Em sua sempre interessante coluna no Estadão Roberto Damatta¹ transcreve uma carta que teria recebido do professor e amigo Richard Moneygrand. Trata-se de um intelectual aposentado, norte-americano e "brasilianista" (aliás, como já nos tinha chamado a atenção o prof. Moniz Bandeira², o termo só se aplica aos norte-americanos que pensam o Brasil. Na Europa são chamados de "africanistas"). Moneygrand é um personagem inventado por Roberto Damatta para pensar o Brasil e, desta vez, nos falou sobre um aspecto interessante que está em questão nesta conjuntura político-eleitoral que vivemos: as "resoluções messiânicas" para os nossos problemas.
De acordo com Moneygrand, atuar sobre uma conjuntura de disputa eleitoral deste porte não é nada simples e fácil pois exige atitudes nem sempre confortáveis de um lado ou de outro. Ações, valores e princípios são questionados e a crítica é promovida em alta escala.
No caso brasileiro, o que estaria sob avaliação seria "uma história transcendental que iria libertar os oprimidos e os miseráveis e os diretores dessa fase tidos como politicamente invencíveis. Para Moneygrand, será inevitável entender-se melhor ("desmascarar") os chamados "salvadores do Brasil" e contrastá-los com a proliferação de escândalos de corrupção, a avidez pelo enriquecimento pessoal e uso de privilégios, e o aparelhamento do Estado para fins de interesse pessoal.
Ainda segundo Moneygrand, esta seria uma sina brasileira, ou seja, a "crença numa resolução messiânica para todos os seus problemas; daí a atração pelo conceito de "revolução" em toda a latinidade americana". O tema é dos mais interessantes e gostaria de trazer algo da Psicanálise para ajudar no debate sobre o entendimento do poder e seus arredores.
Se estamos falando de "crença
messiânica" estamos nos referindo a algo que, em maior ou menor proporção,
está muito próximo dos conceitos de "líder carismático" e de
"populismo". Vejamos. Um esclarecimento inicial: A sucessão é
para o governo da presidente Dilma, mas não nos enganemos, se há um projeto
"messiânico" em questão, como nos sugeriu Moneygrand, ele foi
construído pelo ex-presidente Lula, que é, para quem, o nosso olhar deve se
voltar. Claro que seria um grande equívoco metodológico tentar trazer o
ex-presidente para o divã, mas podemos olhar com atenção os "estilos de
atuação na política" e nos arriscarmos a algumas considerações.
Para isso, Eugène Enriquez (“As Figuras do Poder”), é um exemplo de autor
que fornece subsídios teóricos interessantes para entender o campo da política sob o olhar da psicanálise.
Segundo ele, o poder tem sempre uma "face" encarnada em um indivíduo
ou grupo, e desvelar essa "face" é fundamental para se entender alguns
dos motivos das ações e palavras dos agentes políticos. Se olhássemos, então, com atenção, para o estilo de atuação do ex-presidente Lula não seria tão arriscado
defini-lo como predominantemente carismático/paranóico.
Trata-se de um estilo
de atuação que está assentado sobre algumas "fantasias". Quais? E de que liderança, então, estamos falando?
· A fantasia
de que a “fala” organiza o mundo – Para este líder, tudo depende, essencialmente, do "discurso". Qualquer dado da realidade parece sem valor diante da "fala" do líder,
que a tudo avaliza. Se o discurso é peça fundamental no campo da política, com
este líder ele ganha uma relevância exagerada. Ele quer ser ouvido, pois com
sua fala, organiza e explica o mundo de acordo com os seus interesses. O viés
carismático vem de uma habilidade de ensaiar metáforas populares a todo
instante, como, por exemplo, no recorrente uso do futebol pra explicar diversos fatos;
· A fantasia
de que existem “explicações definitivas” – É um líder que não abre mão de
suas certezas absolutas. Suas convicções são o espelho de sua
"grandeza", e sua mensagem é de "salvação" para a
sociedade. É um "messias" que anuncia uma "nova origem" a partir
de sua chegada ao poder, como se tudo se explicasse a partir de um "... nunca antes na história desse
país...";
· A fantasia
de que há inimigos por toda parte – Neste líder, há uma idealização da imagem de
“conspiradores” (a “elite golpista”, a “mídia de direita”, a “classe média
egoísta”, os “brancos de olhos azuis”, os “inimigos do povo” etc.). Assim, só
existem dois tipos de indivíduos para este líder: aqueles que ele reduz a
objetos de sua dádiva e aqueles que precisam ser “destruídos”. Muito comum que
esses “inimigos” sejam fabricados pelo próprio discurso deste líder. Um exemplo
está na recorrente e obsessiva comparação estatística com tudo o que antecedeu ao governo Lula, especialmente o governo Fernando Henrique Cardoso. Manter esta obsessão pela comparação é
fundamental para a existência de sua “liderança” e demarcação de um "território", pois lhe garante uma "identidade"
e um “lugar” na política e na vida;
· A fantasia
de ser uma figura “central” no mundo – Coloca-se, então, na posição de
“centro” do mundo. Com ele que surge uma nova "lei" (o desprezo ao
STF e incapacidade de assumir erros nos falam um pouco dessa quase impossibilidade de
sujeitar-se às regras), é uma espécie de "herói criador", um "pai único e
verdadeiro", que se pretende "onipotente", sem limites, e livre
de qualquer ameaça. Não acredita na história, pois é ele quem a
"começa" a partir de sua chegada ao poder;
· A fantasia
de que é necessário “transformar” o mundo – Sua fala traz sempre a "verdade",
quase de inspiração divina. O ex-presidente Lula dizia: "...não existe ninguém mais ético do que eu...", e, por vir
das classes populares, trazia consigo a "verdade". É com essa
"origem" que ele se transforma no “eleito", no "campeão",
enfim, no “cara”, como um dia disse Obama;
· A fantasia
de que “tudo é possível” - Para este líder, finalmente, é fundamental criar
uma "nova sociedade", afinal "tudo começa" com ele e
acredita que, para isso, "tudo é possível" e justificável. É aqui que
os delírios encontram espaço para florescer, inclusive aqueles que classificam
corruptos como simplesmente “presos políticos”;
Todos nós, individualmente, possuímos traços que
nos realçam a persecutoriedade. Alguns um pouco mais. E líderes políticos não
escapam, obviamente, a estes traços. Alguns um pouco mais, evidentemente. O
ex-presidente Lula, me parece, usou e abusou desse estilo. Não o condeno,
afinal, é o seu estilo de atuação na política. Nem diria que foi sempre assim.
Um olhar mais detido sobre a evolução de sua postura e discurso políticos
mostra que ele transformou-se com o tempo. Mudança significativa, porém,
aconteceria no auge da conjuntura crítica do escândalo do mensalão, quando
passaria a adotar, de forma frequente, as linhas deste estilo carismático/paranóico.
Mas, isso é assunto pra outra conversa.
Não
se trata, portanto, de um estilo de atuação "essencialmente" democrático. Aliás há muito o que se conversar sobre essa tal "essência" da Democracia. Mas, é decisivo, então, sustentar-se a capacidade crítica, oferecer uma nova
possibilidade de recontar a história do país, manter as instituições o máximo
livres e independentes. Ou atribuímos à
democracia um valor universal, onde o "povo" é transformado em "cidadão" (e não estou dizendo meramente "consumidor"), ou
continuaremos nos apegando a “messias” e “salvacionices”, mantendo a nossa sina, como bem assinalada por Moneygrand.
Olhar, então, para o estilo
de atuação dos governantes, e seus pormenores discursivos, pode dar ao campo da
política um especial interesse. Neste caso, o que se percebe é um conjunto de fantasias que povoam o líder carismático/paranóico. Moneygrand conclui sua análise lembrando que há uma chance de dispensarmos estes "Messias" mas, desde que comecemos mesmo a "desconfiar que nada neste mundo de Deus pode ser resolvido paulatinamente, a não ser por todos e cada um".
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¹ "Onde Estamos", O Estado de São Paulo, quarta-feira, 23 de abril de 2014. http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,onde-estamos,1157387,0.htm
² "Divagações de um brasilianista". Observatório da Imprensa, 04/09/2012, edição 710. http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed710_divagacoes_de_um_brasilianista
(José Henrique P. e Silva)
(José Henrique P. e Silva)