Todos somos, em algum grau, neuróticos. E sei que esta é uma frase que incomoda e assusta a algumas pessoas que temem, com isso, uma proximidade com a “loucura”. Mas, não se trata disso. A loucura está mais próxima de uma violenta dissociação com a realidade, que nos aliena e incapacita para a construção de laços de forma quase permanente. A neurose, por seu lado, traz alguns traços desse tipo, mas num grau quase sempre bastante atenuado. Estamos falando, então, de outra ordem de sofrimento, de outro tipo de defesa que nós buscamos para controlar nossas angústias. E que é um tipo de defesa muito mais comum do que imaginamos.
Quando se diz, então, que a “normalidade” é neurótica é porque, em nosso processo de constituição psíquica, em algum momento, nos deparamos com “limites” (pais, leis, regras sociais, valores etc.) que restringem nossos desejos e acabamos por sofrer com isso. Mas, sem este processo, sem estes “limites” como poderíamos olhar para o outro e respeitá-lo? Como poderíamos construir laços sociais se não tivéssemos restrições em nossos desejos? É uma boa questão! E não está fechada. Ou seja, conscientemente, sabemos da necessidade de limites para a vida social, mas a questão é que inconscientemente nossos desejos tentam “escapar” e é a luta por bloqueá-los que nos leva ao sofrimento. A grande saída é algum tipo de sublimação, que faça com que nossos desejos inconscientes se realizem de outra forma, como num relacionamento amoroso, num trabalho que nos causa felicidade, numa atividade em que nos sentimos bem etc.
A neurose, então, nos fala de uma “submissão” à regra, ao limite. E é o sofrimento daí gerado que leva a mecanismos de defesa como a obsessividade e a compulsividade, por exemplo. Sofrer pelo nosso próprio desejo não realizado, então, nos aprisiona a uma “dívida”, como se estivéssemos em “falha” permanente, em “culpa”. Um sentimento de que somos devedores de algo que não sabemos bem o que é, e nem sabemos ao certo quem é o nosso credor. O fato é que nosso desejo fica soterrado em meio às obrigações e temores de punição ou de limites. É uma dívida que temos, então, em sentido metafórico, com o pai, com a lei, com o limite, e isso nos leva, nos casos mais graves, à possibilidade de nos comportarmos como escravos e ficarmos paralisados, sem futuro, condenados a repetições e com pouca chance de crescer e sentir-se bem.
Madonna, há pouco tempo, dirigiu um filme (“W. E.”, 2011) que, com muita força, traz um exemplo digno de chamar a atenção. Aliás, o filme traz uma trilha sonora que, no seu romantismo angustiante, parece sempre estar à beira da revelação de uma tragédia da qual não se pode escapar. Algo que marca os medos do neurótico obsessivo. No filme, duas histórias correm em paralelo. O que as liga? O desejo de um pai e de uma mãe que, ao dar o nome de uma nobre inglesa à filha, depositam ali todo o desejo de que sua vida transcorra como um “conto de fadas”, bem ao estilo daquilo que as monarquias tentam nos mostrar com sua pompa, beleza e delicadeza.
Isso é complicado. Para desespero da criança sua história seria construída tendo como espelho a vida daquela família real, considerada “perfeita”, como num “conto de fadas”. Ela teria, então, que realizar-se na busca por seu próprio conto de fadas. Mas, ela só conhecerá tragédias. Ficará, portanto, aprisionada ao desejo dos pais, e não ao seu. Não é a sua história que terá que viver, e isso lhe causa dor. Livrar-se da obsessão, portanto, significaria livrar-se de uma pulsão de morte poderosíssima, que a impulsiona sempre ao fracasso. O desejo não era seu e sim dos seus pais, era a eles que estava “obedecendo” ao tentar manter-se na linha de conquistar o “conto de fadas” para a sua vida. Quantas vezes, não levamos um tempo demasiado para perceber que o que estamos fazendo não é para nossa satisfação, e sim de nossos pais, ou outras pessoas? Isso quando percebemos!
Quantos pais, nesse exato instante, não estão arquitetando o “futuro” dos seus filhos, organizando “agendas” de educação e atividades que lhes tiram a chance de serem crianças ou adolescentes? Não! Não é assim. Contos de fada e histórias e “sucesso” individuais são criadas para amenizar nossas tragédias, para nos trazer de volta a esperança. Mas não podem se transformar em rígidos modelos de identificação, em exemplos aos quais devemos seguir e sermos fiéis incondicionalmente. Quem, de fato pode ser um super-homem? Quem, de fato pode ser uma princesa? Isso é puramente ideológico, e perigoso, pois nos adoece. Pelo contrário, é em meio aos tropeços de nossas vidas que vamos delineando um caminho que, muitas, vezes, já é o nosso próprio "conto de fadas". Basta às vezes, olhar atentamente para os lados e perceber, sentir. Ao final, o conto de fadas pode até estar se realizando sim, mas não daquela forma idealizada. Reconhecer isto é que é difícil, pois nos espelhamos severamente em modelos quase que inalcançáveis.
São estes “modelos inalcançáveis” e “irrealizáveis”, como os dos contos de fadas, que podem fazer com que pais e crianças se envergonhem de suas “imperfeições”, daí a busca em tornarem-se “super-adultos”. Isto é um massacre ao psiquismo da criança, ainda não plenamente constituído, e que já é submetido a tal ordem de obrigações neurotizantes. É nesse processo que a relação afetiva vai dando lugar a um sistema de obrigações morais e “educativas” que proporcionam uma boa dose de tormento às crianças. Crianças assim, preparadas para serem “super-adultos” e realizarem seu conto de fadas a todo custo, acabam se revelando egocêntricas, narcisistas, ou estarão condenadas a um sofrimento por se sentirem sempre “pequenas”. Por isso a dificuldade em enxergar o outro na sua totalidade. Afinal, se a sua própria integridade está corrompida, como enxergará a integridade dos outros? Os outros serão apenas “pedaços” dos quais se aproveita para buscar uma ilusória “completude”.
E essa completude tem um nome: “perfeição”. É isso que muitos buscam como forma de sentirem-se, finalmente, bem, sem divida, sem culpa, sem sofrimento. Nesse terreno, portanto, não suportamos lidar com nossas “imperfeições”. Buscamos corrigi-las a todo custo, e cada vez mais cedo. Ou as cirurgias plásticas estéticas, por exemplo, não estão cada vez mais disseminadas e em idade cada vez mais precoce? Que modelo é esse que buscamos seguir? Que perfeição é esta que nos fascina? Metaforicamente poderia dizer que é a perfeição dos contos de fadas, mas na concretude do dia a dia, a perfeição está identificada nas atuais “celebridades”, por exemplo. São estas celebridades que “denunciam” nossas imperfeições. Não seria melhor pensar que todos somos “diferentes”? Não seria um comportamento mais saudável e humano?
É nos sentindo sem integridade, despedaçados, que buscamos os lábios de uma, o cabelo da outra, as pernas de outra ainda, os seios de uma outra. Ou, o cargo do outro, a casa maravilhosa de outro, o carro mais moderno de outro ainda. E por aí se caminha, tentando-se construir a completude, a perfeição e, em última instância, a paz interna. É claro que é natural que busquemos no outro algo que nos agrade, mas isso às vezes se torna um comportamento obsessivo. Enxergar o outro como feito de “partes” acaba nos levando a nos enxergarmos como um jogo de quebra-cabeças onde cada parte tem que juntar-se necessariamente para compor um todo, preenchendo um vazio e dando ares de “normalidade” e “perfeição”. Difícil, então, em meio a tudo isto, as crianças aprenderem a lidar com as diferenças. Elas querem escondê-las a todo custo, corrigi-las de qualquer modo, sempre na esperança de completar a obra, o quebra-cabeças, a si mesmas. Um dia isso ocorrerá? Jamais! São heranças de obsessões, por vezes, paternas e maternas, às quais se somam as obsessões do mundo contemporâneo, e que nos tornam reféns desde muito cedo.
Voltando ao filme, vemos que o resultado é paradoxal. De um lado, nossa personagem se "liberta" de um "destino" traçado antes mesmo de seu nascimento. Ela não viverá para sempre com seu príncipe. Mas, é justamente essa libertação que a permitirá atuar sobre seu próprio destino, construindo-o com seus próprios desejos, e não os de seus pais. É um exemplo que nos mostra o "peso" gigantesco que o desejo dos pais pode ter sobre uma criança que, para defender-se, segue o caminho da patologia, da doença psíquica. Pior, tal desejo dos pais, herdado de forma incondicional, sem negociação, obscurece nossos próprios desejos e até a percepção de que já podemos estar vivendo nosso próprio conto de fadas, ao nosso modo, mesmo sem nos darmos conta disso. E, isso tudo ainda agravado pelo fato de, culturalmente, teimarmos em esperar que um suposto destino se revele esplendoroso sobre nossas vidas. Não dá! Esperança é importante, mas não a ponto de nos tirar a responsabilidade sobre a construção de nosso destino.
(José Henrique P. e Silva - out/2013)
Quando se diz, então, que a “normalidade” é neurótica é porque, em nosso processo de constituição psíquica, em algum momento, nos deparamos com “limites” (pais, leis, regras sociais, valores etc.) que restringem nossos desejos e acabamos por sofrer com isso. Mas, sem este processo, sem estes “limites” como poderíamos olhar para o outro e respeitá-lo? Como poderíamos construir laços sociais se não tivéssemos restrições em nossos desejos? É uma boa questão! E não está fechada. Ou seja, conscientemente, sabemos da necessidade de limites para a vida social, mas a questão é que inconscientemente nossos desejos tentam “escapar” e é a luta por bloqueá-los que nos leva ao sofrimento. A grande saída é algum tipo de sublimação, que faça com que nossos desejos inconscientes se realizem de outra forma, como num relacionamento amoroso, num trabalho que nos causa felicidade, numa atividade em que nos sentimos bem etc.
A neurose, então, nos fala de uma “submissão” à regra, ao limite. E é o sofrimento daí gerado que leva a mecanismos de defesa como a obsessividade e a compulsividade, por exemplo. Sofrer pelo nosso próprio desejo não realizado, então, nos aprisiona a uma “dívida”, como se estivéssemos em “falha” permanente, em “culpa”. Um sentimento de que somos devedores de algo que não sabemos bem o que é, e nem sabemos ao certo quem é o nosso credor. O fato é que nosso desejo fica soterrado em meio às obrigações e temores de punição ou de limites. É uma dívida que temos, então, em sentido metafórico, com o pai, com a lei, com o limite, e isso nos leva, nos casos mais graves, à possibilidade de nos comportarmos como escravos e ficarmos paralisados, sem futuro, condenados a repetições e com pouca chance de crescer e sentir-se bem.
Madonna, há pouco tempo, dirigiu um filme (“W. E.”, 2011) que, com muita força, traz um exemplo digno de chamar a atenção. Aliás, o filme traz uma trilha sonora que, no seu romantismo angustiante, parece sempre estar à beira da revelação de uma tragédia da qual não se pode escapar. Algo que marca os medos do neurótico obsessivo. No filme, duas histórias correm em paralelo. O que as liga? O desejo de um pai e de uma mãe que, ao dar o nome de uma nobre inglesa à filha, depositam ali todo o desejo de que sua vida transcorra como um “conto de fadas”, bem ao estilo daquilo que as monarquias tentam nos mostrar com sua pompa, beleza e delicadeza.
Isso é complicado. Para desespero da criança sua história seria construída tendo como espelho a vida daquela família real, considerada “perfeita”, como num “conto de fadas”. Ela teria, então, que realizar-se na busca por seu próprio conto de fadas. Mas, ela só conhecerá tragédias. Ficará, portanto, aprisionada ao desejo dos pais, e não ao seu. Não é a sua história que terá que viver, e isso lhe causa dor. Livrar-se da obsessão, portanto, significaria livrar-se de uma pulsão de morte poderosíssima, que a impulsiona sempre ao fracasso. O desejo não era seu e sim dos seus pais, era a eles que estava “obedecendo” ao tentar manter-se na linha de conquistar o “conto de fadas” para a sua vida. Quantas vezes, não levamos um tempo demasiado para perceber que o que estamos fazendo não é para nossa satisfação, e sim de nossos pais, ou outras pessoas? Isso quando percebemos!
Quantos pais, nesse exato instante, não estão arquitetando o “futuro” dos seus filhos, organizando “agendas” de educação e atividades que lhes tiram a chance de serem crianças ou adolescentes? Não! Não é assim. Contos de fada e histórias e “sucesso” individuais são criadas para amenizar nossas tragédias, para nos trazer de volta a esperança. Mas não podem se transformar em rígidos modelos de identificação, em exemplos aos quais devemos seguir e sermos fiéis incondicionalmente. Quem, de fato pode ser um super-homem? Quem, de fato pode ser uma princesa? Isso é puramente ideológico, e perigoso, pois nos adoece. Pelo contrário, é em meio aos tropeços de nossas vidas que vamos delineando um caminho que, muitas, vezes, já é o nosso próprio "conto de fadas". Basta às vezes, olhar atentamente para os lados e perceber, sentir. Ao final, o conto de fadas pode até estar se realizando sim, mas não daquela forma idealizada. Reconhecer isto é que é difícil, pois nos espelhamos severamente em modelos quase que inalcançáveis.
São estes “modelos inalcançáveis” e “irrealizáveis”, como os dos contos de fadas, que podem fazer com que pais e crianças se envergonhem de suas “imperfeições”, daí a busca em tornarem-se “super-adultos”. Isto é um massacre ao psiquismo da criança, ainda não plenamente constituído, e que já é submetido a tal ordem de obrigações neurotizantes. É nesse processo que a relação afetiva vai dando lugar a um sistema de obrigações morais e “educativas” que proporcionam uma boa dose de tormento às crianças. Crianças assim, preparadas para serem “super-adultos” e realizarem seu conto de fadas a todo custo, acabam se revelando egocêntricas, narcisistas, ou estarão condenadas a um sofrimento por se sentirem sempre “pequenas”. Por isso a dificuldade em enxergar o outro na sua totalidade. Afinal, se a sua própria integridade está corrompida, como enxergará a integridade dos outros? Os outros serão apenas “pedaços” dos quais se aproveita para buscar uma ilusória “completude”.
E essa completude tem um nome: “perfeição”. É isso que muitos buscam como forma de sentirem-se, finalmente, bem, sem divida, sem culpa, sem sofrimento. Nesse terreno, portanto, não suportamos lidar com nossas “imperfeições”. Buscamos corrigi-las a todo custo, e cada vez mais cedo. Ou as cirurgias plásticas estéticas, por exemplo, não estão cada vez mais disseminadas e em idade cada vez mais precoce? Que modelo é esse que buscamos seguir? Que perfeição é esta que nos fascina? Metaforicamente poderia dizer que é a perfeição dos contos de fadas, mas na concretude do dia a dia, a perfeição está identificada nas atuais “celebridades”, por exemplo. São estas celebridades que “denunciam” nossas imperfeições. Não seria melhor pensar que todos somos “diferentes”? Não seria um comportamento mais saudável e humano?
É nos sentindo sem integridade, despedaçados, que buscamos os lábios de uma, o cabelo da outra, as pernas de outra ainda, os seios de uma outra. Ou, o cargo do outro, a casa maravilhosa de outro, o carro mais moderno de outro ainda. E por aí se caminha, tentando-se construir a completude, a perfeição e, em última instância, a paz interna. É claro que é natural que busquemos no outro algo que nos agrade, mas isso às vezes se torna um comportamento obsessivo. Enxergar o outro como feito de “partes” acaba nos levando a nos enxergarmos como um jogo de quebra-cabeças onde cada parte tem que juntar-se necessariamente para compor um todo, preenchendo um vazio e dando ares de “normalidade” e “perfeição”. Difícil, então, em meio a tudo isto, as crianças aprenderem a lidar com as diferenças. Elas querem escondê-las a todo custo, corrigi-las de qualquer modo, sempre na esperança de completar a obra, o quebra-cabeças, a si mesmas. Um dia isso ocorrerá? Jamais! São heranças de obsessões, por vezes, paternas e maternas, às quais se somam as obsessões do mundo contemporâneo, e que nos tornam reféns desde muito cedo.
Voltando ao filme, vemos que o resultado é paradoxal. De um lado, nossa personagem se "liberta" de um "destino" traçado antes mesmo de seu nascimento. Ela não viverá para sempre com seu príncipe. Mas, é justamente essa libertação que a permitirá atuar sobre seu próprio destino, construindo-o com seus próprios desejos, e não os de seus pais. É um exemplo que nos mostra o "peso" gigantesco que o desejo dos pais pode ter sobre uma criança que, para defender-se, segue o caminho da patologia, da doença psíquica. Pior, tal desejo dos pais, herdado de forma incondicional, sem negociação, obscurece nossos próprios desejos e até a percepção de que já podemos estar vivendo nosso próprio conto de fadas, ao nosso modo, mesmo sem nos darmos conta disso. E, isso tudo ainda agravado pelo fato de, culturalmente, teimarmos em esperar que um suposto destino se revele esplendoroso sobre nossas vidas. Não dá! Esperança é importante, mas não a ponto de nos tirar a responsabilidade sobre a construção de nosso destino.
(José Henrique P. e Silva - out/2013)
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