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terça-feira, 9 de julho de 2013

A Clínica do Vazio / Autismo (D. Zimerman)


Mas, não é tão simples. Pode até ser que haja algum grau de verdade na frase "constrói um mundo só para ele", mas, mesmo que exista, não explica quase nada. A criança autista luta contra duas fontes de medo, uma externa (realidade) e outra interna (o vazio). Tanto o mundo externo lhe assusta quanto o vazio interno, e ela vai vivendo na busca deste equilíbrio sempre precário. E é aí que entram as diversas ajudas, no sentido de lhe permitir a segurança necessária para alcançar melhores níveis de simbolização sobre o mundo externo e começar a construir relações mais fortes com os diversos objetos externos, preenchendo, ao mesmo tempo, seu universo psíquico.

No desejo de deixar aqui, para consultas sobre o autismo, algum bom texto introdutório, logo lembrei de David Zimerman, que é um dos autores e psicanalistas brasileiros que mais gosto de consultar. A filiação a W. Bion explica boa parte dessa minha admiração por ele. Em um dos seus diversos trabalhos* nos oferece uma boa visão acerca de inúmeras patologias e, mais que isso, nos ajuda a pensar sobre o manejo técnico necessário para a terapêutica psicanalítica. Neste momento, então, vou me concentrar em sua fala acerca da Clínica do Vazio. Seleciono aqui, alguns dos principais pontos de seu texto. 

Zimerman é categórico quanto à esta maior inclinação por parte da tradicional psicanálise das "neuroses" em direção, também, às "fixações mais primitivas", relativas aos momentos pré-edípicos, aos instantes iniciais da vida do bebê. Uma dessas fixações primitivas é o que chama de "transtorno autístico", no qual, como dissemos acima, a criança parece "desligada do mundo". Trata-se de uma criança que não olha "para" a pessoa e sim "através" dela. A pessoa, em vários casos, não serve como objeto para que se construa uma relação. Esse é um trabalho difícil e duradouro.

Tais crianças sofrem de um "vazio" cuja origem é anterior ao conflito de pulsões e defesas (mecanismo típico das neuroses), ou seja, não chegaram a neurotizar, ficaram em uma etapa anterior, numa ausência quase absoluta de emoções. Estão, dessa forma, repletas de "buracos negros" (1), que sugam sua luminosidade interna (desenvolvimento pulsional, emocional), ao mesmo tempo que a protegem da ameaça de sofrimentos (2). É, certamente, para muitos, como imagino, um "beco quase sem saída".

Mas, tais estados autísticos não são exclusivos de crianças, pois são encontrados em estados neuróticos de adultos com psicopatologia regressiva (borderline, psicoses, perversões, drogadições etc.), e Zimerman nos diz que o ponto comum é a separação traumática do corpo da mãe. É esta separação traumática que leva às primitivas faltas e falhas da maternagem. O autor nos aponta três falhas principais:

1) Falha em ser "continente" das angústias do bebê. Aqui, o termo "continente" me parece estar no sentido de abarcar, conter, acolher as angústias do bebê. Nesse caso, a angustia do bebê, diante das imposições do mundo real, não encontram acolhida por parte da função materna. Acredito que falta aqui o braço que envolve e acolhe;

2) Falha em ser "provedora" das necessidades biológicas, físicas e afetivas do bebê. A falha aqui, me parece, é mais no sentido da função materna não ser uma fonte de origem de cuidados, tanto materiais quanto afetivos. Falta a provisão, o atendimento às necessidades, o toque;

3) Falha em exercer a "função de espelho", devolvendo para a criança um olhar de alegria e não de rancor, depressão, enigmático, que pode significar que ela é má e que ela é responsável pelo sofrimento da mãe (coloca a criança em posição de culpa). Neste caso, "função de espelho" significa, em grande parte, o "olhar" da mãe;

Por isso que Zimerman nos diz que, pior mesmo é quando este olhar, este "espelho" não reflete "nada", nem amor, nem raiva, deixando a criança em confusão e desamparo, o que é muito comum em mães depressivas - aquelas mesmas mães que André Green classificou no "complexo da mãe morta", ou seja, uma mãe que está viva, mas que carrega permanentemente um "luto branco", como se estivesse morta. Nesse sentido, a introjeção que o bebê fará, então, será a de uma mãe sem vitalidade (3). Não podemos esquecer que este é o momento em que o bebê está, justamente, fazendo a introjeção, para seu nascente campo psíquico, de elementos do mundo externo, que ele vai classificar como bons ou maus. essa introjeção de uma mãe "sem vitalidade", portanto,
... resulta em crianças deprimidas, as vezes com a depressão encoberta por hiperatividade reativa (p. 290).
Trata-se, segundo Zimerman, de uma identificação inconsciente entre o bebê e a mãe. Uma identificação que resultará em um sentimento de vazio que acompanhará a criança e se fará sentir, por ela, como um fracasso pessoal
Deve ficar claro, no entanto, que tais crianças crescerão, ficarão adultas, de modo que, de uma forma ou de outra, continuarão portando esses "buracos negros", por meio de múltiplos e variadas configurações caracterológicas e de manifestações clínicas mais, ou menos, manifestas e ruidosas, tudo isso englobado pelo fator comum que é a existência de vazios existênciais, constitui o que está sendo denominado como "clínica do vazio" (p. 291).
Tais crianças desenvolvem, então, "crateras afetivas" que as levam a criar "barreiras autísticas", numa espécie de "desligamento da realidade". A partir daí tornam-se crianças apáticas, com olhar perdido, alimentando-se passivamente; ligados de forma mecânica a algum brinquedo, e com reduzida capacidade de aprendizado e comunicação verbal. 

Houve, segundo Zimerman, um "congelamento" da mãe. Faltou à criança esse suporte inicial que estruturaria seu campo psíquico de forma mais segura. Diante disso, a criança passa, em geral, por três etapas principais (mais à frente, o autor sugere uma quarta etapa):

1) Protesto - manhas, choros, gritos e sintomas somáticos (corpo);

2) Acomodação - apatia depressiva;

3) Desesperança - aqui, a criança nada mais espera do mundo exterior e passa a construir barreiras contra o mundo hostil, e, nessa concha autística, vai apegar-se, cada vez mais, às suas fantasias;

São crianças, então, que muito se utilizam da projeção, de forma excessiva, e, em casos mais graves, se utilizam de uma supressão radical, ou foraclusão, daquilo que ocorre na mente. Eles tentam "expulsar" tudo o que consideram ameaçador e, como não houve quase nenhuma introjeção de objetos bons (maternos), o resultado é um "vazio", uma quase incapacidade de simbolizar qualquer elemento do mundo externo. Essa é uma estagnação extremada. Em muitos casos, há uma evolução, mas, não obstante, tais pacientes,
ergueram, e continuam erguendo, muralhas defensivas contra a angústia de desamparo, de desmoronamento psíquico, contra os medos de uma perda de identidade, ameaças de indiferenciação com os demais, de não existir como pessoa (p. 291).
Para escapar ao vazio, é comum o uso de mecanismos psicóticos e perversos, como certas formas de sexualidade aditiva (recurso para fugir "para" o outro e "dentro" do outro), de busca imaginária de um nirvana primitivo, de somatizações, de congelamento dos afetos ("fugir" dos outros), de controle tirânico de si e dos demais, de prepotência, de fuga de verdades que toquem feridas etc. Por outro lado, para evitar a culpa e a depressão surge uma "tríade maníaca": controle, triunfo e desprezo sobre todos os demais. Para a criança, não há como cair na vala comum da igualdade aos demais, pois o nivelamento só traria mediocridade. Mas ele precisa ser "visto", como uma espécie de garantia de que "existe".
Nos casos mais extremos pode surgir uma quarta etapa:
4) Desistência - o suicídio pode ser visto como a única saída;

Mas, e quanto ao manejo técnico? De acordo com Zimerman, a abordagem técnica exige algo de distinto em relação aos pacientes neuróticos comuns:
  • A criança não está simplesmente fugindo, isolando-se. Ela está perdida, pois ergue uma espessa muralha defensiva contra o mundo, pois pouco se beneficiou dos estímulos necessários ao seu desenvolvimento emocional. Por isso, ela deve ser "encontrada" e "sacudida" de seu estado de "desistência" e conformação em relação à vida;
  • É necessário proporcionar à criança ou adulto algum tipo de "experiência de ligação", já que pouco adiantam as interpretações, ainda que corretas, pois o paciente está encapsulado. Por vezes, nem a "continência" do analista funciona bem pois o paciente, geralmente, "não está nem aí", e não fica sensibilizado. É bom lembrar que essas crianças estão "perdidas", esperando que alguém vá até elas. Por isso, o setting funciona, as vezes, como um "útero materno" psicológico, uma "incubadora" para que o self prematuro se desenvolva. É fundamental sacudir as emoções que estão congeladas;
  • A importância de sacudir está, também, em se obter os "gritos de protesto", transformando a desistência em existência, abandonando o "namoro com a morte";
  • Há um grande risco para o analista, que é o de instalação de uma "contratransferência de desistência", a partir de um comportamento do analista também distante, apático, desesperançado. Essa atitude inviabiliza a terapia com esse tipo de paciente já que o analista deve funcionar como uma "mãe viva" suprindo as falhas da "mãe morta";
  • São "pacientes difíceis" no acesso, pois: falam de situações e coisas, mas não da relação entre elas; não fazem ligações do inconsciente com o consciente; do passado com o presente e o futuro; dos fatos com os afetos; da sequência de fatos relatados com suas consequências etc. Além disso, em casos de presença de componentes psicóticos, a linguagem passa a ser linear, sem abstrações excessivas ("crenças"), narrativa enfadonha, por vezes pouco inteligível; ou mesmo o mutismo quase absoluto. O risco da contratransferência aqui é a da paralisia, impotência, não-entendimento, tédio;
  • A respeito da transferência, quase sempre é natimorta, embora os parentes se apeguem à análise (motivados pela esperança de preencher o vazio), mas quase sempre com os afetos congelados para não sofrer decepções ou cair em uma "dependência má";
Zimerman destaca, ainda, dois tipos de portadores de vazios:

1) Os que têm o seu psiquismo invadido pelos "buracos negros" (para os quais valem as indicações de manejo anteriores);

2) Os que superpuseram à subjacente camada vazia de sua personalidade um conjunto de defesas mais bem organizadas, a ponto de terem um pensamento lúcido e uma linguagem bem-articulada, com vínculo transferencial e boa ligação entre ideias e afetos, além de bom êxito social e profissional. Para estes, quando diante de traumas regridem, emerge uma constelação de angústias primitivas que se traduzem em "atuações" principalmente masoquistas; sintomas somáticos; confusão; uso de drogas; persecutoriedade; conduta maníaca; ou submergem na depressão (desistência);

Nestes casos, em que há uma clivagem, a atividade interpretativa do analista é de natureza "binocular", ou seja, um olho no vazio, e outro na valorização das capacidades do paciente, reconhecendo seus avanços analíticos, por mínimos que sejam.

É preciso, ainda, ter cuidado com interpretações excessivas que mais parecem "invasões". E, por outro lado, o uso de metáforas é recomendável pois provocam maior efeito de percepção e compreensão sobre a realidade.

A necessidade de reconhecimento, por parte do paciente, é muito alta. Ele precisa se sentir "olhado", do contrário, identifica o analista às falhas que levaram ao seu vazio. Assim,
Mais do que o correto conteúdo de uma interpretação formal, a função do terapeuta diante da clínica do vazio - isto é, diante de sentimentos extremamente intensos, transbordantes ou congelados, de decepções, angústias, ódio e medo - age terapeuticamente, mais pelos atributos reais do analista: sua sensibilidade especial, intuição e empatia; escutar atentamente com um real interesse; conversar em tom de voz apropriado; perguntar como forma de o paciente sentir que tem algum amigo que realmente está ao lado dele; ser continente daquilo que para esse paciente parece ser uma carga horrível. Tudo isso concorrendo para o que, de fato, é o mais importante na clínica do vazio, ou seja, que o paciente sinta que, verdadeiramente, o analista sobreviveu aos seus ataques e indiferença, e, juntamente com ele, está vivo e presente! (p. 294).
Belo texto o de Zimerman, fornece um excelente ponto de partida para estudos mais aprofundados sobre os autismo.

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(*) ZIMERMAN, David. E. Manual de Técnica Psicanalítica. - Porto Alegre: Artmed, 2004.
(1) Expressão usada por F. Tustin, em "Estados Autistas em Crianças". Rio de  Janeiro: Imago, 1986).
(2) É neste sentido que a criança autista se defende de dois grandes temores: o medo do mundo externo e suas ameaças, e o medo do vazio interno.
(3) Nesse momento, é interessante relembrar que Bion concebia que a criança tanto pode internalizar o seio bom ("mais seio"), que alimenta, quanto o "menos seio", ou seja, aquele que está "ausente na presença". Mas, o mais grave é o "não seio", aquela situação em que não existe uma representação do seio ("mãe") e só existe um vazio. O "não seio" é o "nada".