domingo, 18 de agosto de 2013

Contrapartida (James Joyce, "Dublinenses")

A campainha soou furiosamente e quando a senhorita Parker chegou ao receptor, uma voz irada, com estridente sotaque do norte da Irlanda, gritou:

- Mande Farrington aqui!
A senhorita Parker retornou à sua máquina e, de passagem, disse para o homem que trabalhava numa escrivaninha:
- O senhor Alleyne quer você lá em cima.
"Que vá para o diabo", resmungou o homem, afastando a cadeira para levantar-se...
É desta forma intensa que se inicia este conto de James Joyce ("Contrapartida", publicado em Dublinenses). Farrington, em seu trabalho, e naquele momento em especial, tinha a missão de fazer cópias de um contrato. Cópias à mão é claro. Estava permanentemente sendo cobrado e a lembrança do tempo se esgotando o perturbava imensamente e acabava impedindo-o de melhor se concentrar.

Sua relação com o chefe era a de um ódio contido, mas a ponto de explodir. Sentia-se permanentemente humilhado e não reconhecido. Em certo momento, quando tentou pegar a caneta novamente, sentiu que precisava molhar a garganta. Levantou-se, foi ao restaurante O'Neill e pediu uma cerveja. Logo voltou ao escritório, mas o tempo parecia esgotar-se rapidamente. Não iria conseguir.

A noite escura e nevoenta aproximava-se, aumentando seu desejo de passá-la bebendo com os amigos, em meio ao tilintar de copos nos salões bem iluminados.

Mas, faltavam 14 páginas.

"Maldição". Não iria conseguir. Tinha vontade de blasfemar, de socar alguém... Sentia-se capaz de arrasar o escritório num só golpe. Seu corpo ansiava por fazer alguma coisa: precipitar-se para a rua e desabafar na violência. Todas as afrontas que sofrera na vida vinham-lhe à memória e o encolerizavam...

Apesar do seu mergulho em devaneios, logo a cobrança chegou. Ele não conseguira cumprir a tarefa. As ofensas logo começaram. E, mais uma vez fora obrigado a desculpar-se vergonhosamente. Ansiava cada vez mais pelo bar, mas precisava de dinheiro. Estava muito irritado, mas logo descobriu que, como saída, seu relógio podia ir parar numa casa de penhores.

Atravessou rapidamente a estreita passagem do Temple Bar, murmurando consigo que todos podiam ir para o diabo, pois ele teria uma boa noitada.

Junto aos amigos começou a relatar os incidentes do dia e suas respostas malcriadas. Todos riam e ele sentia-se melhor, mas, com o passar da noite a cólera e o desejo de vingança voltavam a dominá-lo. Além de tudo isto, ainda detestava voltar para casa, pois a mulher o repreendia por andar bebendo.

Ao chegar em casa, sabe pelo filho que a mulher foi à igreja. A criança está com medo, se oferece para preparar a comida do pai, mas deixa o fogo apagar-se no fogão. Neste momento, o pai persegue-o e o agarra pelo casaco golpeando-o vigorosamente com a bengala.

O garoto soltou um gemido de dor quando a bengala atingiu-o na coxa. Ergueu as mãos entrelaçadas e sua voz tremia de pavor:

- Oh, papai! Não me bata, papai. Eu... eu rezarei uma ave-maria pelo senhor... Eu rezarei uma ave-maria pelo senhor, papai, se não me bater... Rezarei uma ave-maria...

Este conto de Joyce é duro, mas nem de longe é uma ficção. É o cotidiano de um homem insatisfeito, humilhado e que, como que numa previsibilidade terrível, alimenta-se de rancor e desejo de vingança. A tragédia faz parte de seu cotidiano, a vida lhe parece um horror, nada o satisfaz e, infelizmente, o desejo de explodir em violência, acaba encontrando no lar, e nas inocentes crianças, o ambiente perfeito para acontecer.

Vale a pena ler... e reler este conto. Podemos, enquanto adultos, nos vermos, ainda que em lampejos, neste homem. Mas, se fizermos um esforço maior, podemos, enquanto crianças, também nos vermos na aflição e no terror daquela criança.

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