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sexta-feira, 11 de abril de 2014

Um desamparo que dilacera ("The Thin Ice", Pink Floyd)


"The Thin Ice" é uma música que compõe o álbum The Wall, do Pink Floyd (1979). Se eu tivesse que dividir o álbum em "atos" como em uma peça teatral (e fiz isso em um artigo há alguns anos atrás) diria que a música integra o Ato 2, nos falando de um desamparo dilacerante do personagem que está presente em todas as músicas do álbum. 

É neste momento inicial do álbum (a música é a faixa número 2) que o personagem, sentindo-se vazio pela perda do pai e pouco afeto da mãe, sente-se sempre sobre uma FINA CAMADA DE GELO, inseguro, incerto, assustado, sozinho, aflito, com medo, frágil, onde a qualquer momento tudo pode ruir e ele mergulhar em direção ao desconhecido. É um momento de angústia muito intensa. Preso à lembranças trágicas e ao vazio da impotência, só consegue ver-se sob aquela fina camada de gelo que, quando romper sob seus pés, lhe sugará, lhe fará perder toda a consciência. Mas nem assim estará livre de seus medos, que o seguirão por toda a profundidade, arrastando consigo suas dores.

A fina "camada de gelo" é daquelas representações a que nosso inconsciente recorre costumeiramente para nos lembrar que corremos o risco de perder a luta para nossos medos. Esta fina camada de gelo (assim como outras representações semelhantes) está em nossos pensamentos e em nossos sonhos, sempre que nos sentimos desamparados. Imaginarmo-nos sendo tragados por essa profundidade gelada, cortante, escura e silenciosa nada mais é que a própria visão que a vida pode assumir se não enfrentarmos este desamparo, que vez por outra, insiste em se manifestar.

Esta é a letra da música:

Momma loves her baby
And Daddy loves he too
And the sea may look warm to you Babe
And the sky may look blue
Ooooh Babe
Ooooh Baby Blue
Ooooh Babe
If you should go skating
On the thin ice of modern life
Dragging behind you the silent reproach
Of a million tear stained eyes
Don't be surprised, when a crack in the ice
Appears under your feet
You slip out of your depth and out of your mind
With your fear flowing out behind you
As you claw the thin ice

Abaixo o vídeo de "The Thin Ice" quando do show Live in Berlin (1990), interpretada por Ute Lamper e Roger Waters. A versão está maravilhosa, mas nada como assistir ao filme The Wall com todas as cenas de guerra e dor como pano de fundo para a angústia presente nesta música.



sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Precisamos de respostas! (a angústia do desconhecido - texto 6)

Gosto de filmes de ficção científica! Mesmo contrariando alguns colegas que torcem o bico, como se eu só devesse gostar de filmes de Bergman, dos iranianos ou franceses. Não é o caso, pois em se tratando de cinema, não tenho preconceitos. Assisto aquilo que geralmente considero que possa ser interessante e não dou bola para nacionalidades, diretores, prêmios, publicidades, críticos, etc. Acho que tenho minha própria forma de avaliar se vale a pena comprar o ingresso. O fato é que adoro sair do cinema com a certeza de que algo ficou e não que fui lá à somente para passar o tempo (embora isto seja absolutamente legítimo, e necessário!). Claro que já entrei algumas vezes, quebrei a cara e saí na metade do filme. É um risco, mas já me surpreendi inúmeras vezes. E essas são as melhores.
Mas, por que mesmo falei tudo isso? Ah, só para dizer que também gosto de filmes de ficção científica. Sim, adoro! 2001, uma Odisséia no espaço foi o primeiro que me deixou marcas. Filme inteligente, em todos os aspectos. E quando Roger Waters compôs a música Perfect Sense achei que o filme tinha recebido uma bela homenagem, destacando que o “salto” que demos do passado para este futuro pode ter sido, tecnologicamente interessante mas, ainda deixa muito a desejar em termos de evolução moral e ética. Mas, onde mesmo quero chegar? A ficção científica, quando não é feita só de bichinhos estranhos e bonitinhos, ou só de batalhas com raio laser, pode revelar algo bem interessante e que diz respeito a algo muito íntimo nosso. Algo que dificilmente expomos para os outros. Pode dizer respeito à nossa necessidade e ânsia por respostas.

Mais uma vez o “sentimento oceânico” que nos inunda e nos faz mergulhar em um desejo de respostas vem à tona. É este sentimento que nos leva, finalmente, a abrir os olhos e perceber nosso real tamanho. Bem diminuto, por sinal. Mas, nem por isso, menos interessante. Mas, diminuto frente às perguntas que fazemos e não conseguimos oferecer respostas. É um sentimento que nos faz desejar respostas para obter segurança, algum conforto, uma espécie de proteção. E a ficção científica tem evoluído bem para essa direção, nos levando a pensar em algumas coisas. Uma direção em que mostra que uma de nossas maiores necessidades é a de “respostas” para aplacar algumas de nossas angústias.
O filme Prometheus (2012), por exemplo, segue esta linha. Aqui um parêntese. Nos anos 80, quando assisti Alien, o oitavo passageiro, o fascínio foi imenso. O filme já se tornou um clássico e, agora, Prometheus veio para oferecer uma espécie de "origem" àquele assustador "Alien". Naquele momento, com "Alien" sabia-se que havia algo "além", pois a criatura que tinha dizimado uma nave, agora atacava outra que viera em socorro na tentativa de encontrar sobreviventes. Mas, uma resposta nunca havia sido dada: de onde vinham tais criaturas?

Somente agora Ridley Scott, o diretor, começou a oferecer alguma explicação. A criatura seria uma criação, por parte de uma espécie (os "engenheiros"). Espécie que teria sido a responsável também, por nossa criação, enquanto humanos. O problema é que as criaturas (aliens) haviam sido criadas com o objetivo de destruição da espécie humana. Algo deu errado, entretanto, e os próprios "engenheiros" foram destruídos, antes, em seu "laboratório". Mas, por quê destruir a nossa espécie? É aí que o filme fica interessante em minha opinião. Inicialmente motivados pela ideia de encontrar nossos "criadores" uma equipe de exploração parte em sua busca tentando responder às eternas questões: de onde viemos? Quem somos? Questões filosóficas e científicas que as religiões tentam também oferecer algum tipo de resposta.

Mas, quando tal equipe se depara com a questão da possível destruição da nossa espécie, outra pergunta se sobrepõe: o que fizemos de errado para ter que encarar nossa extinção? Essa mesma questão já havia sido colocada por outro filme clássico da ficção científica, "O dia em que a terra parou" (que teve uma refilmagem recente). Mas, infelizmente essa polêmica só aparece de forma subjacente ao filme, embora fique bem nítida para mim, e acho que é o grande barato do filme. Desse modo, entendo que as questões filosóficas e científicas que sempre colocamos sobre nossa origem e destino perdem totalmente qualquer relevância diante de outra questão: o que estamos fazendo? O que está dando errado em nossa evolução?

Acredito que buscar explicações para nossa origem e destino pode ser legítimo e a expressão máxima de nossa racionalidade, mas poderão ser sempre questões sem resposta, como que fadadas a manter nossa racionalidade prisioneira de si mesmo. Entretanto, pensar sobre o que estamos fazendo com nossas oportunidades de vida também é legítimo e pode ter resultados concretos. Quantas vezes já não parei e pensei comigo mesmo diante de tantas barbaridades cometidas pelo ser humano: "nós não demos certo", "falimos enquanto espécie". Buscar respostas para nossa origem e destino, de forma racional, pode ser mesmo só um artifício que usamos para escapar à pergunta mais importante e que diz respeito, mais de perto, à nossa existência e nossas responsabilidades: o que estamos fazendo? Saber de onde vim e para onde vou pode me dar alguma ilusão em me acreditar importante, escolhido, mas é quando me deparo com a questão do que faço com minha existência é que sinto o peso da responsabilidade e a angústia cresce.

Talvez por isso eu tenha gostado tanto de Prometheus, pois nos lembra de nosso iminente "fracasso" enquanto espécie. Lembra-nos de nossa maior tragédia enquanto seres humanos: diante da possibilidade de paz, teimamos em fracassar, pois a solução agressiva e violenta sempre nos parece mais fácil e adequada. Não é assim no nosso dia a dia? Não é assim quando nos revelamos absurdamente preconceituosos e intolerantes com quem é diferente de nós mesmos? Não é assim quando acreditamos que somos sempre melhores que os outros e não lhes devemos nenhum tipo de obrigação? A raiva e a agressividade talvez sejam o maior símbolo de nosso fracasso. Arrefecê-las, é o sinônimo de nosso sucesso. Por que não apostar nisso e olhar para o outro como alguém de quem realmente necessitamos, para nossa sobrevivência e felicidade? Talvez seja impossível, mas estamos aqui para tentar provar o contrário! A raiva e a agressividade talvez sejam o maior símbolo de nosso fracasso. Arrefecê-las, é o sinônimo de nosso sucesso. Por que não apostar nisso e olhar para o outro como alguém de quem realmente necessitamos, para nossa sobrevivência e felicidade? Talvez seja impossível, mas estamos aqui para tentar provar o contrário!

Já que falei em "tragédia", numa hora dessas não há como esquecer a mitologia. “Prometeu” foi um titã que tentou dar a inteligência aos homens, e foi punido severamente por isto. Assim, talvez no fundo, ainda estejamos mesmo ainda buscando nossa maior inteligência: Não necessariamente saber de onde viemos ou para onde vamos, mas entender o que estamos fazemos a nós mesmos aqui, nesta vida. A ciência, a filosofia e a religião lutam para nos oferecer respostas e nos acalmar sobre nossa origem e destino, mas ainda suspeito que nossa principal fonte de angústia é nos depararmos com o real significado de nossa existência, no aqui e no agora, e com o que estamos fazendo! Esse talvez seja o maior “desconhecido”, aquele que mais nos assusta!

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

O pecado de falar sobre o desejo!

Tenho um grande débito para com a psicanálise. Depois que a descobri foi como se iniciasse um caminho de retorno a mim mesmo e foi isso que, profissionalmente, me possibilitou ir ao encontro de outras pessoas na tentativa de oferecer algum suporte para esse mesmo encontro. Não desmereço minha história, mas não tenho receio em dizer que devo à clínica psicanalítica o que sou hoje. E quando falo "clínica" falo dos meus atendimentos, de minha análise pessoal, de minha supervisão e de minha formação teórica que é permanente, interminável. Claro que têm dias que saio da clínica mais pensativo do que, de fato, gostaria. Intrigado, as vezes sem encontrar uma ideia que acalme o pensamento, as vezes até um pouco irritado. Sim, é normal, pois se temos que suportar as dores de outros, também precisamos de alguém que suporte as nossas. Ou o psicanalista não tem suas dores? Mas não é esta a questão exatamente. O ponto mesmo é o que por vezes deixa uma intriga.

É muito normal que a intriga fique sempre pairando o atendimento clínico. Lido, ali, com questões psíquicas muito próprias do indivíduo, mas que nunca deixam de refletir o conjunto de vivências e relacionamentos que ele experimentou ao longo de sua vida. Nunca acreditei estar ali acompanhando e analisando um indivíduo isolado, mas um indivíduo que se situa em uma densa e complexa teia de vivências sociais de toda ordem. E tudo isto se manifesta em suas angústias. Vou já oferecer um exemplo desta complexa e densa teia social.

Na clínica, portanto, a condição humana se revela em sua face, não diria nua, mas mais enigmática. Sim, porque mesmo nus não deixamos de ser enigmas. E é sobre um desses enigmas que quero comentar um pouco mais. Há alguns dias, numa quinta-feira a noite, me surpreendi, intrigado, com o quanto se andava falando, na clínica, sobre a questão do casamento, de modo mais específico, e do relacionamento, de forma mais geral. Não tenho estatísticas que comprovem esse aumento de preocupação com esta questão mas, de fato, me parece estar ocupando um espaço crescente.

Casamento, relacionamento, no fundo estamos falando do "amor", seus dramas e angústias. Ora, vamos acertar logo algo aqui desde o início. Falar de amor é falar sim de sofrimento. É falar de algo que fantasiamos como solução definitiva mas que sabemos correr o risco permanente de perder. E isto se revela como fonte de uma angústia inesgotável. Pode até não atrapalhar tanto a felicidade, mas fica ali como algo ameaçador. Podemos perder um amor sim. Podemos perder a pessoa para a morte, ou para a vida. Há, portanto, sempre algo que nos fala de uma severa necessidade em lidar com o luto de uma separação. Mas tudo isto é muito amplo e geral, e queria mesmo pensar sobre algo mais específico.

Ou seja, e quando uma pessoa não revela seu desejo de separação com medo de magoar à outra? O que existe aqui? De que estamos falando? Logo o que me vem à cabeça é uma pergunta: o amor encontra seu mais perfeito contorno em um casamento? Ora, pode ser que sim! Existem casamentos, e relacionamentos, que são a mais "perfeita" materialização do amor. Mas, e quando o amor parece não mais caber em um casamento? O que se faz? É essa dúvida que leva muitas pessoas à clínica.

Alguns poderiam dizer apressadamente: "separem-se oras!". É, pode ser assim mesmo. Mas, em que pese acreditarmos em nossa capacidade de agir e tomar decisões conscientes e racionais, não é assim que agimos na maioria das vezes. Aliás, na grande maioria das vezes. Lógico que isso pode parecer frustrante para alguns, mas há como negar? Nem tentem me convencer que somos seres "racionais" 24 horas por dia! Já desisti desta crença há algum tempo.

E isto fica muito claro nas queixas dos pacientes justamente no momento que se descobrem ainda possuidores de uma enorme capacidade de amar, mas dramaticamente este amor não mais cabendo no seu casamento ou relacionamento. Ou seja, continuo podendo amar, mas amo outra pessoa agora! E aí? O que fazer? Os dramas são os mais diversos. Mas, existe um ponto bastante comum entre inúmeros casos. Uma espécie de fio condutor que ajudar a explicar várias situações que chegam à clínica. Não todas evidentemente.

Vou tentar, forçosamente, resumir a queixa na seguinte frase: "Como posso deixa-lo(a) se havia a promessa de um amor eterno?". Ufa! No dia a dia esta frase pode soar trivial, mas na clínica, diante da evidente angustia de um indivíduo, soa como um grito de desespero. Um beco sem saída. Uma caminho que só leva a um abismo.

Quando falei acima sobre um "fio condutor", um "ponto em comum" que ajuda a explicar esta queixa, estou falando da severa dificuldade, num primeiro momento, de reconhecimento do próprio desejo e, num segundo momento, de se trabalhar mais com "fantasias" que com a própria realidade. Mas, onde entra o peso do "social" nisto tudo? Vou por partes.

Entrar em contato, e reconhecer como legítimos nossos desejos não é mesmo uma tarefa fácil. Me arriscaria a dizer que talvez seja uma das principais tarefas da psicanálise, pois exemplifica bem o que seria esse "encontro consigo mesmo". Ora, quem é esse "outro" dentro de mim mesmo, que quero encontrar, senão meus desejos? É a busca por ele que pode significar uma atenuação das minhas dores e sofrimentos.

Mas, não se trata de um processo simples mesmo. Há momentos, por exemplo em que fantasias tomam conta, como uma sombra, e afastam qualquer possibilidade de enxergar a coisa com clareza e aí as decisões se tornam impossíveis. Por exemplo, se o indivíduo descobre que, de fato, quer continuar amando, mas amando outra pessoa, e tem um compromisso de relacionamento (casamento), começam a pesar sobre ele (a) severas questões.

Ele(a) pode acreditar, por exemplo, que não haverá qualquer possibilidade de diálogo com a pessoa com quem mantém o compromisso (fantasia), pode estar acreditando que ela(a) dirá algo que o coloque "contra a parede" e o(a) faça desistir da ideia de uma separação. Que fantasias são essas? Podem ser do tipo: "depois de tanto tempo, agora você quer me deixar?", "você jurou que nosso casamento seria eterno!", "minha família não vai aceitar!", "isso é pecado!", "o que as pessoas vão dizer de mim?", "eu não vou sobreviver sem você", "eu me anulei e me dediquei somente a você" etc.

Veja, tudo isto pode estar somente no nível de uma fantasia imaginada por quem quer se separar e não tem a coragem de iniciar um diálogo, ou pode se transformar em acusações bem reais quando do início de um diálogo. É justamente aqui que vemos o quanto um relacionamento pode ser invadido por questões egóicas (egoístas) e por pressões do social e até da religião, impedindo ou dificultando que as pessoas possam reformular suas vidas em busca de uma felicidade que imaginam poder conquistar.

Claro que estou tocando em questões socialmente sensíveis a muitas pessoas. Mas, quem disse que temos que ter esta preocupação como central na clínica. O que precisamos é escutar bem, ajudar a reconhecer o desejo e trabalhar no sentido de que o indivíduo seja competente e responsável o suficiente por suas escolhas. Mas, vamos voltar ao assunto.

Promessa, pecado, aceitação familiar, aceitação social, necessidades. O "social", o "egóico" e o "religioso", neste momento, surgem com toda força sobre aquele que está saindo de um casamento. Na voz daqueles que estão sendo "deixados" soa o grito de "traição", "abandono", "ingratidão", e na voz daqueles que estão "deixando" soa o peso de uma promessa não cumprida, o peso de estar se cometendo um "pecado".

Não é uma transição fácil, mas é bom que se lembre que a dor de uma separação, então, não está somente em quem "fica", mas também em quem "sai" de um relacionamento. Ambos têm que lidar com uma perda, um reencontro com seus desejos, com uma reestruturação. Isso não explica tudo, mas explica alguns dramas vividos em certos relacionamentos, honestos, mas que se perderam em algum momento.

Melhor seria se fizessem essa transição juntos, se escutando, se respeitando, buscando recuperar uma identidade que tem que sobreviver ao relacionamento que agora começa a se desfazer. É por uma recusa em buscar essa identidade, que é anterior e deve sobreviver mesmo durante o casamento, que muito casais acabam optando pelo comodismo, pelo abandono de seus desejos, pela infelicidade mútua, ao invés de se darem uma chance de liberdade e apostarem mais uma vez. É lamentável, mas é o que ocorre na grande maioria dos casos. O laço, que é frouxo e comporta sempre um risco, se transforma em uma corrente, dura e resistente, que aprisiona. estão como que "fadados a serem felizes", custe o que custar, inclusive a felicidade de ambos.

Só uma observação. Não vejo o casamento como uma instituição "falida", o que está falido mesmo é esse relacionamento egóico, que se utiliza de chantagens pessoais e pressões sociais e religiosas para sustentar um relacionamento quando ele, de fato, já se transformou. É por isso que, para muitos que chegam à clínica é sempre um "pecado" falar de seus próprios desejos, sentem-se "traidores" ou "traídos". Para não "magoar" o outro preferem calar a si mesmos e abandonar sua vontade de ser feliz. E aí só lhes restará, no lugar da busca pela felicidade, ou de mais uma chance, o contentamento com a paralisia e a acomodação. Terrível, quando se pensa que não teremos outra vida para colocar as coisas em ordem.

Porque não apostar em uma amizade eterna, em um carinho eterno, ao invés de um forçoso "casamento eterno"? Por que preferir a infelicidade do(a) outro(a), e a de si mesmo(a), que a possibilidade de novamente tentarem ser felizes, de outra forma? No fundo, ainda entendemos muito pouco de relacionamentos. No fundo temos medo de começar de novo. Mas, isso é da condição humana. Duvido que melhore muito no futuro, pois estaremos sempre trabalho com a fantasia do "eterno", com a vontade de "posse" e com a ideia de "pecado". Isso intriga, e muito!

Espero não ter deixado ninguém chateado, mas o tema está aí, no nosso dia a dia!

domingo, 18 de agosto de 2013

Contrapartida (James Joyce, "Dublinenses")

A campainha soou furiosamente e quando a senhorita Parker chegou ao receptor, uma voz irada, com estridente sotaque do norte da Irlanda, gritou:

- Mande Farrington aqui!
A senhorita Parker retornou à sua máquina e, de passagem, disse para o homem que trabalhava numa escrivaninha:
- O senhor Alleyne quer você lá em cima.
"Que vá para o diabo", resmungou o homem, afastando a cadeira para levantar-se...
É desta forma intensa que se inicia este conto de James Joyce ("Contrapartida", publicado em Dublinenses). Farrington, em seu trabalho, e naquele momento em especial, tinha a missão de fazer cópias de um contrato. Cópias à mão é claro. Estava permanentemente sendo cobrado e a lembrança do tempo se esgotando o perturbava imensamente e acabava impedindo-o de melhor se concentrar.

Sua relação com o chefe era a de um ódio contido, mas a ponto de explodir. Sentia-se permanentemente humilhado e não reconhecido. Em certo momento, quando tentou pegar a caneta novamente, sentiu que precisava molhar a garganta. Levantou-se, foi ao restaurante O'Neill e pediu uma cerveja. Logo voltou ao escritório, mas o tempo parecia esgotar-se rapidamente. Não iria conseguir.

A noite escura e nevoenta aproximava-se, aumentando seu desejo de passá-la bebendo com os amigos, em meio ao tilintar de copos nos salões bem iluminados.

Mas, faltavam 14 páginas.

"Maldição". Não iria conseguir. Tinha vontade de blasfemar, de socar alguém... Sentia-se capaz de arrasar o escritório num só golpe. Seu corpo ansiava por fazer alguma coisa: precipitar-se para a rua e desabafar na violência. Todas as afrontas que sofrera na vida vinham-lhe à memória e o encolerizavam...

Apesar do seu mergulho em devaneios, logo a cobrança chegou. Ele não conseguira cumprir a tarefa. As ofensas logo começaram. E, mais uma vez fora obrigado a desculpar-se vergonhosamente. Ansiava cada vez mais pelo bar, mas precisava de dinheiro. Estava muito irritado, mas logo descobriu que, como saída, seu relógio podia ir parar numa casa de penhores.

Atravessou rapidamente a estreita passagem do Temple Bar, murmurando consigo que todos podiam ir para o diabo, pois ele teria uma boa noitada.

Junto aos amigos começou a relatar os incidentes do dia e suas respostas malcriadas. Todos riam e ele sentia-se melhor, mas, com o passar da noite a cólera e o desejo de vingança voltavam a dominá-lo. Além de tudo isto, ainda detestava voltar para casa, pois a mulher o repreendia por andar bebendo.

Ao chegar em casa, sabe pelo filho que a mulher foi à igreja. A criança está com medo, se oferece para preparar a comida do pai, mas deixa o fogo apagar-se no fogão. Neste momento, o pai persegue-o e o agarra pelo casaco golpeando-o vigorosamente com a bengala.

O garoto soltou um gemido de dor quando a bengala atingiu-o na coxa. Ergueu as mãos entrelaçadas e sua voz tremia de pavor:

- Oh, papai! Não me bata, papai. Eu... eu rezarei uma ave-maria pelo senhor... Eu rezarei uma ave-maria pelo senhor, papai, se não me bater... Rezarei uma ave-maria...

Este conto de Joyce é duro, mas nem de longe é uma ficção. É o cotidiano de um homem insatisfeito, humilhado e que, como que numa previsibilidade terrível, alimenta-se de rancor e desejo de vingança. A tragédia faz parte de seu cotidiano, a vida lhe parece um horror, nada o satisfaz e, infelizmente, o desejo de explodir em violência, acaba encontrando no lar, e nas inocentes crianças, o ambiente perfeito para acontecer.

Vale a pena ler... e reler este conto. Podemos, enquanto adultos, nos vermos, ainda que em lampejos, neste homem. Mas, se fizermos um esforço maior, podemos, enquanto crianças, também nos vermos na aflição e no terror daquela criança.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Temos medo de que? (Angústia - Alain Vanier)

O ponto central desta conferência de Alain Vanier (1) é a tentativa de melhor entender o "medo" na contemporaneidade, e sua relação com o enfraquecimento das "figuras tutelares". De imediato, destaca o quanto é rico o campo semântico que constitui o vocabulário do "medo", mas quase nunca especifica bem. Que singularidades este, tão universal, "medo" tem assumido na história? Trata-se de uma questão muito interessante, mas o que o autor faz é partir do entendimento da psicanálise, e a partir daí chegar a uma compreensão atual. 

Freud associou o medo à angústia (angst) e esta entrou para o vocabulário da psicopatologia, dando à ela um estatuto mais importante, com a "neurose de angústia" (em 1895, ao distinguí-la das neurastenias). Para a psicanálise, a angústia seria vista como o "afeto principal", "fundamental", tendo uma estreita vinculação com nosso corpo. Mas, não significa um "ressurgimento de nossa animalidade", uma espécie de "reação". De fato, então, a palavra "angústia" é a que melhor fala do "medo", no sentido psicanalítico.
 
Vanier nos lembra que, para Freud, a angústia corresponde a uma tensão física que não pode ser elaborada psiquicamente, e essa tensão é sexual, sendo, em seguida, articulada à teoria do recalcamento. Ou seja, tendo a "representação" recalcada no inconsciente, o "afeto" é deslocado, não mais se reconhece, e se transforma em uma angústia que parece não ter objeto.
 
Estimulado pelos efeitos clínicos da I Guerra, Freud propõe uma divisão de medos e angústias em três categorias, em função de sua "relação com o perigo": 
  • a angústia — Angst — que se refere a um estado e "abstrai do objeto". O perigo pode ser desconhecido e provoca um estado de espera e de preparação;
  • o medo (Furcht), que exige um objeto determinado e dirige sua atenção para este;
  • o pavor, (Schreck) que é efeito de um perigo que não é preparado por alguma forma de alerta, não é preparado pela angústia, é marcado pela surpresa;
É isso que leva Freud a dizer que nos protegemos daquilo que nos apavora por meio da angústia. Inúmeras neuroses seriam o modo explícito de uma manifestação de pavor. Essa articulação entre medo e angústia seria mais nítida na fobia.
 
Ao longo dos anos 1920, porém, Freud vai propor uma segunda teoria da angústia ("Inibição, Sintoma e Angústia") onde não é mais o recalcamento que cria a angústia, mas sim "a angústia é que faz o recalcamento". Nesse caso, a angústia sobrevém de um perigo extremo, real. É aquela angústia, por exemplo, da criança diante da possível perda do amor da mãe. É vista como uma "angústia originária". Dessa forma, como nos diz Vanier,
A angústia é um sinal no eu, ela adverte o sujeito de um perigo que é o de um desejo enigmático que envolve seu ser como perdido e passível de anulação, seu ser como objeto que pode ser, sem saber qual, para o desejo do Outro. Só então o recalcamento intervém.
Um exemplo, estudado por Freud, está no artigo sobre o "pequeno Hans" (1909), com 4 anos e acometido por uma fobia. É um momento em que a descoberta do órgão sexual está se dando e as ereções já não acontecem simplesmente vinculadas à micção, e geram sensações desconhecidas e incontroláveis. É dessa forma que a "descoberta" da sexualidade aparece como o lugar por excelência do fracasso do domínio de si mesmo
 
No caso de Hans, o nascimento de uma irmãzinha só alimenta seus questionamentos, e logo sua fobia vai se desenvolver, principalmente quando sonha com sua mãe abandonando-o. Mais tarde, a fobia a cavalos seria o lugar da transposição da angústia, ou seja, o medo de ser devorado (abandonado) pela mãe gera o sintoma (medo do cavalo devorá-lo). Ele não sabe mais acerca do amor de sua mãe.
 
Imaginando-se não desejado pela mãe, ele sai do campo do imaginário desta e cai no campo da "angústia", substituindo o medo pela fobia
Esse medo, diferentemente da angústia, tem a vantagem de estar focalizado num objeto; de algum modo é um posto avançado da angústia. Paradoxalmente, esse medo tem uma função estruturante. Introduz uma ordem — exorbitante, é bem verdade — no mundo dessa criança: há, assim, lugares onde pode ir, onde ela não tem medo, e outros onde ela não pode ir. 
É assim que a fobia acaba por ajudar a criar um "exterior" e um "interior", pois, até então, a criança estava no "interior" da mãe. Por isso é estruturante para a criança. Quando ela se confronta com o medo do abandono ela se depara com seu próprio "desejo" pela mãe. É a falta do outro que gera o desejo. E, quando não sabe que objeto ele é para esse outro, e seu desejo não é atendido, surge a angústia, por vezes substituída pelo medo do "objeto fóbico", que é, em última instância, uma proteção contra seu próprio desejo. Surge aí, portanto, toda a problemática do relacionamento com o outro. Assim, 
O objeto fóbico é um significante, um significante que serve para tudo, trata-se igualmente do pai que pune e da mãe que devora. 
É claro que estes significantes têm um valor para além de toda realidade presente, mas está, porém, depositado na cultura, nos nossos mitos. Não à toa, perguntas como "O que ele quer? O que ele quer de mim?" "O que é que eu sou para o Outro?" "O que ele ama em mim?" "Ele me ama?" não param de surgir ao longo da vida inteira. 
 
As fobias, que manifestam isso, aparecem por volta de 3 a 5 anos (separação) e depois, por volta de 8-9 anos, quando a criança apreende que pode perder ou ser perdida por seus pais, que são mortais. É, portanto, a incompletude e a não compreensão que nos levam a temer e procurar a psicanálise. Sofremos por não compreender.
 
Desse modo, como Freud dizia, toda angústia é, fundamentalmente, angústia de separação. E daí a importância que Winnicott atribuía aos "objetos transicionais" (seja um bichinho de pelúcia, um paninho macio) que mostram que há um "resto" da separação e que ela não foi totalmente simbolizável.
 
O objeto da angústia, então, é um "objeto perdido", que "falta", que se "perdeu" na separação. Justamente por isso os pacientes fóbicos apresentam novos surtos de angústia quando a fobia desaparece, assim como reaparece na neurose obsessiva quando o sujeito é impedido de entregar-se aos seus rituais. A solução só se dá mesmo na resolução do complexo de Édipo, isto é, no lugar que o pai pode tomar como sendo aquele que se ocupa do desejo da mãe.
 
Isso nos chama a atenção para o lugar do "pai" e seu declínio, enfraquecimento de sua função, de forma estruturante, na atualidade, como se nenhum pai estivesse à altura de substituir por completo a dimensão simbólica de sua função. 
Essa dimensão ideal de uma figura paterna é particularmente evidente na constituição dos grupos. Quem tenha assistido a um dia de aula numa seção de crianças pequenas de um maternal — crianças de mais ou menos 3 anos — terá guardado na lembrança a dificuldade que a professora pode ter para simplesmente arrumá-las em grupo. Alguns anos mais tarde, as crianças formam uma fila sem maiores dificuldades, elas se organizam sob a tutela da professora, ou do líder que tenha surgido de dentro de suas próprias fileiras. O reagrupamento sob uma figura tutelar sempre constituiu uma das maneiras mais comuns de tratar o medo. O pai, ou sua figura, protege do medo
E esse reagrupamento se faz à custa de uma regressão que mantém o sujeito em uma posição infantil, mas que o protege contra a neurose. É o que a religião realizava com o "não tenhais medo!". Mas, com o relativo declínio do discurso religioso, a psicanálise emerge como sintoma revelador do mal-estar em nossa civilização.

Então, temos medo de que? Para Lacan, de nosso "corpo", esse haver, essa posse que nos possui e de que gozamos. Um corpo sempre mediado simbolicamente pelo Outro, que é constituidor; um corpo que a linguagem atravessa-o recortando e produzindo perdas. Um corpo "furado" pelas nossas faltas.

E sentimos o medo, a angústia de não mais gozar com este corpo. Não à toa estamos tentando preenchê-lo, sempre, com novos objetos que, por sua vez, logo nos deixam insatisfeitos novamente. 
Cada uma dessas felizes redescobertas é marcada de uma impossibilidade — "não é isso!" — e o sujeito é lançado novamente nessa busca sem fim (...) A ciência nos dá numerosas bugigangas próprias como engodo para o nosso desejo. Elas vêm no lugar daquilo que nos falta (...) Esse gozo, outrora remetido ao além como recompensa de uma vida de merecimentos, hoje em dia nos é prometido, mostrado como possível (...) Se essa organização é a mola propulsora do consumo moderno, é também provedora de angústia ante esse real que a ciência produz.
A ciência cresceu ante a religião e, como Benjamin dizia, o capitalismo é uma religião não expiatória mas "culpabilizante" nos oferecendo o que está "vivo" e, permanentemente, nos deixando na angústia, na falta de um sentido que sustente sua vida, em busca permanente de um balizamento que regule o nosso gozo. 
 
Dessa forma, vivemos o desmoronamento das figuras tutelares que tem como correlato o aumento do medo. Vivíamos num mundo em que nosso gozo se situava, se regulava a partir do Outro. Hoje em dia, somente nos situamos a partir do objeto.

E a psicanálise? Ela, como a ciência, é filha da modernidade. mas não é uma ciência, mesmo que tenha sido influenciada pelo discurso da ciência, pois ela a rejeita. Há, aqui, uma "jogada ética": 
O tratamento analítico permite que o sujeito saiba alguma coisa de seu gozo, permite apreender esse Real — e se contrapor a ele e suportar essa parte que incessantemente escapa ao sujeito, parte que, no entanto, é estrutural, embora retorne ao sujeito como aquilo que lhe é o mais estrangeiro. 

Sabemos que a psicanálise não promete o fim da angústia, apenas o "um por um", mas, como Kierkegaard dizia: "a todo instante o indivíduo é ele próprio e o gênero humano". A psicanálise nos permite viver com a angústia, que é a marca da nossa condição, da nossa finitude e da nossa paradoxal liberdade.
 
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(1) VANIER, Alain. Temos medo de quê? Ágora (Rio J.) [online]. 2006, vol.9, n.2 [cited  2013-07-12], pp. 285-298 . Available from: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-14982006000200009&lng=en&nrm=iso>. ISSN 1516-1498.  http://dx.doi.org/10.1590/S1516-14982006000200009.

terça-feira, 9 de julho de 2013

Time (Pink Floyd - "The Dark Side of the Moon", 1973)

Time é um clássico do rock. Dispensa apresentações. Integra o álbum The Dark Side of the Moon (1973), do Pink Floyd. Trata-se de um álbum conceitual e que, em minha opinião, é um dos dois melhores álbuns de toda a história do rock. Possui um solo de guitarra de arrepiar e, se ouvida na versão onde está toda a banda, transformasse numa experiência única.

Mas, como toda música do Pink Floyd, não é uma simples melodia. É muito mais. Há sempre muito mais nas músicas do Pink Floyd. No caso de Time há um forte apelo a dar-se algum significado à vida. Um apelo em não deixá-la passar, simplesmente. O "tempo", ou seja, a vida, deve ser preenchido, com marcas, com algo a dizer. Do contrário, quando percebermos, poderá ser muito tarde, só nos restando a angústia, aquele silencioso desespero.

Nos tempos atuais, da liquidez moderna, o tempo voa, acelerado pela descartabilidade, acelerado pela nossa incapacidade de buscar aconchego. Estamos correndo demais. Mas não é isso a que Time apela. A música nos fala de um tempo que deve ser, por nós, marcado. Só assim, teremos do que nos lembrar e aconchegar, quando chegar nossa hora.

Abaixo, deixo um link para quem quiser ouvir um pouco, e, mais abaixo, a letra e uma tradução. É um clássico. Mas, nunca ouça Pink Floyd só pela melodia. Procure investigar as mensagens. Há uma riqueza nas letras. É isso que transforma o Pink Floyd no que ele é: uma lenda. Foi com ele que descobri aquilo que Nietzsche quis dizer quando, ao ouvir a música de Wagner exclamou: The life without music would be a mistake (a vida, sem a música, seria um engano). Era o que lhe causava a sensação de "alheamento". É o que sinto com o Pink Floyd.


TIME

Ticking away the moments that make up a dull day
You fritter and waste the hours in an off hand way
Kicking around on a piece of ground in your home town
Waiting for someone or something to show you the way
Tired of lying in the sunshine staying home to watch the rain
You are young and life is long and there is time to kill today
And then one day you find ten years have got behind you
No one told you when to run, you missed the starting gun
And you run and you run to catch up with the sun, but its sinking
And racing around to come up behind you again
The sun is the same in the relative way, but youre older
Shorter of breath and one day closer to death
Every year is getting shorter, never seem to find the time
Plans that either come to naught or half a page of scribbled lines
Hanging on in quiet desperation is the english way
The time is gone, the song is over, thought Id something more to say
Home, home again
I like to be here when I can
And when I come home cold and tired
Its good to warm my bones beside the fire
Far away across the field
The tolling of the iron bell
Calls the faithful to their knees
To hear the softly spoken magic spells

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Passam os "tic-tacs" marcando os momentos de um dia monótono
E você descontroladamente desperdiça e gasta as horas
Perambulando pelos cantos de sua cidade natal
Esperando por alguém ou algo que indique um caminho
Cansado de se deitar ao sol, de ficar em casa vendo a chuva
Você é jovem e a vida é longa, e tem tempo pra gastar hoje
Mas então um dia você percebe que 10 anos se passaram
E ninguém te disse quando iniciar a corrida, e você perdeu a largada
Você corre pra alcançar o sol mas ele já está se pondo
Mas ele nasce de novo atrás de voce
De certa forma o sol é o mesmo, mas você está mais velho
Sem fôlego e mais próximo da morte
Cada ano está ficando curto e voce parece nunca encontrar tempo
Planos que fracassam e páginas rabiscadas pela metade
Aguardando no silencioso desespero do jeito inglês
O tempo se foi, a canção acabou, e pensei que tinha algo mais a dizer
Em casa, de volta ao lar
Eu gosto de estar aqui quando posso
Quando em chego em casa, com frio e cansado
É bom aquecer os ossos junto à lareira
À distância, longe nos campos
O badalar do sino
Chama os fiéis a ajoelharem-se
Pra ouvir suavemente as mágicas palavras.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Primeira Dor ("Um Artista da Fome", Kafka)

A Primeira Dor é o primeiro de quatro pequenos contos de "Um Artista da Fome", de F. Kafka. Junto com A Construção, a coletânea foi escrita nos momentos finais da vida de Kafka, entre 1922-24, funcionando, na opinião de Modesto Carone (tradutor desta versão¹), como o testamento literário do autor, e de sua geração. 

Não há como negar que a infelicidade, a incerteza, a impossibilidade física, o ódio e a dor presentes neste conjunto de textos certamente espelham as angústias do escritor nos tempos sombrios da ascensão do nazismo (M. Carone)². A seguir faço algumas considerações.

O artista do trapézio tinha organizado sua vida pelo esforço da perfeição. Um hábito tirânico, já que passava dia e noite no trapézio. Seu convívio humano reduzia-se e o silêncio o cercava. Ninguém o incomodava, justamente por ser considerado extraordinário e insubstituível. Quando tinha que descer, por qualquer motivo, isso lhe significava enorme sofrimento, que só cessava quando retornava ao trapézio. Sua arte era o que lhe permitia viver e, ao mesmo tempo, era a expressão máxima de sua dor: um apego obsessivo a manter-se equilibrado na vida, embora não lhe sobrasse mais nada além disso. 

Quanta infelicidade revelada neste pequeno conto. O que o levou a manter-se em permanente equilíbrio? O que a explica esta infelicidade? Quem sabe um profundo sentimento de “insegurança”, um “medo de cair”, de “desmoronar”, de se "desequilibrar", que levam a esse pensamento obsessivo pela perfeição e que cria hábitos que se revelam tirânicos e, não podemos esquecer, ao mesmo tempo, "confortáveis", funcionando como almofadas para nosso sofrimento.

O que lhe resta senão buscar ainda mais a perfeição? Afinal, só buscando-a é que poderá minimamente afastar de si o risco de “cair”. Seu lamento por um novo trapézio é comovente, como comovente é a expressão de um rosto que se obriga à perfeição, revelando uma força e uma determinação que só o levam ao cansaço e, enfim... a um triste envelhecimento.

Vez por outra vejo alguns desses rostos. São a expressão de uma época que exige a todos a perfeição, que sejam felizes a todo custo, que sejam os melhores, que sejam mais vistos. Como lidar com a "queda" em uma época assim? Não dá! Então, só resta o caminho tirânico das obsessões do perfeccionismo e de seu principal fruto... uma profunda infelicidade, escondida em meio à busca da perfeição.

Algo o levou lá para cima, lá para o trapézio. Algo o fez ficar por lá. E, uma vez lá, não havia saída senão manter-se equilibrado. Mas, até quando iria conseguir? Isto lhe custou viver! Mas, havia vida lá embaixo? Será que ele já não estava ali porque a vida embaixo era insuportável? Só lhe restaria manter-se num equilíbrio permanente, obsessivo, perfeccionista... mas que não escondia sua infelicidade.

Hoje, nos ensinam que a "queda" é sinônimo de "fracasso". Trata-se de uma ideologia muito perigosa, competitiva, egoísta, individualista. A "queda", porém,  é o que também nos torna humanos. Quem disse que precisamos ser os "melhores", quem disse que precisamos só pensar no que é "novo" e esquecer o passado? Por que ser esse escravo pós-moderno?

Sei que existem outras formas de "ler" e "interpretar" este pequeno conto, mas esta foi a forma que me sobressaiu. Impossível também deixar de registrar que, à época em que foi escrito Kafka enfrentava duríssimos problemas com a tuberculose. Estava às vésperas da morte. O conto, não deixa de ser, portanto, como afirma M. Carone, um testamento do autor.

Parece não haver dúvida que Kafka, quando escrevia, tinha a morte como sua companheira permanente. Mas, justamente por isso, por ter tido a capacidade de "anunciá-la" neste conto, nos deixou um imenso legado: a possibilidade de nos enxergarmos em nossos próprios trapézios, lutando para nos mantermos por lá, livres, talvez, dos riscos da vida, ou mesmo, quem sabe, buscando alguma vida.

(José Henrique P. e Silva)

A seguir, a íntegra de A Primeira Dor. 
Um artista do trapézio - como se sabe, esta arte que se pratica no alto da cúpula dos grandes teatros de variedades é uma das mais difíceis entre todas as acessíveis aos homens - tinha organizado sua vida de tal maneira, primeiro pelo esforço de perfeição, mais tarde pelo hábito que se tornou tirânico, que enquanto trabalhava na mesma empresa permanecia dia e noite no trapézio. Todas as suas necessidades eram atendidas por criados que se revezavam, vigiavam embaixo e faziam subir e descer, em recipientes construídos especificamente para esses fins, tudo o que era preciso lá em cima. Esse modo de viver não causava aos outros dificuldades especiais; era apenas um pouco incômodo que durante os demais números do programa ele ficasse lá no alto, o que não se podia ocultar: apesar de, messes momentos, na maioria das vezes se conservar quieto, de quando em quando um olhar do público se desviava para ele. Mas os diretores o perdoavam por isso porque era um artista extraordinário e insubstituível. Além do que admitia-se com naturalidade que ele não vivia assim por capricho e que só podia preservar a perfeição de sua arte mantendo-se em exercício constante. 
De mais a mais, lá no alto também era saudável, e quando nas épocas mais quentes do ano eram abertas as janelas laterais em toda a extensão da cúpula e junto com o ar fresco o sol entrava poderoso no espaço crepuscular, então era até bonito lá em cima. Sem dúvida, seu convívio humano estava reduzido; só uma vez ou outra um colega de acrobacia subia até ele pela escada de corda; então os dois se sentavam no trapézio, inclinavam-se à esquerda e à direita sobre as cordas de sustentação e proseavam. Ou então os operários que consertavam o teto trocavam algumas palavras com ele através de uma janela aberta; ou o bombeiro examinava a iluminação de emergência na galeria superior e lhe gritava algo respeitoso mas pouco inteligível. De resto, o silêncio o cercava; algumas vezes um funcionário qualquer, que porventura errava à tarde pelo teatro vazio, erguia o olhar para a altura - que quase fugia à vista - onde o artista do trapézio, sem poder adivinhar que alguém o observava, exercia sua arte ou descansava.
O trapezista teria assim podido viver tranquilamente, não fossem as inevitáveis viagens de lugar em lugar que lhe eram extremamente molestas. É verdade que o empresário providenciava para que ele ficasse a salvo de qualquer prolongamento desnecessário desses sofrimentos: para as viagens nas cidades usavam-se automóveis de corrida com os quais se disparava, se possível à noite ou de madrugada, pelas ruas desertas na mais alta velocidade, que certamente era muito lenta para a nostalgia do artista do trapézio; no trem era reservado todo um compartimento onde ele passava a viagem na rede destinada à bagagem, numa substituição lamentável mas ainda possível da sua maneira habitual de viver; no local da apresentação seguinte o trapézio já estava colocado no teatro antes da chegada do artista; mantinham-se também abertas todas as portas que davam para o palco e livres todos os corredores. Mas os momentos mais belos na vida do empresário eram sempre aqueles em que o artista punha o pé na escada de corda e finalmente, num instante, estava de novo pendurado no alto do seu trapézio.
Por mais bem-sucedidas que essas viagens fossem para o empresário, cada nova excursão lhe era penosa, pois a despeito de tudo perturbavam seriamente os nervos do trapezista.
Certa vez em que ambos viajavam juntos - o trapezista sonhando na rede da bagagem e o empresário na canto da janela lendo um livro - o artista do trapézio dirigiu-se a ele em voz baixa. O empresário deu-lhe imediatamente atenção. O artista disse, mordendo os lábios, que de agora em diante ele iria precisar sempre de dois trapézios ao invés de um - dois trapézios, um em frente ao outro. o empresário concordou rapidamente. Mas, como se estivesse querendo mostrar que a anuência do empresário tinha aqui tão pouco sentido quanto a sua negação, o artista acrescentou que nunca mais e em circunstância alguma trabalharia com apenas um trapézio. Parecia estremecer só com a ideia de que isso acontecesse outra vez. Hesitante, o empresário observou o trapezista e se declarou novamente de pleno acordo com o fato de que dois trapézios eram melhor que um; além disso essa nova disposição apresentava a vantagem de tornar o número mais variado. De repente o artista do trapézio começou a chorar. Profundamente assustado, o empresário deu um salto e perguntou o que havia acontecido; por não receber resposta, subiu no assento, acariciou-o e apertou o rosto dele contra o seu, de tal modo que as lágrimas do trapezista lhe escorreram sobre a pele. mas só depois de muitas perguntas e palavras de carinho o artista do trapézio disse soluçando: "Só com esta barra na mão, como é que posso viver?". Agora era mais fácil para o empresário consolar o artista; prometeu telegrafar da primeira estação para o lugar da apresentação seguinte, pedindo o segundo trapézio; censurou-se por ter deixado o trapezista trabalhar tanto tempo com apenas um trapézio, agradeceu-lhe e elogiou-o muito por ter afinal chamado a sua atenção para o erro. Foi assim que o empresário pôde aos poucos acalmar o artista e voltar ao seu canto. mas ele mesmo não estava tranquilo e com grave preocupação examinava secretamente o trapezista por cima do livro. Se pensamentos como esse começassem a atormentá-lo, poderiam cessar por completo? Não continuariam aumentando sempre? Não ameaçariam sua existência? E de fato o empresário acreditou ver, no sono aparentemente calmo em que o choro tinha terminado, como as primeiras rugas começavam a se desenhar na lisa testa de criança do artista do trapézio.
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¹ Franz Kafka. Um Artista da Fome / A Construção. Tradução de Modesto Carone. - São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
² Em “A construção”, especialmente, essa relação é marcante. Segundo o tradutor, o texto oferece uma imagem insuperável do modo de existência do escritor, perseguido por dentro pela tuberculose e por fora pelo fascismo alemão. É por isso que o personagem se enterra num buraco e vive, no submundo, a ilusão momentânea de um abrigo, no qual vem a descobrir que não tem um lar que o proteja de um inimigo que, ao atingi-lo no fundo da terra, vai travar com ele uma luta de extermínio (M. Carone).