A obra "Crime e Castigo", de Dostoiévski, dispensa maiores apresentações. É daqueles livros clássicos que duas, três ou mais vezes na vida temos que ler. A um tempinho atrás, assisti no canal Discovery Civilization, um episódio da série Grandes Livros (Great Books) que, justamente, tratava desta obra. Nada melhor, então, que comentá-la um pouco.
Roskolnikov, o personagem central, aparece na trama dominado pelas teorias do "homem grandioso". Recusa-se a ser um homem comum e parece destinado a mostrar que pode ser grande. É nesse pano de fundo ideológico que o assassinato pode adquirir ares de superioridade, desde que voltado para atingir um objetivo maior. É isto que vai mover Roskolnikov em sua trama. Uma busca pela grandeza que o levará a conhecer os piores tormentos psíquicos.
É inevitável, neste momento, a tentação de comparar Roskolnikov a um dos "grandes homens" de que falava Maquiavel, ou seja, um daqueles que fazem a história, principalmente através de sua "virtú". Mas, não seria bem isso que iria acontecer com Roskolnikov que, ao invés de ter o controle sobre sua vida, viria a conhecer intimamente a tortura psicológica de um forte sentimento de fracasso e culpa. Assim, longe de conquistar a grandeza típica de um "homem" de Maquiavel, apenas deu início ao pesadelo de seu caos moral.
O livro é definido como uma história de suspense, uma novela realista, envolvida pelas teorias sociais e políticas dominantes na Rússia de sua época. Qual era este pano de fundo? Dostoievski espantava-se em ver como, na sua época, as pessoas matavam-se facilmente, e ele tinha a visão de que o assassinato destruía a alma da sociedade russa e de seus compatriotas. Estamos falando de meados do século XIX e agora só me vem à mente Melanie Klein e sua ideia de que só a "culpa" pode permitir uma sociedade melhor. Era o que Dostoievski, de alguma forma, chamava à atenção.
Inevitável dizer, agora, que ainda fazemos parte de uma sociedade que continua cada vez mais distante da culpa. Ainda acreditamos numa suposta superioridade e grandiosidade, que possa ser conquistada, dispensando-se a moral. Um mal sinal.
Então, voltemos à obra. Roskolnikov, portanto, é um ícone do "solitário que mata para ser grande". Não é à toa que os personagens do livro são todos tirados da praça do mercado em São Petersburgo - um local de pobreza e maus costumes. Aliás, cabe destacar que Dostoievski, permanentemente em dificuldades financeiras, identificava-se facilmente nestas pessoas comuns. Via, nelas, um desespero que lhe era familiar e, ao mesmo tempo, universal, presente em qualquer sociedade.
Seus personagens, portanto, são indiscutivelmente isolados e vulneráveis. Será que não poderíamos fazer esta mesma leitura da atualidade? Como não identificar estes personagens de Dostoievski com os personagens de nossa vida atual, voltados para si mesmos, num isolamento egoístico e, ao mesmo tempo, absolutamente desamparados psiquicamente.
É a partir deste contexto que Dostoievski, portanto, levanta questões sobre a natureza humana: que tipo de homem eu sou? como vou viver depois de tudo o que fiz? Um assassinato pode ser justificado por objetivos grandiosos? O que Dostoievski escreve são nossas reações às complexidades que criamos sobre nós mesmos na condução da vida. Em sua biografia, por exemplo, vemos que Dostoievski sempre alugou apartamentos de esquina, sempre com duas ruas e uma Igreja à vista. Assim, poderia sempre lembrar das escolhas da vida: o caminho de Deus, ou algum outro. Afinal, em vários momentos sempre somos "tentados" para o mal.
Assim era Roskolnikov. Permanentemente tentado para o mal. Não era um assassino, mas, antes de tudo, um jovem confuso pelas novas ideias de grandiosidade, superioridade e poder. A trama se desenvolve a partir do assassinato que comete. Para ele, matar uma velha agiota não seria de todo mal. Afinal, já está velha e, pior, lucra com a desgraça dos outros. Além disso, sua irmã iria casar e ele precisava mostrar à família que estava bem de vida.Tudo parece, então, plenamente justificável.
Mas, logo após o assassinato, seu intelecto entra em conflito com sua compaixão nata. Ele tem muito mais impulsos bons e convive com grande ímpeto de liberdade. Se isso, entretanto, lhe dá ótimas oportunidades de fazer o bem, também pode fazer dele um assassino brutal, à medida que se irrita profundamente com sua existência comum. Não podemos esquecer que os intelectuais russos da época, atraídos por Hegel e Nietzsche, muito debatiam a questão do "homem extraordinário", que busca e conquista seus objetivos. É isso que pressiona Roskolnikov.
Desde o início, então, o que Roskolnikov faz é se envolver numa experiência com a "vontade humana", ou seja: Se não existe a vontade de Deus, então toda a vontade é minha - aí ele é tomado por sonhos de grandeza. Sua vítima escolhida era uma agiota, muito velha, feia e que logo ia morrer. Por que não pegar seu dinheiro e usá-lo para o bem?
É dessa forma que Roskolnikov sofre por não ter alternativa a não ser viver num mundo onde as pessoas mutilam e são mutiladas. A "vontade humana" é torturante. Escolher não é fácil e Dostoievski foi muito fundo na alma humana. Ele, como cristão ortodoxo, acreditava na promessa da redenção. Talvez até mesmo por seus próprios pecados: adultério, jogos, etc.
Ele sabia que tinha culpa, talvez por isso, tivesse compaixão. O fato é que, logo após o assassinato Roskolnikov se sente forte e diz "eu fiz isto por um ideal". Mas, ele não escaparia aos tormentos e angústias advindas de um fortíssimo sentimento de perseguição, que o levaria, gradativamente, a buscar o próprio "castigo".
Um dos traços marcantes desta obra de Dostoievski é seu "realismo". É bom recordar que na Rússia da época a literatura era uma válvula de escape que escondia a realidade sob a dramatização. Afinal, não era possível falar abertamente das questões sociais, a repressão do Czar era forte. É dessa forma que as pessoas esperavam os romances para saber o que se dizia sobre o regime político. É por isso que, no episódio de sua condenação à morte e imediata execução, quando o Czar muda sua pena simulando compaixão, causa muita turbulência no mais íntimo da alma de Roskolnikov.
Para Dostoievski nenhum crime é estranho, pois somos todos criminosos. Roskolnikov, então, sofre, se flagela. Ele não estava pronto para ser um homem sem sentimentos, que buscasse a grandiosidade a qualquer custo. Matar sem sentir culpa representaria a liberdade máxima, mas, ele tem febre, tem medo, se tortura psicologicamente.
Em certo momento, após o assassinato, ele se liga a uma prostituta cuja fé em Deus o abala. Ele tenta convencê-la da bobagem, mas não consegue. Pelo contrário, ela é que vai se oferece para compartilhar seu sofrimento. Até aí ele não sente remorsos pelo crime, só se desespera por não conseguir mostrar que é um grande homem. Seus sonhos o atormentam. Ele pretende ser um a-moral... mas não consegue. Se desespera a todo instante, nunca sabe se está sendo acusado pelo crime ou não. Surgem estados persecutórios inegáveis.
O que está claro é que ele não está fugindo, mas justamente indo em direção ao castigo. Ele sabe que precisa se entregar. O que se percebe é que a busca da liberdade individual leva à decadência moral. Por exemplo: exilar-se ou fugir seria como um suicídio. Ele não conseguiria lidar com isso. Então, ele se entrega. Mas não consegue se arrepender e dizer que sua escolha pela liberdade estava errada. Sente-se completamente isolado na prisão. Só a partir do reencontro com Sônia, a prostituta, é que ele passa a sentir esperança e amor. Seu "isolamento" parecia que ia ter um fim.
A obra de Dostoievski pouco retrata a paisagem, dos locais, mas muito do indivíduo e sua personalidade. Não há dúvida que existem muitos Roskolnikov perambulando por aí, e destes, muitos estão planejando "matar a sua agiota" também. Roskolnikov, sem dúvida, é um personagem que já anunciava o futuro... ou seja, o nosso presente. Este é o Dostoievski profético. Os 730 passos que separavam o quarto de Roskolnikov da casa de sua vítima não o separavam da grandiosidade, mas de seu pior castigo.
Que tal, em nossos sonhos de grandiosidade deixar algum espaço para a culpa? A "culpa depressiva" pode ser extremamente importante para facilitar nossos laços sociais.
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