Talvez estejamos vivendo uma
época em que o consumo atingiu um fim em si mesmo. Muda-se, troca-se, compra-se
qualquer coisa sem nem mesmo saber ao certo sua verdadeira utilidade. Mas,
alguém nos diz que este é o procedimento padrão e passamos a consumir de uma forma que beira a irresponsabilidade. O bom senso foi embora há muito tempo.
Tudo bem, vivemos numa sociedade
onde o consumo é mesmo seu ponto central. Mas chegamos a absurdos, e como pensar sobre isto? Quem somos, na verdade, quando consumimos desenfreadamente?
Não quero falar de evolução tecnológica, muito menos da severa competitividade
entre as empresas que leva a uma disputa acirrada por mercados e pelo desejo do
próprio consumidor. Quero pensar um pouco sobre que tipo de homens e mulheres estamos
falando e estamos nos tornando?
Qualquer coisa que seja duradoura
está sofrendo um enfraquecimento hoje em dia. Alguns definem a época atual como “flexível”,
outros como “líquida”. O fato é que a perenidade e a durabilidade das coisas sofre ataques
diariamente, e nos impele a buscar o “novo”, a “novidade”, a qualquer custo. Permanecer
com algo por um tempo a mais é incorrer em "erro", é ficar para "trás", é ser
ultrapassado, é não ser “moderno”, é não estar “antenado”.
Bem, isso já dá muito pano para
manga. O fato é que em uma sociedade marcada pelo individualismo egocêntrico, pelo
narcisismo, difícil falar-se em comportamento solidário, em valorização do
outro. Não à toa, boa parte das doenças psíquicas atuais enveredam pelo campo
das psicoses, das psicopatias mais graves, das perversões, das fixações naquele estágio da vida
onde o reconhecimento da lei se torna uma impossibilidade.
Estamos sendo chamados a ser
fortes e insuperáveis. “Podemos tudo o que queremos”! O narcisismo está à solta,
e com vigor. Não à toa, também, os comportamentos violentos e criminosos
aumentam assustadoramente. E não só os crimes da rua, mas aqueles que violam
regras básicas, valores básicos. Não queremos perder em nenhum momento. Não
admitimos a derrota. Tiramos a bola de campo e a levamos para casa, mas não
aceitamos outra regra que não seja a nossa.
Este parece ser um possível
retrato desse sujeito contemporâneo, que não submete sua vontade à nada, que
desvaloriza o outro, que quer ganhar a todo custo, e com o mínimo de esforço
possível. Os “meios” perderam qualquer importância diante dos “fins”. Maquiavel
venceu! Teria tido um bom campo de estudo se vivesse nos dias atuais.
Este é o ser humano “total”,
completamente cheio. Parece não conhecer o vazio, nenhum buraco sequer. Nada
por onde escapar suas fraquezas, suas dúvidas, seus instantes de dor e
sofrimento. Ele parece vestir-se como um super-homem, adquire um ar de
indestrutibilidade. Sente-se poderoso e só enxerga vilões à sua frente. Vilões
a quem tem que enfrentar e destruir, tirando-os do seu caminho.
Mas, ele está “cheio” mesmo”? Está
completo? Não precisa de mais nada? Inevitável aqui lembrar da interpretação de Orson
Welles em Cidadão Kane (1941). Dizer que o filme
é maravilhoso é chover no molhado, pois está sempre nas listas de
"melhores filmes" já produzidos. Mas, porque eu o acho fantástico? Todos devem ter o
seu motivo e eu também tenho o meu. Para me explicar melhor vou reproduzir um
rápido diálogo de nosso personagem principal, Charles F. Kane e o seu
"guardião" financeiro, o Sr. Bernstein.
- … Sabe Sr. Bernstein, se eu não tivesse sido
um homem tão rico eu poderia ter sido um grande homem…
- O que teria gostado de ser?
- Tudo o que você odeia!
Kane veio de uma infância pobre, com pais
endividados, e construiu um império, acumulou riquezas e prazeres que nenhum
mortal poderia sonhar. Mas, e aí? Ele passou a vida conquistando… e perdendo
tudo, como em uma montanha russa. Sua insaciável busca, entretanto, não era
pelo dinheiro. Não à toa, diz ao Sr. Bernstein: Não é difícil ganhar muito dinheiro… quando a única coisa que se quer é
ganhar muito dinheiro.
Ao morrer, e pronunciar a palavra “Rosebud”, nosso
personagem simplesmente mostrou que existem coisas de que precisamos e que não
podemos simplesmente descartar nessa busca ensandecida por dinheiro e poder. Pior, essas coisas não podem ser
"compradas", como querem acreditar aqueles que se entregam facilmente
à crença de que "o dinheiro pode tudo". Foster Kane tentou comprar a
tudo, mas o preço que pagava era sempre muito alto: sua infelicidade, sua ruína
pessoal.
A incessante busca, mostrada pelo filme, para se
desvendar o mistério do significado da palavra "Rosebud", dita por
Kane quando de sua morte, revela a própria incapacidade da sociedade em
perceber o beco sem saída em que cada vez mais estamos entrando: o da
supervalorização da imagem e do sucesso, e o esquecimento de nós mesmos. Quanta infelicidade isso está gerando. A busca
incessante pelo significado da palavra “Rosebud”, então, é a busca que fazemos todos os
dias por reencontrar algo que "perdemos" ou "deixamos de
lado" em troca de alguma coisa que consideramos ou que nos dizem ser
importante.
Nesse sentido, a palavra “Rosebud” definia sim
nosso personagem: Kane era um homem que tinha saudades de uma época em que fora
feliz, quando criança, em sua família. Isso o atormentava, fazia de sua vida
uma aparente felicidade, corroída por uma destrutividade interna silenciosa, mortífera.
Mas, no momento de sua morte, ele foi sincero consigo mesmo e
"agarrou-se" à sua melhor lembrança, o seu "Rosebud".
Todos temos o nosso pequeno trenó, ou nosso brinquedo, aquilo que nos lembra de uma felicidade absolutamente honesta… ou não? Só precisamos saber o que fazer com isso. Vamos descartá-lo? Ou vamos lutar para mantê-lo por perto, como uma lembrança e uma certeza de que a felicidade é possível, e está sempre nas coisas mais simples ao nosso redor?
Todos temos o nosso pequeno trenó, ou nosso brinquedo, aquilo que nos lembra de uma felicidade absolutamente honesta… ou não? Só precisamos saber o que fazer com isso. Vamos descartá-lo? Ou vamos lutar para mantê-lo por perto, como uma lembrança e uma certeza de que a felicidade é possível, e está sempre nas coisas mais simples ao nosso redor?
(José Henrique P. e Silva - out / 2013)
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