Já sabemos que o escândalo do mensalão, enquanto escândalo político e midiático foi um evento narrativo prolongado, formado por um conjunto de tramas que vão sendo aprimoradas e revisadas à medida que o acontecimento se desdobra.
Seguindo a lição de John Thompson, foi uma espécie de história prolongada que apresentou uma narrativa indeterminada, em contínua evolução, vítima de surpresas, onde certezas desapareciam e novas hipóteses surgiam deixando a narrativa ainda mais complexa.
O objetivo deste capítulo será o de reconstituir essa narrativa prolongada e complexa em sua evolução no tempo, a partir de seus elementos principais, explicitando-se seus desdobramentos, com suas investigações, revelações, alegações e contra-alegações. É nesta reconstituição que poderemos visualizar o embate simbólico presente nesta complexa narrativa que foi o escândalo do mensalão.
Trata-se, então, de uma reconstituição do "contar a estória" do escândalo do mensalão. Trata-se de trazer à tona os caminhos que a cobertura da Folha de S. Paulo seguiu e através dos quais se deu a luta simbólica.
Limitaremo-nos, agora, a apresentar aquela que foi a fase inaugural do escândalo político-midiático, a fase do "pré-escândalo", ou seja, o momento compreendido pela revelação do fato e sua repercussão imediata. Vejamos o desenrolar dos fatos.
Sábado, 14 de maio de 2005, chega às bancas a edição n. 1905 da Revista Veja[1]. Na capa, apenas uma chamada discreta no cabeçalho, mas em seu interior uma longa matéria revelando o que se tornaria a maior crise do governo Lula.
Segundo a revista, em meados de abril do mesmo ano, dois falsos empresários estiveram no prédio central dos correios, em Brasília. De acordo com a gravação, eles tinham interesse em participar das licitações e queriam conhecer como as coisas "funcionavam" lá por dentro. Foram até Maurício Marinho, chefe do Departamento de Contratação e Administração de Material, um setor subordinado à Diretoria de Administração, sob o comando de Antonio Osório Batista, ex-deputado do PTB-BA e indicado do Deputado Federal Roberto Jefferson, presidente do PTB. Marinho foi claro com os empresários: o pagamento de propina era necessário para participar dos negócios e o dinheiro ia para o partido, via Roberto Jefferson.
Ao final, a título de "adiantamento" os empresários ofereceram 3 mil reais e Marinho os aceitou. A fita a que a revista Veja teve acesso tem 1h e 54 min, e lá haviam todos os ingredientes para um bom escândalo. Durante algumas semanas, antes da publicação, a revista em suas investigações confirmou praticamente tudo o que Marinho tinha dito acerca de licitações, promoções, novos diretores, etc., e foi em meio a tudo isto que Marinho alegou problemas no fígado e foi afastado por Osório Batista, antes mesmo da publicização do fato.
A matéria trazia uma denúncia fortíssima. Eram sete páginas, repletas de tons fortes, com muitas fotos de Marinho e trechos de sua fala. O jornalista dizia logo no início da matéria:
"O caso que voce vai ler e ver... é um microcosmo da corrupção no Brasil. Dá arrepios pensar que a mesma coisa está ocorrendo agora em milhares de outras repartições, prefeituras, câmaras municipais".
Um quadro montado pela revista evidenciava que a corrupção não pára na burocracia, e sim avança para a política, ou vice-versa. No mesmo dia, à noite, o Jornal Nacional exibe uma reportagem, com mais de dois minutos, com trechos cedidos pela revista Veja. A repercussão, agora, teria um alcance mais ampliado.
No dia seguinte, no domingo, dia 15 de maio, a Folha de S. Paulo dedica sua primeira matéria sobre o assunto. Nada intenso, mas já repercutia o fato. É esta reportagem que inaugura o que viria a ser uma das maiores coberturas jornalística de um tema e, o maior escândalo midiático da República recente no Brasil. Vejamos mais em detalhes.
Então, é através de uma pequena matéria escrita pela sucursal de Brasília que o jornal repercute o que havia sido revelado e noticiado, respectivamente, pela Veja e pelo Jornal Nacional. A Folha de S. Paulo[2] se limita a relatar o fato trazido à tona. Interessante que neste texto condensado apresentado pelo jornal o nome do PTB aparece seis vezes e o de seu presidente, Roberto Jefferson, outras cinco vezes. Estava muito claro que se havia algo a ser investigado no centro estava o PTB e, principalmente, seu presidente Roberto Jefferson.
De informação nova, o que a matéria traz é um comentário de José Genoíno, então presidente do PT, referindo-se às acusações:
"essas coisas não acontecem com o PT. Quando acontece, a gente não encobre nada. Quem colocou o [Cláudio] Fonteles na Procuradoria foi o PT, e ele não engaveta nada. Ao contrário de governos passados, especialmente o PSDB".
Uma frase que não nega diretamente a denúncia, mas que tenta preservar o PT de qualquer envolvimento.
Mas, nesta curta frase, José Genoíno se utiliza de algumas estratégias de construção de sentido como a "diferenciação" e o "expurgo do outro" e acaba, então, colocando em prática um modo de operação de sentido chamado de "fragmentação".
Ou seja, ele enfatiza uma diferença que seria peculiar ao PT, no caso a ausência de conivência com a corrupção, e, em seguida, nomeia claramente o "outro" que é seu inimigo, no caso, o PSDB. É assim que José Genoíno tem o intuito, com a frase, de reforçar a diferenciação do PT como partido, como também já apontar para o expurgo do PSDB, o "outro", o adversário, o natural inimigo.
São estratégias que tentam obter a desejada sustentação simbólica apostando ainda mais na fragmentação e na disputa política e partidária. Aliás, sempre um bom modo de desqualificar, logo no início, uma possível acusação.
Certamente, foi uma estratégia com alto potencial de risco, pois desqualifica a critica, nomeia um adversário e não deixa espaço para uma eventual demonstração de humildade e interesse republicano de investigação. Foi uma resposta que se resumiu à questão estritamente política, dentro do núcleo duro do campo do "jogo político".
A cobertura política do jornal, neste dia, entretanto, como não poderia ser diferente, ainda é dominada por outro tema, o do choque entre o Executivo e o Legislativo. Tema no qual uma das figuras centrais é o presidente da Câmara dos Deputados Severino Cavalcanti, que vem mantendo um vai-e-vem em seu apoio ao governo, sempre condicionado a algum benefício político. Um exemplo está na notícia de que, logo após Lula ter negado um reajuste salarial para os militares, Severino teria dado uma declaração de apoio aos militares e suas famílias, além de pedir abertamente a saída de Luiz Gushiken (Comunicação de Governo) e dizer que Lula não dá o apoio necessário para que Aldo Rebelo (Coordenação Política) desempenhe seu papel com satisfação.
Está em jogo, no conflito Executivo–Legislativo, o controle sobre a articulação política da base governista no Congresso. Algo tão decisivo que Lula estaria pensando, segundo o jornal, em devolver as atribuições da Coordenação Política à Casa Civil, de José Dirceu, revertendo o que foi feito na reforma ministerial de janeiro de 2004. Esta solução aparece, na leitura do jornal, como a mais viável, pois Lula estaria com a intenção de demonstrar força na área política para evitar um quadro ainda de maior descontrole da base.
O jornal também enfatiza as críticas que o presidente do Senado, Renan Calheiros, fez ao veto de Lula ao reajuste salarial para funcionários do Congresso e do TCU. É bom lembrar que, justamente nesta conjuntura, segundo Renan, estaria falhando o apoio de Lula à derrubada da "verticalização" (repetição, nos Estados, da aliança federal), pois os petistas estariam resistindo. Uma das maiores críticas ao presidente Lula é que ele estaria fazendo um governo solitário, com muito pouco movimento pessoal. Lula estaria inerte e é nessa inércia que a oposição já estaria apostando para 2006.
Essa crise que afeta o relacionamento entre os dois poderes já vem se arrastando desde, principalmente, a eleição para a presidência da Câmara dos Deputados, no início do ano, e, ainda nesta edição, o jornal trouxe entrevistas com dois cientistas políticos para discutir os riscos desta conjuntura em que o governo está "sob pressão". Trata-se de Fábio Wanderley Reis, professor da UFMG, e de Renato Lessa, professor do Iuperj.
Entrevistado pelo jornal, Reis[3]diz que não existiria risco institucional de ingovernabilidade e paralisia mais sério. O impacto mesmo seria na aprovação de reformas importantes, até porque a economia vem mantendo seu desempenho satisfatório. O governo estaria tentando evitar ceder demais ao Congresso para não cair em descrédito perante à população, mas não poderia deixar de agir com realismo, diz Reis. Ele ainda nos diz:
O aspecto mais preocupante da crise nas relações com o Congresso me parece consistir em que ela se associa com o desgaste simbólico não só do governo mas também do próprio Congresso, com a "opinião pública"... apesar de as pesquisas mostrarem ainda grande apoio do eleitorado à figura de Lula, temos a internet cheia de materiais negativos, os colunistas e articulistas da imprensa cada vez mais agressivos, certo ânimo de desmoralização e desqualificação galhofeira.
Por seu lado, Lessa[4], num tom mais duro, diz que os dois poderes agem de forma "autista e predatória", prisioneiros de uma agenda "medíocre". Fazendo uma forte crítica ao conflito entre os poderes Lessa nos diz:
Isso vem do padrão que a política brasileira adotou nos últimos 20 anos... significou a captura do Executivo pelo Congresso. Isso que meus colegas chamam de presidencialismo de coalizão, de forma elegante, na verdade é uma prática predatória... uma estratégia de assalto ao Executivo... as relações estão completamente contaminadas. [além do mais] O PT não demonstrou capacidade de operar no Legislativo nesse padrão cultural.
Apesar das críticas fortes, Lessa nega qualquer possibilidade de conflito institucional mais sério, afinal, diz que não se pode tentar entender a política simplesmente a partir da relação entre esses dois poderes, pois a esquerda estaria domesticada no centro, os militares quietos, e qualquer radicalização seria apenas pontual.
Mas, de fato, o ambiente estava carregado. E, enquanto isso, o escândalo do mensalão apenas se insinuava nas páginas da Folha de S. Paulo. É neste cenário que a pauta vai, gradativamente, alterando-se.
A repercussão na segunda-feira é imediata. Qualquer leitura que se faça, ainda que superficial, da matéria da revista Veja, se constata ali um elemento muito importante para que a Folha de S. Paulo decidisse repercutir o fato de forma mais intensa. Existe ali uma revelação, ou alegação, inicial. Qual seja, a de que existem indícios de corrupção no "governo" do presidente Lula. Não se trataria, então, de um caso isolado.
É desta revelação inicial escandalosa que parte a Folha de S. Paulo. Por exemplo, em seu comentário, Fernando Rodrigues[5] nos diz:
Corrupção no serviço público não é novidade. Mas, quando uma operação criminosa é bem documentada, como nesse caso dos Correios, o país tem um momento especial. Pode escolher entre dois caminhos. O convencional, limitando a punição ao corrupto mais visível. A outra hipótese é mais dolorosa: faz-se uma ampla investigação para condenar o maior número possível de gente envolvida. Para o bem e para mal, investigação ampla no Brasil depende de CPI. O juiz maior de como proceder nesse episódio dos Correios é o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Só um sinal verde do Planalto abrirá caminho para uma CPI no Congresso. Não é uma decisão fácil.
Fernando Rodrigues está especulando sobre uma postura que o governo federal, idealmente, deveria ter. Mas, o apelo é mesmo para a Folha de S. Paulo e a imprensa, de forma geral. E, se ele já antecipa que a decisão de uma CPI no Congresso não será nada fácil, tanto pela disposição dos congressistas quanto do próprio presidente Lula, podemos ler, também, que é nesta "dificuldade" que o jornal terá que atuar. Mas, como atuar? De forma investigativa.
Poderia dizer que este caráter investigativo é um marco na tradição recente da Folha de S. Paulo, mas, na realidade, quando se fala em "investigação" praticamente se está definindo a posição de um jornal quanto à política. Afinal, não são poucos os teóricos da Comunicação ou jornalistas, que fazem uma associação direta entre jornalismo e democracia, com uma clara função de "mediador social". Isso porque, segundo Medina (2006, p. 30),
a estrutura política tradicional não dá conta da produção simbólica coletiva. O profissional que dá significados a tudo isso, ao narrar o que se passa à sua volta, não pode se ater às versões dominantes... Seu lugar é, acima de tudo, o da inquietude da viagem: o repórter se empenha no muito perguntar, muito ouvir e observar, muito pesquisar e estudar na batalha conflitiva dos sentidos. Toda a narrativa que se constrói a partir da experiência contemporânea representará simbolicamente um delicado tecido em que as tensões das microestruturas de poder e estruturas intermediárias de decisão procuram de alguma forma fazer valer seus interesses, suas competências e ideologias, sobretudo sua visão de mundo, frente à macroestrutura.
Realizar esta "inquietude" é a tarefa fundamental do jornalismo "investigativo", ou seja, aquela postura que vai, justamente, em busca do "diferente" da ordem natural das coisas. Como nos diz Silva (2006, p. 55), "em síntese, pode-se dizer que o 'jornalismo da boa notícia' anda a passos de tartaruga, enquanto que o jornalismo denunciativo anda à velocidade de coelho, embora ambos tenham um compromisso com o interesse público". Ainda segundo Silva (2006, p. 59), não se trata, evidentemente, de postura tão simples, pois, na prática,
Fatos jornalísticos despertam o interesse público, mas esta atenção é fugaz, pois a atenção jornalística logo se desloca para outro "foco de incêndio" noticioso, deixando para trás numerosas denúncias. Essa vertigem processual acaba por funcionar como um beneplácito dos ilícitos, pois nem sempre a imprensa volta à cena das irregularidades para verificar se tiveram consequências legais e administrativas. A denúncia, por si, já representa um tipo de punição, qual seja, a exposição pública e vexaminosa dos "responsáveis" pelas irregularidades.
São situações que, sem dúvida nenhuma, vão estar evidentes em nossa narrativa mas, não é nosso objetivo avançar mais nesta questão, e sim, tão somente, deixar evidente esta associação muito comum entre jornalismo – investigação – democracia. Uma associação que sempre merecerá cautela e observação sistemática por parte de pesquisadores, pois, como Lima (2006), ao falar do que considera uma das mais curiosas e persistentes contradições do jornalismo político brasileiro, ou seja, a própria reflexão crítica sobre seu papel, e da mídia, como ator político, nos diz:
Os principais analistas da grande mídia em suas colunas, comentários e livros continuam, apesar de todas as evidências em contrário, insistindo em se considerar como expressão da "opinião pública" – e não só como seus formadores. No entanto, com raríssimas e esporádicas exceções, a ausência da reflexão crítica permanece". Essa seria uma das fortes razões pelas quais não surge um debate mais profundo sobre"o papel da mídia na mídia". Por que essa contradição permanece?
Isto é algo sobre o que devemos estar permanentemente atentos. Mas, voltando à atenção que o jornal deu à revelação inicial, vemos que o título de capa do dia seguinte, 16/05, dá seguimento à forma como foi entendida pela Folha a revelação da Revista Veja, ou seja, a existência de um esquema de arrecadação de recursos públicos, de forma ilegal, para o PTB, via Roberto Jefferson. Desse modo, o título é uma afirmação: "No poder, arrecadação do PT cresce", é o título de capa.
... continua
[1]“O homem-chave
do PTB”, Revista Veja, edição 1905 – 18 de maio de 2005, acessada em 07/08/10 e
disponível em http://www.veja.com.br/acervodigital/home.aspx
[2] “Correios vão apurar caso de corrupção”, Folha de S. Paulo, 15/05/05, acessado em
12/11/10 e disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1505200505.htm
[3]
Reis,
Fábio W. “Para cientista político não há ameaça de crise institucional”,
entrevista concedida ao jornal Folha de
S. Paulo em 15/05/05 e disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1505200508.htm
[4] Lessa, Renato.
“Governo e Congresso têm comportamento autista, afirma Lessa”, entrevista a
Rafael Cariello, da Folha de S. Paulo
em 15/05/05 e disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1505200509.htm
[5] Rodrigues, Fernando. “Aqui é mais seguro”, comentário
na Folha de S. Paulo do dia 16/05/05,
acessado em 10/08/10 e disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1605200505.htm