terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Uma legislação penal frágil

Não é novidade que nossa legislação penal é extremamente frágil em, de fato, garantir punições. Talvez seja reflexo mesmo dessa nossa, cultural e histórica, benevolência para com a impunidade. E não tem sido diferente em casos de psicopatias graves que envolvem criminosos "irrecuperáveis" para a vida em sociedade. Uso o termo entre aspas só para destacar o quanto é difícil assumirmos o fato de que... existem "irrecuperáveis". O psiquiatra Guido Palomba (Revista Psique, dez/2013) destaca essa questão quando fala do caso de "Champinha" que, só vai continuar afastado da sociedade porque ocorreu o que chama de "gambiarra jurídica", ou seja, pelo ECA (legislação penal) ele seria "recuperável", sendo necessário, então, usar-se da legislação civil para interditá-lo em um estabelecimento psiquiátrico e garantir a segurança social. Nossa legislação penal é absolutamente arcaica, no pior sentido.

Por um sentido na vida! (texto 1 - o vazio e a morte)

São tempos difíceis. Guerras devastam as regiões e as pessoas estão famintas, frágeis e doentes. É quando nosso cavaleiro recebe a visita da "morte", que veio buscá-lo. Chegara o seu momento, mas ele resiste e diz que, apesar de seu corpo estar pronto, sua alma ainda não o está, e, num esforço de resistência, propõe um jogo de xadrez para ganhar um pouco mais de tempo. Os fãs de filmes clássicos já sabem que estou falando de “O Sétimo Selo” (1956, I. Bergman), um filme extraordinário que nos leva a pensar na vida a partir de nosso medo da morte.

Mas, pensando nesta partida de xadrez, ela já não estaria fadada ao fracasso, afinal, como se poderia vencer a morte? O fato é que nosso cavaleiro não leva isto em consideração e parte para a disputa. O que tem a perder? Bem, é a partir daí que uma angústia vai se instalando e ele passa a questionar-se: um tempo a mais de vida, mas viver para que? Num certo momento, uma confissão nos mostrará toda a carga desta angústia. É quando ele nos diz:
O vazio é um espelho que reflete meu rosto. Minha própria imagem me causa repulsa e medo. A indiferença que eu sinto pelo próximo me levou ao isolamento. Agora eu vivo em um mundo de assombrações, prisioneiro das minhas próprias fantasias (...) Como podemos ter fé, se não temos fé em nós mesmos? (...) Eu não quero fé ou suposição, eu quero conhecimento! Eu quero que Deus estenda a mão para mim, mostre seu rosto e fale comigo (...) Eu clamo por ele na escuridão, mas parece que não há ninguém lá (...) Então a vida é um terror sem sentido (...) Minha vida se resumiu em buscas sem sentido, a ações e conversas tolas e vazias. Uma vida inteira sem sentido. Não digo isso com amargura ou discriminação, como tantas outras pessoas que também vivem assim. Mas eu quero usar esta trégua [jogo de xadrez] para fazer algo que tenha significado (Antonius Block, o cavaleiro).
Confesso que sempre considerei este trecho do filme magnífico. Uma confissão que nos mostra como uma vida esvaziada de sentido pode intensificar o medo da morte. Não seria, portanto, a morte em si, ou o "nada" que viria após ela, que nos causaria medo e repulsa. Seria o olhar-se no espelho e ver que a vida está seguindo sem maiores significados o que realmente nos espanta, embora não o percebamos tão facilmente. É este espelho, que reflete meu vazio, que me traz, então, o medo da morte como companhia.

Na confissão de nosso cavaleiro ele diz buscar o conhecimento, quer ver Deus, quer uma prova de sua existência, quer algo que lhe dê algum significado além do vazio que sente. Ora, não há conhecimento ou racionalização suficiente que acabe com este medo. A ciência e a religião podem nos fornecer algum amparo e acolhimento, mas não eliminam esse sentimento que Freud, apesar de ter dúvidas sobre ele, o situava num nível muito primário de nossa vida. O tal "sentimento oceânico", que nos impele a ter a esperança de uma proteção contra nossas dores e angústias. Esse sentimento é algo com o que temos de lidar ao longo da vida e que nos impele, portanto, à transcender numa tentativa de encontrar respostas.

Talvez não haja mesmo como vencer a morte numa partida de xadrez, mas pode-se deixar de temê-la. Como? Talvez a resposta esteja na forma como lidamos com nossa finitude. Daí que o melhor talvez não seja especular sobre a morte em si ou o que vem após, e sim sobre nossa própria existência, neste momento. Não é o nosso "fim" que nos atemoriza, mas o fato de nos imaginarmos vivendo uma vida sem significados. Precisamos contrapor ao "medo" uma certa "ingenuidade" em nossa forma de viver. A leveza e a certeza de estarmos dando significados para nossas ações cotidianas é que nos manterá tranquilos e confiantes de ter encontrado um "sentido" para estar vivos. Só isto esvaziaria o sentido do “vazio” e do medo que ele nos impõe.

Mas, me parece que nos dias atuais existem sérios problemas quanto a isso, afinal somos alvos de uma intensa campanha para nos mantermos "imortais", "jovens", “belos” e “fortes”, o que só nos distancia dessa ingenuidade e leveza. Isso é devastador! Puro delírio! Arrogância! São tempos narcisistas, de uma infantil onipotência, de desconhecimento de limites, de não reconhecimento da castração, de forte perversão, enfim, tempos em que nos achamos espertos o suficiente para driblar a morte, numa tentativa de não a temermos. Não são poucas as pessoas que padecem deste mal. A individualidade e a competitividade estão enfraquecendo os laços sociais. Todos nos pedem que sejamos "melhores" que alcancemos logo o "sucesso", e atacam a simplicidade e a leveza como se fossem pragas. E, em grande parte, topamos a brincadeira.

Se continuarmos assim, não só estaremos perdendo a batalha do xadrez para a morte, como estaremos deixando de viver e deixando o vazio tomar conta. Lutar contra esse narcisismo, que só produz onipotências e ausência de limites, é uma tarefa dura, árdua, pois cresce como erva daninha nos lembrando, em muito, aquele homem “selvagem” de Thomas Hobbes que, se deixado à solta, devora ao outro como um lobo esfomeado.

Assim, não é o suposto "vazio" trazido pela morte que mais nos assusta, mas o vazio que permitimos em nossa vida e que, diante de um espelho, nos assusta tanto. É este vazio que também nos transforma em lobos, ou nos faz cair doentes. Não à toa os espelhos da atualidade só nos mostram a aparência de nossos corpos. Mal conseguimos ir além disso. Que interioridade possuímos? Qual a nossa subjetividade? Não a enxergamos mais, nem mesmo sabemos se ainda a possuímos. Nos limitamos severamente ao nosso corpo físico. Me parece muito pouco!

(José Henrique P. e Silva - out/2013)

domingo, 26 de janeiro de 2014

"Mata-me de Prazer" e a paixão que fusiona!

"Talvez alguém da planície como eu não esteja pronta pra viver nas alturas. Talvez!...Talvez!".


Esta é uma das últimas frases de Alice no filme "Mata-me de Prazer" (2001). Alice e Adam vivem uma daquelas aventuras onde só há espaço para uma tremenda atração e paixão na sua forma mais ardente e alienante, ou seja, naqueles momentos em que fechamos os olhos e deixamos que os sentidos tomem conta do resto. É o momento em que o desejo fala mais alto, praticamente não deixando espaço para racionalizações, culpas ou indecisões.

O impressionante nesses momentos de intensa paixão é a quase dissolução da individualidade e o surgimento de outro campo onde ambos estão em "fusão". Claro que, num momento assim, de fusão, é muito alto o risco de uma "idealização" da outra pessoa, como se ela fosse a "única", absolutamente indispensável. É esta "idealização" que, entretanto, por vezes, não resiste às contingências da realidade que vai se impondo lentamente com suas exigências e responsabilidades, e trazendo consigo algumas "frustrações" e amarguras, fazendo com que a continuidade da paixão, naquele mesmo ritmo intenso, se torne uma impossibilidade.

Sempre vou respeitar e admirar a paixão, afinal, não é porque ela traz um forte risco de frustração que deve ser abandonada. Aliás, conseguimos mesmo abandoná-la? Afinal, quem já não enfrentou tudo isto? Quem não corre o risco de enfrentar tudo isto? Quem não deseja e torce por tudo isto? Apesar de ser um momento de absoluta ausência de racionalidade, está repleto de... vida! Está aí para ser vivida, nem tanto para ser pensada. Pode trazer consequências dolorosas? Pode! Mas há como evitar senti-la em alguns momentos da vida?

(José Henrique P. e Silva)

sábado, 25 de janeiro de 2014

A lembrança como companheira


Essa frase me lembrou uma rápida conversa que tive com uma amiga um tempinho atrás. Me recordo que disse a ela que quando envelhecemos nos tornamos muito felizes com nossas lembranças. E ela me respondeu: "que triste, não quero isso para mim. Não quero viver de lembranças".

Eu fiquei calado, meio que atônito, sem palavras. Mas, depois, percebi que ela sendo ainda muito nova e podendo ter toda a mobilidade e disposição necessária para caminhar e experimentar sensações e encontros os mais diversos, não percebeu que, com o tempo, a "lembrança" de tudo isto pode ser mesmo uma de nossas melhores companheiras.

É nesse ponto que recordo sempre do meu pai sempre dizendo: "Eu vivo muito bem com minhas lembranças, e as de menino são as melhores", e sempre com um sorriso. Não tenho dúvida que chegará o momento em que as lembranças também terão um lugar ainda mais especial ao meu lado. Será o momento em que talvez eu já não tenha mais tanta disposição de ir ao encontro dos outros. Nesse momento, aí sim, tendo as lembranças bem ao meu lado, poderei me encontrar novamente com tudo o que me fez feliz... e simplesmente sorrir!!! 


E por que não? Lembrar também é uma forma de encontrar novamente!!! Não é?
"...Uma vez ou outra, quase todos nós nos sentimos aprisionados por coisas que pensamos ou fazemos, enredados por nossos impulsos ou escolhas idiotas; presos em alguma infelicidade ou medo, atolados em nossa própria história. Sentimo-nos incapazes de seguir adiante, mas apesar disso acreditamos que deve haver uma maneira (...) E como mudança e perda estão profundamente conectadas - não pode haver mudança sem perda..."

(Stepen Grosz, A Vida em Análise).

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

A verdade liberta?

Uns dizem que "a verdade liberta", outros que "a verdade dói", outros ainda que, "mais cedo ou mais tarde a verdade se impõe". Enfim, o fato é que a "verdade" é daqueles temas onde não se chega a um termo final. O que me parece muito claro é que, não é, propriamente, uma missão nossa, um destino nosso, buscar a verdade. Não que estejamos imersos em mentiras mas, como abrir mão de nossas fantasias? Como abrir mão das expectativas criadas em torno de algo que sabemos irrealizável? E mesmo quando buscamos a verdade, não fazemos isso tão facilmente, pois geralmente estamos coagidos ou pressionados para tal. Na realidade, buscar a "verdade" é praticamente um ato sobre-humano ou não-humano. A ciência? A religião? Bem, até que a ciência e a religião têm essa pretensão, mas não chegam tão longe assim. Ainda são como que "ilusões", que nos afagam e consolam.

Mas, estamos falando de um processo impossível? Acredito que não. Desde que essa "verdade" seja a nossa verdade. Aquilo que nos diz respeito mais intimamente, aquilo que fala de "eu mesmo". Não aquilo que me define (também acho muito complicado esse conceito), mas aquilo que me permite ser "eu mesmo" hoje. Essa busca sim, podemos fazer e será sempre vasta em descobertas. Mas, o que nos levaria a buscar essa "verdade" de "eu mesmo"?

A tragédia de Édipo tem algo a nos dizer sobre essa motivação. Há algum tempo estive no Teatro Eva Herz, na livraria Cultura, e assisti à peça "Édipo" na versão de Elias Andreato. Foi aí que percebi esta nuance que sempre me aparecia em um plano secundário. Édipo é daquelas tragédias mais conhecidas e, para a psicanálise, Freud praticamente a imortalizou e popularizou no seu famoso "complexo". Sabemos de seu crime, de sua maldição, de seu atentado contra a própria visão, de seu exílio, enfim, de seu martírio. Mas, fica sempre uma dúvida: Por que ele teria caminhado em direção a esse trágico desfecho de forma tão intensa e, convenhamos, de forma voluntária? Édipo buscava a verdade... sobre si mesmo!
 
E a buscou de forma incessante, ainda que para seu próprio sofrimento. Guiado por um forte código moral, ele buscou a resolução de um crime, sem saber que era o próprio autor. Mas, o interessante é que à medida que os indícios foram se tornando mais intrigantes e aproximando-se dele, ainda assim, mais ele insistiu na busca. Seu desejo em conhecer a verdade, então, teria algo de libertador para si mesmo? Para Édipo, essa busca, por pior que fosse, e por mais sacrifícios que impusesse, seria mais reconfortante que a insegurança que experimentava diante de tantas dúvidas. Ao final, a revelação da verdade, ainda que trágica, lhe trouxe algum conforto. Perdeu o poder, perdeu tudo o que tinha, ficou cego, vagou sem destino, mas teve a chance de encontrar-se consigo mesmo e, enfim, entender o que lhe havia acontecido. Ora, como toda boa "tragédia", Édipo nos coloca frente à nossa própria "insegurança", traço marcante da condição humana. Era contra a "insegurança", de não saber "quem era", que Édipo buscou a verdade. 

E hoje? Bem, essa mesma "insegurança", nos dias atuais, é combatida pela ideia de fácil conquista da felicidade e do sucesso. Somos coagidos a isso a todo instante. Claro que nosso mundo atual parece mais luminoso, colorido, diverso, repleto de oportunidades e prazeres. Muita aparência, entretanto. E tanta luminosidade acaba por causar alguma cegueira, o que, por sua vez, só potencializa a mesma insegurança. Ao contrário de Édipo! Acho que não é difícil concordarem que vivemos uma época de forte insegurança, principalmente emocional.

Nosso mundo atual, então, é um mundo de aparências, de imagens, repleto de nuances, nos perdemos em seu colorido e em sua luminosidade. E, na imensa maioria das vezes, preferimos isso a lidar com nossos limites e com o que nos assusta. Bem, não estou aqui para julgar ninguém, mas resta saber se podemos, de fato, encontrar algo da felicidade ocultando nossa insegurança, e por quanto tempo. Não precisamos chegar ao destino de Édipo, mas não podemos virar os olhos à nossos medos e fraquezas. Não dá para virar os olhos por muito tempo. Existe, então, algo de libertador aí, e que pode ser buscado, para nossa própria paz.  (José Henrique P. e Silva)

domingo, 19 de janeiro de 2014

Estranha Compulsão

"Estranha Compulsão" (Richard Fleischer, 1959) é um filme clássico que mostra aquelas tentativas de se realizar um "crime perfeito", e se baseou no famoso caso dos criminosos Leopold e Loeb, nos EUA. "Festim Diabólico" (Hitchcock, 1948) já seguira essa mesma linha. Lembram de James Stewart em meios àqueles dois e o famoso baú em que se encontrava o corpo? Então, a trama do filme se desenvolve em torno do assassinato de um garoto, e dois amigos, Artie e Judd, com personalidades distintas, mas um mesmo desejo de reconhecimento, vão apostar no "crime perfeito" (aquele que jamais é descoberto). O diálogo abaixo retrata bem o quanto um precisa do outro para sua própria glorificação.
 
 Artie - Faremos os tiras de tolos, enquanto rimos deles.
 Judd - Sim, mas juntos Artie! Algo perfeito, algo genial! O verdadeiro teste do intelecto superior.
 Artie - E muito perigoso...para ser divertido!
 Judd - Sim!
 Artie - Não, você entraria em pânico novamente.
 Judd - Não, não entraria não! Deve ser uma experiência sem envolvimento emocional. Só para provarmos que somos capazes.
 Artie - Somos capazes!
 Judd - Juntos!
 
Judd é o "gênio", introvertido, que sente-se deslocado e rejeitado em sua família, e quando recebe de Artie a "atenção" necessária torna-se profundamente decidido a agir para provar o quanto é inteligente e receber aprovações. É ele quem busca justificavas "teóricas" para seus desejos. É em Nietzsche, por exemplo, que vai buscar o conceito de "super-homem" para justificar seu "super-intelecto".
 
Mas, Judd não é o homem de "ação", e sim Artie, que é o "típico" psicopata, não mede esforços em trapacear e desdenhar dos outros. Se compraz em ludibriar, desde que tudo sirva para sua própria glorificação. E, se for preciso, mata sem qualquer sinal de remorso. É disto, então, que nossos personagens falam: da realização de um "crime perfeito" para provarem a si mesmos sua grandeza intelectual e que, por outro lado, os demais são todos tolos.
 
Entretanto, pequenos detalhes vão levar à prisão dos dois. Uma cena do julgamento é marcante. Orson Welles faz o papel do advogado Wilk e fará uma forte defesa da insanidade de ambos para que escapem ao enforcamento:
"... (O. Welles falando ao juri) devem-lhes a mesma compaixão que vocês tiveram com a vítima. Se nosso Estado não for mais bondoso, humano, prudente e inteligente que o ato de loucura desses rapazes perturbados, vou lamentar por ter vivido tanto...".
 
O término do filme parece ser um apelo à nossa capacidade civilizatória, de sermos melhores que os "maus", que os "doentes", e de que o progresso moral está acima de qualquer desejo de vingança e punição. Ok, concordo! Mas, um equívoco que é rotineiro é imaginar-se que, cometer um crime e alegar insanidade pode trazer inocência, perdão ou isenção de responsabilidade. Não! Cometer um crime implica em pagar por ele. Isso é responsabilização. E a saúde mental, se for um atenuante, o é para outras situações, jamais para a isenção de responsabilidade.
 
Isso seria impunidade e "infantilização" dos crimes! E responsabilização é o primeiro passo até mesmo para a melhora da saúde mental. Não concordo mesmo com o enforcamento deles, mas seu afastamento total em relação à sociedade era uma necessidade. Nesse sentido, o discurso de O. Welles me parece bem razoável, e civilizatório.

sábado, 18 de janeiro de 2014

A liberdade bate à porta... e agora?

Hoje me deu vontade de escrever algo. Hoje não, agora!!! Neste mesmo instante. Não dá tempo nem de pensar sobre o que quero escrever. Só quero escrever! E com urgência, muita urgência. Pra que pensar? Pensar eu pensei durante horas, dias, semanas. Agora só quero escrever algo. Mas a vontade mesmo é de escrever uns palavrões, muito palavrões, muitos mesmo. Não pra ofender ninguém. Mas  para comemorar. Claro! Palavrão também foi feito para se comemorar algo. Ou não? Bem, eu sempre gostei de soltar um palavrão em certos momentos de felicidade. Então vá lá...que porra, cacete... estou muito feliz nesse momento. E aposto que vai ser duradouro. Sim, pode ser duradouro sim, e se não for, foda-se, eu arranco a felicidade novamente e a trago para acalmar meu peito. Há momentos que a gente mergulha, percebe logo que, droga, é areia movediça, depois vem aquela cor de lama, em seguida o cheiro de algo muito podre. Sim, nessa hora estamos na merda, na maior merda. E é muito fácil gostar dessa merda toda. Afinal, quem não quer se colocar como vitima, como sofredor, como carente. Tá, tudo isso é legal. Mas, é foda, você vira pra um lado só lama, vira pro outro, só lama.  E aí? Vou ficar nadando de braçadas nesta poça de merda em que me meti? Chego até a dar uns mergulhos, ensaio uns movimentos que lembro ainda do meu tempo de natação, mas, que saco, isso é horrível. Está mais para uma paralisia. É uma posição lastimável, necessária, fundamental, mas lastimável. Me dei o direito sim de ficar na lama por um tempo, mas, de repente ouço um "toc toc" na porta. Não, infelizmente não é o Bob Dylan, nem o Eric Clapton, nem o Roger Waters cantando "Knockin' on Heaven's Door". Se fossem, puta que pariu, eu me ajoelhava. Aliás, pra inveja de alguns, já tive o prazer de apertar as mãos e trocar duas frases com o Roger Waters. Já dava pra morrer feliz. Mas, não! Ainda não! Porra, vou ouvir esta música agorinha mesmo, vou ouví-la umas três vezes antes de dormir, ou mais. Tá, não é nenhum dos três, tudo bem! Mas é a minha liberdade. A liberdade de agora poder me olhar no espelho, com toda a lama no corpo, e retirá-la, pouco a pouco, deixando vir à tona um cara diferente. Não, diferente não! Apenas um cara que estava guardado, meio que soterrado debaixo de entulhos de regras, convenções etc. Foda-se isso, quero ser feliz, não quero ter razão nenhuma. Nenhuma mesmo. Foi A. Schopenhauer quem disse isso? Em tempos dessa bosta de Facebook a gente acaba ficando confuso com as autorias. Bem, se não foi, deve ter sido a Clarice Lispector, afinal atribuem tudo a ela. Não que não seja merecido. Enfim, deixa o Facebook pra lá. O fato é que é a hora de saber o que fazer quando abrir a porta e deixar a liberdade entrar. Recebê-la com carinho, com atenção, com muito respeito. Não vou me lambuzar como me lambuzei na merda. Vou ser mais cauteloso, mas justamente para estar lúcido o suficiente para não deixá-la escapar, mas, quando ela estiver suficientemente seduzida por mim, aí sim, me lambuzarei dela, nadarei de braçadas, como um bom filho da puta que, quando criança, não pode ver um doce na sua mão que vem logo tirar de você, rsrsrs. Ahh, já está bom. Não quero mais escrever. Agora vou dormir. E já sei como quero que seja meu sonho. Aliás, é a última chance dele. É a última chance deste sonho surgir na madrugada e na minha cama, pois a partir de amanhã ele começa a se realizar, e aí o bicho vai pegar!

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Os frágeis laços amorosos da atualidade

Tem sido muito comum que, com a mesma intensidade com que começa, um relacionamento se evapore hoje em dia. Muitos casos estão marcados por uma profunda "intolerância" com o discurso do outro. Muito fácil, portanto, que palavras como "direitos" e "liberdade" sejam ecoadas para defender os interesses específicos de cada parte do casal. Inevitável, então, que a corda estique a um ponto que, mesmo voltando atrás, ela fique, agora, com uma tenacidade mais frouxa.Parece que nada mais será como antes. Não são poucos os casais que não resistem a estas primeiras grandes confrontações.
 
Mas, o que pode estar acontecendo? No início formam um casal, mas não se vêem como "dois". Mergulham, por vezes, em um processo fusional onde um busca a dissolução do outro. Trata-se de um processo guiado pela capacidade de projetarmos sobre o outro nossa própria história e as formas que aprendemos, especialmente, quando de nossa situação triangular, com pai e mãe. Esta forma de se comportar num relacionamento tem enterrado amores intensos, fazendo com que um, quando se sinta contrariado, logo vire o rosto quando diante de dificuldades. Não se trata, então, de uma fusão que gera "um", é uma fusão onde "um" tenta dissolver o "outro" e quando se vê contrariado parte para o embate final logo nas primeiras dificuldades.
 
Ora, dificuldades no relacionamento precisam ser pensadas, discutidas, e não simplesmente "abandonadas" como se não se "encaixassem" naquele "modelo ideal" que é construído para o casamento. Um modelo que me leva a querer que o outro simplesmente se "encaixe". Desistir, então, não é o problema, mas estamos sabemos mesmo por que motivos estamos desistindo de um relacionamento? Não estaríamos desistindo muito facilmente? Enfim, claro que cada caso é um caso. Não há regras gerais.
 
O fato é que quando estamos em um relacionamento apresentamos dois pedidos ao outro. São pedidos velados, sussurrados, quase inaudíveis, mas que parecem gritar dentro de nós mesmos: O primeiro pedido é o de ajuda para uma "libertação" em relação à nossa própria história. Que história? Aquela que nos ensinou a nos comportarmos de tal maneira e que passamos a acreditar ser a única maneira, a verdadeira. Não à toa estamos reproduzindo modelos de relacionamentos que nos foram apresentados. Este é aquele pedido em que projetamos sobre o outro nossa história e nossos modelos fantasiosos. Nos comportamos, muitas vezes, então, como nossos pais ou mães, e buscamos outros pais ou mães, sempre em relações ambivalentes (amor e ódio), onde o "eu mesmo" fica soterrado nesse esquema repetitivo de papéis. É assim que mágoas e rancores do passado acabam transbordando nos relacionamentos atuais. Então, é dessa história que pedimos, veladamente, que o outro nos auxilie na libertação. Queremos ser "nós mesmos".

Mas, quem é o "eu mesmo"? É aí que entra o segundo pedido que existe em um relacionamento, e que contraria o primeiro pedido. Pedimos que o outro não nos traga transformações, mudanças, que não nos tire dos papéis que sempre assumimos. E é aí que inúmeros relacionamentos simplesmente explodem, se estilhaçam em pedaços, pois a fantasia de modelos de relacionamentos supostamente "verdadeiros" se impõem e não deixam que sejamos "nós mesmos".
 
É preciso superar esses papéis antigos, esses modelos antigos. Encontrar um outro é ter a grande oportunidade de, até mesmo em meio a crises, buscar conhecer-se e passar a construir um par novo, diferente do modelo dos nossos pais e mães. É dessa história que nos sobrecarrega que precisamos nos livrar e assumirmos o papel de protagonista de uma outra história. Aquela não desaparece, mas perderá importância diante de uma nova. Assim, o outro, nesse caso, não deve ser uma projeção de nós mesmos, afinal ele é um "outro", é diferente. E é somente sendo diferente que me possibilitará ser "eu mesmo".

Relacionamento, portanto, é construção, é trabalho, é esforço, é suor. Há garantias de sucesso? Não! Não há! Mas dá pra desistir tão fácil? Dá! Mas, pode ser uma pena. Qual a recompensa pelo esforço? A possibilidade de ter alguém que, na nossa frente, ao longo da vida, nos possibilite enxergar nós mesmos, nossos desejos e angústias. Ou seja, a recompensa é ter um outro, diferente de mim, pois só assim serei eu mesmo. Vou projetar minhas fantasias do passado sobre o outro ou vou lutar para ser "eu mesmo" e ter no outro uma parceria para a vida e o futuro? As vezes ainda dá para lutar, e melhorar! Falo isso, especialmente para aqueles jovens casais que usam e abusam da intolerância nos dias atuais.

Os riscos da fantasia da "união incondicional" no casamento

Os questionamentos acerca da qualidade da vida do casal, e seu vínculo, estão muito presentes na clínica, quase sempre tendo como pano de fundo as mágoas, tristezas, omissões e ocultações vindas à tona numa crise. Na maioria das vezes, a presença destes casais, são tentativas de "colar cacos". Não se trata, simplesmente, de uma traição "sexual". Essa, muitas vezes até permite certa acomodação de interesses e fica como uma espécie de "arranhão". O que está em jogo é algo que pode até ser considerado mais profundo: uma quebra de confiança total. Este é um tema recorrente, e grave.

A traição de uma intimidade que se fantasia como total e absoluta, de um compromisso que se sonha incondicional. Hoje, a infidelidade não é tão sexual quanto moral¹.

Mas, o que é, exatamente, esta quebra de "confiança total" depositada, por sua vez, sobre uma fantasia de "união incondicional"? desejo responde essa fantasia? Essa pergunta é fundamental ter sempre em órbita.

É interessante notar que boa parte dos casais que vão à clínica não têm como preocupação central fazer "evoluir" o vínculo conjugal, em transformá-lo. Parecem mais preocupados com algo anterior, mais básico: a própria criação de um laço. Esse processo ainda se torna mais angustiante pelo fato de, desde cedo, conviverem com a fantasia de um casal idealizado. Aquele casal que é glorificado na mídia, nos filmes, na literatura, nos contos de fada.

Esta é a fantasia que praticamente torna impossível a continuação de um vínculo baseado na transformação mútua. É como se esperassem por alguém "inteiro", "pronto", para ser seu eternamente. Como se trata de uma fantasia, e não encontra correspondência no real, vem o desespero.

É neste contexto que a traição sexual perde muita importância diante da quebra da fantasia da "união indissolúvel". Ficar só, ser deixado, adquire fortes proporções de "abandono" e toca em questões narcísicas muito profundas.

Antes mesmo, então, que se construa um laço que é mutuamente transformador, já existe a fantasia de uma fusão completa que, caso quebre, gera intensa angústia de separação. Nada impede que uma união seja eterna, mas o que vai garantir essa eternidade não é uma fantasia, e sim um trabalho de transformação permanente e mútuo do laço. E é sobre isso que se precisa pensar e conversar.

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¹ HEFEZ, Serge. Cenas da Vida Conjugal. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 28

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Disturbio Paranóide

Certamente, um forte traço paranóide não é algo que o terapeuta goste de encontrar no paciente afinal, pensado como uma "história de amor", o tratamento analítico floresce numa atmosfera de abertura, sinceridade e confiança, e o comportamento paranóide é um veneno a essa confiança. É algo que a destrói e leva ao esgotamento as pessoas que estão ao redor. E tudo começa com um "medo", fazendo surgir um leque de distúrbios¹. Entre os mais leves destes distúrbios está o "pensamento relacional", que é aquele segundo o qual determinado acontecimento, que aparentemente em nada nos diz respeito, na verdade tem uma relação oculta conosco².
 
Exemplos são as superstições e crenças que carregamos, ainda que de forma pouco utilizada no dia a dia. A indústria de amuletos e o horóscopo são outros exemplos desse pensar de modo relacional. Tido isso pode parecer estranho à razão, mas existem outros pensamentos que ultrapassam a fronteira e chegam ao "anormal" quando imagino, por exemplo, que um locutor de rádio está falando diretamente para mim. Mais grave ainda é o que acontece cm os que sofrem com a psicose paranóide. Para estes, os pensamentos tomam a forma de delírios, de fundo religioso por exemplo.
 
Mas, para que um pensamento relacional se transforme em pensamento paranóide é preciso que eu acredite que aquilo que escutei do locutor de rádio, por exemplo, tenha uma má intenção para comigo. Ou seja, Pensamento paranóide é aquele que vê intenções maléficas ocultas em acontecimentos comuns ou aos quais é possível dar significados diferentes, geralmente não ameaçadores³.

Ora, más intenções todos nós admitimos que existem mas, no mundo do paranóide só existem más intenções. Enxergar, num fato simples, um perigo potencial, em si não é um distúrbio paranóico, pode mesmo ser um "alerta". O risco, então, é quando isso ocupa um espaço muito grande na vida da pessoa.
 
Não é à toa que, por vezes, o paciente paranóico lance dúvidas sobre a própria atuação de seu analista. Nesse caso, a contratransferência através da raiva do analista tem que ser evitada, pois será interpretada pelo paciente como uma "confirmação" de que existe uma tramóia e que sua desconfiança, portanto, estava correta.
 
_________
 
¹ O texto foi escrito como uma sinopse do capítulo 13 ("A Sombra de uma Suspeita") de O inimigo no meu quarto, e outras histórias da psicanálise, de Yoram Yovell. Rio de Janeiro: Editora Record, 2008, p. 331-340 (trechos exclusivos sobre a paranóia).
² Pág. 332.
³ Pág. 333.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Fim...?

- E agora, o que você vai fazer?
- Não sei!
- Será que você vai sofrer?
- Muito provável!
- Não há mesmo como você evitar o sofrimento?
- Não creio!
- Isso será ruim né?
- Não sei ao certo!...
- Acho que vou para uma praia. Lá me distraio e tudo passa.
- Vou para algum lugar também!
- Para onde vai?
- Vou até os arredores do meu coração. Lá deve existir um lugar muito especial e bonito onde possa deixar guardado todo o amor que sempre vou sentir por ti!

(José Henrique P. e Silva)

domingo, 5 de janeiro de 2014

"Ei, estou aqui por engano"

Foi com o tempo, já adulto, que ele percebera mais claramente como ela lidava com a vida. Estava certo que ela não queria mais viver. De alguma forma, desde criança, ele não conseguira entender a razão de tanta infelicidade, mas não conseguia admitir tal hipótese. Quando a admitiu foi um misto de dor e alívio. Mas, isso só aconteceu mesmo um bom tempo depois, já adulto, afinal, por vezes, ela parecia ter um brilho nos olhos que demonstrava o contrário. Demonstrava que ela poderia sorrir e ser feliz com todos. Mas esse brilho nunca fora forte o suficiente para retirar-lhe a sombra tão pesada de uma maldita melancolia que lhe sugava todo o desejo e vontade de ser feliz. Uma melancolia que facilmente se transformava em raiva, em ódio; que rapidamente destruía qualquer laço que se formasse ao seu redor, por mais amoroso que fosse. Não, de fato, ela não queria mais viver. E lutou mesmo, decididamente, para morrer. Mas, nunca deu um fim rápido a todo este sofrimento. Optou por senti-lo até o final, como que punindo-se violentamente por uma culpa que não conseguia entender.

Acabou por viver muito. Com pouca qualidade, mas viveu. Rejeitava favores, menosprezava abraços, desdenhava carinhos e afastava a todos que queriam o seu bem. Esteve por aqui um bom tempo. Por engano, assim ela imaginava. Ele lhe cobrou amor, pois sabia que ela o tinha. Ele experimentara isso, tinha lembranças de quando era bem pequenino. Nunca desistira dessa busca. Já crescendo, amadurecendo, à noite, vez por outra, parecia se contorcer na cama em busca do seu colo, de um aconchego do qual se recordava e que lhe fazia muita falta. Sim, ele lhe cobrara amor durante toda a vida, toda a vida. Hoje ele sabe que, a seu modo, ela o amava. Mas, como ela poderia retribuir mais? Como? Há muito tempo ela já havia desistido. Ele mesmo, quando percebera isso deixou de lhe cobrar qualquer coisa, nem mesmo uma pitadinha de amor. Havia, finalmente, descoberto, de forma trágica, que isso era uma impossibilidade. Passou, então, a entendê-la e a sofrer por seu destino. Ela nunca conhecera o amor, como, então, poderia doá-lo a alguém?

Ele teve que sobreviver, não sem um custo é claro, mas teve algum sucesso nessa sobrevivência. E, de alguma forma, ela também encontrou algum sucesso ao ir embora. Afinal, ele só conseguia mesmo imaginar que realmente ela estava aqui "por engano". Nunca vira uma angústia tão inominável, nunca vira uma dor tão dilacerante. Os tormentos lhe tomaram conta de toda a vida, a ponto de a única definição sensata que ele conheceu para a palavra tormento foi: "mãe".

Que todo o seu tormento agora se transforme em luz. Que ela volte a ser criança, que volte a brincar, que volte a ser sapeca, que volte a correr com os pés no chão e na chuva, que ele descobrira ser o que ela mais gostava. Que possa ter uma segunda chance, e não mais sentir-se aqui "por engano". E que ele encontre, finalmente, o amor que sempre buscou, pois desde algum tempo atrás desacreditou, finalmente, que estava aqui, também, "por engano". Afinal de contas, há coisas a fazer! Há coisas pelo que esperar! Há pessoas a amar!

sábado, 4 de janeiro de 2014

17 dias

17 dias não chega a ser um período completo de férias, mas dá pra se sentir feliz, divertir-se, conhecer novas pessoas, farrear um pouco, enfim, dá pra dar uma boa relaxada. Mas, 17 dias também servem para rever toda uma vida, ficar dentro de um quarto com as janelas fechadas para nem notar se é dia ou noite, dá pra assistir 5 temporadas de uma série e mais 2 temporadas de outra. Dá pra comprar um monte de porcarias e levar tudo pra cama e dormir em meio a saquinhos e farelos. Bem, dá pra muita coisa. Dá pra fazer tudo isso e ainda curtir, mas dá pra fazer tudo isso e se sentir bem sozinho. Sozinho porque está distante daquela pessoa com quem já passou o maior tempo de sua própria vida; sozinho porque não sabe o que se passa na cabeça do filho que está prestes a se mudar e ir pra sua própria casa; sozinho porque você olha pra sua vida profissional e pensa no quanto poderia ter feito melhor; sozinho porque você abre sua agenda e descobre que todos os teus amigos estão bem ocupados com suas famílias e se divertindo; e sozinho porque de quem você esperava um abraço, que foi implorado, não veio até você quando mais precisava. Enfim, tudo isso pode ser bem desagradável.

Mas, é quando você olha para os lados e vê que não tem saída, não dá mais pra pedir socorro, não dá pra ligar pra analista, não dá pra ligar para os pais. E aí, o que fazer? Vai pular da janela? Hum... não! A opção é pelo sofrimento mesmo. Ele precisa ser enfrentado, cara a cara. A gente sabe, no íntimo, que pode aguentar mais um pouco. Então, vamos lá e mergulhamos no mais dolorido sofrimento. É a gente com a gente mesmo. Não tem mais ninguém por ali para pedir ajuda. Não tem SOS, não tem polícia, não tem bombeiro. É o momento do "SE VIRA!". Haja tempo pra tanto choro, pra tanto desespero, pra tanta confusão na cabeça. Cadê aquele colo que todo ser humano deveria ter numa hora dessas? Não tem! É o momento do "se vira" mesmo. Mas, os dias se passam, você começa a abrir a janela, começa a sair e ir buscar uma coisa melhor na padaria, começa até a notar que está fazendo um dia bonito. E a angústia, que parecia insuportável, vai se atenuando. No final, uma grande descoberta: Não estou tão sozinho assim. Ainda tenho a mim mesmo! Posso me reconstruir! Posso deixar de sofrer tanto pelos outros, afinal, sofrer por mim mesmo foi bem mais produtivo! Saio bem mais forte dessa. Foram 17 dias bem interessantes. Não vou esquecer jamais dessas férias!

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Renuncio ao impossível pelo possível

Tudo bem, dizem a todo instante por aí que "nada é impossível". Ok, é um excelente fator de motivação e, por vezes, é necessário mesmo pensarmos desta forma. Mas, em que pese a vida ser um enorme campo de batalha, não precisamos estar, em todos os momentos, provando a nós mesmos, ou aos outros, que somos fortes o suficiente. De onde vem esta necessidade de ser "forte" ou, pior, "invencível"? De onde vem esta ideia de tornar o "impossível" algo "possível"? Que desejos são estes que nos colocam em metas absolutamente desgastantes? Que vazio é este que só o "impossível" parece preencher? Que "ordem" é essa que seguimos sem contestar? Que fantasia ou idealização é essa que vemos à nossa frente?
 
Sei que é difícil chegar à esta conclusão, mas é realmente necessário insistir em renunciar ao "absoluto". Sei que é difícil porque vivemos uma época em que "desistir" de algo, ou de parte de algo, pode ser logo taxado de "fracasso", "covardia", "fraqueza", e por aí vai. Besteira! O fato é que a pressão que existe lá fora é imensa, afinal vivemos em uma sociedade fortemente competitiva onde o individualismo narcisista é o que dita a regra geral, cada vez mais. Como, então, desistir, renunciar ao "absoluto", ao "impossível", e aceitar o "possível" quando nos exigem que sejamos "perfeitos"?
 
Não é mesmo uma luta fácil pois toda a nossa estrutura de desejo é a de ir em busca do "impossível", aquilo que não nos é dado, ou foi negado. Mas, manter-se prisioneiro dessa busca do "impossível", leva ao fácil esquecimento de que o "possível" não é apenas o "possível", enquanto sinônimo de algo limitado, pequeno, inferior. O "possível" é algo mais! É aquilo que também satisfaz e atende ao nosso desejo. Já o "impossível", quase sempre, só nos mantém em uma obsessividade incontrolável e dolorosa, que faz sempre nos sentirmos pequenos e insatisfeitos.
 
Não precisamos desistir da vida, ou da batalha, mas não podemos nos transformar em conquistadores que só encontrarão a paz naquilo que não pode ser conquistado. Não é essa conquista do "impossível" que nos tornará melhores. Vamos nos neurotizar nesta busca? Virarmos prisioneiros de uma obsessão? Quando não aceitamos o "possível" abrimos uma enorme porta para o sofrimento neurótico. Mas, quando o aceitamos, a chance de um desenvolvimento emocional saudável é imensamente maior.
 
A vida pode ser bem mais leve do que afirmam por aí. Estamos numa batalha sim. Mas sabemos que esta batalha não é o que define nossa vida. Podemos fazer escolhas mais simples e adequadas. Por que eleger como meta aquilo que não vamos conquistar? E se conquistarmos, que significado isso terá? Grandes conquistas são muito interessantes pra mostrar que podemos nos superar. Mas, a vida não é sinônimo de "grandes conquistas". E onde ficam os prazeres dos pequenos detalhes, daquelas escolhas mais simples, e que, sim, no dia a dia, são o que nos mantém de pé, e felizes.
 
Sim, sou um fervoroso defensor da simplicidade, em todos os aspectos da vida, ela nos torna mais autênticos e sadios. Colocar-se metas "impossíveis" nos começos de ano é uma brincadeira que fazemos com nós mesmos. Só resta perceber mesmo, entretanto, que a felicidade vai estar nos pequenos detalhes, e estes não poderão passar despercebidos, como se tudo o que importasse fosse o "impossível".
 
As vezes temos que virar leões, mas sabemos sair deste papel quando ele não se torna mais necessário? Ou insistimos em ser super-heróis a todo instante? Eu não sou um super-herói, eu sou menor que a vida, mas dela faço parte, e cada grão que recebo, ou conquisto, pode me trazer muita felicidade, e paz. Não se trata de "acomodação", e sim de uma escolha pela felicidade e pela paz. Não quero deixar a vida passar despercebida. Não quero um cantinho na sala para os meus troféus. Quero o meu sorriso e quem amo sempre por perto. Esses são minhas maiores conquistas!
 
(José Henrique P. e Silva)

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

 
Parece que tem algo de libertador na dor... Quando ela eh muito intensa soa como um lembrete de que tudo pode acabar... De alguma forma!

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Onde se situa a diferença? (sexualidade e normalidade)

Lembro que tinha exatos 19 anos de idade quando estava, com uma namorada, almoçando na casa de uma pessoa muito querida dela. Era uma senhora de trinta e poucos anos (pois é, na época, pra mim, era uma senhora... mas hoje sei que mulheres nessa idade ainda são garotas!), psicóloga, muito religiosa e uma mãe de dois filhos bastante devota à regras de comportamento de todo tipo. Num determinado momento, durante o almoço, a questão da homossexualidade veio à tona. Salvo engano, foi algo que veio da televisão que estava ligada. E lembro que fiz um comentário bem desastroso, por sinal. Disse que, em minha opinião, as pessoas "tornavam-se" homens ou mulheres. Ora, o que eu entendia disso? Era apenas um comentário livre o suficiente de preconceitos, fruto da educação que eu recebera. Mas, o mal-estar se instalou rsrs. Saí dali com uma péssima reputação. Mas o almoço estava gostoso, e isso era o mais importante!

Muito tempo depois, já envolvido até a alma com a psicanálise, o tema da sexualidade passou a ser recorrente, afinal, são raríssimos os pacientes e analisandos que não trazem uma questão de fundo sexual. Mas, enfim, aproveitei essa lembrança só pra endossar aquela minha velha opinião de garoto (sim, embora eu me achasse um "homem" de 19 anos, era só um moleque ainda, rsrs). Ou seja, continuo acreditando que nós nos tornamos mesmo homens ou mulheres.

Vivemos, hoje, uma época de intensa "desorganização" no imaginário social a partir da fragilização das categorias "masculino" e "feminino", até então referências simbólicas sustentadas pelas diferenças anatômicas entre homens e mulheres (pênis e vagina, para sermos mais claros). Claro que toda esta "desorganização" se reflete diretamente no surgimento de novas configurações familiares.

Então, de onde vem a certeza de que estamos diante de um homem ou uma mulher? Ora, antes mesmo de nascermos, nossa sexualidade (menino ou menina) já é fruto de especulações a partir dos "desejos" de nossos pais. Depois, quando somos bebês, eles nos compram roupas azuis ou rosas. E tudo isso baseado em nossa anatomia (e no desejo deles).

Será, então, em meio aos desejos dos pais e em toda esta relação triangular entre a criança, o pai e a mãe, que a sexualidade se desenvolverá, algumas vezes, independentemente da anatomia, e seus referenciais biológicos. O que quero dizer é que a masculinidade e a feminilidade são "PONTOS DE CHEGADA" e não "pontos de partida". A anatomia não explica tudo em termos de sexualidade.

É evidente que a questão da sexualidade desperta todo tipo de moralismo. E desse debate eu estou fora! Mas, é de se perguntar, por exemplo, se apesar de toda esta "desorganização" não estamos vivendo uma nova ordem moralista repressiva através do "politicamente correto", carregado de uma pretensa "normalidade".

Ora, o fato é que é no interior desta ordem (e seja ela qual for) que o psicanalista se situa e atua, não dando conselhos, nem determinando o que é a moral, mas acompanhando as mudanças sociais e verificando como as pulsões libidinais do indivíduo acompanham as mudanças, e que tipo de sofrimento pode surgir de tudo isto. O dramático, entretanto, é que, quanto mais a sociedade é moralmente repressiva, mas a sexualidade vai sendo pervertida, afinal, é por onde ela tem que "sair".

Não foi em um contexto assim (o da moralidade repressiva da Era Vitoriana de fins do século XIX) que Freud deitou e rolou (metaforicamente é claro) com as suas mulheres histéricas? E mais, se antes a histeria surgia da repressão sexual, o que é que está surgindo (em termos de patologias) de uma pretensa liberdade sexual hoje em dia? Ufa! Tema complicado! Mas, não é pra discutir muito não, é só pra ajudar a pensar.

O Mito de Narciso

Um mito é sempre um relato polimorfo, ou seja, está sujeito a mudar de forma. Ele rompe com a linearidade tão típica do pensamento racional e lógico, pois sua estrutura, além de complexa, envolve o imaginário. Um mito também remete ao "excesso", à "desmedida", algo que, na psicanálise, está muito próximo da "loucura". Talvez, justamente por isso, a loucura só exija mesmo de nós uma "outra" leitura possível de um indivíduo que "extrapolou" a realidade. Nesse sentido, o mito te uma voz polifônica que rejeita qualquer possibilidade de uma única interpretação. Não à toa, cada época parece construir sua própria versão de um mito, sem preocupar-se tanto com sua coerência interna, supostamente fixa. É preciso lembrar que uma das funções do mito é a sustentação de uma estrutura social, e es nunca é rígida ou estática. A leitura variável do mito também corresponde às mudanças que essa estrutura social sofre ao longo dos tempos.
 
Em sua versão mais tradicional, Narciso nasce de Cefiso (Rio) e Liríope (Ninfa), e foi fruto de uma indesejada gravidez e de um parte apreensivo. E, no dia de seu nascimento, o adivinho Tirésias previu que ele teria vida longa desde que jamais contemplasse a si mesmo. Possuidor de uma beleza incomparável não cedia aos apelos e amores das mulheres. Eco, foi uma bela ninfa que não conformou-se com a rejeição, vagou e o desejou amargurada até a morte, deixando apenas um sussurro melancólico, um gemido. Nêmesis, para lhe impor um castigo o fez partir para a caça e, estando muito cansado deitou-se à margem do rio para beber água. Foi quando viu seu reflexo, e ali também definhou até sua morte, encantado por sua própria beleza. Não encontraram seu corpo, somente uma flor em seu lugar havia nascido. Entre Eco (que viveu em função de Narciso, sem ter um "si mesmo") e Narciso (fechado em "si mesmo") o encontro seria impossível.
 
Interessante lembrar que o termo "narcisismo", ou mesmo "Narciso", deriva da palavra grega narke ("entorpecido"), que simbolizava a vaidade e a insensibilidade, pois estamos falando de um "entorpecimento emocional", de uma não ligação com os outros. Há uma negatividade aí, um drama de nossa individualidade, no limite, um olhar em profundidade sobre si mesmo. Para algumas interpretações, ao voltar-se para si mesmo Narciso enxergou-se como mais que um simples mortal, e por isso apaixonou-se. O que parecia enxergar, então, era a "criação". De alguma forma, entretanto, as duas versões se aproximam em muito. Afinal, olhar para si e enxergar a "criação" é, de alguma forma, impossibilitar-se de relacionamento com os outros mortais.
 
Mas, o que é o narcisismo? Pode-se dizer que, segundo a psicanálise, é uma patologia auto-referencial. Está marcado pelo Solipsismo (do latim "solu, «só» + ipse, «mesmo» + ismo"), uma concepção filosófica segundo a qual, além de nós mesmos, só existem as nossas próprias experiências, de tal modo que tudo o que resta é o eu no seu estado presente. Fora do "eu" tudo o mais pode ser posto em dúvida. O "eu" é a única realidade. Ora, em si, o narcisismo não é um problema, mas se torna patológico quando impede o avanço em direção ao outro, ao objeto, e permanece em si mesmo. Nesse caso, a libido fico endo-psíquica. O narcisismo é o primeiro caminho em direção ao outro, à alteridade. Trata-se de um processo que, se interrompido, transformasse em patologia.

Lacan e o Estádio do Espelho

A postagem abaixo é uma síntese da comunicação feita por J. Lacan ao XVI Congresso Internacional de Psicanálise, em Zurique, a 17.06.1949, sob o título "O estádio do espelho como formador da função do Eu tal como nós é revelada na experiência psicanalítica".
 
Trata-se de um momento espetacular em que a criança reconhece sua imagem no espelho a partir de uma série de gestos em que experimenta, ludicamente, os movimentos de sua imagem refletida, e dos objetos que estão à sua volta. Ocorre a partir dos seis meses de idade, e é uma atividade libidinal que muito nos fala da estrutura ontológica do ser humano.
 
É um momento de IDENTIFICAÇÃO, matriz de todas as identificação secundárias posteriores, ou seja, o sujeito assume uma imagem (imago) e o EU se precipita nesta fase de ainda impotência motora e dependência, antes mesmo de afirmar-se diante do outro e antes que a linguagem lhe dê a função de sujeito. Trata-se de um "Eu-Ideal". Diante do espelho, portanto, a criança vê a forma do seu corpo (uma "miragem" do seu poder) como Gestalt, numa exterioridade. O que vê, entretanto, tem forte efeito constituinte, afinal, já está mais que comprovado que uma Gestalt tem efeitos normativos sobre o organismo. Estamos em um momento de pura dialética entre o organismo e sua própria realidade. É nesta relação que entra a função da imago. Assim,
O estádio do espelho é um drama cujo impulso interno se precipita da insuficiência à antecipação - e que, para o sujeito, apanhado na armadilha da identificação espacial, maquina os fantasmas que se sucedem, de uma imagem retalhada do corpo a uma forma que chamaremos ortopédica da sua totalidade - e à armadura enfim assumida de uma identidade alienante, que vai marcar com sua estrutura rígida todo o desenvolvimento mental. 
Mais à frente, quando do momento de término do estádio do espelho e passagem do "eu especular" para o "eu social", a armadura fortificada do eu se verá diante de situações socialmente elaboradas e será sempre mediado pelo desejo do outro (um "intermediário cultural"), tornando, então, perigoso, qualquer levantamento de instintos. Dono de uma liberdade que se afirma como autêntica entre os muros de uma prisão o eu verá a loucura (neuroses e psicoses) nascer por entre esses muros, sempre nos falando de paixões que foram amortizadas.
Nesse ponto de junção da natureza à cultura que a antropologia dos nossos dias perscruta obstinadamente, a psicanálise somente é que reconhece esse nó de servidão imaginária que o amor vem sempre redesfazer ou retalhar.

sábado, 21 de dezembro de 2013

Presente

Outro dia me vi diante de uma situação bem interessante. Tinha que comprar um presente para um amigo que há muito não o via. Agora, passados muitos e muitos anos ele era um cara de sucesso e isso podia ser bem medido pelos bens que possuía. Situação complicada! De onde vou tirar uma grana para comprar um baita presente para ele, afinal, o que deve lhe faltar? Depois de ficar me perturbando por um bom tempo tive uma ideia. Eu tinha que ter alguma boa ideia, pois não ia ter a grana mesmo, rsrs. Lembrei que ele, nos tempos de adolescência, quando ainda era um "duro" como eu adorava meus gibis do "Tex" (uma Ranger do oeste americano, mais precisamente do Texas). Ele não comprava e ficava me importunando para emprestar os meus. Mas eu sabia que ele gostava e acabava emprestando. O chato é que me devolvia amassado e as vezes até rasgado. Mas ele lia e gostava muito. Pois é, resolvi procurar bastante e comprei alguns exemplares. Devo ter gasto uns R$ 60,00 em 5 exemplares. No final das contas, para um cara que tem tudo hoje em dia, e pode perder qualquer coisa que não vai lhe fazer falta, achei que o que ele não podia perder mesmo era uma boa lembrança do passado. Deu tudo certo: ele ficou bem feliz e eu economizei bastante.

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

"Tormentos da alma" e a contratransferência do analista

Um tempinho atrás, num desses canais fechados de filmes clássicos, descobri "Tormentos da Alma" (Pressure Point, EUA, 1962, com Sidney Poitier). Em sua face mais aparente o filme trata do racismo, afinal está centrado nos embates entre um psiquiatra negro e seu paciente branco de ideologia nazista. Numa situação assim o racismo muito dificilmente deixaria de se destacar. Mas, há bem mais que isso.
 
Chefe de um setor psiquiátrico em um hospital nosso personagem central se vê diante da iminente desistência de um de seus médicos no tratamento de um paciente considerado "difícil". É nesse momento que ele passa a relembrar-lhe uma experiência pessoal de 20 anos atrás. Nessa época, trabalhava na psiquiatria de uma penitenciária federal e tinha um paciente, branco, de 29 anos, cumprindo pena por rebelião em prol da derrubada do governo Roosevelt.
 
De imediato, a partir destas lembranças, o que vemos é uma forte contratransferência do psiquiatra que passa a nutrir forte intolerância com seu paciente e suas ideias nazistas. O diagnóstico inicial? um psicopata (paranóico, agressivo e antissocial), para quem recomendara isolamento, principalmente para não espalhar suas ideias na cadeia. No isolamento, entretanto, o paciente continua com suas angústias: insônia, pesadelos, sentimentos paranóicos, "ausências", desmaios, alucinações (se vê prestes a cair pelo ralo de uma pia em direção a um possível abismo).
 
Sempre agressivo, e tentando desmoralizar o psiquiatra por ser negro, tudo o que parece buscar é um remédio para que possa dormir. Mas, o psiquiatra passa a investigar seus sintomas e começa a lhe perguntar sobre as "ausências", seguidas de enjôo e dificuldade de respiração. Em determinado momento o paciente lembra que só chegou a desmaiar uma vez, ainda quando criança. Nesse exato momento, ele tem uma crise e desmaia. Pede ajuda ao médico, que insiste em que precisa "conhecê-lo melhor para poder ajudar".
 
As consultas se sucedem e, no processo de investigação, um quadro mais claro vai surgindo. Ele era filho único e seu nascimento só acelerou o fracasso do casamento dos pais. Um pai irritável e descontente, com forte ressentimento vingativo contra o filho. A mãe, fraca, deprimida, cada vez mais isolada na cama. Assistindo a tudo isso, ele, criança, só prometia a si mesmo não chorar. Acabou isolando-se muito na infância, e sempre revelava-se envergonhado em relação ao pai. Aqui, um destaque para o filme. São impressionantes as cenas de revivência desses momentos da infância que invadem o consultório. É a imagem completa do que chamo de "o retorno do infantil", trazido em flashbacks pelo filme.
 
Apesar de cuidar da mãe, não sentia pena. A via como uma "fraca" e passou sempre a ter raiva dos mais fracos. Sempre admirou aqueles que competem e superam barreiras, tornando-se mais fortes. Era como desejava ser. Em seu desenvolvimento isolado acaba por criar um amigo imaginário para buscar as satisfações negadas pela realidade. E a função deste amigo imaginário foi a de lhe permitir exercer sua pequena tirania, sua fantasia de indestrutibilidade. Gradativamente, porém, à medida que entra na escola, e vai tendo contatos sociais mais amplos, vai abandonando este amigo imaginário em troca de amigos reais, sempre tendo como elo de ligação os atos arriscados e indisciplinados.
 
A mãe "fraca" e deprimida, entretanto, lhe alimentava uma forte relação libidinal. Dizia que ele era o "único", o mais "forte", palavras que lhe enchiam de um desejo de vingança contra o pai, e raiva da fraqueza da própria mãe. Imaginava-se um príncipe oriental, poderoso, que punia implacavelmente, inclusive sua própria mãe. Era assim que se iniciava o padrão de seu comportamento sexual, satisfazendo seus desejos sempre com muita brutalidade e impondo aos outros os seus caprichos.
 
Certa vez, em meio a uma crise econômica, vendendo frutas na rua conheceu uma simpática e gentil moça. Parecia ter encontrado a chance de um relacionamento feliz, mas o pai dela, um judeu, o recusa. É aí que tem início a transferência de seu ódio para os judeus e aproximação com nazistas. O que o filme vai construindo, então, é uma clara associação entre o nazismo e o ressentimento individual com todas as suas perdas e incapacidade de preenchê-las com a sociabilidade. Há um forte didatismo do filme, nesse sentido, ao mostrar a lógica e o nascimento de movimentos como o nazismo, definidos como "movimentos de ódio" por parte daqueles que são rejeitados. Inegável aqui a leitura dominante do perfil psicológico de Hitler, sempre visto como um "rejeitado" e que se alimentara de ódio ao longo de toda a vida.
 
De imediato, nos grupos nazistas, seu ódio encontrava acolhida e era canalizado para alvos comuns, reais, e poderia, enfim, sentir-se forte. Com as reuniões de seu grupo nazista, saia do isolamento e ampliava sua força e poder. Aquela criança que detestava ver o sangue, tão presente no açougue do pai, agora era um adulta que clamava por esse mesmo sangue.
 
Voltando ao consultório, o psiquiatra insiste que continue falando de suas "ausências". Diz sentir medo, diz sentir que vai morrer. Ele diz que é seu pai que está caindo no ralo da pia, mas antes era ele. Como explicar? Misturam-se o desejo pela morte do pai e a punição que impõe a si mesmo por este desejo? Era, ao mesmo tempo, assassino e vítima, e esta fantasia o perseguia cruelmente. O reconhecimento aberto deste desejo fez com que os ataques de ausência desaparecessem. Parecia ter resgatado sua possibilidade de voltar a dormir melhor. Mas, uma outra questão toma conta do psiquiatra. Ele não quer liberá-lo para a condicional por acreditar que, embora curado do sintoma da insônia e dos pesadelos, sua personalidade continua a mesma, sem que tenha ocorrido nenhum tipo de mudança.
 
Mas, essa posição do psiquiatra contraria a dos demais médicos do hospital e o paciente acaba conseguindo a liberação. A questão para o psiquiatra era: mesmo com bom comportamento ele ainda era um homem perigoso, por suas ideias, sua obsessão. Nesse momento, num forte indício de contratransferência, o psiquiatra parece estar diante do próprio Hitler, e imagina poder detê-lo antes que cometa maiores males à sociedade. Para o psiquiatra, a rebeldia do paciente contra a autoridade refletia seu ódio pelo pai, e sua raiva contra os mais fracos (a raiva contra a mãe). Continuava sentindo-se fraco e impotente mas buscaria, sempre, compensar isto com atos perversos, intolerantes e agressivos. Enfim liberto, 10 anos depois seria enforcado por espancar um estranho até a morte.
 
Ao final do filme, já em sua época atual, o médico relembra, numa autocrítica, que o tratamento e a disposição profissional para a "ajuda" devem ser maiores que qualquer ressentimento ou preconceito. É com essa história que ele convencerá o membro de sua equipe a continuar o tratamento com um paciente negro, também agressivo. Estávamos nos anos 60 e a situação invertera-se. Eram os negros que agora se mobilizavam nas ruas por direitos, num momento de acirramento das questões raciais nos EUA.
 
Claro que o filme parece uma coleção de clichês psicanalíticos, mas, ainda assim é um bom filme, principalmente pela ousadia em associar o conflito psíquico individual às pressões do ambiente social. E, se a contratransferência do psiquiatra (sua raiva do paciente) revelava uma clara influência do social em seu psiquismo (a luta contra a ideologia nazista), também nos mostra o quanto, como profissionais, também estamos vulneráveis.
 
Com relação a este aspecto precisamente lembro a posição de Lacan acerca da contratransferência, como um conjunto de obstáculos imaginários que dificultam ao analista ocupar, de fato, seu lugar de "atrator". Mais tarde, Nasio iria situar a contratransferência como algo, então, que se define não no interior da relação do psicanalista com o seu paciente, mas no interior da relação do psicanalista com esse lugar que deve ocupar. O seu "desejo" pelo tratamento, como o próprio personagem do filme ressalta, deveria ser maior que o preconceito (obstáculo).

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Fixação

A "Fixação" é um importante conceito em psicanálise e nos ajuda a entender muitas das razões que estão por trás de um sofrimento. Quando, por exemplo, na fase adulta do indivíduo, um determinado evento traumático ocorre, ele vai nos remeter a um processo de regressão e à fixação (ou mais fixações). A fixação seria, portanto, aquele lugar do desenvolvimento individual onde se instalou um determinado ponto que, em boa parte, nos "define", e que resulta do tripé formação hereditária / formação constitucional / evento traumático precoce. Abaixo, uma tentativa muito geral de apresentar aas principais fases do desenvolvimento individual. Não custa lembrar que o "encaixe" das fases não é tão perfeito, pois o ser humano escapa a qualquer teoria.

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          Oral               Anal              Anal-Sádico            Uretal              Fálico           Genital

Auto-erotismo         Narcisismo 1°                                Narcisismo 2°                Rel. Obj.

           POSIÇÃO ESQUIZO-PARANÓIDE                        POSIÇÃO DEPRESSIVA

                              PSICOSES                                     NEUR. OBS-COMP.             FOBIA                    HISTERIA
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Sintoma

 
Nos casos de sofrimento psíquico o sintoma é somente mesmo o seu "cartão de visita". Ele não explica a dor, mas desvia muito bem o foco de atenção que poderia ser direcionado a ela pelo próprio indivíduo. E é muito fácil que esse desvio aconteça, afinal, o complicado mesmo não é lidar diretamente com o sintoma, mas com suas causalidades psíquicas. Um sintoma, no corpo (tipo uma dor), no comportamento (tipo uma compulsão), no nosso pensamento (tipo uma obsessão), diz que estamos sofrendo, mas não diz muito sobre a "lógica" (causas) que existe por trás dele mesmo. É essa "lógica" que precisa ser buscada e que geralmente está lá, nas "leis de trânsito" do nosso inconsciente. Em boa parte, esse é o trabalho da análise.

domingo, 15 de dezembro de 2013

A "errância psicótica"

Durante algum tempo lidei muito de perto com diversas situações psicóticas (álcool e drogas) e um dos pontos em comum mais evidentes era a chamada "errância psicótica". Sempre vi este comportamento como o de alguém que está "trancado pelo lado de fora", ou seja, apesar de estar do lado de fora e possuir a liberdade ele não tem nenhuma "direção". Seu caminhar seria como um daqueles jogos de "liga pontos" que, entretanto, não forma imagem alguma. Não se trata de uma experimentação da liberdade (como aquela vontade de simplesmente sair por aí sem rumo), pois não há liberdade a ser experimentada por mais que ele tenha o mundo inteiro para andar. Ele está na situação de vítima de um delírio que não lhe permite ancorar em porto algum. Um razoável exemplo desta situação está no filme "Na Natureza Selvagem" (Into the Wild), cuja busca do personagem por chegar ao Alasca, e alcançar sua maior integração com a natureza, era só um motivo para não chegar a lugar algum. É um belo filme, e a trilha sonora de Eddie Vedder é um show a parte.

sábado, 14 de dezembro de 2013

Sobre "desistir"

 
Sei que é complicado falar em "desistir". Parece ser uma violência, pois quem quer "parar"? Mas o que me incomoda é que esse conceito de "não desistir" as vezes está carregado de algo muito pesado: a ideia de um possível "fracasso", que parece não queremos encarar. Ora, nem sempre é assim e o que adoece é o "não desistir". Ficar "fixado" em algo, de forma insistente, pode somente nos enfraquecer, nos sugar, nos atormentar, nos paralisar e deixar tudo mais insuportável. Nesse caso, "desistir" nos torna mais livres. Tudo bem... ninguém disse que é fácil! Mas, saber parar, reconhecer limites... tudo isto está carregado de dignidade! Não há verdade absoluta nesse caso. Tudo bem que andamos sempre pra frente, mas isso implica em saber desviar de obstáculos muito fortes e encontrar atalhos e outros caminhos também. E cá pra nós, a dor causada por uma "desistência" não é pior que a dor causada por uma "insistência" ou "permanência". É só pra se pensar!!!

Sobre a Interpretação na análise

Quando alguém inicia um processo de análise é claro que existem muitas fantasias acerca de tudo o que pode acontecer. Uma dessas fantasias é a de que o discurso do analista, quando ele faz a sua "interpretação" da fala do analisando, é algo muito poderoso e que traz uma "explicação" quase definitiva, ou um "conselho" superior. Besteira! E o pior é quando o analista começa a compartilhar dessa fantasia e acaba se colocando em uma posição de "poder". O que ocorre, pela experiência, é um processo de "construção" com o analisando permanentemente (não necessariamente "interpretação"). A interpretação, quando ocorre, se dá em raros momentos, e sempre de forma muito precisa e localizada. Afinal, tenho que ter o cuidado de só interpretar aquilo que o analisando tem condições de "metabolizar", do contrário... efeito zero, ou até contrário.

No caso de um sonho, por exemplo. É fundamental que ocorra um deciframento. Mas não é o analista que faz isto sozinho. Pelo contrário, ele pode até atrapalhar com sua ansiedade e teorização. O que ocorre, então? Um tremendo processo de "construção", onde o analista auxilia o analisando em seu discurso. É no contexto desse trabalho de "construção" que se forma o "vínculo" e ocorre a "transferência" das questões do analisando para o analista. Sair dessa posição de um "saber poderoso" é vital para um bom processo de análise.

Sobre o Ego

 
Gosto de pensar no nosso "ego" como um urso tentando se equilibrar num monociclo. Isso porque, como Freud destacou, o ego assume a função de um "administrador" de relações com o inconsciente, com o superego e com a realidade externa. Claro, é sempre um equilíbrio dinâmico, nunca estático, nem "zen". Ou seja, coitados mesmo de nós. Haja equilíbrio nesta vida!!!

Freud - Aspectos da vida e obra

" Que progresso estamos fazendo. Na Idade Média, eles me teriam atirado na fogueira; hoje, eles se contentam em queimar meus livros..." (Freud).

Esta frase foi dita por Freud, em 1933, assim que soube que os nazistas, na Alemanha, tinham atirados seus livros à fogueira, e que o oficial alemão teria gritado: "contra a glorificação da vida instintiva que destrói a alma". O episódio é interessante pois faz lembrar que Hitler e Freud viveram uma mesma época em Viena, no início do século. Num momento em que Freud estava no seu maior vigor intelectual e Hitler conhecia um dos piores momentos de sua vida, chegando a dormir na rua por falta de recursos. Anos depois, a situação se inverteria. Hitler, caminhando para seu avanço nazista e destrutivo, prestes a anexar a Áustria, e Freud conhecendo a decadência física proporcionada por seu câncer e a própria velhice, prestes a se refugiar na Inglaterra. Mas, ainda assim, extremamente lúcido. No final, a história deu a cada um o seu devido tamanho e lugar. A I Guerra Mundial e a ascensão do Nazismo foram episódios que em muito influenciaram Freud a desenvolver o seu conceito de "pulsão de morte" e a expandir a psicanálise para a compreensão do "social" e do "político", com o seu conceito de "mal-estar", como algo inerente à natureza humana, seja no indivíduo, seja na sociedade.
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"Não aguento ficar sendo olhado... durante oito horas por dia (ou mais)..." (Freud)

Freud disse essa frase referindo-se à sua posição, sentado em sua poltrona à cabeceira do divã, fora do alcance visual de seus pacientes. Foi assim que se comportou durante bom tempo dos mais de 50 anos em que recebeu seus pacientes na Bergasse 19, sua casa em Viena, onde utilizava os fundos da casa. Talvez seja só nisso mesmo que se resuma a "importância" do divã que virou símbolo máximo (e caricatura) da psicanálise. Mas, foi aí neste lugar que Freud cada vez mais recolheu-se a partir do início de 1938, quando ao mesmo tempo que se submetia a mais, e dolorosas, cirurgias de seu câncer na mandíbula, Hitler colocava em prática seu desejo de anexação (Anschluss) da Áustria convocando o Chanceler desta para dizer-lhe que estava disposto a reparar este ato de "traição" histórica da Áustria. Foi nesta conversa com o Chanceler Schuscnigg que Hitler disse: "eu tenho uma missão histórica e vou cumprir esta missão, porque a providência me destinou a isso. Acredito inteiramente nessa missão, ela é minha vida". Seus delírios já haviam chegado a um ponto incontrolável.
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"O objetivo de toda vida... é a morte..." (Freud)

Freud sempre foi visto como um "advogado de Eros", um legítimo defensor da pulsão de vida, daquilo que nos impulsiona à satisfação do desejo, do prazer. Mas, um de seus conceitos mais intrigantes (embora pouco aprofundado pelo próprio Freud) foi o de "pulsão de morte". Aquela força, aquela ânsia, de se voltar a um estado de satisfação primordial, praticamente em um estado de decomposição. Ele dizia que, afinal de contas todos íamos mesmo morrer. E morrer, talvez significasse esse retorno a um estado de prazer há muito perdido pelo homem. É este conceito que está presente em muitas patologias psíquicas. Quantas vezes não desejamos a "morte", simbolizada naquele sonho impossível, naquela volta a uma situação onde experimentamos felicidade. Tudo isto pode simplesmente nos paralisar, nos aprisionar. A pulsão de vida, se nos leva a caminhar, a pulsão de morte nos faz querer ficar, como que inertes... depressivamente inertes!
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"Martha é minha...a moça doce de que todos falam com admiração, que apesar de toda minha resistência cativou meu coração já em nosso primeiro encontro, a moça que eu temia cortejar e que se aproximou de mim com magnânima confiança, que fortaleceu minha fé e minhas energias para trabalhar, quando eu mais precisava delas..." (Freud - carta à Martha)

Apesar de sua obstinada disposição investigativa Freud era também um homem romântico. Idealizou a imagem de sua futura esposa e seus laços com os amigos eram fortemente afetivos, complexos, intensos e repletos de ciúmes. Um homem como vários de nós. E isso nada tem a ver com ser "perfeito".
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"Crio meus filhos... como filhos" (Freud)

Muitos fantasiam a ideia de que um psicólogo ou um psicanalista é sempre feliz e está bem "resolvido" ou, pelo menos, que isso fosse uma "obrigação" para ele, já que vai "cuidar" dos outros. Hum... complicado isso! Freud, certa vez, disse que criava seus filhos, como "filhos". O que isto significa? Talvez o mesmo que dizer que um cardiologista também pode... vir a morrer de uma deficiência no coração. Outra vez, respondendo à uma mãe que lhe questionara sobre métodos eficazes para a educação do filho, ele respondera que tudo o que ela fizesse poderia vir a dar errado. Ora, mulheres, amigos, filhos, não são pacientes, não estão sob análise. Como abrir mão disso? É na relação mais convencional com os que estão ao nosso lado que nos mostramos como realmente somos, passíveis de erros, de avaliações equivocadas, mas é onde mostramos também nossa paixão, nossos desejos... tudo aquilo que nos torna humanos e naturalmente imperfeitos. Tudo, ao final, é só uma fantasia mesmo, pois da mesma forma que precisamos ser implacáveis contra os erros em nossa profissão, necessitamos ter um espaço para errar, junto aos que estimamos. É isso que nos faz crescer.


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"Havia uma atmosfera de pânico em Viena que agora acalmou-se um pouquinho. Nós não nos juntamos ao pânico. É muito cedo, ainda não se podem prever as consequências de tudo que aconteceu. Por enquanto tudo continua como estava antes..." (Anna Freud - carta a Ernst Jones).

Anna, filha de Freud, escreveu esta carta a seu amigo Jones, já em meio a uma possível mudança para Londres, em exílio. A carta foi escrita pouco depois de 20/02/38 quando de um fortíssimo discurso de ódio contra a Áustria, proferido por Hitler no Parlamento alemão. Era inevitável e próxima a anexação. Na verdade, Freud nunca cogitara partir, mesmo nas fortes crises anteriores. Ele amava Viena, embora sofresse por suas ideias e por ser judeu.