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terça-feira, 13 de maio de 2014

O escândalo político e o discurso cínico!

Foi no dia 14 de maio de 2005, há exatos 9 anos, que a edição 1905 da revista Veja chegou às bancas com uma discreta chamada no cabeçalho mas com uma longa matéria revelando o que viria a se transformar no maior escândalo político-midiático da República recente: O escândalo do mensalão. Talvez a maior herança deste escândalo tenha sido a legitimação, em sua completa magnitude, do chamado "DISCURSO DO CÍNICO". O que é isto?

É exatamente o "discurso do cínico" que faz com que um escândalo seja tão pouco escandaloso e faça prevalecer a crença de que, ao final, tudo acabe em "pizza" e que só reste a equação: "eu sei que ele sabe que eu sei". 

O grande trunfo de um escândalo é a "confissão", é isso que o transforma em algo verdadeiramente devastador. Quando a Revista Veja trouxe a denúncia de corrupção nos Correios só se inaugurou o que chamamos de "pré-escândalo". Só com a entrevista de Roberto Jefferson (06 de maio) e sua "confissão" surge  a fase do "escândalo propriamente dito". Mas sempre faltou algo: Lula nunca admitiu!

Ele sabe que é a da confissão que todos precisam. O reverendo Eymerich, no "Manual dos Inquisidores" (1376), já nos dizia da importância da "confissão". Enquanto o segredo não se tornar transparente o culpado ainda não se sente devassado pelo olhar do outro que o acusa. Neste aspecto Lula foi e é mestre! Jamais admitiu e, mesmo quando vacilou numa quase admissão de culpa, logo reagiu com um discurso contrário.

O "eu não sabia", portanto, virou o grande lema e a grande incógnita do escândalo do mensalão. É aquele "buraco" que ainda não foi devidamente tapado. Por isso Lula sempre aposta em que "a história mostrará a verdade". É daí que brota o "discurso do cínico", dessa incapacidade de admissão, desse esconder-se no segredo e na não revelação, no não reconhecimento da culpa. Ter algo a esconder é próprio do cinismo.

Mas, Lula talvez seja só a expressão maior de uma época em que a "ética da malandragem" instaura e legitima, como nunca, a ordem dos "espertos" e do "jeitinho". O seu "EU NÃO SABIA" marcou época, fez escola e nos colocou, definitivamente, no interior do "discurso do cínico".

Como nos diz, de forma incisiva, o psicanalista Ricardo Goldenberg ("No Círculo Cínico", ed. Relume Dumará, 2002), o homem moral de Kant está obsoleto, é um "otário" e quase ninguém mais quer habitar sua moradia. Rejeitamos a internalização da Lei e das Regras e a substituímos pela fé cega de que há sempre um "jeito" de sermos uma "exceção". O que vivemos é uma tremenda crise do superego e nenhum modelo vinculado às leis e regras parecem ser suficientes para determinar nossa subjetividade e domar nossos desejos.

Vivemos em uma época em que o cinismo se transformou na caricatura da moral Iluminista evidenciando sua possível falência, pois estamos sempre invocando normas universais e, ao mesmo tempo, promovendo sua transgressão. Como nos diz Goldenberg "o cinismo consiste no conjunto de operações que preservam oculto o hiato entre os princípios e a prática que os contradiz"

Os canalhas se deleitam em nossa época! Todos, imersos em culpa, não a reconhecem e levantam os punhos afrontando a justiça e a todos. Quanto a isso, temos muito o que agradecer ao ex-presidente Lula!

(José Henrique P. e Silva)

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Precisamos ser humilhados pela mídia e pela política?

"...Me deixei maltratar por pessoas que não eram melhores que eu em caráter ou capacidade..." (F. S. Fitzgerald, escritor).

Folheando alguns recortes me deparei com uma coluna da Márcia Tiburi (Cult, mar/2013) onde ela cita a frase acima para servir de exemplo para o necessário "esforço de resistência" em entender as estruturas que nos humilham, e resistir à subserviência. A frase, porém, implica...
algo muito forte, ou seja, a tomada da consciência de si, do valor próprio, para que possamos deixar de crer em um destino infeliz que tenta se impor de forma inexorável. Mas, então, a partir de onde estamos sendo humilhados?

Márcia nos dá dois exemplos: o da política e o mídia que, voltada em grande parte para uma indústria cultural e de entretenimento de mau gosto*, brinca com a inteligência e sensibilidade das pessoas, com sua programação desrespeitosa e ignorante. Sobre a política nos diz o seguinte: "...a política de nosso tempo não é mais política porque, em vez de ser laço em que as relações entre indivíduos e instituições são valorizadas constituindo a ação capaz de dar sustentabilidade à sociedade, se transformou no gesto de negar o outro, o gesto antipolítico por excelência...".

Ora, sempre entendi que a "política", conceitualmente falando, tem uma forte capacidade agregadora. Ela junta, reúne, estimula o debate, motiva à ação. É isso que lhe permite criar um "laço" social, dando a sustentabilidade à sociedade de que Márcia Tiburi fala. Mas, na prática, e cada vez mais no tempo atual, o que se vê é a desmoralização da vida política e sua transformação em um campo onde lobos devoram homens, onde domina o preconceito, a mentira, o cinismo e a violência. O político, antes um "representante", cada vez mais nos humilha com suas atitudes (corrupção e descaso, principalmente). Esta, infelizmente, tem sido a regra. A politica tem sido o campo do "impossível". Recuperar este conteúdo da política, enquanto "laço", é fundamental. Mas, para isso, não esperemos por "políticos bonzinhos". Temos que refletir sobre o que F.S. Fitzgerald nos fala na frase acima e...reagir, não permitindo humilhações. Algumas coisas nós podemos fazer sim!

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(*) sei que este termo é "perigoso" e soa elitista, mas é o único que encontro agora para definir uma programação que, longe de ser "popular", não passa de pornográfica, insultuosa, e que não nos exige mais do que apertar o botão que liga e desliga a TV. Vivemos, ou não, uma forte época de "rebaixamento cultural"?

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Pierre Bourdieu (Dossiê - Revista Cult 166/2012)

Impossível não registrar algo acerca do dossiê preparado pela Revista Cult (n. 166, março 2012) para relembrar alguns conceitos de Pierre Bourdieu neste momento de 10 anos de sua morte (1930-2002). Uma justa homenagem a um dos maiores intelectuais do século XX, principalmente num momento em que, como diz Daysi Bregantini (editora da Cult),
nossos poucos intelectuais públicos são desmotivados, assim como nossos bons criadores. A economia vive um momento inédito de crescimento, mas não é representada na produção cultural, que está desbotada e sem vigor. O jornalismo cultural, com poucas exceções, está quase desmoralizado e a reboque da indústria do entretenimento. Por que nos conformamos?
Bourdieu é aquele intelectual ao qual podemos atribuir duas grandes características: é "engajado" (segue a tradição francesa de participar ativamente de movimentos sociais, integrando a teoria com a prática) e é "total" (sua obra cobre uma gama extremamente variada de problemas, domínios e dimensões da vida social).
 
Sua produção é vasta e, recentemente, foi publicado na França o livro "Sobre o Estado", produto de um curso oral entre 1989 e 1992 onde discutiu o papel do Estado e do indivíduo na sociedade. Segundo Franck Poupeau, ali Bourdieu constrói um modelo de gênese do Estado, pensado no cruzamento da História, da Sociologia e da Filosofia Política, com referências ao contexto francês da época, quando da desconstrução dos serviços públicos, das políticas sociais e da própria ideia de "público".
 
O termo que usava era o do "abandono do Estado", imaginando que o neoliberalismo estaria esvaziando completamente o Estado de suas funções. Nesse aspecto talvez tivesse se surpreendido, hoje em dia, com a sobrevivência de inúmeras funções e, talvez, optasse por falar em "transformação" do Estado e suas funções. Mas, é esperar pra ver, com calma, como tratou esta questão do Estado num momento decisivo de seu questionamento.
 
Entretanto, apesar de ser um dos autores mais citados no mundo (e "descoberta" no mundo inglês), sua obra vem sendo muito atacada pelos sociólogos franceses. Para Bernard Lahire, um de seus  herdeiros, estaria ocorrendo um processo de "desqualificação" (muito típico nas Ciências Sociais) que obedeceria à lógica da moda*, onde não há espaço para argumentações e evidências empíricas, somente para o "novo" e o "ultrapassado".
 
O que existiria por trás disso, então, seria uma recusa de uma sociologia subjetiva, apegada aos estudos da dominação e da desigualdade, dos determinismos sociais. Predomina, na atualidade, uma sociologia consensual, ausente de relações de dominação.
 
Vê-se aí reflexos da ideologia consumista onde os intelectuais estariam se comportando como crianças que, em busca de reconhecimento por parte do poder, estariam se tornando dóceis e se recusando a denunciar as violências. Um comportamento que tira das Ciências Sociais qualquer possibilidade de se tornar um contrapoder.
 
É neste contexto que Geoffroy de Lagasnerie critica a relação de muitos intelectuais (como Alain Badiou) com a mídia, também expressão dessa busca frenética por um tipo de reconhecimento similar à das celebridades.
 
Para ele, tais autores estariam se tornando ensaistas de segunda linha e produzindo subpesquisas, fazendo praticamente desaparecer o debate intelectual. Entretanto, o autor não demoniza a mídia e vê que Bourdieu, por sua vez, não soube avaliar com clareza o papel da mídia, perdendo-se, junto a outros importantes teóricos, numa feroz crítica aos jornais e suplementos culturais. Havia um receio de se perder o "monopólio" do discurso acadêmico?
 
Não há como negar o importante papel destes outros espaços como "críticos" das práticas acadêmicas, papel importante para se atenuar as chamas "imposturas" acadêmicas (similares às imposturas midiáticas). A crítica feroz, portanto, mais parecia uma tentativa de salvaguardar de críticas o espaço acadêmico, contribuindo para isolá-lo cada vez mais da sociedade, fechando-o em si mesmo.
Quando refletimos sobre o jornalismo, insistimos com frequência na censura que exerce. Mas a contribuição essencial do jornalismo reside no fato de que se trata de uma instância exterior à universidade. Ele representa um espaço de acolhimento para as obras, os autores e questionamentos em ruptura com as normas científicas (p. 39).
Outra publicação de Bourdieu, que deve ser lançada ainda este ano no Brasil, é "Os Herdeiros". Segundo sua tradutora, Ione Ribeiro Valle (UFSC), o livro inspira-se na tradição weberiana de não considerar a relação de dominação como exclusivamente econômica, embora sustente (como o marxismo) a ideia de divisão da sociedade entre dominantes e dominados.
 
No livro, Bourdieu rompe com a "ingenuidade" da ideologia da igualdade de oportunidades assentada na ideia de uma escola que alcance a todos. Independente de qualquer coisa, a escola ainda tem a função de legitimadora das desigualdades, mais do que um instrumento de mobilidade social. Para Bourdieu, a cultura de elite ainda predomina e seria necessário uma socialização diversa daquela preconizada pela escola (**). Vejamos, em síntese, alguns dos principais conceitos de Bourdieu:
 
1) Capital Cultural - Conjunto de qualificações intelectuais produzidas pela escola ou transmitidas pela família. Pode ser "incorporado" (como a facilidade de expressão), "objetivo" (como livros) ou "institucionalizado" (como títulos escolares). É uma propriedade que se tornou parte integrante da pessoa através da aprendizagem e aculturação, e fortemente relacionado ao capital econômico do indivíduo;
 
2) Capital Econômico - Conjunto de recursos patrimoniais e de rendas ligados ao capital ou a um exercício profissional assalariado ou não assalariado;
 
3) Contato Social - Conjunto de contatos, relações, amizades, obrigações, relações socialmente úteis que podem ser mobilizadas ao longo da trajetória profissional ou pessoal do indivíduo. É uma variável que confere maior ou menor "espessura" social, poder de ação e reação. "A rede de relações é o produto de estratégias de investimento social", consciente ou não, a fim de criar, manter, reforçar, reativar ligações das quais pode esperar retirar "lucros materiais ou simbólicos";
 
4) Campo -Espaço social estruturado e conflitual no qual os agentes sociais ocupam uma posição definida pelo volume e pela estrutura do capital eficiente no campo, agindo segundo suas posições nesse campo. Cada campo - um "campo de força" de agentes e instituições em luta - é dotado de regras de funcionamento e de agentes investidos de hábitos específicos (campo universitário, jornalístico, literário, jurídico, econômico etc). São campos autônomos que resultam da diferenciação do mundo social e dos modos de conhecimento do mundo. Assim, cada campo tem um ponto de vista fundamental sobre o mundo e cria, portanto, seu objeto próprio;
 
5) Distinção - Corresponde a uma estratégia de diferenciação que está no âmago da vida social. É uma propriedade que marca um desvio, uma diferença em relação a outros e que funda uma hierarquia entre indivíduos e grupos;
 
6) Capital Simbólico - Conjunto de rituais (como a etiqueta e o protocolo) ligados à honra e ao reconhecimento. É o crédito e a autoridade que conferem a um agente o reconhecimento e a posse das três outras formas de capital (econômico, cultural e social). Ele é produto da "transfiguração de uma relação de força em relação de sentido", designando o efeito de violência imaterial das outras formas de capital sobre a consciência. Um exemplo típico das transmutações das outras espécies de capital em efeitos simbólicos é o "grande nome" (de uma "grande família"), que condensa todas as propriedades materiais e imateriais acumuladas e herdadas. A compreensão da lógica dos efeitos simbólicos de posições e de recursos advém de uma economia dos bens simbólicos;
 
7) Espaço Social -~Representação multidimensional e relacional da estrutura da sociedade de acordo com o volume e a estrutura do capital em posse das diferentes classes sociais em conflito. É aqui que se encontra a verdadeira lógica da dinâmica social, pois a sociedade não é mais que um espaço de distribuição, ou seja, um vasto conjunto de posições hierarquizadas através de múltiplas dimensões, recortado por tensões e dominações, definido pela exclusão mútua, ou distinção, das posições que o constituem;
 
8) Habitus - Talvez seja o conceito central em Bourdieu. É um sistema de disposições duráveis e transponíveis, que podem gerar práticas em outras esferas no curso do processo de socialização. São potencialidades objetivas que têm a tendência a se atualizar e a operar nas práticas e representações que elas moldam de forma duradoura. Embora Bourdieu negue um determinismo social rígido (pois há uma margem de manobra para o "jogo" e a improvisação) o habitus seria sempre produto do condicionamento histórico e social. Ele não pode ser revertido com uma mera tomada de consciência, pois está profundamente inscrito, internalizado, nos corpos, gestos e posturas, mas nem sempre percebido e muito menos entendido racionalmente.
 
9) Hysteresis - É estar atrasado, defasado, em descompasso.
 
10) Violência Simbólica - É a violência não percebida, obtida por um trabalho de inculcação da legitimidade dos dominantes sobre os dominados e que assegura a permanência da dominação e da reprodução social. Um exemplo é a transmissão da cultura escolar;
O dossiê elaborado pela revista ainda tráz uma série de revelações da trajetória de Sérgio Miceli, para muitos o maior divulgador de Bourdieu no Brasil. No texto se percebe o fascínio e o caminho percorrido por Miceli no encontro com as ideias de Bourdieu, sua forte preocupação com as questões culturais e o pouco espaço encontrado nas universidades brasileiras dos anos 70, que se concentravam demasiadamente em Marx e em O Capital. Era uma época de "má vontade" da Sociologia com a cultura.
 
Para Miceli, enquanto o marxismo tratava a cultura de forma reducionista, o trabalho de Bourdieu era mais complexo e fascinante. Ele trazia uma nova leitura, menos dogmática e mais simbólica. Era, segundo muitos, a consolidação daquilo que os frankfurtianos iniciaram: uma análise central da cultura. Trata-se de um belo texto, revelador de uma época. Assim como Bourdieu pode ser muito revelador para a época atual.
 
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(*) interessante como a Universidade e, em especial o competitivo campo das Ciências Sociais, se utilize justamente daquilo que mais critica: a descartabilidade. Na ânsia por um "lugar" na história se patrocina, seguidamente, o "enterro" de teorias e metodologias (e seus representantes) para dar lugar às novidades. Ora, o que mais isso é além da "lógica da moda"?
(**) um bom terreno para se avaliar esta questão é o Brasil atual com sua migração social e o papel da escolaridade nesse processo como um todo. se pode tentar observar como o "desprezo" pela educação pode, de um lado, continuar servido a uma reproduzção cultural elitista, mas, também, a uma outra socialização, que menospreza qualquer valor oriundo da cultura escolar e acadêmica.

Política Midiatizada e Mídia Politizada

O texto abaixo é uma síntese das ideias apresentadas por Piovezani Filho¹ acerca das transformações envolvendo a mídia e a política. Piovezani parte do conceito de "pós-modernidade" de David Harvey, baseada na "acumulação flexível", para enfatizar a efemeridade do que é produzido e consumido no capitalismo atual.
Volatilidade e efemeridade nos serviços, nas ideias e nos desejos, e instantaneidade e descartabilidade das mercadorias são duas tendências do refinamento do capitalismo nos tempos pós-modernos. Em detrimento da ética, aflora a estética capitalizada, a era é a da imagem, do parecer e do aparecer (p. 51).
Em paralelo, a política também "espetacularizou-se". Não que desde sempre a política já não possuísse uma intrínseca propriedade imaginária, mas, agora, esse processo teria se intensificado, com uma "nova linguagem política", cujas maiores características seriam (segundo Courtine - post neste blog: "Os deslizamentos do espetáculo político"): a brevidade e a conversação. No que diz respeito à "brevidade", o campo político passou a organizar-se em termos de "arcaico x moderno" e não mais em termos de "esquerda x direita" -  (um exemplo está na eleição para a Prefeitura paulistana em 2012).
 
A "conversaçao", por sua vez, supõe uma forma dialógica que teria por missão construir a imagem de um político acessível (não distante do cidadão), sempre próximo e aberto ao diálogo. Mas, se a política se "espetacularizou", a mídia se "politizou", paralelamente. Com isso, a mídia busca sua posiçao de agente político, intensificando seu exercício sobre a política por meio da revelaçao de segredos e mentiras.
Subsidiada na pretensa existência, no espaço político, de um nível profundo (e, por isso mesmo, mais real), ou de uma dupla dimensão - a da manifestação (aparência) e da imanência (essência) -, a mídia reinvindica a legitimidade de sua laboração politizada, na medida em que diante daquilo que não é, mas que se manifesta como sendo ou daquilo que é, mas que aparenta não ser, a postura crítico-heurística que ela toma cumpre a funçao de deslindar o obtuso, de revelar o real (p. 57).
Natural daí surgir aquela postura de porta-voz dos que estão alijados do poder.  O que temos, então, é um simulacro da fala do povo, já que se o povo realmente falasse não precisaria de um porta-voz. Neste processo, a mídia acaba por assumir duas posições, como afirmava Bourdieu: a de "tribuno" (falando em nome do povo e para o povo) e do "debater" (fala da, para e contra a classe política). Existe aí uma "vontade de verdade" que, evidentemente, não elimina possíveis manipulações.
 
Um ponto necessário a ressaltar é com relação à audiência. Não estamos falando de uma subjetividade passiva, mas que interpreta, em parte, o produto midiático que consome, o que, necessariamente, influi na própria mídia. Ou seja,
Faz-se anunciar a inscrição de uma subjetividade consumidora, em certa medida subversiva, manifesta sob a forma do uso, de modo que se estabelece, com efeito, na produção discursiva midiática, uma interpretação espectadora e não uma mera recepção passiva (p. 62).
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¹ PIOVEZANI FILHO, Carlos Félix. Política Midiatizada e Mídia Politizada: Fronteiras mitigadas na pós-modernidade. In: GREGOLIN, M.R.V. (org.). Discurso e Mídia: A cultura do espetáculo. - São Carlos: Claraluz, 2003, p. 49-64.

A Espetacularização da Política e da Mídia e a Tarefa da Análise do Discurso

O texto abaixo é uma síntese das principais ideias trazidas por M.R.V. Gregolin¹ acerca da relação entre mídia e política na atualidade. A autora nos relembra, inicialmente, que Guy Debord, em 1967 ("A Sociedade do Espetáculo"), ao falar da indistinção entre o "real" e aquilo que é produzido e colocado em circulação, dá mais um passo ao que Adorno já anunciava como "industrialização cultural". Como analisar este caráter "espetacular" do que é circulado? Para a autora não há como não pensar esta "cultura do espetáculo" como um fato de "discurso", e que pode, portanto, ser trabalhada pela Análise do Discurso, cujo objetivo é o de:
explicar os mecanismos discursivos que embasam a produção dos sentidos [a partir de uma] compreensão de como se dá a produção e a interpertação dos textos em um determinado contexto histórico, em uma determinada sociedade (p. 10).
Em 1983, Pêcheux ("Discurso: estrutura ou acontecimento"), quando da vitória de Mitterand, percebeu como a mídia opera a transformação da política. Para ele, a estrutura enunciativa do discurso da mídia se assemelhava aos gritos das torcidas esportivas. Estaria ocorrendo a "espetacularização da política", através de uma metáfora popular, esportiva, que adequava-se ao campo político. Mas, o que isto significa?
 
Ora, quando a mídia diz "ganhamos!", referindo-se à vitória de Mitterand, o acontecimento político se associa ao resultado de um jogo esportivo. Mas, o problema é que, ao final de um jogo, o que se tem, sempre, é um resultado estável, que não se questiona. Perguntas como: "quem ganhou de verdade?", "o que está além das aparências?", não são colocadas, e perde-se qualquer relação entre o "real da língua" e o "real da história". É aí que deve entrar em cena o analista de discurso e sua tarefa de entender a relação entre essas duas ordens para poder falar sobre o "sentido" produzido. Afinal,
Há sempre batalhas discursivas movendo a construção dos sentidos na sociedade. Motivo de disputa, signo de poder, a circulação dos enunciados é controlada de forma a dominar a proliferação dos discursos. Por isso, aquilo que é dito tem de, necessariamente, passar por procedimentos de controle, de interdição, de segregação dos conteúdos (p. 12).
Nesse sentido,
A análise do discurso propõe, portanto, descrever as articulações entre a materialidade dos enunciados, seu agrupamento em discursos, sua inserção em formações discursivas, sua circulação através de práticas, seu controle por princípios relacionados ao poder, sua inserção em um arquivo histórico (p. 12)
Podemos, então, num esforço de síntese, dizer que a grande tarefa do analista de discurso é desvendar os sentidos produzidos pelos enunciados colocados em circulação em determinado contexto sócio histórico. Voltando à autora, o grande operador de todo este processo de espetacularização seria a mídia, com as transformações nas práticas discursivas por três meios:
 
1) A política como espetáculo - Com a forte aproximação entre a mídia e a política, aquela passou a exigir uma nova "fala" pública, cambiável, flúida e imediata. Desse modo, técnicas de comunicação foram aplicadas ao discurso político que ficou cada vez mais homogeneizado, um produto de consumo vendido a partir da "teatralização". Como consequência, os políticos cada vez mais oscilaram entre heróis de novelas e mercadorias a venda, cada vez mais se utilizou jogos de palavras e recursos que evitavam explicações, que afastaram o debate político e o aprofundamento dos temas.
Esse estilo é adequado à mídia hoje dominante - a televisão - que valoriza as performances exuberantes e faz com que a aparição de políticos se transforme em um espetáculo para o grande público (p. 13-4).
O resultado é o que se chama de "midiatização da política". Mas, este processo é mais amplo e implica na transformação da própria mídia que, cada vez mais, se atribui a função de investigação, situando-se como "porta-voz" da coletividade, que vai descobrir os "segredos" dos agentes políticos. Resulta daí, então, a "politização da mídia". Midiatização da política e politização da mídia são, portanto, dois processos correlatos, que se alimentam.
 
2) A língua como espetáculo - A língua portuguesa, na mídia, tem como objetivo não apenas comunicar, mas um efeito simbólico (ordenação, categorização etc.) e político (luta pelo poder).
 
3) A história como espetáculo - A mídia desenvolve estratégias para a construção de uma "história espetacularizada", como se acompanhássemos ao vivo a produção da história, mas dela não participássemos (uma história sem sujeitos, portanto).
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¹ GREGOLIN, Maria do Rosário V. A Mídia e a Espetacularização da Cultura. In: GREGOLIN, M.R.V. (org.). Discurso e Mídia: A Cultura do Espetáculo. - São Carlos: Claraluz, 2003, Apresentação, p. 9-17.

terça-feira, 23 de julho de 2013

Mídia e Poder (Dossiê - Revista Cult)

A edição n. 154, fevereiro 2011, da Revista Cult trouxe um dossiê sobre a relação entre Mídia e Poder e algumas colocações me chamaram bastante a atenção e sobre elas gostaria de fazer alguns comentários.

Olgária Matos (prof. de filosofia da Unifesp), em seu texto “A democracia moderna e a estética da moeda“, destacou o fato da sociedade atual se ver atravessada, numa visibilidade sem paralelos, de figuras da corrupção.

Para exemplificar, a autora nos diz que com a institucionalização da sociedade de consumo aquela busca por símbolos culturais que antes a burguesia fazia para “aristocratizar-se” foi sendo abandonada, fazendo com que, hoje, a ideologia do “novo rico” prescinda de qualquer verniz cultural.

Esta é a ideologia dominante, onde se conhece o preço de tudo mas não o seu “valor”. É uma cultura que atrofia a sensibilidade e o pensamento, o conhecimento e a ética. Estaríamos vivendo em uma sociedade panóptica em que tudo se pauta pela exibição midiática, onde desaparece qualquer pudor e de moral social levando, por conseguinte, a uma flexibilização do sentimento de culpa na consciência moral. Segundo Olgária,
O fim da autoridade paterna e o “pai humilhado” coincidem com a sociedade infantilizada em que não se reconhece mais a diferença entre gerações, entre pais e filhos, masculino e feminino, bom gosto e mau gosto. Em tempos comandados pela ideologia “novo rico”, tudo pode ser dito e mostrado; cada um de nós é chamado a apresentar em público atos e sentimentos como se fossem ideias (p. 57).
É este contexto de ampla visibilização que, segundo Olgária, favorece a desconfiança de todos contra todos, como forma de sociabilidade, e a delação, por exemplo. E isto está se tornando cada vez mais reconhecido como uma espécie de “compensação” pelas impunidade. Num ambiente assim, proliferam a demagogia e a difamação no espaço público. O delator, hoje, surge como uma espécie de “delator público” com a missão de “proteger” o espaço comum (uma figura criada na Grécia antiga).
Resta saber se o recurso à delação voluntária mediante recompensa em dinheiro não induz à corrupção – dadas as oportunidades que se oferecem para quem procura desembaraçar-se de um adversário indesejado ou então para aquele que se deixa comprar por ele – e, ainda mais, quando vai se tornando um meio para o funcionamento da justiça (p. 57).
Assim, a estética da moeda, dando um preço a tudo (e retirando seu valor) vai transformando a esfera pública num ambiente onde a culpa não tem espaço.

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Em ”Mídia e Poder na Sociedade do Espetáculo“, Cláudio Novaes Pinto Coelho, prof. da Faculdade Cásper Líbero, nos diz que um dos equívocos sobre a sociedade contemporânea é o de que os meios de comunicação são uma instituição poderosa. Para ele, Guy Debord definiu o termo “sociedade do espetáculo” como o conjunto de relações sociais mediadas pelas imagens, e ela corresponderia a uma fase específica do capitalismo marcada pela interdependência entre o acúmulo de capital e o acúmulo de imagens, daí a onipresença do marketing.

Todas as relações sociais, nessa fase, estariam mercantilizadas e envolvidas por imagens. Ou seja, predomina o caráter cotidiano da produção de espetáculos e seu vínculo com a produção e consumo de mercadorias em larga escala, fazendo com que as imagens sejam cada vez mais fundamentais para legitimar as mercadorias e seu consumo.

É nesse sentido que a sociedade do espetáculo é um entrave para a emancipação humana (onde o indivíduo perde o controle sobre sua vida) e não simplesmente um conceito acadêmico. Cláudio Novaes nos lembra que, mais tarde, em 1988, Debord diria que a Sociedade do Espétaculo só se intensificou e espalhou por toda a sociedade, tomando conta de toda a vida social, fazendo surgir algo como um “poder espetacular” cada vez mais integrado.

Debord faz ainda uma ligação entre a expansão desse poder e o triunfo do neoliberalismo em escala mundial. É um momento em que se fortalecem os conglomerados comunicacionais e a indústria cultural transforma-se no porta-voz ideológico do capitalismo desqualificando as outras visões como “ultrapassadas” e promovendo o “pensamento único”.

Mas e o contexto brasileiro? Ele nos diz que, em que pese a diminuição das desigualdades sociais o marketing continua em franco crescimento. Mas, tanto a vitória de Lula em 2006, como a de Dilma, em 2010, mostram um eventual declínio da influência dos grandes conglomerados comunicacionais na formação na opinião pública, como foi no caso do alcance limitado das denúncias de corrupção.

O quadro ainda pode se acirrar, segundo o autor, pois pelo passado de Dilma é de se esperar uma postura ainda mais conservadora da mídia, caso ela realmente venha a romper com o neoliberalismo e diminuir o uso do marketing político.

Nesse ponto gostaria de fazer um comentário. É certo que nas duas eleições setores da mídia deram muito espaço a denúncias de corrupção e facilitaram um eventual segundo turno. Mas, o resultado final não seguiu esta linha. Isto, para o autor, mostra a relativização do poder da mídia, o que está correto.

Mas, o que foi que deu a vitória, nos dois casos, ao governo? A simples atitude ativa da opinião pública? Não necessariamente. Aí também entra o uso intenso do marketing político em uma guerra simbólica onde o governo foi muito mais competente que a oposição. Só acredito em um poder de influência forte do meio de comunicação se for sobre um consumidor passivo e em condições de ausência de disputa simbólica. Fora disso, sobra complexidade na formação da opinião pública.

Outro aspecto que gostaria de comentar é que nem Lula e nem, muito menos, Dilma fizeram qualquer sinal no sentido de rompimento com o neoliberalismo. Pelo contrário, o governo Lula marcou-se pela consolidação de políticas econômicas neoliberais e o de Dilma já está sendo marcado pelo melhor “gerenciamento” destas questões.

Por outro lado, que governo foi mais “espetacular” que o de Lula? Ele foi o “espetáculo” em si. E, quais as chances para Dilma assumir a “ideologia” e abandonar o “marketing político”? Nenhuma. É a ideologia perdendo força, a cada dia, diante do espetáculo. Mas quem disse que o espetáculo também não é ideológico? O que não dá pra fazer é criar um confronto entre “ideologia de esquerda” X “espetáculo”, isso seria simplismo e ingenuidade.

Será preciso, cada vez, um esforço gigantesco para escapar a essa ideologização total da sociedade através do espetáculo, e isso não é um privilégio da esquerda e sim daqueles que possuem forte senso crítico, e auto-crítico.

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Bem, em ”Indústria Cultural e Manutenção do Poder“, Rafael Cordeiro Silva, prof. na UFU, relembra que Tocqueville viu na busca pela igualdade uma perigosa tendência para a uniformização das pessoas, uma ameaça à liberdade individual. Liberdade e igualdade não eram vistas como valores complementares por Tocqueville.

Adorno e Horkheimer vão retomar esta questão e falam de uma dominação pela igualação e homogeneização que atua no inconsciente (aquilo que para Tocqueville era a “alma”). Domesticar desejos revelou-se mais eficaz que a sujeição física, e se realiza sob a aparência de total liberdade.

Esta é a indústria cultural. Para eles, isto não é arte. A indústria cultural é mais afeita ao gosto mediano das massas e está fortemente vinculada aos meios técnicos de produção e difusão da cultura padronizada, como o cinema, o rádio e a TV. Ela sacrifica a autonomia, a singularidade, a diferença, a autenticidade, a crítica. Por outro lado, é um fator de coesão social. Ela reforça as relações de poder estabelecidas e a passividade diante da realidade.
Depois de uma jornada dedicada à reprodução do capital nas fábricas e nos escritórios, nada mais salutar do que a necessidade de descanso e relaxamento que a diversão proporciona. O ciclo está completo! (p. 65).
No meio disto tudo, a publicidade tentando estabelecer uma identificação entre produto e consumidor, tentando realizar o indivíduo como tal quando, na realidade, o que ela faz é castrar a individualidade.
Não se define o indivíduo pelo incremento de sua capacidade de consumo; indivíduo e consumidor não são termos sinônimos. Na verdade, a publicidade sacrifica o indivíduo, porque reitera sua dependência em relação ao mundo das mercadorias. Em vez de fomentar as autênticas capacidades e qualidades humanas, a publicidade representa a conquista da alma (p. 65).
Aqui, também, gostaria de fazer um comentário, só para relembrar que é nesse sentido que levando a discussão para o terreno da política enxergo a mesma oposição só que entre “cidadão” e “consumidor” e aí uma boa pergunta seria: O que significa essa apologia do consumo entre as classes populares? Algo que Lula repetiu algumas vezes, e com muito orgulho. Que cidadão está nascendo? um cidadão emancipado? Mas, em que bases? Exclusivamente materiais? É um belo tema para se discutir.

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Em “Da Aldeia Global à Teia Global“, Vinícius Andrade Pereira, prof. de comunicação da UERJ, nos relembra que uma das mais comentadas “previsões” de McLuhan era a de que o mundo se transformaria em uma em uma “aldeia global”. Ele teria dito isso pensando na TV e seus satélites que fortaleceriam a cultura de massa e seus produtos.

É inegável que ele estava preocupado com a identidade canadense, espremida entre o gelo e a força descomunal da cultura norte-americana. Para ele, as novas tecnologias provocariam uma “crise de identidade” nas diversas culturas. Mas, isso se justifica hoje em dia? Para isso, Vinícius sugere explorar melhor sua ideia de “aldeia global”.

À esse termo sugere outro: “teia global”. Assim, em que aspectos a aldeia global ajuda a entender a teia global da atualidade? O termo aldeia global traz um paradoxo, pois ao mesmo tempo que evoca a ideia de uma cidadezinha do interior propõe um sentido global. A ideia expressa o fato de uma notícia de uma pequena cidade alcançar, de imediato, todo o mundo.

É um conceito que fala de um único emissor, de uma comunicação de tipo massiva, de uma pequena quantidade de notícias que ganham o mundo, e de um imenso público consumindo a mesma notícia. McLuhan, portanto, ao falar de aldeia global trabalhava com as categorias da comunicação de massa. Essa é a mesma dinâmica da teia global?

A teia trabalha, entretanto, com o modelo “todos para todos”, no qual a comunicação se dá de forma multidirecional, acentrada e conversacional, já que todos podem estar conectados à rede. O público, então, também é produtor de mensagens e as mensagens, portanto, são as mais variadas.
Isso significa ainda que, quanto mais houver gente se conectando à teia global, mais vozes e mensagens entrarão em cena, tornando progressiva e paulatinamente mais variada e complexa a rede de mensagens circulantes (p. 73).
Isso se manifesta claramente na pulverização das audiências. Mas, isso não significa desqualificar as ideias de McLuhan, pelo contrário, o importante é sair da figura e ir para o fundo da reflexão, ou seja, a velha questão da crise de identidade cultural que se experimenta diante do impacto de novas tecnologias. Nesse sentido, é extremamente atual e pertinente a preocupação de McLuhan,
pois, sua obra nos convida a estarmos atentos para os possíveis efeitos que as tecnologias digitais (meios) podem estimular nos aparatos perceptivos e cognitivos com os quais percebemos o mundo (a mensagem) (p. 73).
Esta, portanto, é a principal mensagem da reflexão de McLuhan, ou seja, não podemos esquecer que os meios, ainda que de forma sutis, continuam sendo as mensagens, seja na aldeia, seja na teia global.

Como se vê, as relações entre mídia e poder são um terreno escorregadio, mas fecundo em possibilidades de análise.

domingo, 16 de junho de 2013

O Estadão e a cobertura da onda de protestos em São Paulo: do "vandalismo" à negociação

Ninguém ficou imune à onda de manifestações nestas últimas duas semanas. Mesmo quem somente observava, lançou um olhar mais atento tentando entender o que estava acontecendo. No meu caso, gostaria de contribuir com o que faço rotineiramente, ou seja, nesse caso específico, verificar as principais "reações" do Estadão às manifestações ocorridas, sem me preocupar, entretanto, com o debate interno entre colunistas e colaboradores. O que ganha importância, aqui, são seus títulos de capa, manchetes internas e editoriais. Como escrevi isto hoje, 16.06, pela manhã, véspera da 5a. manifestação, trata-se de algo escrito em meio a um rio caudaloso que não cessa. Portanto, é importante que, depois, venha a ser revisto, ou completado.

Tivemos até aqui quatro manifestações em São Paulo, nos dias 6, 7, 11 e 13 e o maior interesse é mostrar que, não somente as manifestações "evoluíram" na sua dinâmica interna, como a própria cobertura do Estadão foi assumindo outras conotações ao longo deste período. Claro que, em meio a tudo isto, é visível que a própria opinião pública, que não tem chances de ficar imune à discussão, tenha, também, a sua dinâmica na forma de entender e encarar as manifestações.

Estou falando, portanto, de um espaço público de discussão da política onde os principais atores (políticos, manifestantes, opinião pública e imprensa) mutuamente se influenciam ao longo de todo o processo. Querer, portanto, analisar a situação partindo de estereótipos traçados para cada um destes atores é, como sempre, incorrer em gravíssimo erro metodológico e de análise. Como, por exemplo, partir do suposto que um governo por ser do PSDB está mais propenso a "agredir" os manifestantes. O que aconteceu em Brasília, momentos antes do jogo da seleção brasileira, mostra que esta é uma questão complexa. Este é o "jogo de espelhos" do qual fala P. Charaudeau quando observa a relação entre a mídia e os demais atores da cena política: todos se influenciam mutuamente e criam dinâmicas específicas de discurso e ação.

Assim, todos influenciam-se mutuamente provocando alterações, por vezes substanciais, em sua atuação e seu discurso. O Movimento Passe Livre, por exemplo, passou de uma defesa da redução da passagem para algo mais genérico do tipo "lutamos pela melhoria do transporte", e se depara, também, com a questão da luta contra a corrupção no governo federal. Dado o caráter nacional, e internacional, das manifestações (solidariedades de brasileiros em vários países), o "tema unificador" caminha para ser o da "corrupção" e para ficar mais colado ao "Governo Dilma".

Da parte dos políticos, existe uma luta no sentido de evitar colocar-se como o alvo principal do movimento. E este acontecimento de ontem em Brasília, com ações duras da polícia contra manifestantes e as estonteantes vaias contra a presidente Dilma, só deixaram o quadro ainda mais confuso para todos. Contra quem, ou o que, estas manifestações lutam? Os movimentos do prefeito Haddad são um exemplo: no início mostrou disposição para o diálogo, depois seguiu a linha do governador Alckmin de mostrar-se resistente às manifestações, depois tentou descolar-se do problema e criticar severamente a ação policial. Pelo meio do caminho Haddad recebeu "apoio" do Ministro da Justiça Eduardo Cardozo em sua tentativa de culpabilizar a ação da PM e, por conseguinte, o governador Alckmin. São exemplos de como as posturas de todos os atores são dinâmicas e precisam ser captadas neste dinamismo, para que as análises não se tornem apenas caricaturas do real.

Mas, vou me concentrar na dinâmica específica do Estadão.

Numa tentativa de resumir esta dinâmica em uma frase, diria que a cobertura do Estadão acerca das manifestações passou, até o momento, por três fases distintas, mas relacionadas: a da indignação e raiva; a de maior percepção da realidade e do "outro"; e a da negociação e aceitação do fato como legítimo. Vejamos de forma mais didática.

A 1a. manifestação ocorreu no dia 6. Saindo das proximidades do Anhangabaú, chega a interditar avenidas como a 23 de Maio, 9 de Julho e Paulista, alcança o Shopping Paulista e estações do Metrô (Trianon, Brigadeiro e Vergueiro). A ênfase da cobertura do Estadão, no dia seguinte, dia 7, se dá sobre o "caos". O título de capa foi Protesto contra tarifa acaba em depredação e caos em SP e a principal manchete interna foi Protesto contra tarifa acaba em caos, fogo e depredação no centro, numa reafirmação do título de capa. As ilustrações, tanto de capa, quanto internas foram no sentido de evidenciar a "destruição" (jovens destruindo uma cabine da PM, estação do metrô depredada, barricadas com fogo no meio da rua). Apesar do impacto trazido pelas manchetes e pelas fotografias não houve manifestação do jornal através de editorial.

A 2a. manifestação ocorreu no dia seguinte, dia 7. Dessa vez, foi a Marginal do Pinheiros que foi afetada. Parte da estação Faria Lima do Metrô foi depredada e alguns alcançaram a av. Paulista, mas os confrontos foram mais reduzidos. No dia seguinte, dia 8, Estadão trouxe como título de capa: Protesto fecha a Marginal e lentidão chega a 226 km. Internamente, a principal manchete foi: No 2o. dia de confronto e destruição, protesto fecha Marginal do Pinheiros. A ênfase da cobertura continua sendo a "destruição", mas dessa vez, mais sob a ótica dos "engarrafamentos" causados e da perturbação da ordem dos habitantes da cidade. Uma "lógica" que sempre vem à tona quando o assunto é alguma das Marginais, que escoam grande parte do fluxo de carros na cidade. natural, portanto, que, dessa vez, as cenas de "destruição" dessem maior espaço às ilustrações da própria mobilização das pessoas. Recebe bom destaque, também, a iniciativa de se "cobrar" do Movimento Passe Livre, o prejuízo financeiro, principalmente da av. Paulista, e uma entrevista onde o prefeito Haddad diz que irá recorrer à Presidente Dilma para baixar a passagem. Pela primeira vez, o jornal se posiciona em termos editoriais: Puro vandalismo é o título do editorial. "Festival de vandalismo", "cidade refém", "bandos de irresponsáveis travestidos de manifestantes", "atrevimento dos manifestantes", "aterrorizar os passantes", "PM recebida a pedradas", "seus militantes são radicais". São estes os termos que definem o editorial que finaliza com uma forte crítica ao prefeito Haddad que "em vez de condenar o vandalismo se apressou a informar que está aberto ao diálogo". O apelo do jornal é para que as autoridades políticas tenham "firmeza" na manutenção da ordem.

A 3a. manifestação ocorreu no dia 11. Nos dias 09, 10 e 11 o jornal não trouxe em sua capa nenhum título com referências às manifestações. Apenas no dia 11, dia marcado para a terceira manifestação em SP, o jornal traz uma impactante foto do confronto ocorrido na véspera, no RJ, pelos mesmos motivos. Dessa vez, reunidos na av. Paulista, os manifestantes foram barrados e seguiram para o Parque D. Pedro II onde se deram choques e, ao final, retornaram para a av. Paulista onde os conflitos se intensificaram no final da noite. No dia seguinte, dia 12, o Estadão trouxe como título de capa: Maior protesto contra tarifas tem bombas e depredação. E, internamente, a principal manchete foi: Fogo, bombas e depredação no maior protesto contra as tarifas.

Entretanto, apesar de ainda trazer as ilustrações impactantes de policiais em choque direto com manifestantes, e estes pixando e colocando fogo em um ônibus, a cobertura do jornal começou a "notar" outras coisas além da "destruição" em si. Fala-se muito, por exemplo, do crescimento do movimento e da adesão de outras entidades e grupos sociais. O jornal dá destaque para a "irritação" do prefeito Haddad quando soube das depredações e sua disposição de crítica às manifestações.

Na quinta-feira, dia 13, ocorre a 4a. manifestação. Indiscutivelmente, os acontecimentos ganham ares de "espetacularização". As TVs praticamente transmitem "ao vivo" todo o desenrolar dos fatos. Claro que todo o "caos" e "imprevisibilidade" típicos de movimentos como este são passados para a TV que tenta, sem grande sucesso, acompanhar e dar um "sentido" a toda a cobertura. Vive-se, então, o momento em que o acontecimento se transforma em "espetáculo", o que foi reforçado pelo fato da manifestação em São Paulo ter sido simultânea com a ocorrida no Rio de Janeiro, e de haver uma maior preocupação dos  manifestantes em deixar evidente "situações de paz" retratadas pela mídia através de "gritos contra a violência", "flores dadas aos policiais" e pelas cenas dos próprios repórteres machucados.

O que se percebe, em meio a opinião pública, é que a manifestação vai ganhando ares de "humanidade", ou seja, deixa-se de se observar somente o "caos" e a "destruição" e passa-se a notar o elemento "humano", a pessoa, ou seja, os efeitos diretos sobre o policial, o manifestante, o passante, o repórter. Isto vai ser percebido no título de capa do Estadão no dia seguinte, dia 14: Confronto fere mais de 100; paulistano vive dia de caos. A mudança na cobertura também se nota com as principais manchetes internas: Paulistano fica "refém" de bombas, gás e tiros de borracha em novo confronto; Ação deixa 105 feridos, repórter é atingida no olho; 130 manifestantes são detidos e lotam DP; Haddad critica possível excesso da força policial.

Ou seja, o "caos" continua sendo retratado, mas sob um olhar distinto.  Ele traz prejuízos, mas não só à cidade e seus moradores. Os próprios protagonistas da batalha, policiais, manifestantes e jornalistas (que ficam entre eles) surgem agora como "vítimas" que não podem ser ignoradas. É nesse contexto que o jornal começa a dar mais atenção àquela violência, potencialmente maior, que vem da polícia, com suas bombas, gás e tiros de borracha). Entretanto, nenhum pronunciamento do jornal através de editorial.

No dia seguinte, dia 15, o jornal traz em seu título de capa: Alckmin vê "ação política" e Haddad marca reunião. As principais manchetes internas são: Alckmin diz que a ação foi política e Haddad marca reunião após protesto; Ministros criticam intervenção policial após protesto; Repressão da PM faz apoio crescer. Além disso, o jornal traz um editorial (Entender as Manifestações) que mostra claramente que a cobertura não é estática, prisioneira de uma opinião, e sim dinâmica, acompanhando, forçosamente ou não, a dinâmica dos acontecimentos e sua ressonância na opinião pública.

O editorial aponta para a necessidade de um "esforço de compreensão do que exatamente se passa". A "insistência" das manifestações parece ter causado certa perplexidade na cobertura do jornal e percebeu-se que a forma como a PM se dispôs a manter a ordem acabou por causar maior agitação. Para isso, o jornal usou o número de feridos e de detentos. Nesse sentido o jornal faz um apelo à PM para manter o "sangue frio" e finaliza mostrando o quanto as atitudes do prefeito Haddad não estão sendo "nem um pouco claras", mostrando uma ida e vinda em sua postura, ora contrária, ora aberta ao diálogo, como se não quisesse "pagar o preço de atitudes nítidas". 

Esses exemplos já mostram o dinamismo de uma cobertura jornalística.

Neste domingo, momento de interregno entre as manifestações, o destaque não poderia ser outro, e não somente no Estadão. As 3 ondas de vaias que a Presidente Dilma sofreu na abertura da Copa das Confederações em Brasília tomam conta dos noticiários e das redes sociais, mostrando que, muito além de "polícia fascista do Alckmin" ou "fim do aumento de R$ 0,20", existem outras fortes críticas ocorrendo neste momento. 

Talvez estejamos vivendo um momento especial. Daqueles em que os políticos e a mídia deixam o lugar de protagonistas do espaço público de discussão e abrem espaço para as manifestações e a opinião pública que, mesmo em seu caráter difuso, "faz algo acontecer" e faz com que os discursos de políticos e da mídia tenham que ser mais dinâmicos talvez do que gostariam, de fato.

Bem, mas pelo que parece, só estamos no meio do caminho. Para amanhã está marcada a 5a. manifestação.