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terça-feira, 22 de abril de 2014

Perversão: a parte obscura de nós mesmos


Este é um livro da Roudinesco que gosto muito. Trata da "Perversão", aquela estrutura clínica nem tanto "valorizada" quanto as neuroses ou psicoses, e em boa parte "glamourizada" pelas "fantasias sexuais" que parecem adquirir um grau de legitimidade bem elevado atualmente. Mas prefiro falar daquela "outra" Perversão, aquela parte considerada "maldita" em nós mesmos, e por isso quase sempre bem "escondida", que parece sempre nos lembrar de nossa potencial bestialidade, algo que parece contrastar com a própria "humanidade". 

Essa perversão que dá margem a comportamentos e vidas infames, paralelas, minúsculas, bestiais, criminosas, monstruosas e miseráveis, que se disseminam pela sociedade e ao nosso redor. Estou falando de criminosos sexuais de uma forma geral (abusadores, pedófilos, estupradores etc.) que deveriam sim, e essa é uma opinião que tenho muito arraigada, serem permanentemente monitorados pelas instituições responsáveis, pois sabe-se que sua possibilidade de "cura" é ínfima, quase nula. Podem manter-se sob algum tipo de controle, mas parecem não escapar desta "parte obscura" que tomou conta de si mesmos. Há muito o que se falar sobre a Perversão.

O livro da Roudinesco nos traz alguns exemplos de "notórios perversos", como Gilles de Rais, neto de João de Craon, um riquíssimo senhor feudal libertino. Desde seus 11 anos foi iniciado no crime por este seu avô. Dilapidou sua fortuna em bebedeiras e toda sorte de excessos. 

O gosto pelo sangue e o desprezo às leis era indiscutível. Apegado às armas, Gilles acabou por servir ao lado de Joana D'Arc e chegou a ser condecorado, mas não escapava às pilhagens e roubos. Depois passou a cometer outro tipo de crime: o seqüestro de crianças, seguido de todo tipo de sevícias. 

Retalhava corpos, arrancava órgãos, e tudo isso associado ao abuso sexual dos corpos. No auge da loucura chegava a invocar o demônio em extrema excitação – acabava transformando-se num dejeto, sujo de sangue, esperma e restos de comida. Todas as fronteiras com a Lei já estavam abolidas e nada o refreava. Fala-se em cerca de 300 crianças mortas, o que deu origem à lenda do Barba Azul. Em 1440 Gilles foi levado a julgamento e confessou todos seus crimes dizendo que foram por iniciativa própria. Não atribuiu culpa ao demônio nem a instintos bestiais. Ele simplesmente lembrou a educação que recebera do odiado avô que fizera dele uma criatura abjeta, imersa no vício. 

No final, implorou perdão e pediu orações. Foi enforcado e queimado. Diante da pergunta do porque teria cometido tais crimes, ele responde: "para que atormentar, a vós e a mim?" - Esta é uma característica do perverso, o TORMENTO do qual não consegue livrar-se a não ser com a própria MORTE.

Outro "notório perverso" trazido pelo livro da Roudinesco é o bastante famoso Marquês de Sade. Com ele isso, inaugurava-se a noção moderna de perversão, onde não havia nada de "diabólico" e sim "humano". Foi na regência de Philippe d’Orléans, após a morte de Luis XIV, que a "libertinagem" (fenômeno que surgiu como reação às guerras religiosas) encontrou sua forma política mais consumada. 

Orgias, blasfêmias, especulação econômica, gosto pela prostituição, pelo luxo, pelo desperdício e escândalos: todas essas praticas concorriam para um vasto questionamento dos valores da tradição religiosa. A aristocracia entregava-se e fascinava-se pelos prazeres mais excessivos. Foi nesse cenário que cresceu o Marquês de Sade que, com sua escrita, levaria aos limites a "inversão da Lei". 

Seus personagens, entretanto, não reivindicam uma filosofia do prazer e da liberdade individual, e sim uma vontade de destruir o outro e se autodestruir num TRANSBORDAMENTO DE SENTIDOS (gozo absoluto). O ser humano transforma-se em OBJETO (coisa) e ABJETO (desprezível). Sade não foi um criminoso do tipo Gilles de Rais, foi mais um "perverso moral". Não matou, mas destruía a identidade. 

Tinha os germes da depravação, mas não da loucura. Assim, é compreensível que Sade tenha sido visto como um precursor da sexologia. Encarnação de todas as figuras possíveis da perversão, ele nunca cessará, após ter desafiado e insultado reis, Deus e invertido a Lei, de ameaçar a todos em sua vã pretensão de querer domesticar o gozo do mal. Esse é o típico "notório perverso" mais alinhado àquela perversão "glamourizada" dos dias atuais, onde se enaltecem as fantasias, quase sempre no limite entre o prazer e o crime.

Que olhar, então, dirigir ao perverso? Sabemos que existe aquela perversão que ninguém se intromete, porque é da ordem da vontade do indivíduo, casal ou grupo, em sua intimidade. Essa perversão fala algo da liberdade e da própria natureza humana. E não consigo estabelecer nenhum juízo moral sobre a questão, pois a psicanálise não busca nenhum tipo de "ordem moral" ou algo que diga o que é o "sexo bom" ou "mau" para cada um. 

Mas, existe a perversão que é alvo da Lei e que sobre ela deve-se dirigir um olhar bastante severo. São os chamados "parafílicos sociais" (estupradores, pedófilos, assassinos maníacos, criminosos sexuais etc). Para esses o olhar não deve ser somente o de reprovação, mas de forte atuação no sentido do confinamento e monitoramento constante, pois o mal que causam ao outro é, muitas vezes, irreparável. 

O que me assusta, por vezes, é uma certa condescendência com esse tipo de crime, tentando-se atribuir certa "naturalidade", mostrar que é "cultural", ou até mesmo que não é crime e sim uma "doença". Embora esse tipo de perversão tenha sim componentes destes três tipos de explicação quando inserida em nosso contexto social ela se torna crime sim, e merece punição rigorosa, ou vamos mesmo conseguir conviver com a ideia de um pai estuprar a própria filha criança ou adolescente?

(José Henrique P. e Silva)

sábado, 12 de abril de 2014

Sobre a Psicanálise (Freud, 1913 [1911])

Em março de 1911, Freud recebeu um convite do Dr. Andrew Davidson, secretário da Seção de Medicina Psicológica e Neurologia para escrever, ler e publicar um artigo nas Atas do Congresso Médico Australasiano (Sidney, setembro/1911). Trata-se de um texto muito curto, mas bastante elucidador sobre o papel da psicanálise. Vejamos os principais pontos.

Freud nos diz que a psicanálise, como um método de pesquisas das neuroses e sua etiologia (causas), não é fruto de especulação e sim de experiências científicas que precisam ser continuadas. Tudo teria começado com as pesquisas sobre a histeria (Estudos sobre a Histeria, 1895 - Freud e Breuer) que tomaram impulso a partir dos rastros de Charcot (histeria "traumática"), Liébeault e Berheim (hipnose) e Janet (processos inconscientes).

Aos poucos a psicanálise foi recusando várias explicações limitadas às questões hereditárias e congênitas e foi acentuando a importância dos processos psíquicos na formação de doenças. Um exemplo foi mostrar que os sintomas histéricos são resíduos (reminiscências) de experiências traumáticas e afastadas do consciente através de um processo de "repressão" onde parte do material psíquico é mantido no inconsciente.

Trata-se de uma visão "dinâmica" pois encara os processos psíquicos como deslocamentos de energia psíquica que podem ser medidos pelo valor de seu efeito sobre os elementos afetivos (p. 226). Na histeria isto é muito presente pois a "conversão" cria os sintomas pela transformação de boa quantidade de impulsos mentais em inervações somáticas.

No início, os primeiros tratamentos foram feitos com o auxílio do hipnotismo, logo abandonado pela "associação livre' que permitia estender o método a mais pessoas. Mas, com isso, foi necessário desenvolver uma técnica de "interpretação" sobre o que era dito pela pessoa. A partir daí começou a ficar claro que as dissociações psíquicas surgiam de "conflitos" e eram sustentadas por "resistências internas" que mantinham a "repressão". Superar os "conflitos" seria fundamental para o tratamento.

Mais tarde, chegou-se à conclusão que os conflitos se davam sempre entre os instintos sexuais (no sentido amplo) e os desejos e tendências do restante do ego. Nas neuroses, por exemplo, esses instintos sucumbem à repressão e se tornam a base mais importante para o surgimento de sintomas (encarados, então, como substitutos das satisfações sexuais reprimidas).

Outro desenvolvimento importante da psicanálise foi acrescentar o fato "infantil" ao somático e ao hereditário, chegando à conclusão que inibições no desenvolvimento mental ("infantilismos") apresentam uma disposição à neurose. Ou seja, existe uma "sexualidade infantil". O instinto sexual, desde muito cedo, atravessa um complicado curso de desenvolvimento cujo desfecho deveria ser a sexualidade "normal" nos adultos. Isso nos mostra que, por exemplo:
As enigmáticas perversões do instinto sexual que ocorrem em adultos parecem ser inibições de desenvolvimento, fixações ou crescimentos assimétricos. Assim, as neuroses são o negativo das perversões (p. 227).
Mais um desenvolvimento importante da psicanálise foi perceber que o "desenvolvimento cultural" da humanidade é um forte fator que torna inevitáveis as repressões do instinto sexual, proibindo a satisfação da libido e exigindo sua supressão.

Na sequência, percebeu-se que o instinto sexual tem a capacidade de ser "desviado" dos seus objetivos sexuais diretos para metas mais elevadas ("sublimação") como as realizações sociais e artísticas, por exemplo. Dessa forma,
O reconhecimento da presença simultânea dos três fatores de "infantilismo", "sexualidade" e "repressão" constitui a principal característica da teoria psicanalítica e assinala sua distinção de outras visões da vida mental patológica (p. 227).
Ao mesmo tempo,
A psicanálise demonstrou que não existe diferença fundamental, mas apenas de grau, entre a vida mental das pessoas normais, dos neuróticos e dos psicóticos. Uma pessoa normal tem de passar pelas mesmas repressões e lutar com as mesmas estruturas substitutas; a única diferença é que ela lida com estes acontecimentos com menos dificuldade e mais sucesso (p. 227).
Não à toa a psicanálise enveredou pela investigação dos fenômenos psíquicos normais, como os sonhos, os pequenos erros da vida cotidiana, os chistes, os mitos e as obras da imaginação, sempre com o objetivo de obter maior compreensão interna (insight) da vida psíquica inconsciente.

Porém, apesar de todas estas conquistas, Freud denuncia a tendência nos círculos médicos a contradizer a psicanálise sem estudos reais ou aplicações práticas, talvez porque as premissas e a técnica da psicanálise estejam mais próximas da psicologia que da medicina. Mas, Freud questiona: O que os ensinamentos puramente médicos fizeram pela compreensão da vida mental?

O fechamento da comunicação de Freud é impressionante. Faz um alerta com uma força esplendorosa!
O progresso da psicanálise é ainda retardado pelo termo que o observador médio sente de ver-se a si mesmo em seu próprio espelho. Os homens de ciência tendem a enfrentar resistências emocionais com argumentos e, assim, satisfaze-se a si mesmos para sua própria satisfação! Quem quer que deseje não ignorar uma verdade fará bem em desconfiar de suas antipatias e, se quiser submeter a teoria da psicanálise a um exame crítico, que primeiro se analise a si mesmo (p. 228).
_________

FREUD, S. Sobre a Psicanálise. In: Obras Psicológicas Completas: Edição Standard Brasileira. Volume XII – O Caso Schreber, Artigos sobre Técnica e outros trabalhos (1911-1913) , pág. 221-229.

O encontro entre o meu olhar e o do abismo!

Esta frase de Nietzsche está em "Genealogia da Moral" (1887), que considero o mais instigante texto de Nietzsche. 

A frase é poderosa e nos lembra que que há um reconhecimento do "mal" em nós mesmos, afinal há um encontro de olhares entre o meu olhar e o do abismo, sempre permeado pela sedução e tentação, um encontro de olhares que fala de uma "atração irresistível" e que nos exige estar em "prontidão" sempre. 

Um bom filme que retrata bem o potencial desta frase é "Justiça a Qualquer Preço" (The Flock, 2007), onde um monitor de criminosos sexuais se vê confrontado com seus próprios limites a todo instante. O filme é interessante inclusive para se trabalhar de forma didática (em curso, seminário etc.) a "perversão".

(José Henrique P. e Silva)

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Um rápido conceito de Bullying

O Bullying é daqueles temas que nos últimos tempos só tem crescido nas rodas de discussão. Não é, por certo, um fenômeno recente, mas tem algo de novo em sua dinâmica. E é sobre isto que gostaria de comentar um pouco destacando alguns aspectos envolvidos nas discussões sobre o Bullying.

Inicialmente bastante discutido a partir do ambiente escolar, o Bullying extrapolou este espaço e hoje é visto como um fenômeno social amplo, que conheceu uma rápida forma de expansão no contexto de uma sociedade cada vez mais competitiva, individualista e marcada pela difusão de tecnologias de comunicação de massa. Mas, o que é o Bullying?

Tentando-se um conceito, ainda que geral, mas que não deixe de fora os principais elementos constitutivos do Bullying, posso dizer, com segurança, que seja em que ambiente for, educacional, corporativo, ou outro, o Bullying é a recorrência de atos de violência física ou psicológica, praticados por um grupo, de forma intencional, visando a humilhação do outro no contexto de uma relação desigual de poder. Neste conceito já temos, pelo menos,  seis elementos constitutivos que exigem alguma elucidação. Vou tentar ser didático:
 
1) O Bullying é uma prática recorrente, ou seja, não pode ser confundido com uma simples brincadeira de "zoar" um colega, algo que faz parte do cotidiano das relações interpessoais. É essa recorrência que garante a violência do ato e seu caráter de intencionalidade no objetivo de humilhar e machucar o outro que se tornou alvo. Portanto, não é qualquer brincadeira, onde se "zoa" e se tira um "sarro" que pode ser classificada como Bullying. Essa confusão está levando, inclusive a construção de "manuais" que tentam "domesticar" qualquer tipo de brincadeira nos diversos ambientes. Isso atua como forte fator inibidor do desenvolvimento das relações interpessoais, cada vez mais inseridas dentro do chamado "politicamente correto". Ou seja, Bullying não é uma prática ocasional, episódica, isso pode ser uma brincadeira, uma ofensa, mas não Bullying. Este exige para ser caracterizado como tal que as práticas sejam recorrentes, sistemáticas

2) O Bullying é um ato de violência, ou seja, não é uma "brincadeira". O termo deriva da palavra inglesa "bully" que significa "brigão", "valentão", alguém, portanto, muito disposto à agressividade e à violência. Mas, é um ato de violência porque está sustentado na agressividade contra o outro. Uma agressividade que pode ser física ou fazer parte daquilo que chamamos de "terror psicológico", repleto de acusações, infâmias, mentiras etc. Dizer que a prática do Bullying está situada no universo das "brincadeiras" é ignorar seu caráter agressivo. Enquanto ato de violência, portanto, o Bullying pode ser visto como uma prática que exemplifica uma espécie de "regressão civilizatória", pois desconhece o outro e desconhece as regras morais que sustentam os laços civilizatórios;

3) O Bullying ocorre no contexto de uma relação desigual de poder, ou seja, é sempre uma relação marcada pela oposição entre o mais forte e o mais fraco. O lado mais forte ainda é reforçado pelo "grupo" e a vítima geralmente é o indivíduo isolado;

4) O Bullying é uma prática que quase sempre exige a formação de um grupo, ou seja, na grande maioria das vezes a prática do Bullying parte de um grupo. Isso não dispensa a figura de lideranças, mas existem os demais participantes que compõem o grupo e têm papel chave para o Bullying. Não é só a liderança que pratica o Bullying, os demais, com sua cumplicidade, também o praticam.

5) O Bullying é praticado de forma intencional, ou seja, existe uma intenção no Bullying. Não se trata de uma prática desinteressada e fortuita. Ela tem um objetivo, um alvo, algo a ser atacado e conquistado. Quase sempre a prática exige certo planejamento, não sendo nem um pouco espontânea ou ao acaso.

6) O Bullying tem como um de seus principais objetivos a humilhação do outro, ou seja, colocar um apelido, "zoar", tirar um "sarro" de um colega sempre fez parte de nossa infância, adolescência e mesmo da fase adulta. E fazemos isto de vez em quando sim, quando nos reunimos num bar, na casa de um amigo, no trabalho, no estudo etc. Isso é saudável, mostra que existem laços de amizade tais que nos permitem brincar, sorrir, se divertir, mesmo à custa de uma mancada de nosso colega. E, nesses casos, a resposta desse colega, é sempre compartilhar o sorriso e "cair" na brincadeira. A intenção que existe aí é a de "brincar", processo aliás, fundamental para nossa boa constituição psíquica. Mas o que torna o Bullying algo perigoso e não simplesmente uma brincadeira espontânea? Não é a disposição em "brincar". É uma outra disposição, a de "humilhar". E, nesse aspecto, pode ser colocado na categoria das perversões. É lógico que, com o Bullying, alguns se divertem, tanto os que os praticam quanto os que assistem e se tornam cúmplices, portanto. Mas o caráter desta "diversão" é que ela se dá "à custa da humilhação do outro", do sofrimento do outro. Não é perverso isto? Existe, portanto, no Bullying, uma atitude clara e intencional de humilhar o outro. Quem pratica o Bullying sabe exatamente o que está fazendo, pois possui uma clara intenção, mascarada sob uma falsa ignorância, mas repleta de intenções maldosas;

Portanto, para finalizar, antes de pensar ou dizer que o Bullying é só uma "brincadeira" que extrapolou é bom lembrar que na prática existe uma intenção clara de humilhar o outro, e quando falamos em humilhação estamos falando de uma atitude que é pública, e que causa um dano seríssimo à autoimagem do indivíduo.