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sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

O ciúme e as formas paranóicas do amor (C. Dunker)

Abaixo, trechos do texto “o ciúme e as formas paranóicas do amor“, de C. Dunker, publicado em Consumidos pelo Ciúmes. Viver Psicologia. São Paulo, v.36, 1996, e divulgado no facebook do autor.
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O ciúme talvez seja a mais interessante vicissitude do amor. O ciúme é um sentimento demasiadamente humano, trágico. Quando amamos amamos a “nada”, a um “vazio” (agalma) e é neste vazio que o ciúme fabricará imagens, traços, signos para ocupá-lo e assim responder ao enigma (…) O ciúme, portanto, supõe algo onde não há nada, onde há falta de algo.
 
(…) ele é antes de tudo um pensador meticuloso. Pequenos detalhes, um tom de voz, uma palavra e está armada a conjectura. Inicia-se o processo: certificações, vigilância, suspeitos. Flagrar o ato criminoso torna se uma obsessão. A confissão do traidor é esperada e temida, mas de toda forma obrigatória. Quanto mais ciúme mais método, mais rigor, mais engenhosa a reflexão.
 
Podemos avaliar a posição daquele que é tomado pelo ciúme a partir de duas vertentes. De um lado o que Freud chamou de ciúme projetado, de outro o ciúme delirante.
 
No caso do ciúme projetado o desejo de trair é transferido para o outro. Trata-se de conter nele o que o sujeito não reconhece em si, ou que reconhece e atualiza na forma de infidelidade e culpa (…). 
 
Na sua modalidade moderna fala-se das duas metades da laranja. O amor à equivalência ou ao ajuste das necessidades subjetivas dos que nele se envolvem é aqui a raiz do ciúme. O ciúme conseqüência necessária da hipótese de que há um objeto que nos faça Um. Ciúme por asfixia, pela falta da falta. Quando dois se completam demais o desejo se vinga no ciúme. É talvez um ponto de liberdade para um novo movimento.
 
Tal interpretação tem o mérito, a nosso ver, de explicar o juízo do senso comum que diz que um pouco de ciúme é benéfico para todo relacionamento. Benéfico, pois faz intervir, mesmo que apenas como uma possibilidade virtual, o terceiro e a falta. Ele acusa neste caso uma certa insatisfação que funciona como motor para novos engajamentos subjetivos.
 
Nada mais propício ao aparecimento do ciúme do que o clássico marido cuja vida se resume a satisfazer as demandas da esposa. No filme “O Processo do Desejo” tal figura aparece exemplarmente descrita. Um juiz que dá tudo para a esposa e é exatamente por isso que ela o rejeita. Não falta nada para amar.
 
(…) Lógico, não queremos tudo o que queremos, amamos quando surge algo além do que imaginamos (…). Dar tudo, isso faz o ciumento traduzir o que sente num ato amoroso. Se te vigio, se te amedronto, se te mato … é porque te amo. Talvez não tenha existido pior mal nas ações humanas do que aqueles cometidos em nome do Bem e do amor.
 
Talvez a ética do ciumento seja … também uma ética masoquista onde não se consegue interromper a realimentação do sofrimento. “Eu me mordo, eu me acabo, eu faço bobagem de ciúme”, diz a música. Que estranha satisfação é essa a do ciumento crônico? … Amar é dar o que não se tem, dizia Lacan. Ao ciumento a fórmula aparece ao contrário: possuir, reter, ter, não perder de modo algum o outro. Garantir que todo o seu desejo tenha um único endereço…
 
O segundo tipo de ciúme não está às voltas com o preenchimento do que falta ao outro mas com uma imagem fixa: a cena de traição… Não está em jogo a realidade, se bem que pareça, mas uma certeza que atravessa sua fala: houve, há e haverá traição. Os argumentos neste caso só servem para atestar que o ciúme é justificado. O ciúme impulsiona ao ato violento. O pensamento se aproxima da lógica dos inquisidores medievais, como aponta o texto básico dos queimadores de bruxas: “Tortura-se o acusado que vacilar nas respostas, afirmando ora uma coisa ora outra, sempre negando a acusação. Nestes casos, presume-se que esconde a verdade. Se negar uma vez, depois confessar sob tortura não será visto como vacilante e sim como herege penitente, sendo condenado.”
 
Enfim, trata-se de um pseudojulgamento uma vez que a culpa está dada de antemão… A atração pela cena da infidelidade se assenta na figura do terceiro. Ora considerado como aquele que seduziu, corrompeu a inocência daquele que foi embriagado pelo feitiço, ora tomado por um fascínio, este terceiro é a chave da questão. Se não o fosse o que levaria a continuidade da investigação do outro uma vez que já se sabe que ele é culpado? Neste caso a ligação do ciumento inclui uma certa inveja em relação ao seu parceiro.
 
A hipótese evidentemente recorre à noção de inconsciente. Nos termos de Freud, inveja-se o fato, por exemplo, desta mulher ser possuída por outro homem, a recusa deste desejo homossexual promove o fascínio por este outro homem e o ódio pela mulher. Um ódio cuja aparência é de irracionalidade. O ciúme paranóico reclama, desta forma, de uma indiferença à sua demanda amorosa. Indiferença pertinente uma vez que o endereço desta demanda não é aquele de quem se diz sentir ciúme.
 
Montaigne dizia que na ordem das relações humanas a realidade conta pouco. Nos apegamos a ficções. Preferimos a ilusão prazeirosa ao desgosto da pálida realidade. O fato notável do ciúme é que ele parece comandado por ficções que adquirem o estatuto de realidade. A mentalidade jurídica do ciumento o põe assim num beco sem saída. Um julgamento sem fim onde o veredicto é o que menos importa. Alguns se apegam a dúvida interminável, como Bentinho, outros se dirigem à certeza, outros ainda convidam pelo ciúme à experiência de serem enganados, como mostrou Nelson Rodrigues.
 
O ciúme é aí um pedido de retomada da relação amorosa, um teste dos seus limites. Um pedido para que o outro reaja ao preenchimento da agalma, que faça diferença onde encontra simetria em excesso. Ao contrário do ciúme paranóico é um pedido de saber menos.
 
Quando Afrodite é tomada por ciúme no momento em que vê os mortais adorando a mortal Psiquê o ciúme convida Psiquê à morte. Salva da morte por Eros o ciúme das irmãs convida Psiquê à solidão. Salva da solidão o ciúme de Afrodite convida então Psiquê a provar seu amor. Quando finalmente o ciúme de Afrodite provoca o próprio Zeus então Eros fica em paz com Psiquê. Mas até quando?

sábado, 16 de novembro de 2013

O "ciúme" sob o olhar da psicanálise (M. Blévis)

O ciúme não é uma exclusividade das relações amorosas, a experiência profissional mostra que está presente nas mais diversas interações em organizações, instituições, e no quadro geral de nossas relações sociais. Ou seja, faz parte do nosso dia a dia. Talvez seja por isso que o senso comum diz: "uma pitada de ciúme sempre faz bem a qualquer relação". Porém, a coisa não é tão simples assim. O que se vê no cotidiano é uma dificuldade em se saber qual o tamanho exato dessa "pitada" e, quando se extrapola, não são poucos os tormentos que surgem: narcisismo, masoquismo, sadismo, inveja, silêncio, enfim, muito sofrimento.
 
Em quase todos os casos, então, o que surge é um estado extraordinário marcado pelo "sofrimento ansioso" decorrente da ideia fixa de perder a pessoa querida. E quem vai negar que esta é uma de nossas desrazões mais corriqueiras? Uma autora que trata este tema com bastante propriedade é a psicanalista francesa Marcianne Blévis, autora de "O ciúme - delícias e tormentos", publicado por aqui pela Editora Martins Fontes, em 2009. Em seu livro, apresenta diversas situações concretas onde a patologia foi observada e tratada e, ao longo de suas exposições vai nos oferecendo uma ampla abordagem psicanalítica sobre o "ciúme". Vamos lá.
 
Em primeiro lugar, quem é o(a) ciumento(a)? Antes de mais nada, um "isolado" em seu pavor, um "inquieto" que sabe que, mais cedo ou mais tarde, vai ser traído e, por isso, ele vasculha os pequenos sinais de desamor. Se, em algumas vezes, sua profecia se realiza, ele erra quando não se enxerga como o principal responsável pelo seu infortúnio.
 
Mas, a sua regra é não romper, não conseguir separar-se, não realizar a "profecia", ficando sempre num clima de "suspensão". Nesse sentido, o ciúme é uma "droga", cujo vício, as vezes, é até compartilhado pelo parceiro (que torna-se dependente da vigilância, ou tão ciumento quanto). Uma droga sustentada pela necessidade de um vínculo fusional, violenta, que acaba por impedir o próprio amor, em troca de uma satisfação em ter a "posse de seu objeto". Vigiar, portanto, é uma forma de apaziguar o sofrimento, provocando uma excitação que substitui o erotismo. É por isso que é preciso, apreender suas causas, em vez de negar seus tormentos: o ciúme não está ligado apenas à perda efetiva daquele ou daquela a quem se ama, porém antecipa essa perda. E assim se confirma a total insegurança que corrói os ciumentos (p. 19).
 
Assim, o ciumento, em grande parte, se sente indigno de amor e constrói uma relação objetal equivocada onde sempre se coloca como não portador de algo que só outros possuem e por isso tanto teme. O que o psicanalista pode fazer? não acatar ao pé da letra as queixas do analisando e lhe apontar perguntas de uma forma que lhe permita remontar às origens de seu ciúme. Como é que sua mãe amou o menino que ele foi, desde sua chegada ao mundo? O pai deu-lhe apoio ou o abandonou, sem lhe dar a possibilidade de sentir qualquer orgulho? Ele pôde buscar ajuda com irmãos e irmãs? Cercou-se dessa preciosa família adotiva que são os colegas e os amigos? Em todo caso, por que ele não buscou, fora da posição de vítima, a solução para suas verdadeiras feridas? (p. 22).
 
Dessa forma, há uma clara questão envolvendo o amor-próprio, e suas próprias qualidades e virtudes. Ou seja, sua "doença" tem origem numa perda que ele não consegue expressar em palavras nem imaginar. Naquele a quem atormenta com seu amor, ele procura um bem que perdeu; enquanto o indizível sofrimento decorrente disso não for situado, ele não parará de temer as infidelidades futuras (p. 23).
 
Seja como for, o que o ciumento nos diz é que existe um "outro(a)" que lhe ameaça a ponto de retirar a pessoa amada. Quem é este outro(a)? Será que é alguém a quem ele deseja mesmo destruir ou pode ser uma espécie de "irmão", um "outro eu", por exemplo? Nesse caso, o(a) "outro(a) seria odiado justamente por ser amado demais. Assim, desalojado de um lugar do qual espera a restauração, e não a consideração de seus limites, o ciumento quer fundir-se com o objeto de sua paixão e exige, eternamente nostálgico, que o "envoltório volte a ser perfeito". Ele quer esquecer que há na origem de seu ciúme a estranheza inquietante do confronto com um outro diferente dele e, ao mesmo tempo, igual a ele (p. 25).
 
Um dos grandes desafios da psicanálise seria, justamente, o de devolver-lhe a linguagem amorosa da infância, despreocupada e livre, deixando-o mais apto para o amor. Claro que existe muito mais a ser dito pela psicanálise sobre o ciúmes, mas é um bom começo.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

O Estranho Apelo do Ciúme - M. Blévis

Este texto é uma síntese de um capítulo I do livro de M. Blévis (1) intitulado "O Estranho apelo do ciúme".

A frase "você nunca saberá o quanto eu a teria amado", dita pelo namorado, quase fez Cléa desmaiar. Ela estava muito próxima do fundo do poço. Lúcida, mas em desespero, ela sabia que o ciúme a estava consumindo e tudo lhe parecia bem claro. Nesse ponto, se destaca a questão da "racionalização", tão típica do delírio de ciúmes.  É o que destaca Blévis.
O ciúme atesta um desvario perante o qual as suspeitas do ciumento parecem ser uma "racionalização", uma "roupagem do movimento de pavor que o suscita. Mas, que chaves fornecem estas máscaras? (p. 30).
A "racionalização" funciona, então, como uma máscara que esconde o pavor. Ora, segundo Cléa, como é que, naquele momento em que o namorado diz que a ama fala como se já não estivessem mais juntos? ("você nunca saberá o quanto eu a teria amado") Cléa já não sabia se era a mulher amada do "presente" ou a mulher esquecida do "futuro". pode parecer a alguns estranho o fato de poucas palavras dispararem tão forte angústia, mas
O ciúme é uma tortura que se alimenta das mínimas palavra e as deturpa em seu proveito (p. 31).
O resultado foi Cléa adentrar em uma crise de angústia, abrindo um abismo com relação a seu namorado. Mas, como nomear este abismo? Na impossibilidade, Cléa se alimenta de "ruminações" infindáveis sobre qualquer palavra que lhe era dirigida pelo namorado, afinal:
O ciumento é alvo permanente de batalhas internas, tão exaustas quanto estéreis (p. 33).
Sim, porque quem dota os rivais de tantos encantos e sedução é o próprio ciumento. No fundo, então, suas racionalizações e convicções acerca de numa traição são "fantasmas sem consistência". Fundamental, então, buscar a linguagem de Cléa na sua infância. Nesse momento,
O psicanalista precisa de toda a sua habilidade para conseguir se colocar na "pele infantil" do paciente, imaginá-la e descobrir as palavras que lhe faltaram (p. 34).
Qual, então, o curso das sensações de rejeição experimentadas por Cléa ao longo de sua vida? Não demorou para que uma lembrança lhe viesse à mente. Tratava-se de uma imagem que era recorrente. Em uma cidade devastada, um cachorro vadio e faminto andava por fachadas de prédios em ruínas.

Não havia dúvida que Cléa imaginava-se sendo esse cão desamparado e aflito, e a recorrência dessa imagem não era mais que um pedido de socorro. Mas, que conflito vivenciado por Cléa poderia ter causado toda essa cena sombria e destrutiva? Que acontecimentos foram esses, tão fortes, que foram silenciados por Cléa? O que a teria deixada tão faminta por palavras e vínculos?

No decorrer das sessões, suas associações iam em direção às "guerras" familiares. Ela sabia que a mãe fora enganada pelo pai. Logo em seguida o pai viria a morrer, mas sobre a traição e sobre o próprio pai passou a imperar um "silêncio". Cléa, na realidade, só possuía algumas fotos dele, de seu rosto ("fachadas").

Esse silêncio hostil por parte da mãe privara Cléa de todo o Luto necessário. Sem ele, sua dor permanecia "real", não simbolizada. Talvez por isso, andasse "vagando", faminta de significados, como aquele cão bem representava, diante de fachadas em ruínas.

Cléa, portanto, não havia explorado a realidade de suas emoções. E a impossibilidade do luto pelo pai, imposta pelo silêncio, deixara em suspenso sua feminilidade. O ciúme, então, a levava sempre a imaginar uma mulher a quem seu namorado poderia se dirigir. Uma rival que possuiria esta feminilidade. O abismo, então, era longo e profundo. De acordo com M. Blévis,
Uma construção de hipóteses erigida por um psicanalista só é pertinente quando faz reviver na memória do paciente fragmentos de lembranças que ajudem a preencher as omissões causadas pelos diversos recalcamentos, censuras, foraclusões ou renegações. O tratamento psicanalítico restitui força e vida a todos os vestígios e significações de acontecimentos que foram vividos, mas permaneceram fixados sem alteração no psiquismo. Com isso, eles persistem sob a forma de enigmas perigosos (...) O psicanalista, no espaço da transferência vai em busca das lembranças escondidas e cristalizadas nas palavras do paciente, a fim de "reativá-las" (p. 38).
Mas, o avanço definitivo de Cléa veio através de um sonho. Neste sonho, ela cruzava, na rua, com um homem com uma máscara de carnaval veneziana, com um bico assustador. Ela tinha que transar com ele, mas ela parecia um bebê. Ela sentia uma excitação sexual, mas desprovida de prazer. Logo, isto foi interpretado como uma revivência do amor intenso que Cléa sentia pelo pai, então proibido e silenciado pela mãe.
O trabalho da análise suspende esse tipo de proibição, desarticulando o pavor que ela encerra, e reabre o espaço do desejo de viver; nesse sentido, toda análise é também um "renascimento" (...) Cléa não poderia fazer o luto do pai enquanto ele não voltasse a ocupar um lugar "vivo", em palavras que o arrancassem do silêncio em que a mãe o havia escondido (p. 44).
Seu ciúme era, ao mesmo tempo, uma proibição de pensar no vínculo amoroso em seu lugar próprio e um apelo para arrancar essa preciosa ligação de sua ganga de proibições (p. 41).
Se era um destruidor de vínculos, o ciúme era também o lembrete de uma dor de amor perdida. Assim,
A saída do ciúme veio da possibilidade de lhe ser restituído o direito de amar a um pai, um homem, e também a si mesma como "apaixonada" (p. 41).
A proibição e o silêncio da mãe haviam amputado uma dimensão essencial da sua "identidade feminina". Há, no ciúme, uma oscilação entre o amor e a fúria (angústia) e essa raiva não é, ingenuamente, um "sinal de amor", é pura hostilidade. O ciumento tem raiva por não poder "consertar" o amado para que este lhe dê o reconhecimento e o amor que acha merecer. Mas, isto é impossível que alcance, até porque a demanda do ciumento é impossível de satisfazer. De acordo com Blévis,
No ciúme, é uma proibição de amar - no sentido como a infância ama, de forma intransigente, total e libertária - que o sujeito procura expulsar de si (p. 42).
Se ele conseguir essa expulsão, passará a amar como um "adulto". O ciúme, então, serve de anteparo para uma falha íntima. E a liberdade contra o ciúme vem quando se simboliza essa falha, como compreendendo que era possível reconquistar o direito de amar, sem mergulhar numa angústia mental. Afinal,
Amamos contra a morte, para vencê-la, para esquecer que somos mortais e, ao mesmo tempo, sabemos perfeitamente que nossos laços amorosos podem romper-se a qualquer momento. Assim, somos reconvocados à vida por eles e expostos ainda mais à angústia de nossa finitude ao perdê-los (p. 42).
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BLÉVIS, Marcianne. O Ciúme - Delícias e Tormentos. - São Paulo: Editora Martins Fontes, 2009, p. 27-42