ao poder;

·  A fantasia de que é necessário “transformar” o mundo – Sua fala traz sempre a "verdade", quase de inspiração divina. O ex-presidente Lula dizia: "...não existe ninguém mais ético do que eu...", e, por vir das classes populares, trazia consigo a "verdade". É com essa "origem" que ele se transforma no “eleito", no "campeão", enfim, no “cara”, como um dia disse Obama;

·     A fantasia de que “tudo é possível” - Para este líder, finalmente, é fundamental criar uma "nova sociedade", afinal "tudo começa" com ele e acredita que, para isso, "tudo é possível" e justificável. É aqui que os delírios encontram espaço para florescer, inclusive aqueles que classificam corruptos como simplesmente “presos políticos”;

Todos nós, individualmente, possuímos traços que nos realçam a persecutoriedade. Alguns um pouco mais. E líderes políticos não escapam, obviamente, a estes traços. Alguns um pouco mais, evidentemente. O ex-presidente Lula, me parece, usou e abusou desse estilo. Não o condeno, afinal, é o seu estilo de atuação na política. Nem diria que foi sempre assim. Um olhar mais detido sobre a evolução de sua postura e discurso políticos mostra que ele transformou-se com o tempo. Mudança significativa, porém, aconteceria no auge da conjuntura crítica do escândalo do mensalão, quando passaria a adotar, de forma frequente, as linhas deste estilo carismático/paranóico. Mas, isso é assunto pra outra conversa.

O interessante é que para manter estas fantasias o líder carismático/paranóico precisa tensionar a sociedade, num permanente conflito entre “nós x eles”. Ele "movimenta" as relações sociais a um ponto tal de conflito que, se não ameaça, por vezes desqualifica e deslegitima, as instituições democráticas. É nesse estímulo ao "conflito permanente" que o líder carismático/paranóico tenta apropriar-se do conceito de "povo" (o único conceito legítimo para ele). Ele se infiltra, profundamente, então, no imaginário popular.

Não se trata, portanto, de um estilo de atuação "essencialmente" democrático. Aliás há muito o que se conversar sobre essa tal "essência" da Democracia. Mas, é decisivo, então, sustentar-se a capacidade crítica, oferecer uma nova possibilidade de recontar a história do país, manter as instituições o máximo livres e independentes. Ou atribuímos à democracia um valor universal, onde o "povo" é transformado em "cidadão" (e não estou dizendo meramente "consumidor"), ou continuaremos nos apegando a “messias” e “salvacionices”, mantendo a nossa sina, como bem assinalada por Moneygrand. 

Olhar, então, para o estilo de atuação dos governantes, e seus pormenores discursivos, pode dar ao campo da política um especial interesse. Neste caso, o que se percebe é um conjunto de fantasias que povoam o líder carismático/paranóico. Moneygrand conclui sua análise lembrando que há uma chance de dispensarmos estes "Messias" mas, desde que comecemos mesmo a "desconfiar que nada neste mundo de Deus pode ser resolvido paulatinamente, a não ser por todos e cada um".
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¹ "Onde Estamos", O Estado de São Paulo, quarta-feira, 23 de abril de 2014. http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,onde-estamos,1157387,0.htm 
² "Divagações de um brasilianista". Observatório da Imprensa, 04/09/2012, edição 710. http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed710_divagacoes_de_um_brasilianista

(José Henrique P. e Silva)