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sábado, 12 de abril de 2014

A psicanálise e o "pré-conceito"

Essa é uma das frases mais poderosas de Freud. Gosto porque é provocativa. Não fala somente da "psicanálise", fala de "PRE-CONCEITOS" ou seja, aquela atitude que teimosamente temos em, antes de conhecer algo, emitir juízos condenatórios e pejorativos.

Ou seja, quantas vezes nossas "antipatias" só servem mesmo para nos manter ignorantes em relação ao outro? No caso da psicanálise isso é muito comum. 

Só a respeita quem a conhece, e só a conhece quem não tem medo de reconhecer as próprias dores e de ver o homem como um sujeito psíquico, além de social e biológico.

(José Henrique P. e Silva)

Sobre a Psicanálise (Freud, 1913 [1911])

Em março de 1911, Freud recebeu um convite do Dr. Andrew Davidson, secretário da Seção de Medicina Psicológica e Neurologia para escrever, ler e publicar um artigo nas Atas do Congresso Médico Australasiano (Sidney, setembro/1911). Trata-se de um texto muito curto, mas bastante elucidador sobre o papel da psicanálise. Vejamos os principais pontos.

Freud nos diz que a psicanálise, como um método de pesquisas das neuroses e sua etiologia (causas), não é fruto de especulação e sim de experiências científicas que precisam ser continuadas. Tudo teria começado com as pesquisas sobre a histeria (Estudos sobre a Histeria, 1895 - Freud e Breuer) que tomaram impulso a partir dos rastros de Charcot (histeria "traumática"), Liébeault e Berheim (hipnose) e Janet (processos inconscientes).

Aos poucos a psicanálise foi recusando várias explicações limitadas às questões hereditárias e congênitas e foi acentuando a importância dos processos psíquicos na formação de doenças. Um exemplo foi mostrar que os sintomas histéricos são resíduos (reminiscências) de experiências traumáticas e afastadas do consciente através de um processo de "repressão" onde parte do material psíquico é mantido no inconsciente.

Trata-se de uma visão "dinâmica" pois encara os processos psíquicos como deslocamentos de energia psíquica que podem ser medidos pelo valor de seu efeito sobre os elementos afetivos (p. 226). Na histeria isto é muito presente pois a "conversão" cria os sintomas pela transformação de boa quantidade de impulsos mentais em inervações somáticas.

No início, os primeiros tratamentos foram feitos com o auxílio do hipnotismo, logo abandonado pela "associação livre' que permitia estender o método a mais pessoas. Mas, com isso, foi necessário desenvolver uma técnica de "interpretação" sobre o que era dito pela pessoa. A partir daí começou a ficar claro que as dissociações psíquicas surgiam de "conflitos" e eram sustentadas por "resistências internas" que mantinham a "repressão". Superar os "conflitos" seria fundamental para o tratamento.

Mais tarde, chegou-se à conclusão que os conflitos se davam sempre entre os instintos sexuais (no sentido amplo) e os desejos e tendências do restante do ego. Nas neuroses, por exemplo, esses instintos sucumbem à repressão e se tornam a base mais importante para o surgimento de sintomas (encarados, então, como substitutos das satisfações sexuais reprimidas).

Outro desenvolvimento importante da psicanálise foi acrescentar o fato "infantil" ao somático e ao hereditário, chegando à conclusão que inibições no desenvolvimento mental ("infantilismos") apresentam uma disposição à neurose. Ou seja, existe uma "sexualidade infantil". O instinto sexual, desde muito cedo, atravessa um complicado curso de desenvolvimento cujo desfecho deveria ser a sexualidade "normal" nos adultos. Isso nos mostra que, por exemplo:
As enigmáticas perversões do instinto sexual que ocorrem em adultos parecem ser inibições de desenvolvimento, fixações ou crescimentos assimétricos. Assim, as neuroses são o negativo das perversões (p. 227).
Mais um desenvolvimento importante da psicanálise foi perceber que o "desenvolvimento cultural" da humanidade é um forte fator que torna inevitáveis as repressões do instinto sexual, proibindo a satisfação da libido e exigindo sua supressão.

Na sequência, percebeu-se que o instinto sexual tem a capacidade de ser "desviado" dos seus objetivos sexuais diretos para metas mais elevadas ("sublimação") como as realizações sociais e artísticas, por exemplo. Dessa forma,
O reconhecimento da presença simultânea dos três fatores de "infantilismo", "sexualidade" e "repressão" constitui a principal característica da teoria psicanalítica e assinala sua distinção de outras visões da vida mental patológica (p. 227).
Ao mesmo tempo,
A psicanálise demonstrou que não existe diferença fundamental, mas apenas de grau, entre a vida mental das pessoas normais, dos neuróticos e dos psicóticos. Uma pessoa normal tem de passar pelas mesmas repressões e lutar com as mesmas estruturas substitutas; a única diferença é que ela lida com estes acontecimentos com menos dificuldade e mais sucesso (p. 227).
Não à toa a psicanálise enveredou pela investigação dos fenômenos psíquicos normais, como os sonhos, os pequenos erros da vida cotidiana, os chistes, os mitos e as obras da imaginação, sempre com o objetivo de obter maior compreensão interna (insight) da vida psíquica inconsciente.

Porém, apesar de todas estas conquistas, Freud denuncia a tendência nos círculos médicos a contradizer a psicanálise sem estudos reais ou aplicações práticas, talvez porque as premissas e a técnica da psicanálise estejam mais próximas da psicologia que da medicina. Mas, Freud questiona: O que os ensinamentos puramente médicos fizeram pela compreensão da vida mental?

O fechamento da comunicação de Freud é impressionante. Faz um alerta com uma força esplendorosa!
O progresso da psicanálise é ainda retardado pelo termo que o observador médio sente de ver-se a si mesmo em seu próprio espelho. Os homens de ciência tendem a enfrentar resistências emocionais com argumentos e, assim, satisfaze-se a si mesmos para sua própria satisfação! Quem quer que deseje não ignorar uma verdade fará bem em desconfiar de suas antipatias e, se quiser submeter a teoria da psicanálise a um exame crítico, que primeiro se analise a si mesmo (p. 228).
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FREUD, S. Sobre a Psicanálise. In: Obras Psicológicas Completas: Edição Standard Brasileira. Volume XII – O Caso Schreber, Artigos sobre Técnica e outros trabalhos (1911-1913) , pág. 221-229.

A psicanálise como procedimento científico

Esta frase de Freud foi dita em um pronunciamento seu, em 1911, em um Congresso de Neurologia e Psiquiatria na Austrália. A psicanálise dava seus primeiros passos, mas já era bastante discutida em várias partes do mundo. Ao inciar sua fala Freud já nos chama a atenção para este ponto: a psicanálise como um procedimento científico. 

Freud dedicou toda sua vida profissional a sustentar esta nova ciência. Teve desafetos, enfrentou a descrença da medicina, lutou contra os preconceitos da sociedade, teve seus livros queimados pelos nazistas, mas produziu e escreveu como poucos, nos deixando um legado que ainda está por ser plenamente entendido. 

Hoje em dia, quando a Neurociência, com todo o seu avanço tecnológico de "mapeamento das funções cerebrais" através de imagens, comprova praticamente todas as teses de Freud, isso não surpreende quem conhece Freud. Mas, insisto, é um erro acreditar que a Neurociência "prova" alguma coisa. 

O que Freud escreveu, na sua imensa maioria das vezes, foi fruto de sua experiência clínica e não de especulações. Foi a partir do estudo, observação e tratamento de seus pacientes que pôde nos deixar uma nova ciência. Cabe continuar o seu trabalho, e enfrentando-se a mesma ordem de resistências e preconceitos por parte daqueles que tentam ignorar ou minimizar a importância de nosso psiquismo. Freud fez ciência a todo instante, quem especula são aqueles que não o leram.

(José Henrique P. e Silva)

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Uma legislação penal frágil

Não é novidade que nossa legislação penal é extremamente frágil em, de fato, garantir punições. Talvez seja reflexo mesmo dessa nossa, cultural e histórica, benevolência para com a impunidade. E não tem sido diferente em casos de psicopatias graves que envolvem criminosos "irrecuperáveis" para a vida em sociedade. Uso o termo entre aspas só para destacar o quanto é difícil assumirmos o fato de que... existem "irrecuperáveis". O psiquiatra Guido Palomba (Revista Psique, dez/2013) destaca essa questão quando fala do caso de "Champinha" que, só vai continuar afastado da sociedade porque ocorreu o que chama de "gambiarra jurídica", ou seja, pelo ECA (legislação penal) ele seria "recuperável", sendo necessário, então, usar-se da legislação civil para interditá-lo em um estabelecimento psiquiátrico e garantir a segurança social. Nossa legislação penal é absolutamente arcaica, no pior sentido.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Os frágeis laços amorosos da atualidade

Tem sido muito comum que, com a mesma intensidade com que começa, um relacionamento se evapore hoje em dia. Muitos casos estão marcados por uma profunda "intolerância" com o discurso do outro. Muito fácil, portanto, que palavras como "direitos" e "liberdade" sejam ecoadas para defender os interesses específicos de cada parte do casal. Inevitável, então, que a corda estique a um ponto que, mesmo voltando atrás, ela fique, agora, com uma tenacidade mais frouxa.Parece que nada mais será como antes. Não são poucos os casais que não resistem a estas primeiras grandes confrontações.
 
Mas, o que pode estar acontecendo? No início formam um casal, mas não se vêem como "dois". Mergulham, por vezes, em um processo fusional onde um busca a dissolução do outro. Trata-se de um processo guiado pela capacidade de projetarmos sobre o outro nossa própria história e as formas que aprendemos, especialmente, quando de nossa situação triangular, com pai e mãe. Esta forma de se comportar num relacionamento tem enterrado amores intensos, fazendo com que um, quando se sinta contrariado, logo vire o rosto quando diante de dificuldades. Não se trata, então, de uma fusão que gera "um", é uma fusão onde "um" tenta dissolver o "outro" e quando se vê contrariado parte para o embate final logo nas primeiras dificuldades.
 
Ora, dificuldades no relacionamento precisam ser pensadas, discutidas, e não simplesmente "abandonadas" como se não se "encaixassem" naquele "modelo ideal" que é construído para o casamento. Um modelo que me leva a querer que o outro simplesmente se "encaixe". Desistir, então, não é o problema, mas estamos sabemos mesmo por que motivos estamos desistindo de um relacionamento? Não estaríamos desistindo muito facilmente? Enfim, claro que cada caso é um caso. Não há regras gerais.
 
O fato é que quando estamos em um relacionamento apresentamos dois pedidos ao outro. São pedidos velados, sussurrados, quase inaudíveis, mas que parecem gritar dentro de nós mesmos: O primeiro pedido é o de ajuda para uma "libertação" em relação à nossa própria história. Que história? Aquela que nos ensinou a nos comportarmos de tal maneira e que passamos a acreditar ser a única maneira, a verdadeira. Não à toa estamos reproduzindo modelos de relacionamentos que nos foram apresentados. Este é aquele pedido em que projetamos sobre o outro nossa história e nossos modelos fantasiosos. Nos comportamos, muitas vezes, então, como nossos pais ou mães, e buscamos outros pais ou mães, sempre em relações ambivalentes (amor e ódio), onde o "eu mesmo" fica soterrado nesse esquema repetitivo de papéis. É assim que mágoas e rancores do passado acabam transbordando nos relacionamentos atuais. Então, é dessa história que pedimos, veladamente, que o outro nos auxilie na libertação. Queremos ser "nós mesmos".

Mas, quem é o "eu mesmo"? É aí que entra o segundo pedido que existe em um relacionamento, e que contraria o primeiro pedido. Pedimos que o outro não nos traga transformações, mudanças, que não nos tire dos papéis que sempre assumimos. E é aí que inúmeros relacionamentos simplesmente explodem, se estilhaçam em pedaços, pois a fantasia de modelos de relacionamentos supostamente "verdadeiros" se impõem e não deixam que sejamos "nós mesmos".
 
É preciso superar esses papéis antigos, esses modelos antigos. Encontrar um outro é ter a grande oportunidade de, até mesmo em meio a crises, buscar conhecer-se e passar a construir um par novo, diferente do modelo dos nossos pais e mães. É dessa história que nos sobrecarrega que precisamos nos livrar e assumirmos o papel de protagonista de uma outra história. Aquela não desaparece, mas perderá importância diante de uma nova. Assim, o outro, nesse caso, não deve ser uma projeção de nós mesmos, afinal ele é um "outro", é diferente. E é somente sendo diferente que me possibilitará ser "eu mesmo".

Relacionamento, portanto, é construção, é trabalho, é esforço, é suor. Há garantias de sucesso? Não! Não há! Mas dá pra desistir tão fácil? Dá! Mas, pode ser uma pena. Qual a recompensa pelo esforço? A possibilidade de ter alguém que, na nossa frente, ao longo da vida, nos possibilite enxergar nós mesmos, nossos desejos e angústias. Ou seja, a recompensa é ter um outro, diferente de mim, pois só assim serei eu mesmo. Vou projetar minhas fantasias do passado sobre o outro ou vou lutar para ser "eu mesmo" e ter no outro uma parceria para a vida e o futuro? As vezes ainda dá para lutar, e melhorar! Falo isso, especialmente para aqueles jovens casais que usam e abusam da intolerância nos dias atuais.

Os riscos da fantasia da "união incondicional" no casamento

Os questionamentos acerca da qualidade da vida do casal, e seu vínculo, estão muito presentes na clínica, quase sempre tendo como pano de fundo as mágoas, tristezas, omissões e ocultações vindas à tona numa crise. Na maioria das vezes, a presença destes casais, são tentativas de "colar cacos". Não se trata, simplesmente, de uma traição "sexual". Essa, muitas vezes até permite certa acomodação de interesses e fica como uma espécie de "arranhão". O que está em jogo é algo que pode até ser considerado mais profundo: uma quebra de confiança total. Este é um tema recorrente, e grave.

A traição de uma intimidade que se fantasia como total e absoluta, de um compromisso que se sonha incondicional. Hoje, a infidelidade não é tão sexual quanto moral¹.

Mas, o que é, exatamente, esta quebra de "confiança total" depositada, por sua vez, sobre uma fantasia de "união incondicional"? desejo responde essa fantasia? Essa pergunta é fundamental ter sempre em órbita.

É interessante notar que boa parte dos casais que vão à clínica não têm como preocupação central fazer "evoluir" o vínculo conjugal, em transformá-lo. Parecem mais preocupados com algo anterior, mais básico: a própria criação de um laço. Esse processo ainda se torna mais angustiante pelo fato de, desde cedo, conviverem com a fantasia de um casal idealizado. Aquele casal que é glorificado na mídia, nos filmes, na literatura, nos contos de fada.

Esta é a fantasia que praticamente torna impossível a continuação de um vínculo baseado na transformação mútua. É como se esperassem por alguém "inteiro", "pronto", para ser seu eternamente. Como se trata de uma fantasia, e não encontra correspondência no real, vem o desespero.

É neste contexto que a traição sexual perde muita importância diante da quebra da fantasia da "união indissolúvel". Ficar só, ser deixado, adquire fortes proporções de "abandono" e toca em questões narcísicas muito profundas.

Antes mesmo, então, que se construa um laço que é mutuamente transformador, já existe a fantasia de uma fusão completa que, caso quebre, gera intensa angústia de separação. Nada impede que uma união seja eterna, mas o que vai garantir essa eternidade não é uma fantasia, e sim um trabalho de transformação permanente e mútuo do laço. E é sobre isso que se precisa pensar e conversar.

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¹ HEFEZ, Serge. Cenas da Vida Conjugal. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 28

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Disturbio Paranóide

Certamente, um forte traço paranóide não é algo que o terapeuta goste de encontrar no paciente afinal, pensado como uma "história de amor", o tratamento analítico floresce numa atmosfera de abertura, sinceridade e confiança, e o comportamento paranóide é um veneno a essa confiança. É algo que a destrói e leva ao esgotamento as pessoas que estão ao redor. E tudo começa com um "medo", fazendo surgir um leque de distúrbios¹. Entre os mais leves destes distúrbios está o "pensamento relacional", que é aquele segundo o qual determinado acontecimento, que aparentemente em nada nos diz respeito, na verdade tem uma relação oculta conosco².
 
Exemplos são as superstições e crenças que carregamos, ainda que de forma pouco utilizada no dia a dia. A indústria de amuletos e o horóscopo são outros exemplos desse pensar de modo relacional. Tido isso pode parecer estranho à razão, mas existem outros pensamentos que ultrapassam a fronteira e chegam ao "anormal" quando imagino, por exemplo, que um locutor de rádio está falando diretamente para mim. Mais grave ainda é o que acontece cm os que sofrem com a psicose paranóide. Para estes, os pensamentos tomam a forma de delírios, de fundo religioso por exemplo.
 
Mas, para que um pensamento relacional se transforme em pensamento paranóide é preciso que eu acredite que aquilo que escutei do locutor de rádio, por exemplo, tenha uma má intenção para comigo. Ou seja, Pensamento paranóide é aquele que vê intenções maléficas ocultas em acontecimentos comuns ou aos quais é possível dar significados diferentes, geralmente não ameaçadores³.

Ora, más intenções todos nós admitimos que existem mas, no mundo do paranóide só existem más intenções. Enxergar, num fato simples, um perigo potencial, em si não é um distúrbio paranóico, pode mesmo ser um "alerta". O risco, então, é quando isso ocupa um espaço muito grande na vida da pessoa.
 
Não é à toa que, por vezes, o paciente paranóico lance dúvidas sobre a própria atuação de seu analista. Nesse caso, a contratransferência através da raiva do analista tem que ser evitada, pois será interpretada pelo paciente como uma "confirmação" de que existe uma tramóia e que sua desconfiança, portanto, estava correta.
 
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¹ O texto foi escrito como uma sinopse do capítulo 13 ("A Sombra de uma Suspeita") de O inimigo no meu quarto, e outras histórias da psicanálise, de Yoram Yovell. Rio de Janeiro: Editora Record, 2008, p. 331-340 (trechos exclusivos sobre a paranóia).
² Pág. 332.
³ Pág. 333.

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Onde se situa a diferença? (sexualidade e normalidade)

Lembro que tinha exatos 19 anos de idade quando estava, com uma namorada, almoçando na casa de uma pessoa muito querida dela. Era uma senhora de trinta e poucos anos (pois é, na época, pra mim, era uma senhora... mas hoje sei que mulheres nessa idade ainda são garotas!), psicóloga, muito religiosa e uma mãe de dois filhos bastante devota à regras de comportamento de todo tipo. Num determinado momento, durante o almoço, a questão da homossexualidade veio à tona. Salvo engano, foi algo que veio da televisão que estava ligada. E lembro que fiz um comentário bem desastroso, por sinal. Disse que, em minha opinião, as pessoas "tornavam-se" homens ou mulheres. Ora, o que eu entendia disso? Era apenas um comentário livre o suficiente de preconceitos, fruto da educação que eu recebera. Mas, o mal-estar se instalou rsrs. Saí dali com uma péssima reputação. Mas o almoço estava gostoso, e isso era o mais importante!

Muito tempo depois, já envolvido até a alma com a psicanálise, o tema da sexualidade passou a ser recorrente, afinal, são raríssimos os pacientes e analisandos que não trazem uma questão de fundo sexual. Mas, enfim, aproveitei essa lembrança só pra endossar aquela minha velha opinião de garoto (sim, embora eu me achasse um "homem" de 19 anos, era só um moleque ainda, rsrs). Ou seja, continuo acreditando que nós nos tornamos mesmo homens ou mulheres.

Vivemos, hoje, uma época de intensa "desorganização" no imaginário social a partir da fragilização das categorias "masculino" e "feminino", até então referências simbólicas sustentadas pelas diferenças anatômicas entre homens e mulheres (pênis e vagina, para sermos mais claros). Claro que toda esta "desorganização" se reflete diretamente no surgimento de novas configurações familiares.

Então, de onde vem a certeza de que estamos diante de um homem ou uma mulher? Ora, antes mesmo de nascermos, nossa sexualidade (menino ou menina) já é fruto de especulações a partir dos "desejos" de nossos pais. Depois, quando somos bebês, eles nos compram roupas azuis ou rosas. E tudo isso baseado em nossa anatomia (e no desejo deles).

Será, então, em meio aos desejos dos pais e em toda esta relação triangular entre a criança, o pai e a mãe, que a sexualidade se desenvolverá, algumas vezes, independentemente da anatomia, e seus referenciais biológicos. O que quero dizer é que a masculinidade e a feminilidade são "PONTOS DE CHEGADA" e não "pontos de partida". A anatomia não explica tudo em termos de sexualidade.

É evidente que a questão da sexualidade desperta todo tipo de moralismo. E desse debate eu estou fora! Mas, é de se perguntar, por exemplo, se apesar de toda esta "desorganização" não estamos vivendo uma nova ordem moralista repressiva através do "politicamente correto", carregado de uma pretensa "normalidade".

Ora, o fato é que é no interior desta ordem (e seja ela qual for) que o psicanalista se situa e atua, não dando conselhos, nem determinando o que é a moral, mas acompanhando as mudanças sociais e verificando como as pulsões libidinais do indivíduo acompanham as mudanças, e que tipo de sofrimento pode surgir de tudo isto. O dramático, entretanto, é que, quanto mais a sociedade é moralmente repressiva, mas a sexualidade vai sendo pervertida, afinal, é por onde ela tem que "sair".

Não foi em um contexto assim (o da moralidade repressiva da Era Vitoriana de fins do século XIX) que Freud deitou e rolou (metaforicamente é claro) com as suas mulheres histéricas? E mais, se antes a histeria surgia da repressão sexual, o que é que está surgindo (em termos de patologias) de uma pretensa liberdade sexual hoje em dia? Ufa! Tema complicado! Mas, não é pra discutir muito não, é só pra ajudar a pensar.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Fixação

A "Fixação" é um importante conceito em psicanálise e nos ajuda a entender muitas das razões que estão por trás de um sofrimento. Quando, por exemplo, na fase adulta do indivíduo, um determinado evento traumático ocorre, ele vai nos remeter a um processo de regressão e à fixação (ou mais fixações). A fixação seria, portanto, aquele lugar do desenvolvimento individual onde se instalou um determinado ponto que, em boa parte, nos "define", e que resulta do tripé formação hereditária / formação constitucional / evento traumático precoce. Abaixo, uma tentativa muito geral de apresentar aas principais fases do desenvolvimento individual. Não custa lembrar que o "encaixe" das fases não é tão perfeito, pois o ser humano escapa a qualquer teoria.

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          Oral               Anal              Anal-Sádico            Uretal              Fálico           Genital

Auto-erotismo         Narcisismo 1°                                Narcisismo 2°                Rel. Obj.

           POSIÇÃO ESQUIZO-PARANÓIDE                        POSIÇÃO DEPRESSIVA

                              PSICOSES                                     NEUR. OBS-COMP.             FOBIA                    HISTERIA
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Sintoma

 
Nos casos de sofrimento psíquico o sintoma é somente mesmo o seu "cartão de visita". Ele não explica a dor, mas desvia muito bem o foco de atenção que poderia ser direcionado a ela pelo próprio indivíduo. E é muito fácil que esse desvio aconteça, afinal, o complicado mesmo não é lidar diretamente com o sintoma, mas com suas causalidades psíquicas. Um sintoma, no corpo (tipo uma dor), no comportamento (tipo uma compulsão), no nosso pensamento (tipo uma obsessão), diz que estamos sofrendo, mas não diz muito sobre a "lógica" (causas) que existe por trás dele mesmo. É essa "lógica" que precisa ser buscada e que geralmente está lá, nas "leis de trânsito" do nosso inconsciente. Em boa parte, esse é o trabalho da análise.

domingo, 15 de dezembro de 2013

A "errância psicótica"

Durante algum tempo lidei muito de perto com diversas situações psicóticas (álcool e drogas) e um dos pontos em comum mais evidentes era a chamada "errância psicótica". Sempre vi este comportamento como o de alguém que está "trancado pelo lado de fora", ou seja, apesar de estar do lado de fora e possuir a liberdade ele não tem nenhuma "direção". Seu caminhar seria como um daqueles jogos de "liga pontos" que, entretanto, não forma imagem alguma. Não se trata de uma experimentação da liberdade (como aquela vontade de simplesmente sair por aí sem rumo), pois não há liberdade a ser experimentada por mais que ele tenha o mundo inteiro para andar. Ele está na situação de vítima de um delírio que não lhe permite ancorar em porto algum. Um razoável exemplo desta situação está no filme "Na Natureza Selvagem" (Into the Wild), cuja busca do personagem por chegar ao Alasca, e alcançar sua maior integração com a natureza, era só um motivo para não chegar a lugar algum. É um belo filme, e a trilha sonora de Eddie Vedder é um show a parte.

sábado, 14 de dezembro de 2013

Sobre "desistir"

 
Sei que é complicado falar em "desistir". Parece ser uma violência, pois quem quer "parar"? Mas o que me incomoda é que esse conceito de "não desistir" as vezes está carregado de algo muito pesado: a ideia de um possível "fracasso", que parece não queremos encarar. Ora, nem sempre é assim e o que adoece é o "não desistir". Ficar "fixado" em algo, de forma insistente, pode somente nos enfraquecer, nos sugar, nos atormentar, nos paralisar e deixar tudo mais insuportável. Nesse caso, "desistir" nos torna mais livres. Tudo bem... ninguém disse que é fácil! Mas, saber parar, reconhecer limites... tudo isto está carregado de dignidade! Não há verdade absoluta nesse caso. Tudo bem que andamos sempre pra frente, mas isso implica em saber desviar de obstáculos muito fortes e encontrar atalhos e outros caminhos também. E cá pra nós, a dor causada por uma "desistência" não é pior que a dor causada por uma "insistência" ou "permanência". É só pra se pensar!!!

Sobre a Interpretação na análise

Quando alguém inicia um processo de análise é claro que existem muitas fantasias acerca de tudo o que pode acontecer. Uma dessas fantasias é a de que o discurso do analista, quando ele faz a sua "interpretação" da fala do analisando, é algo muito poderoso e que traz uma "explicação" quase definitiva, ou um "conselho" superior. Besteira! E o pior é quando o analista começa a compartilhar dessa fantasia e acaba se colocando em uma posição de "poder". O que ocorre, pela experiência, é um processo de "construção" com o analisando permanentemente (não necessariamente "interpretação"). A interpretação, quando ocorre, se dá em raros momentos, e sempre de forma muito precisa e localizada. Afinal, tenho que ter o cuidado de só interpretar aquilo que o analisando tem condições de "metabolizar", do contrário... efeito zero, ou até contrário.

No caso de um sonho, por exemplo. É fundamental que ocorra um deciframento. Mas não é o analista que faz isto sozinho. Pelo contrário, ele pode até atrapalhar com sua ansiedade e teorização. O que ocorre, então? Um tremendo processo de "construção", onde o analista auxilia o analisando em seu discurso. É no contexto desse trabalho de "construção" que se forma o "vínculo" e ocorre a "transferência" das questões do analisando para o analista. Sair dessa posição de um "saber poderoso" é vital para um bom processo de análise.

Freud - Aspectos da vida e obra

" Que progresso estamos fazendo. Na Idade Média, eles me teriam atirado na fogueira; hoje, eles se contentam em queimar meus livros..." (Freud).

Esta frase foi dita por Freud, em 1933, assim que soube que os nazistas, na Alemanha, tinham atirados seus livros à fogueira, e que o oficial alemão teria gritado: "contra a glorificação da vida instintiva que destrói a alma". O episódio é interessante pois faz lembrar que Hitler e Freud viveram uma mesma época em Viena, no início do século. Num momento em que Freud estava no seu maior vigor intelectual e Hitler conhecia um dos piores momentos de sua vida, chegando a dormir na rua por falta de recursos. Anos depois, a situação se inverteria. Hitler, caminhando para seu avanço nazista e destrutivo, prestes a anexar a Áustria, e Freud conhecendo a decadência física proporcionada por seu câncer e a própria velhice, prestes a se refugiar na Inglaterra. Mas, ainda assim, extremamente lúcido. No final, a história deu a cada um o seu devido tamanho e lugar. A I Guerra Mundial e a ascensão do Nazismo foram episódios que em muito influenciaram Freud a desenvolver o seu conceito de "pulsão de morte" e a expandir a psicanálise para a compreensão do "social" e do "político", com o seu conceito de "mal-estar", como algo inerente à natureza humana, seja no indivíduo, seja na sociedade.
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"Não aguento ficar sendo olhado... durante oito horas por dia (ou mais)..." (Freud)

Freud disse essa frase referindo-se à sua posição, sentado em sua poltrona à cabeceira do divã, fora do alcance visual de seus pacientes. Foi assim que se comportou durante bom tempo dos mais de 50 anos em que recebeu seus pacientes na Bergasse 19, sua casa em Viena, onde utilizava os fundos da casa. Talvez seja só nisso mesmo que se resuma a "importância" do divã que virou símbolo máximo (e caricatura) da psicanálise. Mas, foi aí neste lugar que Freud cada vez mais recolheu-se a partir do início de 1938, quando ao mesmo tempo que se submetia a mais, e dolorosas, cirurgias de seu câncer na mandíbula, Hitler colocava em prática seu desejo de anexação (Anschluss) da Áustria convocando o Chanceler desta para dizer-lhe que estava disposto a reparar este ato de "traição" histórica da Áustria. Foi nesta conversa com o Chanceler Schuscnigg que Hitler disse: "eu tenho uma missão histórica e vou cumprir esta missão, porque a providência me destinou a isso. Acredito inteiramente nessa missão, ela é minha vida". Seus delírios já haviam chegado a um ponto incontrolável.
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"O objetivo de toda vida... é a morte..." (Freud)

Freud sempre foi visto como um "advogado de Eros", um legítimo defensor da pulsão de vida, daquilo que nos impulsiona à satisfação do desejo, do prazer. Mas, um de seus conceitos mais intrigantes (embora pouco aprofundado pelo próprio Freud) foi o de "pulsão de morte". Aquela força, aquela ânsia, de se voltar a um estado de satisfação primordial, praticamente em um estado de decomposição. Ele dizia que, afinal de contas todos íamos mesmo morrer. E morrer, talvez significasse esse retorno a um estado de prazer há muito perdido pelo homem. É este conceito que está presente em muitas patologias psíquicas. Quantas vezes não desejamos a "morte", simbolizada naquele sonho impossível, naquela volta a uma situação onde experimentamos felicidade. Tudo isto pode simplesmente nos paralisar, nos aprisionar. A pulsão de vida, se nos leva a caminhar, a pulsão de morte nos faz querer ficar, como que inertes... depressivamente inertes!
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"Martha é minha...a moça doce de que todos falam com admiração, que apesar de toda minha resistência cativou meu coração já em nosso primeiro encontro, a moça que eu temia cortejar e que se aproximou de mim com magnânima confiança, que fortaleceu minha fé e minhas energias para trabalhar, quando eu mais precisava delas..." (Freud - carta à Martha)

Apesar de sua obstinada disposição investigativa Freud era também um homem romântico. Idealizou a imagem de sua futura esposa e seus laços com os amigos eram fortemente afetivos, complexos, intensos e repletos de ciúmes. Um homem como vários de nós. E isso nada tem a ver com ser "perfeito".
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"Crio meus filhos... como filhos" (Freud)

Muitos fantasiam a ideia de que um psicólogo ou um psicanalista é sempre feliz e está bem "resolvido" ou, pelo menos, que isso fosse uma "obrigação" para ele, já que vai "cuidar" dos outros. Hum... complicado isso! Freud, certa vez, disse que criava seus filhos, como "filhos". O que isto significa? Talvez o mesmo que dizer que um cardiologista também pode... vir a morrer de uma deficiência no coração. Outra vez, respondendo à uma mãe que lhe questionara sobre métodos eficazes para a educação do filho, ele respondera que tudo o que ela fizesse poderia vir a dar errado. Ora, mulheres, amigos, filhos, não são pacientes, não estão sob análise. Como abrir mão disso? É na relação mais convencional com os que estão ao nosso lado que nos mostramos como realmente somos, passíveis de erros, de avaliações equivocadas, mas é onde mostramos também nossa paixão, nossos desejos... tudo aquilo que nos torna humanos e naturalmente imperfeitos. Tudo, ao final, é só uma fantasia mesmo, pois da mesma forma que precisamos ser implacáveis contra os erros em nossa profissão, necessitamos ter um espaço para errar, junto aos que estimamos. É isso que nos faz crescer.


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"Havia uma atmosfera de pânico em Viena que agora acalmou-se um pouquinho. Nós não nos juntamos ao pânico. É muito cedo, ainda não se podem prever as consequências de tudo que aconteceu. Por enquanto tudo continua como estava antes..." (Anna Freud - carta a Ernst Jones).

Anna, filha de Freud, escreveu esta carta a seu amigo Jones, já em meio a uma possível mudança para Londres, em exílio. A carta foi escrita pouco depois de 20/02/38 quando de um fortíssimo discurso de ódio contra a Áustria, proferido por Hitler no Parlamento alemão. Era inevitável e próxima a anexação. Na verdade, Freud nunca cogitara partir, mesmo nas fortes crises anteriores. Ele amava Viena, embora sofresse por suas ideias e por ser judeu.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

A relação entre psicanálise e literatura

A literatura sempre me foi uma grande paixão. Sou um obstinado pela leitura dos clássicos e nutri a crença de que morrer sem lê-los seria desastroso. Dentre os clássicos me apeguei fortemente àqueles que exploram intensamente a subjetividade de seus personagens, alguns até fortemente melancólicos e angustiados. Esses têm algo a  dizer sobre nós e o que nos cerca. Tudo bem, depois percebi que isso só falava de mim mesmo e de minhas buscas e faltas, e não podia ser de outra forma pois aquilo que nos toca na arte é aquilo que permite e facilita nossa "identificação", ou seja, aquele processo que nos permite reconhecer algo de idêntico, que nos permite assimilar esse algo do outro que acaba por nos transformar e constituir, afinal, não é assim que construímos nossa personalidade, com processos psicológicos de identificação?
 
Mas, não é sobre melancolia, nem sobre angústia, que quero conversar um pouco, e sim sobre a relação entre a Literatura e a Psicanálise. Cada vez mais me empenho em estreitar essa relação, sempre enxergando na literatura um amplo campo de explanação da subjetividade humana, algo que interessa, portanto, diretamente à psicanálise. Ou seja, já ficou muito atrás o tempo em que a literatura me era só um passatempo. Hoje ela me municia profissionalmente. Isso mesmo. Se antes buscava a subjetividade do texto literário para me distrair e me conhecer, hoje busco, também, para aperfeiçoar meu uso da teoria psicanalítica. Mudou alguma coisa, mas não mudou, entretanto, o fato de a literatura continuar soberana em me fornecer elementos de conhecimento.

O que me motivou a pensar novamente neste assunto foi a leitura de um curto texto de Rafael A. Villari*, publicado em 2000. No texto, ele nos lembra que Freud já havia inaugurado um amplo diálogo entre a psicanálise e a literatura, identificando possibilidades. Em uma delas dizia que havia, por exemplo, a tentação de se “reconstruir” o autor a partir de deduções da própria obra. Claro que isso poderia resultar em reducionismos aberrantes, bem típicos do psicobiografismo que tenta colocar o autor, e a própria obra, no divã. Outra possibilidade apontada por Freud seria ver no texto literário algo do “real”, contribuindo, então, com a própria teoria psicanalítica. É em cima dessas duas visões que Villari vai nos falar no "possível" e no "impossível" desta relação entre psicanálise e literatura.

Teríamos, portanto, duas vertentes na relação entre a psicanálise e a literatura. A que busca acrescentar sentidos ao texto e, em consequência, compreender o autor a partir da própria interpretação psicanalítica e, a que busca no texto contribuições à própria psicanálise. Ou seja, numa o texto é analisado, noutra ele serve de instrumento.

Para Villari, então, o “impossível” nesta relação seria justamente tentar-se utilizar a teoria psicanalítica como ferramenta para a interpretação da obra e do autor como que buscando desvendar “sentidos ocultos” e “enigmas”. Algo semelhante à atuação do analista sobre o relato dos seus analisandos. Esta é a “textanálise”. Como saber, ali no texto, o que era o reprimido do inconsciente e o que era só o manifesto do consciente? O sujeito não estava ali! Onde estava o sujeito do enunciado, o autor? Com o tempo, então, abandonou-se a tentativa de buscar o inconsciente no texto e começou-se a falar em “proto-texto”. Seria o rascunho do texto onde se poderia enxergar o “movimento” da escrita. Ali, se pensou poder encontrar algumas das formações do inconsciente, como atos falho, sonhos, chistes etc. Ou seja, insistia-se em encontrar o sujeito, só que agora nos intervalos, nas dúvidas e nos erros de escrita.

Mas, o texto só diz algo quando é lido, correto? Foi a partir daí, portanto, que se começou a buscar o “leitor”. Ele é quem seria portador, então, do inconsciente do texto, do desejo do escritor. O texto não diria nada! Saímos então do patamar da escrita para o da “leitura”. Seria, então, através da leitura que o desejo “do” escritor, e não “de um” escritor, seria transmitido. O desejo “de um” escritor nos fala de um desejo particular. É o desejo “do” escritor, por outro lado, que nos desperta o desejo de escrever. Mas não como o escritor, ou sobre o escritor. O que desejamos é o desejo que o escritor teve de escrever. Com isso, desejamos aquilo que o escritor desejou quando pensou no leitor: ser amado pelo seu texto.

Mas, vamos pensar um pouco mais sobre o “proto-texto” (o trabalho inconsciente da escritura). Essa postura implica um sujeito portador de um saber apriori (teoria psicanalítica) que ao percorrer o texto o desvenda através do “vista psicanalítico do texto literário”, como nos dia Villari.

O que seria esse vista psicanalítico do texto literário? Não pode, evidentemente, como na clínica, ser uma prática, pois não dá para se pensar em transferência a partir de um texto. O que se usa da psicanálise, então, não é sua prática clínica, mas somente sua teoria, com todos os seus limites. É por isso que Villari propõe o que seria o “possível” numa relação entre psicanálise e literatura: utilizar o texto para o interesse da teoria psicanalítica, já que o texto resiste à qualquer tentativa de interpretação.

Não é o texto, portanto, que vai ser questionado pela psicanálise, mas esta, a partir da literatura. A psicanálise, ao invés de colocar-se como um saber apriori, coloca-se, diante do texto, como um sujeito que não sabe. A literatura, portanto, pode nos ajudar a dizer o que não conseguimos como psicanalistas. Com o texto literário, há uma boa chance do real nos alcançar pelo simbólico. Diante do texto literário, portanto, só temos, enquanto psicanalistas, que resistir às suas tentações e encantos e fazê-lo falar, nos motivarmos à pesquisa. A literatura é sim uma forma privilegiada de acesso ao conhecimento psicanalítico, mas desde que coloquemos o saber com o texto e a ignorância conosco. São as palavras do texto que poderão explicar muito do que há de silêncio em mim mesmo, como disse Freud a Fliess em uma carta.

Seria esta, segundo Villari, a atitude de investigação propriamente freudiana: partindo-se da ideia de uma teoria psicanalítica incompleta, buscamos reconhecer no texto literário aquilo que nos leva à pesquisa e ao conhecimento, ou seja, encontrando nos grandes autores algo do conhecimento da alma humana.

Isso me leva àquele parágrafo inicial quando disse que sempre o que me motivou no texto literário era a subjetividade das personagens, por vezes levada aos limites da loucura. Com isso, só buscava mesmo me conhecer um pouco mais. É este comportamento que, hoje como psicanalista, recupero, para dotar-me de um melhor saber acerca da condição humana.



* VILLARI, Rafael Andrés. Relações possíveis e impossíveis entre a psicanálise e a literatura. Psicol. cienc. prof. [online]. 2000, vol.20, n.2 [cited  2013-12-13], pp. 2-7 . Available from: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932000000200002 &lng=en&nrm=iso>. ISSN 1414-9893.  http://dx.doi.org/10.1590/S1414-98932000000200002.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

O pecado de falar sobre o desejo!

Tenho um grande débito para com a psicanálise. Depois que a descobri foi como se iniciasse um caminho de retorno a mim mesmo e foi isso que, profissionalmente, me possibilitou ir ao encontro de outras pessoas na tentativa de oferecer algum suporte para esse mesmo encontro. Não desmereço minha história, mas não tenho receio em dizer que devo à clínica psicanalítica o que sou hoje. E quando falo "clínica" falo dos meus atendimentos, de minha análise pessoal, de minha supervisão e de minha formação teórica que é permanente, interminável. Claro que têm dias que saio da clínica mais pensativo do que, de fato, gostaria. Intrigado, as vezes sem encontrar uma ideia que acalme o pensamento, as vezes até um pouco irritado. Sim, é normal, pois se temos que suportar as dores de outros, também precisamos de alguém que suporte as nossas. Ou o psicanalista não tem suas dores? Mas não é esta a questão exatamente. O ponto mesmo é o que por vezes deixa uma intriga.

É muito normal que a intriga fique sempre pairando o atendimento clínico. Lido, ali, com questões psíquicas muito próprias do indivíduo, mas que nunca deixam de refletir o conjunto de vivências e relacionamentos que ele experimentou ao longo de sua vida. Nunca acreditei estar ali acompanhando e analisando um indivíduo isolado, mas um indivíduo que se situa em uma densa e complexa teia de vivências sociais de toda ordem. E tudo isto se manifesta em suas angústias. Vou já oferecer um exemplo desta complexa e densa teia social.

Na clínica, portanto, a condição humana se revela em sua face, não diria nua, mas mais enigmática. Sim, porque mesmo nus não deixamos de ser enigmas. E é sobre um desses enigmas que quero comentar um pouco mais. Há alguns dias, numa quinta-feira a noite, me surpreendi, intrigado, com o quanto se andava falando, na clínica, sobre a questão do casamento, de modo mais específico, e do relacionamento, de forma mais geral. Não tenho estatísticas que comprovem esse aumento de preocupação com esta questão mas, de fato, me parece estar ocupando um espaço crescente.

Casamento, relacionamento, no fundo estamos falando do "amor", seus dramas e angústias. Ora, vamos acertar logo algo aqui desde o início. Falar de amor é falar sim de sofrimento. É falar de algo que fantasiamos como solução definitiva mas que sabemos correr o risco permanente de perder. E isto se revela como fonte de uma angústia inesgotável. Pode até não atrapalhar tanto a felicidade, mas fica ali como algo ameaçador. Podemos perder um amor sim. Podemos perder a pessoa para a morte, ou para a vida. Há, portanto, sempre algo que nos fala de uma severa necessidade em lidar com o luto de uma separação. Mas tudo isto é muito amplo e geral, e queria mesmo pensar sobre algo mais específico.

Ou seja, e quando uma pessoa não revela seu desejo de separação com medo de magoar à outra? O que existe aqui? De que estamos falando? Logo o que me vem à cabeça é uma pergunta: o amor encontra seu mais perfeito contorno em um casamento? Ora, pode ser que sim! Existem casamentos, e relacionamentos, que são a mais "perfeita" materialização do amor. Mas, e quando o amor parece não mais caber em um casamento? O que se faz? É essa dúvida que leva muitas pessoas à clínica.

Alguns poderiam dizer apressadamente: "separem-se oras!". É, pode ser assim mesmo. Mas, em que pese acreditarmos em nossa capacidade de agir e tomar decisões conscientes e racionais, não é assim que agimos na maioria das vezes. Aliás, na grande maioria das vezes. Lógico que isso pode parecer frustrante para alguns, mas há como negar? Nem tentem me convencer que somos seres "racionais" 24 horas por dia! Já desisti desta crença há algum tempo.

E isto fica muito claro nas queixas dos pacientes justamente no momento que se descobrem ainda possuidores de uma enorme capacidade de amar, mas dramaticamente este amor não mais cabendo no seu casamento ou relacionamento. Ou seja, continuo podendo amar, mas amo outra pessoa agora! E aí? O que fazer? Os dramas são os mais diversos. Mas, existe um ponto bastante comum entre inúmeros casos. Uma espécie de fio condutor que ajudar a explicar várias situações que chegam à clínica. Não todas evidentemente.

Vou tentar, forçosamente, resumir a queixa na seguinte frase: "Como posso deixa-lo(a) se havia a promessa de um amor eterno?". Ufa! No dia a dia esta frase pode soar trivial, mas na clínica, diante da evidente angustia de um indivíduo, soa como um grito de desespero. Um beco sem saída. Uma caminho que só leva a um abismo.

Quando falei acima sobre um "fio condutor", um "ponto em comum" que ajuda a explicar esta queixa, estou falando da severa dificuldade, num primeiro momento, de reconhecimento do próprio desejo e, num segundo momento, de se trabalhar mais com "fantasias" que com a própria realidade. Mas, onde entra o peso do "social" nisto tudo? Vou por partes.

Entrar em contato, e reconhecer como legítimos nossos desejos não é mesmo uma tarefa fácil. Me arriscaria a dizer que talvez seja uma das principais tarefas da psicanálise, pois exemplifica bem o que seria esse "encontro consigo mesmo". Ora, quem é esse "outro" dentro de mim mesmo, que quero encontrar, senão meus desejos? É a busca por ele que pode significar uma atenuação das minhas dores e sofrimentos.

Mas, não se trata de um processo simples mesmo. Há momentos, por exemplo em que fantasias tomam conta, como uma sombra, e afastam qualquer possibilidade de enxergar a coisa com clareza e aí as decisões se tornam impossíveis. Por exemplo, se o indivíduo descobre que, de fato, quer continuar amando, mas amando outra pessoa, e tem um compromisso de relacionamento (casamento), começam a pesar sobre ele (a) severas questões.

Ele(a) pode acreditar, por exemplo, que não haverá qualquer possibilidade de diálogo com a pessoa com quem mantém o compromisso (fantasia), pode estar acreditando que ela(a) dirá algo que o coloque "contra a parede" e o(a) faça desistir da ideia de uma separação. Que fantasias são essas? Podem ser do tipo: "depois de tanto tempo, agora você quer me deixar?", "você jurou que nosso casamento seria eterno!", "minha família não vai aceitar!", "isso é pecado!", "o que as pessoas vão dizer de mim?", "eu não vou sobreviver sem você", "eu me anulei e me dediquei somente a você" etc.

Veja, tudo isto pode estar somente no nível de uma fantasia imaginada por quem quer se separar e não tem a coragem de iniciar um diálogo, ou pode se transformar em acusações bem reais quando do início de um diálogo. É justamente aqui que vemos o quanto um relacionamento pode ser invadido por questões egóicas (egoístas) e por pressões do social e até da religião, impedindo ou dificultando que as pessoas possam reformular suas vidas em busca de uma felicidade que imaginam poder conquistar.

Claro que estou tocando em questões socialmente sensíveis a muitas pessoas. Mas, quem disse que temos que ter esta preocupação como central na clínica. O que precisamos é escutar bem, ajudar a reconhecer o desejo e trabalhar no sentido de que o indivíduo seja competente e responsável o suficiente por suas escolhas. Mas, vamos voltar ao assunto.

Promessa, pecado, aceitação familiar, aceitação social, necessidades. O "social", o "egóico" e o "religioso", neste momento, surgem com toda força sobre aquele que está saindo de um casamento. Na voz daqueles que estão sendo "deixados" soa o grito de "traição", "abandono", "ingratidão", e na voz daqueles que estão "deixando" soa o peso de uma promessa não cumprida, o peso de estar se cometendo um "pecado".

Não é uma transição fácil, mas é bom que se lembre que a dor de uma separação, então, não está somente em quem "fica", mas também em quem "sai" de um relacionamento. Ambos têm que lidar com uma perda, um reencontro com seus desejos, com uma reestruturação. Isso não explica tudo, mas explica alguns dramas vividos em certos relacionamentos, honestos, mas que se perderam em algum momento.

Melhor seria se fizessem essa transição juntos, se escutando, se respeitando, buscando recuperar uma identidade que tem que sobreviver ao relacionamento que agora começa a se desfazer. É por uma recusa em buscar essa identidade, que é anterior e deve sobreviver mesmo durante o casamento, que muito casais acabam optando pelo comodismo, pelo abandono de seus desejos, pela infelicidade mútua, ao invés de se darem uma chance de liberdade e apostarem mais uma vez. É lamentável, mas é o que ocorre na grande maioria dos casos. O laço, que é frouxo e comporta sempre um risco, se transforma em uma corrente, dura e resistente, que aprisiona. estão como que "fadados a serem felizes", custe o que custar, inclusive a felicidade de ambos.

Só uma observação. Não vejo o casamento como uma instituição "falida", o que está falido mesmo é esse relacionamento egóico, que se utiliza de chantagens pessoais e pressões sociais e religiosas para sustentar um relacionamento quando ele, de fato, já se transformou. É por isso que, para muitos que chegam à clínica é sempre um "pecado" falar de seus próprios desejos, sentem-se "traidores" ou "traídos". Para não "magoar" o outro preferem calar a si mesmos e abandonar sua vontade de ser feliz. E aí só lhes restará, no lugar da busca pela felicidade, ou de mais uma chance, o contentamento com a paralisia e a acomodação. Terrível, quando se pensa que não teremos outra vida para colocar as coisas em ordem.

Porque não apostar em uma amizade eterna, em um carinho eterno, ao invés de um forçoso "casamento eterno"? Por que preferir a infelicidade do(a) outro(a), e a de si mesmo(a), que a possibilidade de novamente tentarem ser felizes, de outra forma? No fundo, ainda entendemos muito pouco de relacionamentos. No fundo temos medo de começar de novo. Mas, isso é da condição humana. Duvido que melhore muito no futuro, pois estaremos sempre trabalho com a fantasia do "eterno", com a vontade de "posse" e com a ideia de "pecado". Isso intriga, e muito!

Espero não ter deixado ninguém chateado, mas o tema está aí, no nosso dia a dia!

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

O ciúme e as formas paranóicas do amor (C. Dunker)

Abaixo, trechos do texto “o ciúme e as formas paranóicas do amor“, de C. Dunker, publicado em Consumidos pelo Ciúmes. Viver Psicologia. São Paulo, v.36, 1996, e divulgado no facebook do autor.
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O ciúme talvez seja a mais interessante vicissitude do amor. O ciúme é um sentimento demasiadamente humano, trágico. Quando amamos amamos a “nada”, a um “vazio” (agalma) e é neste vazio que o ciúme fabricará imagens, traços, signos para ocupá-lo e assim responder ao enigma (…) O ciúme, portanto, supõe algo onde não há nada, onde há falta de algo.
 
(…) ele é antes de tudo um pensador meticuloso. Pequenos detalhes, um tom de voz, uma palavra e está armada a conjectura. Inicia-se o processo: certificações, vigilância, suspeitos. Flagrar o ato criminoso torna se uma obsessão. A confissão do traidor é esperada e temida, mas de toda forma obrigatória. Quanto mais ciúme mais método, mais rigor, mais engenhosa a reflexão.
 
Podemos avaliar a posição daquele que é tomado pelo ciúme a partir de duas vertentes. De um lado o que Freud chamou de ciúme projetado, de outro o ciúme delirante.
 
No caso do ciúme projetado o desejo de trair é transferido para o outro. Trata-se de conter nele o que o sujeito não reconhece em si, ou que reconhece e atualiza na forma de infidelidade e culpa (…). 
 
Na sua modalidade moderna fala-se das duas metades da laranja. O amor à equivalência ou ao ajuste das necessidades subjetivas dos que nele se envolvem é aqui a raiz do ciúme. O ciúme conseqüência necessária da hipótese de que há um objeto que nos faça Um. Ciúme por asfixia, pela falta da falta. Quando dois se completam demais o desejo se vinga no ciúme. É talvez um ponto de liberdade para um novo movimento.
 
Tal interpretação tem o mérito, a nosso ver, de explicar o juízo do senso comum que diz que um pouco de ciúme é benéfico para todo relacionamento. Benéfico, pois faz intervir, mesmo que apenas como uma possibilidade virtual, o terceiro e a falta. Ele acusa neste caso uma certa insatisfação que funciona como motor para novos engajamentos subjetivos.
 
Nada mais propício ao aparecimento do ciúme do que o clássico marido cuja vida se resume a satisfazer as demandas da esposa. No filme “O Processo do Desejo” tal figura aparece exemplarmente descrita. Um juiz que dá tudo para a esposa e é exatamente por isso que ela o rejeita. Não falta nada para amar.
 
(…) Lógico, não queremos tudo o que queremos, amamos quando surge algo além do que imaginamos (…). Dar tudo, isso faz o ciumento traduzir o que sente num ato amoroso. Se te vigio, se te amedronto, se te mato … é porque te amo. Talvez não tenha existido pior mal nas ações humanas do que aqueles cometidos em nome do Bem e do amor.
 
Talvez a ética do ciumento seja … também uma ética masoquista onde não se consegue interromper a realimentação do sofrimento. “Eu me mordo, eu me acabo, eu faço bobagem de ciúme”, diz a música. Que estranha satisfação é essa a do ciumento crônico? … Amar é dar o que não se tem, dizia Lacan. Ao ciumento a fórmula aparece ao contrário: possuir, reter, ter, não perder de modo algum o outro. Garantir que todo o seu desejo tenha um único endereço…
 
O segundo tipo de ciúme não está às voltas com o preenchimento do que falta ao outro mas com uma imagem fixa: a cena de traição… Não está em jogo a realidade, se bem que pareça, mas uma certeza que atravessa sua fala: houve, há e haverá traição. Os argumentos neste caso só servem para atestar que o ciúme é justificado. O ciúme impulsiona ao ato violento. O pensamento se aproxima da lógica dos inquisidores medievais, como aponta o texto básico dos queimadores de bruxas: “Tortura-se o acusado que vacilar nas respostas, afirmando ora uma coisa ora outra, sempre negando a acusação. Nestes casos, presume-se que esconde a verdade. Se negar uma vez, depois confessar sob tortura não será visto como vacilante e sim como herege penitente, sendo condenado.”
 
Enfim, trata-se de um pseudojulgamento uma vez que a culpa está dada de antemão… A atração pela cena da infidelidade se assenta na figura do terceiro. Ora considerado como aquele que seduziu, corrompeu a inocência daquele que foi embriagado pelo feitiço, ora tomado por um fascínio, este terceiro é a chave da questão. Se não o fosse o que levaria a continuidade da investigação do outro uma vez que já se sabe que ele é culpado? Neste caso a ligação do ciumento inclui uma certa inveja em relação ao seu parceiro.
 
A hipótese evidentemente recorre à noção de inconsciente. Nos termos de Freud, inveja-se o fato, por exemplo, desta mulher ser possuída por outro homem, a recusa deste desejo homossexual promove o fascínio por este outro homem e o ódio pela mulher. Um ódio cuja aparência é de irracionalidade. O ciúme paranóico reclama, desta forma, de uma indiferença à sua demanda amorosa. Indiferença pertinente uma vez que o endereço desta demanda não é aquele de quem se diz sentir ciúme.
 
Montaigne dizia que na ordem das relações humanas a realidade conta pouco. Nos apegamos a ficções. Preferimos a ilusão prazeirosa ao desgosto da pálida realidade. O fato notável do ciúme é que ele parece comandado por ficções que adquirem o estatuto de realidade. A mentalidade jurídica do ciumento o põe assim num beco sem saída. Um julgamento sem fim onde o veredicto é o que menos importa. Alguns se apegam a dúvida interminável, como Bentinho, outros se dirigem à certeza, outros ainda convidam pelo ciúme à experiência de serem enganados, como mostrou Nelson Rodrigues.
 
O ciúme é aí um pedido de retomada da relação amorosa, um teste dos seus limites. Um pedido para que o outro reaja ao preenchimento da agalma, que faça diferença onde encontra simetria em excesso. Ao contrário do ciúme paranóico é um pedido de saber menos.
 
Quando Afrodite é tomada por ciúme no momento em que vê os mortais adorando a mortal Psiquê o ciúme convida Psiquê à morte. Salva da morte por Eros o ciúme das irmãs convida Psiquê à solidão. Salva da solidão o ciúme de Afrodite convida então Psiquê a provar seu amor. Quando finalmente o ciúme de Afrodite provoca o próprio Zeus então Eros fica em paz com Psiquê. Mas até quando?

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Sobre a noção de "trauma"

Estava lendo o livro organizado pela Ana Maria Rudge ("Traumas"), que foi resultado do I Congresso Internacional de psicopatologia Fundamental que ocorreu na PUC-RJ em 2004. De cara, alguns comentários seus sobre a própria noção de "trauma" me trouxeram a vontade de compartilhar algo aqui.
 
É fato que  o trauma é um forte tema de interesse na atualidade, até mesmo entre os psicanalistas. Mas, por que? Talvez porque não exista muito como escapar à proliferação da angústia e do sofrimento de desamparo que emergem da intensa exposição midiática da violência e da catástrofe. Mas, o que é o trauma?
 
São inúmeras as acepções do termo mas, inegavelmente, a versão mais conhecida é a do "trauma infantil de ordem sexual". Mas, não é disso, exatamente, que os analistas hoje mais se ocupam. A sexualidade nem mesmo mais ocupa um lugar tão central, como no caso do sofrimento histérico. Há outras modalidades de sofrimento de origem traumática.
 
A noção de "trauma", portanto, com toda sua potencial abordagem múltipla e transdisciplinar, é daquelas que nos faz enxergar toda a capacidade da psicanálise em enfrentar não somente as novas situações clínicas, mas abordar os diversos aspectos socioculturais da atualidade. Assim, o trauma "é daqueles acontecimentos que rompem radicalmente com um certo estado de coisas, provocando desarranjo de nossas foras habituais de funcionar e impondo o árduo trabalho da construção de uma nova ordenação do mundo..." (p. 9).
 
O trauma, portanto, se deu "lá trás", mas é revivido periodicamente. E é aqui que gostaria de chamar a atenção. Não se "sepulta" um trauma, não se "enterra", não se "esquece" tão facilmente. É preciso recuperar aquele sentido mais forte do conceito de trauma. Ou seja, o de que uma situação traumática pode colocar por terra toda a forma pela qual estamos estruturados, interferindo, a partir daí, diretamente em nosso dia a dia, e nos fazendo "funcionar" de uma outra forma, quase sempre de forma fragmentada, quase despedaçada.

Ora, uma das grandes características do "trauma" é que ele é revivido periodicamente nos tornando reféns de uma angústia que, por vezes, nem mesmo sabemos de onde vem, tal o nosso esforço por "esquecer" tudo aquilo que nos machucou. Não tem outra solução. É preciso conversar sobre isto, e encontrar um lugar para tudo o que aconteceu!

Humihação e Medo!

O horário era o do almoço. Perto de umas 13:30. Numa mesa próxima, um pai e duas crianças. Em determinado momento uma delas, a menor (talvez uns 5 anos), abre uma mochila, tira um brinquedo e o coloca sobre a mesa. O "problema" é que o brinquedo ao ser colocado e arrastado sujou a toalha que cobria a mesa. A reação do pai foi absolutamente desproporcional. Numa rápida reação esticou o braço, arrancou o brinquedo das mãos da criança, com uma mão lhe segurou fortemente o braço, com a outra lhe colocou o dedo na cara e desfilou uma série de pequenas ofensas, com uma feição que beirava o ódio.
 
Ele parecia mesmo estar seguro de que realmente tinha feito a coisa certa, afinal estava dando uma demonstração pública de seu "cuidado" com a educação de seu filho. Ok, tudo bem! Parei de olhar e me voltei para meu próprio prato. Mas, logo em seguida, comecei a me chocar por outra coisa. A reação da criança. Ficou absolutamente calada, quase estática em seu lugar durante todo o restante do almoço. Parecia estar paralisada de medo. Sua obediência era exemplar. Nem um pio sequer, nem um esboço de movimento, difícil até perceber se ela levantava o rosto. E isso parece não ter causado nenhuma outra reação no pai, que parecia convencido de sua missão. Mas, e a criança, o que sentia? Vergonha, humilhação, impotência, insegurança, abandono?
 
Ver esta reação da criança que me fez pensar em algo que as vezes parece tão óbvio, mas tão difícil de ser colocado em prática: Uma educação sustentada no afeto, e não na agressividade. Nós precisamos de uma casa e de uma família sadia para nos constituirmos emocionalmente fortes. Aí está o óbvio da questão, pois se trata de um princípio inquestionável. Mas, nunca é tão simples. Se tudo fosse tão simples, talvez a psicanálise nem existisse! E precisaríamos deixar de ser humanos também.
 
Claro que, depois de adultos, podemos recuperar parte do "estrago" que experimentamos na infância, mas poderíamos evitar muito desse sofrimento se existisse mesmo a luta e a disposição para transformar a família em um local de harmonia, onde o respeito ao outro (criança) deve prevalecer acima de tudo, e onde sempre haja motivo para o cuidado e o amor... só isso! Isso não significa ser passivo diante de uma atitude equivocada da criança, significa apenas que algo diferente deve ser colocado no lugar da agressividade e da ofensa. Esse pai, portanto, é exatamente o outro polo daquele pai submisso que, incapaz de colocar  limites, ajuda na formação de "pequenas majestades".
 
Mas, é comum ouvir pessoas, principalmente de uma ou duas gerações passadas, dizerem que o "sofrimento nos fortalece". Isso já serviu como pano de fundo e justificativa para uma educação "tirânica" e carente de afeto. É lógico que a dureza da realidade está aí para nos ensinar algo. Mas, será que não podemos aprender de outra forma? Temos mesmo que agir de uma forma que beira a crueldade com os filhos? Quem disse que uma educação centrada no respeito e no carinho não torna uma criança muito mais forte e segura que uma educação centrada na simples severidade? Veja, não estou falando de limites. Isso é outra coisa! Estou falando de se negar afeto.
 
Ora, o sofrimento, se nos ensina algo, é sempre nos machucando, ferindo, causando dor. O máximo que ele consegue é nos "embrutecer" e isso não é ser "emocionalmente sadio". A realidade já será devidamente dura para todos nós e nossas crianças, mas pra que antecipar estes sofrimentos? Torná-la capaz de sobreviver à dureza da realidade não significa envolve-la em sofrimento desde cedo. Significa dotá-la de afeto, lhe dar a segurança de saber que é amada, pois é este afeto que a tornará forte para enfrentar a vida. Uma vida dura leva ao sacrifício de muitos afetos e, consequentemente, da felicidade. Então, acreditar que uma educação baseada no sofrimento ajuda a suportar melhor a vida é só reproduzir aquilo que se aprendeu e se recebeu: uma vida sem afeto! Nada mais que isso. Temos mesmo que reproduzir isso? E não adianta culpar quem nos causou algum sofrimento. A responsabilidade por mudar é nossa. Somente nossa!
 
Enfim, há poucas coisas tão terríveis na vida quanto ver uma criança que, na sua paralisia e medo, mostra todo o seu desamparo afetivo. Nessa hora, alguma lembrança pode vir à mente, você suspira fundo, se identifica com algo e logo percebe: não precisava ser assim! Podia ter sido de forma diferente! Mas, vamos em frente.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

O gerenciamento do narcisismo tem altos custos

Se tem algo que está se tornando razoavelmente insuportável para os relacionamentos sociais é o crescimento exacerbado de pessoas que ostentam uma forte autopromoção. Não se trata de uma simples questão de mostrar ao mundo sua autoestima. Se fosse isso vá lá, tudo bem. Seria só motivo de parabenizar a pessoa e ficar feliz por ela. Mas, o problema é que essa ostentação quase sempre vem acompanhada de pouco ou nenhum reconhecimento do outro e, por vezes, de comportamentos violentos.
 
Estou falando, então, de indivíduos que se colocam em ambientes sociais e situações de alta competitividade, seja no trabalho, seja na família, seja com amigos, e cuja atenção está sempre voltada para esta anormal promoção de si mesmo, onde tudo deve girar em torno dele mesmo. Para isso, ele manipula e explora as pessoas, vistas quase sempre como "objetos". Para ele, a "imagem" é tudo, pouco existe para "sentir" e quase tudo é para se "ver".
 
Em sua manipulação, ele pode se utilizar de mecanismos como o charme, a beleza, a sedução, a benevolência, a filantropia, o dom da palavra, a crença em possuir uma família perfeita, o fato de possuir todos os "sonhos de consumo" que os demais mortais desejam para si etc. São todos artifícios para suas conquista da atenção e do olhar do outro.
 
É comum que queira cercar-se de "insígnias" que os diferencie de outras pessoas, dando a ele um caráter de "pessoa melhor". Assim, geralmente procura fazer coisas diferentes que acredita que fornecerão estas "insígnias". Então, de repente, ele pode se tornar o "melhor nisso" ou o "melhor naquilo", sempre enfatizando suas próprias qualidades, numa promoção de si mesmo sem controle. É um "vencedor", um "poderoso", nem parece "humano" de tão "perfeito" que se mostra.
 
Como disse, pode se "utilizar" da família como um elemento a mais para sua promoção de si mesmo, ou do seu trabalho, ou do que possui. Mas, sempre como uma espécie de "extensão", uma "prótese" de seu enorme ego narcisista. O que ele tem é, portanto, sempre "o melhor" e, perder isso seria colocar em risco o seu projeto de sempre vangloriar a si mesmo. O que possui, então, ajuda a sustentar seu delírio. É assim que todos e tudo existe e funciona, para sua própria promoção descontrolada.
 
Não é anormal, portanto, que, com esta ânsia de sucesso, crie várias identidades para si. Literalmente, para aqueles que partem para a vida criminosa e, metaforicamente, no seu dia a dia. São novos papéis que assume e troca constantemente como se nenhum lhe coubesse muito bem. Por isso a busca permanente por novas insígnias que lhe forneçam uma distinção em relação aos demais. Um dia ele pode mostrar que sabe "isso", outro dia pode mostrar que sabe "aquilo".
 
O problema é que "gerenciar" estas identidades e papéis, que assume e descarta constantemente, é um alto fator de stress, podendo levar a atitudes percebidas pelos demais como "estranhas", como que mudando muito rapidamente de humor, por exemplo. Quando se vê questionado em um de seus papéis, ou identidades, quando tem a sua certeza abalada, ou quando sua "farsa" ameaça ser revelada, ele parece "desabar", sua expressão muda muito rapidamente e pode se tornar agressivo sem maiores razões. A "farsa" funciona como algo que "tapa" boa parte do "buraco" que está presente em sua existência. Se ela, a farsa, deixa de funcionar, o buraco surge à sua frente, ameaçador, insuportável.
 
Nesses momentos, algo em que está se sustentando parece estar ruindo e ele se sente ameaçado em sua construção delirante de ser alguém "melhor que os demais". Esse é um momento muito perigoso, justamente quando ele começa a se ver diante do horror que pode ser a sua verdade. A metáfora que gosto de utilizar para entender bem este momento é a da "desfragmentação", ou "desintegração", ou seja, enquanto seu delírio estiver funcionando ele parece não ter limites, mais parece um muro bem sólido, mas quando há algum contato com a realidade que ameace a constituição desse delírio, esse muro começa a se desfragmentar, desfazendo-se, em pedaços. É neste momento que ele pode se tornar especialmente doente e, perigoso para quem está ao seu redor.
 
Então, sustentar tantas mentiras cansa, e muito. É um forte fator de stress emocional e pode liberar raiva e violência, pois se houver uma falha nesse "gerenciamento" é a própria estrutura do delírio que se vê ameaçada, podendo ruir. Ou seja, o indivíduo ludibria, mente, manipula, mas tudo isso exige a construção de uma trama muito complexa de farsas. Até quando se consegue sustentar isso? Infelizmente esta patologia está se multiplicando, estimulada por ambientes fortemente competitivos por aí afora. Basta olhar, com atenção, para alguns dos "casos de sucesso" que estão ao nosso redor, ou melhor, "acima" de nós.
 
Pelo seu profundo vazio existencial esse indivíduo se torna presa muito fácil de qualquer ideologia competitiva. Ele vai ser o primeiro a topar uma competição, pois o ambiente de disputa lhe permite sempre uma possibilidade de "vencer", sentir-se "maior" e, consequentemente, sair deste "vazio", ainda que seja através da "farsa". A questão é saber quantas mentiras ele vai construir e o quão forte será seu delírio para sustentar-se. No meio de tudo isto, a delicada questão de ter que gerenciar esta trama repleta de farsas.
 
Quando olho para o futuro fico imaginando que tipo de sociedade teremos com tantos pais, hoje em dia, estimulando, desenfreadamente, a competição em seus filhos, ensinando-os a vencer a qualquer custo e cobrando deles somente... o sucesso! O que significa mesmo o "sucesso"? Qual mesmo a sua relação com a felicidade? É bom estarmos sempre pensando nisso! A competição e o sucesso, em si, não são o maior problema, mas que uso queremos fazer deles? Melhor não busca-los para simplesmente tapar algo com o que imaginamos não poder lidar.