quinta-feira, 10 de abril de 2014

Escolhas

Não há como evitar fazer escolhas. Elas, por vezes, são dolorosas porque acarretam consequências e responsabilidades. E não há outra forma de se estar vivo se não for fazendo escolhas. A questão é: estamos prontos para as responsabilidades e consequências? 

Mas, mesmo que estejamos prontos, como fazer as escolhas? Alguns nos dizem para seguir os cálculos da "razão", outros dizem para seguirmos os nossos "interesses", outros ainda nos pedem para pensar nos "outros", e há os que defendem que façamos escolhas seguindo o "coração". Ora, me parece que nenhum destes métodos é melhor que o outro, todos têm a sua função e o momento certo. 

O que é importante mesmo, no final das contas, é estarmos bastante cientes que só devemos escolher algo com o que possamos VIVER com aquilo depois, algo que possamos suportar.

(José Henrique P. e Silva)

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Neutralidade na profissão de analista?

Um dos mecanismos psíquicos que colocamos em prática quando adquirimos algum conhecimento (diploma, curso, formação, profissão, experiência etc.) é o de nos colocarmos, teimosamente, e de modo bastante infantil, numa posição de "suposto saber" e, pior quando a ele logo colamos algo de "poder". Isso fascina a qualquer um, e muitas vezes é disfarçado através do "orgulho" e da "vaidade". 

É evidente que na atuação do psicanalista isso também ocorre (tanto por parte dele que se coloca com este saber-poder, quanto por parte do paciente que delega ao analista essa posição). No meio disso sobra a crença de uma suposta "neutralidade", como se ali, no consultório, existisse um "sujeito" (analista) e um "objeto" (paciente). Ora, isso não é tão simples assim, o que existe é um "par", um "vínculo", uma "relação" que é a principal responsável por todo o tratamento. Talvez este seja um dos grandes trunfos da ética psicanalítica (o que não significa que todos os profissionais a sigam).

Escrevi isso motivado por uma frase que ouvi ontem, mas que se repete sempre: "você não vai ficar lá só me ouvindo, fazendo hum rum e com um bloquinho nas mãos né?". Ora, isso nos fala de um estereótipo criado em torna da atuação do analista, mas que foi e é reforçado por muitos profissionais. E, por outro lado, fala de um forte pedido de "ajuda" por parte do paciente que quer e espera por intervenções de seu analista em prol de sua saúde. 

O fato é que, fazer análise, não é receber "conselhos" de alguém mais experiente ou que conhece mais, mas implicar-se com muita responsabilidade em um processo de transformação pessoal que se dá "na" e a partir "da" relação com o analista. E, nesse processo, é claro que o analista torce, e muito, pelo sucesso do paciente. Este é um vínculo afetivo que nenhuma suposta "neutralidade" terá capacidade de quebrar, sob o risco de perdermos boa parte de nossa capacidade de acolhimento e empatia.

Enquanto profissionais não podemos olhar no espelho e vermos algo diferente do que somos. Aliás, alguém deveria fazer isso? Talvez não... sob o risco de perder-se nas armadilhas do narcisismo!

(José Henrique P. e Silva)

A fantasia na relação com o Outro


Em um época onde o individualismo é tão enaltecido e muitos apostam que podemos ser "inteiros" e "únicos" é bom recordar a frase de John Donne. Acredito muito nisso, pois não me vejo como "um", ou muito menos "inteiro". 

Por mais que esteja me sentindo sozinho, isolado, afastado de todos e do mundo, ou mesmo, por mais que esteja me sentindo forte e autossuficiente, na pior das hipóteses, estou sempre repleto de FANTASIAS em relação ao "mundo" e aos "outros". Mesmo trancafiado em minha vida sempre trago o mundo e os outros para perto de mim mesmo em minhas fantasias. Jamais estamos sozinhos! 

De alguma forma, ainda que em nossas fantasias, estamos ligados ao mundo. Mesmo o psicótico, em seus delírios mais fortes e complexos, mantém suas fantasias a respeito dos outros e do mundo. O que isso significa? Que somos parte de algo maior, que a humanidade nos diz respeito, que o que acontece ao nosso redor nos atinge!

(José Henrique P. e Silva)

Progresso: Tecnologia ou Civilização?


Embora se possa dizer que Freud era um Iluminista, pois tinha a crença na capacidade humana de colocar o conhecimento a seu favor fez, talvez, a maior crítica que o pensamento iluminista poderia sofrer em toda a sua história, ao destacar o conceito de "inconsciente" e apontar que nossa capacidade "racional" não é tão inabalável quanto imaginávamos. 

Nesta frase, ele deixa claro um aspecto fundamental desse nosso "mal-estar" ao contrapor o desenvolvimento tecnológico (subjugação e controle da natureza) ao progresso nos assuntos humanos (capacidade de construir uma moral e viver em sociedade na civilização). Nesse aspecto Freud continua imbatível, pois apesar de contínuos avanços tecnológicos a humanidade ainda se arrasta em termos de avanço cultural e civilizatório deixando que sua agressividade e intolerância ainda sejam suas principais marcas e heranças. 

Ai de quem acredita que o progresso é ditado pelo avanço tecnológico. Isso pouco nos diz respeito enquanto humanidade, pois está longe de estar a seu serviço... muito longe!

(José Henrique P. e Silva)

segunda-feira, 17 de março de 2014

"Instinto": O papel da ilusão na ideia de "controle" e de "liberdade"

"Instinto" (1998) trata da história de um antropólogo (A. Hopkins) que, após ser dado como desaparecido, foi encontrado vivendo junto a gorilas e que, por matar e agredir guardas florestais, foi preso e colocado sob tratamento psiquiátrico. A avaliação inicial de sua agressividade é a de que sua convivência com animais o teria tornado um deles. O desafio, então, para levá-lo a julgamento, será obter uma avaliação mais completa de seu estado já que se recusa a falar com qualquer um.
 
Na instituição psiquiátrica (para pacientes psicóticos) em que se encontra preso é forte a sua identificação com os mais "fracos" e, apesar de estar fortemente medicado com Haldol (neuroléptico) seus médicos insistem que "ele não fala mesmo", reafirmando a visão dominante de que ele é um "selvagem" e seu silêncio é só uma demonstração dessa "violência contida". Mas, que silêncio é esse? Será que não quer dizer algo que acredita que não entenderão? O que gostaria de dizer? Mais tarde, uma das exigências para a continuidade de sua avaliação é a de que a medicação seja reduzida (decisão vital para o trabalho do terapeuta).
 
É somente ele (e não os médicos) que vai dizer que o momento de falar chegou, e para isso precisa sentir-se em algum "vínculo" (fundamental para o trabalho junto a psicóticos). As vezes um simples olhar já pode significar um forte "contato" e sua resposta, como o gesto de pegar algo ou dar atenção a algo que reconhece, já é uma demonstração de "contato". Assim, mostrar-lhe objetos, fotos etc, sempre com o intuito de estabelecer algum contato entre ele sua realidade passada, e entender que tipo de relação tinha com essa realidade, é sempre uma boa tática. Um dos fascínios que vai estar por trás dessa motivação do terapeuta é justamente a de poder estar muito próximo da condição mais "primitiva" (animalesca) de um homem e sua estratégia será a de "trazê-lo" de volta para o contato com a nossa "realidade". 
 
"...Descreva o que vê!" Pede o terapeuta diante de uma foto mostrada ao paciente. É uma boa forma de começar a entrar no delírio de um psicótico. O cuidado, entretanto, será sempre o de não permitir ser conduzido por ele nessa jornada. Nesse diálogo, então, deve-se ficar muito atento aos gestos do paciente pois é como se ele estivesse hipnotizado, vivendo outra situação que não expressará somente por palavras. Então, se ele para o olhar talvez seja porque esteja "vendo" algo de seu interesse ou realidade. Tudo bem que, apesar de ser tratado no filme como um psicótico, o que ocorre muito mais é um "mutismo voluntário" que surgiu em função de uma mudança de perspectiva vivida pelo sujeito que experimentou um afastamento muito intenso de nossa realidade. Mudança essa que significou uma recusa de determinados valores em troca de outros.
"fiquei feliz com minha lenta jornada ao encontro deles. Senti-me privilegiado. Senti-me como se estivesse voltando para algo que eu perdera há muito tempo e que só agora me lembrara. De repente aconteceu. Eu não estava mais fora do grupo. Pela primeira vez eu estava entre eles..." (A. Hopkins, descrevendo sua aproximação e aceitação na "família" dos macacos).
Com essa aceitação, ele passaria a experimentar uma afinidade, paz, segurança, que jamais conheceria em uma cidade, cercado por pessoas e violências. Trata-se da experimentação de uma verdadeira recusa do nosso "mal-estar", onde a loucura e a violência não encontram paralelo, e são assustadoras. Mas, o que estaria, de fato, por trás do "mutismo" do personagem?
"...Só temos que desistir de uma coisa. Nosso domínio. Não somos donos do mundo. Aqui não há reis nem deuses. Podemos desistir disso? Esse controle é tão precioso? Ser Deus é tanta tentação? ..." (A. Hopkins).
Então, segundo nosso personagem do que mais temos medo em perder? Nosso "controle"? Não! Nossa "liberdade"? Não! Nossas ILUSÕES! Afinal, o "controle" é somente uma ilusão, pois o que realmente controlamos? Da mesma forma, a "liberdade" é somente uma ilusão, pois somos mesmo livres? Nosso maior medo é mesmo o de perder nossas ilusões. Nesse sentido, a grande questão que intriga os avaliadores (é dos gorilas que vem a violência desse homem?) é uma falsa pergunta. Querem entender porque ele se tornou um assassino sem questionar as etapas desse processo de mudança e que o levou ao assassinato.
 
Um aspecto interessante no filme é que  descoberta de "verdades" dá ao nosso personagem certa arrogância para considerar qualquer um como um "idiota" da civilização. Onde estaria o problema? Na falta de confiança em relação a todos? Na sua ilusão de possuir a "verdade"? Ou na ilusão de acreditar em uma "verdade"? É assim que, nossa ilusão em sermos "superiores" nos impede de entender que fazemos parte, compartilhamos esse mundo. Essa "superioridade" (ilusão) nos impele ao "controle" (ilusão) e, para garantir a "liberdade" (ilusão), nos usamos da "violência" (real) como recurso necessário, justamente para manter as ilusões.
 
Onde entra, então, nosso tão forte desejo de "felicidade"? Para que ele surge? Porque dele temos necessidade? Ele vem para aplacar nossa angústia, sempre revelada quando diante da perda de nossas ilusões? Talvez só tenhamos que aprender a sentir e a viver, já que parece tão difícil escapar do jogo das ilusões. Talvez a felicidade seja vista como algo tão difícil porque sempre a colocamos do lado de fora das grades que nós mesmos construímos para uma suposta "proteção".

quarta-feira, 5 de março de 2014

Liderança "tarja preta": fenômeno antigo!

Em sua edição 174, a Revista Você S/A trouxe matéria com o título "Desempenho tarja preta", de onde busquei "inspiração" para o título deste post. O objetivo era mostrar o drama diário que muitos executivos enfrentam no ambiente de trabalho, tendo em vista melhor desempenho. A questão do (ab)uso de remédios calmantes e/ou estimulantes não é tão atual. Tem uma longa história, mas concordo que tem se tornado bem mais comum, não só pelo ritmo frenético da competitividade nas organizações, mas pela medicalização excessiva de qualquer dificuldade de lidar as questões psíquicas.

O que há por trás disso? cobranças, medos, obsessões pelo sucesso, impossibilidade de lidar com o "fracasso", ou o simples, cumprimento de metas. A muito já se fala do consumo excessivo de remédios antidepressivos e ansiolíticos, e no mundo corporativo não é diferente. Talvez até seja um pouco pior, dadas as exigências da competitividade. Por isso, concordo com a posição do psicanalista e colega Olivan Liger, citado na matéria da Você S/A. Segundo ele, o uso destas medicações no ambiente corporativo é simplesmente para tratar a competitividade.

Não se trata de combater o cansaço, o desânimo, a depressão etc., se trata de encontrar meios para superar obstáculos e se manter um sobrevivente no mundo corporativo. Quem não lembra dos filmes clássicos mostrando executivos terminando o dia com a cara enfiada em um copo de Whisky, tudo com muito glamour, é claro. Pois é, a coisa piorou um pouco mais.

O mundo, no dia a dia, por si só já se encarrega de nos apresentar diversas situações depressivas e que causam ansiedade. Mas, no mundo corporativo a situação se acelera um pouco mais. É isto que precisa ser observado pois não se trata apenas de um executivo que, por ventura diante de uma crise, tem que ser afastado, é um indivíduo que está prestes a perder sua saúde mental, sem falar no impacto que isso causa no meio e nas pessoas que o cercam.

Por isso, é bom sempre pensar. Por que estou tomando este remédio? Se for para um dia alcançar o "sucesso" no mundo dos negócios, esqueça! Não vai dar certo. E, se por acaso você chegar próximo disso, tenha certeza que o custo vai ser muito alto. Não existe mágica. Não dá pra se ter tudo. temos que fazer certas escolhas.

É claro que é mais fácil e simples imaginar-se que isso é um problema exclusivamente do indivíduo. Não é! Existe algo na cultura das organizações que acaba por potencializar essas situações. Sei que este apelo praticamente não encontra eco, mas não custa pensar sobre isso.

Também não adianta dizer que o sucesso é somente para os fortes ou mais preparados. Se assim for sou obrigado a perguntar: a felicidade é para quem mesmo?

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Exibicionismo e inveja!

Outro dia, ainda esta semana, assisti uma curta reportagem em um telejornal matutino sobre a inveja que a superexposição de momentos felizes nas redes sociais causa em algumas pessoas. Foi uma matéria curta e superficial, mas valeu pelo tema. É uma questão que pode ser vista voltando-se o olhar para quem busca essa superexposição exibicionista de momentos prazerosos, ou voltando-se o olhar para aqueles que não conseguem suportar estar diante de imagens de felicidade. Importante é perceber que são duas situações "extremas", compulsivas, e que se não tratadas nos adoecem.

Ora, existem pessoas que adoram ser "monitoradas" em sua vida (e por isso se "expõem"), e outras que adoram "monitorar" (e por isso "vigiam"). São personalidades que lidam com a PERFEIÇÃO FANTASIADA, ou seja, parecem só conseguir funcionar no quadro de uma situação em que sentem-se ou buscam ser "perfeitas". Por isso, uns projetam esta aparência de perfeição através do exibicionismo e outros através da inveja, por acreditarem que não são capazes de serem "perfeitas".

O problema é que todos nós temos muito mais problemas do que admitimos ter, então por que sempre achar que a vida do outro é melhor que a nossa? Uma família "perfeita", uma vida "perfeita", acabam sendo somente projeções de fantasias infantis que expressam nossos desejos e angústias (medos, inseguranças, falta de afeto) experimentados naqueles momentos iniciais e prolongados pela vida.

Olhar demais para a grama verde do jardim do vizinho pode só significar que ainda não tivemos a condição para plantar a nossa própria grama, ou que devemos olhar para a nossa grama e percebermos que somos felizes com ela daquela maneira. Da mesma forma, por outro lado, precisar que o outro olhe para a minha grama verdinha é um sintoma do quanto me sinto inseguro com o que sou e com o que tenho.

No fundo, só precisamos apreciar melhor e com muito respeito o que temos e o que somos, e também admirar com respeito o que os outros conseguiram conquistar para si. Em parte, minha vida adquire sentido pelo reconhecimento que o outro me dá... mas só em parte!!! Pois EU preciso também reconhecer o que sou e o que tenho, encontrar a felicidade nisto, e deixar que o outro seja feliz à sua maneira.

Somos interessantes porque somos diferentes! Embora eu goste de ler, posso ser feliz com alguém que adora passar horas no shopping. Embora eu goste de caminhar lentamente pelas calçadas contemplando os pequenos detalhes, posso ser feliz feliz com que adora estar em um carro simplesmente andando por lugares badalados. Embora em goste do silêncio, posso ser feliz com quem adora uma agitação desenfreada. Ou seja, EU SOU FELIZ PELO QUE GOSTO E TENHO, E PELO QUE O OUTRO GOSTA E TEM!!!

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Precisamos de respostas! (a angústia do desconhecido - texto 6)

Gosto de filmes de ficção científica! Mesmo contrariando alguns colegas que torcem o bico, como se eu só devesse gostar de filmes de Bergman, dos iranianos ou franceses. Não é o caso, pois em se tratando de cinema, não tenho preconceitos. Assisto aquilo que geralmente considero que possa ser interessante e não dou bola para nacionalidades, diretores, prêmios, publicidades, críticos, etc. Acho que tenho minha própria forma de avaliar se vale a pena comprar o ingresso. O fato é que adoro sair do cinema com a certeza de que algo ficou e não que fui lá à somente para passar o tempo (embora isto seja absolutamente legítimo, e necessário!). Claro que já entrei algumas vezes, quebrei a cara e saí na metade do filme. É um risco, mas já me surpreendi inúmeras vezes. E essas são as melhores.
Mas, por que mesmo falei tudo isso? Ah, só para dizer que também gosto de filmes de ficção científica. Sim, adoro! 2001, uma Odisséia no espaço foi o primeiro que me deixou marcas. Filme inteligente, em todos os aspectos. E quando Roger Waters compôs a música Perfect Sense achei que o filme tinha recebido uma bela homenagem, destacando que o “salto” que demos do passado para este futuro pode ter sido, tecnologicamente interessante mas, ainda deixa muito a desejar em termos de evolução moral e ética. Mas, onde mesmo quero chegar? A ficção científica, quando não é feita só de bichinhos estranhos e bonitinhos, ou só de batalhas com raio laser, pode revelar algo bem interessante e que diz respeito a algo muito íntimo nosso. Algo que dificilmente expomos para os outros. Pode dizer respeito à nossa necessidade e ânsia por respostas.

Mais uma vez o “sentimento oceânico” que nos inunda e nos faz mergulhar em um desejo de respostas vem à tona. É este sentimento que nos leva, finalmente, a abrir os olhos e perceber nosso real tamanho. Bem diminuto, por sinal. Mas, nem por isso, menos interessante. Mas, diminuto frente às perguntas que fazemos e não conseguimos oferecer respostas. É um sentimento que nos faz desejar respostas para obter segurança, algum conforto, uma espécie de proteção. E a ficção científica tem evoluído bem para essa direção, nos levando a pensar em algumas coisas. Uma direção em que mostra que uma de nossas maiores necessidades é a de “respostas” para aplacar algumas de nossas angústias.
O filme Prometheus (2012), por exemplo, segue esta linha. Aqui um parêntese. Nos anos 80, quando assisti Alien, o oitavo passageiro, o fascínio foi imenso. O filme já se tornou um clássico e, agora, Prometheus veio para oferecer uma espécie de "origem" àquele assustador "Alien". Naquele momento, com "Alien" sabia-se que havia algo "além", pois a criatura que tinha dizimado uma nave, agora atacava outra que viera em socorro na tentativa de encontrar sobreviventes. Mas, uma resposta nunca havia sido dada: de onde vinham tais criaturas?

Somente agora Ridley Scott, o diretor, começou a oferecer alguma explicação. A criatura seria uma criação, por parte de uma espécie (os "engenheiros"). Espécie que teria sido a responsável também, por nossa criação, enquanto humanos. O problema é que as criaturas (aliens) haviam sido criadas com o objetivo de destruição da espécie humana. Algo deu errado, entretanto, e os próprios "engenheiros" foram destruídos, antes, em seu "laboratório". Mas, por quê destruir a nossa espécie? É aí que o filme fica interessante em minha opinião. Inicialmente motivados pela ideia de encontrar nossos "criadores" uma equipe de exploração parte em sua busca tentando responder às eternas questões: de onde viemos? Quem somos? Questões filosóficas e científicas que as religiões tentam também oferecer algum tipo de resposta.

Mas, quando tal equipe se depara com a questão da possível destruição da nossa espécie, outra pergunta se sobrepõe: o que fizemos de errado para ter que encarar nossa extinção? Essa mesma questão já havia sido colocada por outro filme clássico da ficção científica, "O dia em que a terra parou" (que teve uma refilmagem recente). Mas, infelizmente essa polêmica só aparece de forma subjacente ao filme, embora fique bem nítida para mim, e acho que é o grande barato do filme. Desse modo, entendo que as questões filosóficas e científicas que sempre colocamos sobre nossa origem e destino perdem totalmente qualquer relevância diante de outra questão: o que estamos fazendo? O que está dando errado em nossa evolução?

Acredito que buscar explicações para nossa origem e destino pode ser legítimo e a expressão máxima de nossa racionalidade, mas poderão ser sempre questões sem resposta, como que fadadas a manter nossa racionalidade prisioneira de si mesmo. Entretanto, pensar sobre o que estamos fazendo com nossas oportunidades de vida também é legítimo e pode ter resultados concretos. Quantas vezes já não parei e pensei comigo mesmo diante de tantas barbaridades cometidas pelo ser humano: "nós não demos certo", "falimos enquanto espécie". Buscar respostas para nossa origem e destino, de forma racional, pode ser mesmo só um artifício que usamos para escapar à pergunta mais importante e que diz respeito, mais de perto, à nossa existência e nossas responsabilidades: o que estamos fazendo? Saber de onde vim e para onde vou pode me dar alguma ilusão em me acreditar importante, escolhido, mas é quando me deparo com a questão do que faço com minha existência é que sinto o peso da responsabilidade e a angústia cresce.

Talvez por isso eu tenha gostado tanto de Prometheus, pois nos lembra de nosso iminente "fracasso" enquanto espécie. Lembra-nos de nossa maior tragédia enquanto seres humanos: diante da possibilidade de paz, teimamos em fracassar, pois a solução agressiva e violenta sempre nos parece mais fácil e adequada. Não é assim no nosso dia a dia? Não é assim quando nos revelamos absurdamente preconceituosos e intolerantes com quem é diferente de nós mesmos? Não é assim quando acreditamos que somos sempre melhores que os outros e não lhes devemos nenhum tipo de obrigação? A raiva e a agressividade talvez sejam o maior símbolo de nosso fracasso. Arrefecê-las, é o sinônimo de nosso sucesso. Por que não apostar nisso e olhar para o outro como alguém de quem realmente necessitamos, para nossa sobrevivência e felicidade? Talvez seja impossível, mas estamos aqui para tentar provar o contrário! A raiva e a agressividade talvez sejam o maior símbolo de nosso fracasso. Arrefecê-las, é o sinônimo de nosso sucesso. Por que não apostar nisso e olhar para o outro como alguém de quem realmente necessitamos, para nossa sobrevivência e felicidade? Talvez seja impossível, mas estamos aqui para tentar provar o contrário!

Já que falei em "tragédia", numa hora dessas não há como esquecer a mitologia. “Prometeu” foi um titã que tentou dar a inteligência aos homens, e foi punido severamente por isto. Assim, talvez no fundo, ainda estejamos mesmo ainda buscando nossa maior inteligência: Não necessariamente saber de onde viemos ou para onde vamos, mas entender o que estamos fazemos a nós mesmos aqui, nesta vida. A ciência, a filosofia e a religião lutam para nos oferecer respostas e nos acalmar sobre nossa origem e destino, mas ainda suspeito que nossa principal fonte de angústia é nos depararmos com o real significado de nossa existência, no aqui e no agora, e com o que estamos fazendo! Esse talvez seja o maior “desconhecido”, aquele que mais nos assusta!

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Reunindo meus pedaços! (texto 5 - os contos de fada e a perfeição)

Todos somos, em algum grau, neuróticos. E sei que esta é uma frase que incomoda e assusta a algumas pessoas que temem, com isso, uma proximidade com a “loucura”. Mas, não se trata disso. A loucura está mais próxima de uma violenta dissociação com a realidade, que nos aliena e incapacita para a construção de laços de forma quase permanente. A neurose, por seu lado, traz alguns traços desse tipo, mas num grau quase sempre bastante atenuado. Estamos falando, então, de outra ordem de sofrimento, de outro tipo de defesa que nós buscamos para controlar nossas angústias. E que é um tipo de defesa muito mais comum do que imaginamos. 

Quando se diz, então, que a “normalidade” é neurótica é porque, em nosso processo de constituição psíquica, em algum momento, nos deparamos com “limites” (pais, leis, regras sociais, valores etc.) que restringem nossos desejos e acabamos por sofrer com isso. Mas, sem este processo, sem estes “limites” como poderíamos olhar para o outro e respeitá-lo? Como poderíamos construir laços sociais se não tivéssemos restrições em nossos desejos? É uma boa questão! E não está fechada. Ou seja, conscientemente, sabemos da necessidade de limites para a vida social, mas a questão é que inconscientemente nossos desejos tentam “escapar” e é a luta por bloqueá-los que nos leva ao sofrimento. A grande saída é algum tipo de sublimação, que faça com que nossos desejos inconscientes se realizem de outra forma, como num relacionamento amoroso, num trabalho que nos causa felicidade, numa atividade em que nos sentimos bem etc. 

A neurose, então, nos fala de uma “submissão” à regra, ao limite. E é o sofrimento daí gerado que leva a mecanismos de defesa como a obsessividade e a compulsividade, por exemplo. Sofrer pelo nosso próprio desejo não realizado, então, nos aprisiona a uma “dívida”, como se estivéssemos em “falha” permanente, em “culpa”. Um sentimento de que somos devedores de algo que não sabemos bem o que é, e nem sabemos ao certo quem é o nosso credor. O fato é que nosso desejo fica soterrado em meio às obrigações e temores de punição ou de limites. É uma dívida que temos, então, em sentido metafórico, com o pai, com a lei, com o limite, e isso nos leva, nos casos mais graves, à possibilidade de nos comportarmos como escravos e ficarmos paralisados, sem futuro, condenados a repetições e com pouca chance de crescer e sentir-se bem.

Madonna, há pouco tempo, dirigiu um filme (“W. E.”, 2011) que, com muita força, traz um exemplo digno de chamar a atenção. Aliás, o filme traz uma trilha sonora que, no seu romantismo angustiante, parece sempre estar à beira da revelação de uma tragédia da qual não se pode escapar. Algo que marca os medos do neurótico obsessivo. No filme, duas histórias correm em paralelo. O que as liga? O desejo de um pai e de uma mãe que, ao dar o nome de uma nobre inglesa à filha, depositam ali todo o desejo de que sua vida transcorra como um “conto de fadas”, bem ao estilo daquilo que as monarquias tentam nos mostrar com sua pompa, beleza e delicadeza.

Isso é complicado. Para desespero da criança sua história seria construída tendo como espelho a vida daquela família real, considerada “perfeita”, como num “conto de fadas”. Ela teria, então, que realizar-se na busca por seu próprio conto de fadas. Mas, ela só conhecerá tragédias. Ficará, portanto, aprisionada ao desejo dos pais, e não ao seu. Não é a sua história que terá que viver, e isso lhe causa dor. Livrar-se da obsessão, portanto, significaria livrar-se de uma pulsão de morte poderosíssima, que a impulsiona sempre ao fracasso. O desejo não era seu e sim dos seus pais, era a eles que estava “obedecendo” ao tentar manter-se na linha de conquistar o “conto de fadas” para a sua vida. Quantas vezes, não levamos um tempo demasiado para perceber que o que estamos fazendo não é para nossa satisfação, e sim de nossos pais, ou outras pessoas? Isso quando percebemos!

Quantos pais, nesse exato instante, não estão arquitetando o “futuro” dos seus filhos, organizando “agendas” de educação e atividades que lhes tiram a chance de serem crianças ou adolescentes? Não! Não é assim. Contos de fada e histórias e “sucesso” individuais são criadas para amenizar nossas tragédias, para nos trazer de volta a esperança. Mas não podem se transformar em rígidos modelos de identificação, em exemplos aos quais devemos seguir e sermos fiéis incondicionalmente. Quem, de fato pode ser um super-homem? Quem, de fato pode ser uma princesa? Isso é puramente ideológico, e perigoso, pois nos adoece. Pelo contrário, é em meio aos tropeços de nossas vidas que vamos delineando um caminho que, muitas, vezes, já é o nosso próprio "conto de fadas". Basta às vezes, olhar atentamente para os lados e perceber, sentir. Ao final, o conto de fadas pode até estar se realizando sim, mas não daquela forma idealizada. Reconhecer isto é que é difícil, pois nos espelhamos severamente em modelos quase que inalcançáveis.

São estes “modelos inalcançáveis” e “irrealizáveis”, como os dos contos de fadas, que podem fazer com que pais e crianças se envergonhem de suas “imperfeições”, daí a busca em tornarem-se “super-adultos”. Isto é um massacre ao psiquismo da criança, ainda não plenamente constituído, e que já é submetido a tal ordem de obrigações neurotizantes. É nesse processo que a relação afetiva vai dando lugar a um sistema de obrigações morais e “educativas” que proporcionam uma boa dose de tormento às crianças. Crianças assim, preparadas para serem “super-adultos” e realizarem seu conto de fadas a todo custo, acabam se revelando egocêntricas, narcisistas, ou estarão condenadas a um sofrimento por se sentirem sempre “pequenas”. Por isso a dificuldade em enxergar o outro na sua totalidade. Afinal, se a sua própria integridade está corrompida, como enxergará a integridade dos outros? Os outros serão apenas “pedaços” dos quais se aproveita para buscar uma ilusória “completude”. 

E essa completude tem um nome: “perfeição”. É isso que muitos buscam como forma de sentirem-se, finalmente, bem, sem divida, sem culpa, sem sofrimento. Nesse terreno, portanto, não suportamos lidar com nossas “imperfeições”. Buscamos corrigi-las a todo custo, e cada vez mais cedo. Ou as cirurgias plásticas estéticas, por exemplo, não estão cada vez mais disseminadas e em idade cada vez mais precoce? Que modelo é esse que buscamos seguir? Que perfeição é esta que nos fascina? Metaforicamente poderia dizer que é a perfeição dos contos de fadas, mas na concretude do dia a dia, a perfeição está identificada nas atuais “celebridades”, por exemplo. São estas celebridades que “denunciam” nossas imperfeições. Não seria melhor pensar que todos somos “diferentes”? Não seria um comportamento mais saudável e humano?

É nos sentindo sem integridade, despedaçados, que buscamos os lábios de uma, o cabelo da outra, as pernas de outra ainda, os seios de uma outra. Ou, o cargo do outro, a casa maravilhosa de outro, o carro mais moderno de outro ainda. E por aí se caminha, tentando-se construir a completude, a perfeição e, em última instância, a paz interna. É claro que é natural que busquemos no outro algo que nos agrade, mas isso às vezes se torna um comportamento obsessivo. Enxergar o outro como feito de “partes” acaba nos levando a nos enxergarmos como um jogo de quebra-cabeças onde cada parte tem que juntar-se necessariamente para compor um todo, preenchendo um vazio e dando ares de “normalidade” e “perfeição”. Difícil, então, em meio a tudo isto, as crianças aprenderem a lidar com as diferenças. Elas querem escondê-las a todo custo, corrigi-las de qualquer modo, sempre na esperança de completar a obra, o quebra-cabeças, a si mesmas. Um dia isso ocorrerá? Jamais! São heranças de obsessões, por vezes, paternas e maternas, às quais se somam as obsessões do mundo contemporâneo, e que nos tornam reféns desde muito cedo.

Voltando ao filme, vemos que o resultado é paradoxal. De um lado, nossa personagem se "liberta" de um "destino" traçado antes mesmo de seu nascimento. Ela não viverá para sempre com seu príncipe. Mas, é justamente essa libertação que a permitirá atuar sobre seu próprio destino, construindo-o com seus próprios desejos, e não os de seus pais. É um exemplo que nos mostra o "peso" gigantesco que o desejo dos pais pode ter sobre uma criança que, para defender-se, segue o caminho da patologia, da doença psíquica. Pior, tal desejo dos pais, herdado de forma incondicional, sem negociação, obscurece nossos próprios desejos e até a percepção de que já podemos estar vivendo nosso próprio conto de fadas, ao nosso modo, mesmo sem nos darmos conta disso. E, isso tudo ainda agravado pelo fato de, culturalmente, teimarmos em esperar que um suposto destino se revele esplendoroso sobre nossas vidas. Não dá! Esperança é importante, mas não a ponto de nos tirar a responsabilidade sobre a construção de nosso destino.

(José Henrique P. e Silva - out/2013)

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Quero meu Rosebud! (texto 3 - Consumo e coisificação)

Talvez estejamos vivendo uma época em que o consumo atingiu um fim em si mesmo. Muda-se, troca-se, compra-se qualquer coisa sem nem mesmo saber ao certo sua verdadeira utilidade. Mas, alguém nos diz que este é o procedimento padrão e passamos a consumir de uma forma que beira a irresponsabilidade. O bom senso  foi embora há muito tempo.
 
Tudo bem, vivemos numa sociedade onde o consumo é mesmo seu ponto central. Mas chegamos a absurdos, e como pensar sobre isto? Quem somos, na verdade, quando consumimos desenfreadamente? Não quero falar de evolução tecnológica, muito menos da severa competitividade entre as empresas que leva a uma disputa acirrada por mercados e pelo desejo do próprio consumidor. Quero pensar um pouco sobre que tipo de homens e mulheres estamos falando e estamos nos tornando?
Qualquer coisa que seja duradoura está sofrendo um enfraquecimento hoje em dia. Alguns definem a época atual como “flexível”, outros como “líquida”. O fato é que a perenidade e a durabilidade das coisas sofre ataques diariamente, e nos impele a buscar o “novo”, a “novidade”, a qualquer custo. Permanecer com algo por um tempo a mais é incorrer em "erro", é ficar para "trás", é ser ultrapassado, é não ser “moderno”, é não estar “antenado”.
Bem, isso já dá muito pano para manga. O fato é que em uma sociedade marcada pelo individualismo egocêntrico, pelo narcisismo, difícil falar-se em comportamento solidário, em valorização do outro. Não à toa, boa parte das doenças psíquicas atuais enveredam pelo campo das psicoses, das psicopatias mais graves, das perversões, das fixações naquele estágio da vida onde o reconhecimento da lei se torna uma impossibilidade.
Estamos sendo chamados a ser fortes e insuperáveis. “Podemos tudo o que queremos”! O narcisismo está à solta, e com vigor. Não à toa, também, os comportamentos violentos e criminosos aumentam assustadoramente. E não só os crimes da rua, mas aqueles que violam regras básicas, valores básicos. Não queremos perder em nenhum momento. Não admitimos a derrota. Tiramos a bola de campo e a levamos para casa, mas não aceitamos outra regra que não seja a nossa.
Este parece ser um possível retrato desse sujeito contemporâneo, que não submete sua vontade à nada, que desvaloriza o outro, que quer ganhar a todo custo, e com o mínimo de esforço possível. Os “meios” perderam qualquer importância diante dos “fins”. Maquiavel venceu! Teria tido um bom campo de estudo se vivesse nos dias atuais.
Este é o ser humano “total”, completamente cheio. Parece não conhecer o vazio, nenhum buraco sequer. Nada por onde escapar suas fraquezas, suas dúvidas, seus instantes de dor e sofrimento. Ele parece vestir-se como um super-homem, adquire um ar de indestrutibilidade. Sente-se poderoso e só enxerga vilões à sua frente. Vilões a quem tem que enfrentar e destruir, tirando-os do seu caminho.
Mas, ele está “cheio” mesmo”? Está completo? Não precisa de mais nada? Inevitável aqui lembrar da interpretação de Orson Welles em Cidadão Kane (1941). Dizer que o filme é maravilhoso é chover no molhado, pois está sempre nas listas de "melhores filmes" já produzidos. Mas, porque eu o acho fantástico? Todos devem ter o seu motivo e eu também tenho o meu. Para me explicar melhor vou reproduzir um rápido diálogo de nosso personagem principal, Charles F. Kane e o seu "guardião" financeiro, o Sr. Bernstein.
 
… Sabe Sr. Bernstein, se eu não tivesse sido um homem tão rico eu poderia ter sido um grande homem…
O que teria gostado de ser?
Tudo o que você odeia!
Kane veio de uma infância pobre, com pais endividados, e construiu um império, acumulou riquezas e prazeres que nenhum mortal poderia sonhar. Mas, e aí? Ele passou a vida conquistando… e perdendo tudo, como em uma montanha russa. Sua insaciável busca, entretanto, não era pelo dinheiro. Não à toa, diz ao Sr. Bernstein: Não é difícil ganhar muito dinheiro… quando a única coisa que se quer é ganhar muito dinheiro.
Ao morrer, e pronunciar a palavra “Rosebud”, nosso personagem simplesmente mostrou que existem coisas de que precisamos e que não podemos simplesmente descartar nessa busca ensandecida por dinheiro e poder. Pior, essas coisas não podem ser "compradas", como querem acreditar aqueles que se entregam facilmente à crença de que "o dinheiro pode tudo". Foster Kane tentou comprar a tudo, mas o preço que pagava era sempre muito alto: sua infelicidade, sua ruína pessoal.
A incessante busca, mostrada pelo filme, para se desvendar o mistério do significado da palavra "Rosebud", dita por Kane quando de sua morte, revela a própria incapacidade da sociedade em perceber o beco sem saída em que cada vez mais estamos entrando: o da supervalorização da imagem e do sucesso, e o esquecimento de nós mesmos. Quanta infelicidade isso está gerando. A busca incessante pelo significado da palavra “Rosebud”, então, é a busca que fazemos todos os dias por reencontrar algo que "perdemos" ou "deixamos de lado" em troca de alguma coisa que consideramos ou que nos dizem ser importante.
Nesse sentido, a palavra “Rosebud” definia sim nosso personagem: Kane era um homem que tinha saudades de uma época em que fora feliz, quando criança, em sua família. Isso o atormentava, fazia de sua vida uma aparente felicidade, corroída por uma destrutividade interna silenciosa, mortífera. Mas, no momento de sua morte, ele foi sincero consigo mesmo e "agarrou-se" à sua melhor lembrança, o seu "Rosebud".

Todos temos o nosso pequeno trenó, ou nosso brinquedo, aquilo que nos lembra de uma felicidade absolutamente honesta… ou não? Só precisamos saber o que fazer com isso. Vamos descartá-lo? Ou vamos lutar para mantê-lo por perto, como uma lembrança e uma certeza de que a felicidade é possível, e está sempre nas coisas mais simples ao nosso redor?
(José Henrique P. e Silva - out / 2013)

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Uma legislação penal frágil

Não é novidade que nossa legislação penal é extremamente frágil em, de fato, garantir punições. Talvez seja reflexo mesmo dessa nossa, cultural e histórica, benevolência para com a impunidade. E não tem sido diferente em casos de psicopatias graves que envolvem criminosos "irrecuperáveis" para a vida em sociedade. Uso o termo entre aspas só para destacar o quanto é difícil assumirmos o fato de que... existem "irrecuperáveis". O psiquiatra Guido Palomba (Revista Psique, dez/2013) destaca essa questão quando fala do caso de "Champinha" que, só vai continuar afastado da sociedade porque ocorreu o que chama de "gambiarra jurídica", ou seja, pelo ECA (legislação penal) ele seria "recuperável", sendo necessário, então, usar-se da legislação civil para interditá-lo em um estabelecimento psiquiátrico e garantir a segurança social. Nossa legislação penal é absolutamente arcaica, no pior sentido.

Por um sentido na vida! (texto 1 - o vazio e a morte)

São tempos difíceis. Guerras devastam as regiões e as pessoas estão famintas, frágeis e doentes. É quando nosso cavaleiro recebe a visita da "morte", que veio buscá-lo. Chegara o seu momento, mas ele resiste e diz que, apesar de seu corpo estar pronto, sua alma ainda não o está, e, num esforço de resistência, propõe um jogo de xadrez para ganhar um pouco mais de tempo. Os fãs de filmes clássicos já sabem que estou falando de “O Sétimo Selo” (1956, I. Bergman), um filme extraordinário que nos leva a pensar na vida a partir de nosso medo da morte.

Mas, pensando nesta partida de xadrez, ela já não estaria fadada ao fracasso, afinal, como se poderia vencer a morte? O fato é que nosso cavaleiro não leva isto em consideração e parte para a disputa. O que tem a perder? Bem, é a partir daí que uma angústia vai se instalando e ele passa a questionar-se: um tempo a mais de vida, mas viver para que? Num certo momento, uma confissão nos mostrará toda a carga desta angústia. É quando ele nos diz:
O vazio é um espelho que reflete meu rosto. Minha própria imagem me causa repulsa e medo. A indiferença que eu sinto pelo próximo me levou ao isolamento. Agora eu vivo em um mundo de assombrações, prisioneiro das minhas próprias fantasias (...) Como podemos ter fé, se não temos fé em nós mesmos? (...) Eu não quero fé ou suposição, eu quero conhecimento! Eu quero que Deus estenda a mão para mim, mostre seu rosto e fale comigo (...) Eu clamo por ele na escuridão, mas parece que não há ninguém lá (...) Então a vida é um terror sem sentido (...) Minha vida se resumiu em buscas sem sentido, a ações e conversas tolas e vazias. Uma vida inteira sem sentido. Não digo isso com amargura ou discriminação, como tantas outras pessoas que também vivem assim. Mas eu quero usar esta trégua [jogo de xadrez] para fazer algo que tenha significado (Antonius Block, o cavaleiro).
Confesso que sempre considerei este trecho do filme magnífico. Uma confissão que nos mostra como uma vida esvaziada de sentido pode intensificar o medo da morte. Não seria, portanto, a morte em si, ou o "nada" que viria após ela, que nos causaria medo e repulsa. Seria o olhar-se no espelho e ver que a vida está seguindo sem maiores significados o que realmente nos espanta, embora não o percebamos tão facilmente. É este espelho, que reflete meu vazio, que me traz, então, o medo da morte como companhia.

Na confissão de nosso cavaleiro ele diz buscar o conhecimento, quer ver Deus, quer uma prova de sua existência, quer algo que lhe dê algum significado além do vazio que sente. Ora, não há conhecimento ou racionalização suficiente que acabe com este medo. A ciência e a religião podem nos fornecer algum amparo e acolhimento, mas não eliminam esse sentimento que Freud, apesar de ter dúvidas sobre ele, o situava num nível muito primário de nossa vida. O tal "sentimento oceânico", que nos impele a ter a esperança de uma proteção contra nossas dores e angústias. Esse sentimento é algo com o que temos de lidar ao longo da vida e que nos impele, portanto, à transcender numa tentativa de encontrar respostas.

Talvez não haja mesmo como vencer a morte numa partida de xadrez, mas pode-se deixar de temê-la. Como? Talvez a resposta esteja na forma como lidamos com nossa finitude. Daí que o melhor talvez não seja especular sobre a morte em si ou o que vem após, e sim sobre nossa própria existência, neste momento. Não é o nosso "fim" que nos atemoriza, mas o fato de nos imaginarmos vivendo uma vida sem significados. Precisamos contrapor ao "medo" uma certa "ingenuidade" em nossa forma de viver. A leveza e a certeza de estarmos dando significados para nossas ações cotidianas é que nos manterá tranquilos e confiantes de ter encontrado um "sentido" para estar vivos. Só isto esvaziaria o sentido do “vazio” e do medo que ele nos impõe.

Mas, me parece que nos dias atuais existem sérios problemas quanto a isso, afinal somos alvos de uma intensa campanha para nos mantermos "imortais", "jovens", “belos” e “fortes”, o que só nos distancia dessa ingenuidade e leveza. Isso é devastador! Puro delírio! Arrogância! São tempos narcisistas, de uma infantil onipotência, de desconhecimento de limites, de não reconhecimento da castração, de forte perversão, enfim, tempos em que nos achamos espertos o suficiente para driblar a morte, numa tentativa de não a temermos. Não são poucas as pessoas que padecem deste mal. A individualidade e a competitividade estão enfraquecendo os laços sociais. Todos nos pedem que sejamos "melhores" que alcancemos logo o "sucesso", e atacam a simplicidade e a leveza como se fossem pragas. E, em grande parte, topamos a brincadeira.

Se continuarmos assim, não só estaremos perdendo a batalha do xadrez para a morte, como estaremos deixando de viver e deixando o vazio tomar conta. Lutar contra esse narcisismo, que só produz onipotências e ausência de limites, é uma tarefa dura, árdua, pois cresce como erva daninha nos lembrando, em muito, aquele homem “selvagem” de Thomas Hobbes que, se deixado à solta, devora ao outro como um lobo esfomeado.

Assim, não é o suposto "vazio" trazido pela morte que mais nos assusta, mas o vazio que permitimos em nossa vida e que, diante de um espelho, nos assusta tanto. É este vazio que também nos transforma em lobos, ou nos faz cair doentes. Não à toa os espelhos da atualidade só nos mostram a aparência de nossos corpos. Mal conseguimos ir além disso. Que interioridade possuímos? Qual a nossa subjetividade? Não a enxergamos mais, nem mesmo sabemos se ainda a possuímos. Nos limitamos severamente ao nosso corpo físico. Me parece muito pouco!

(José Henrique P. e Silva - out/2013)

domingo, 26 de janeiro de 2014

"Mata-me de Prazer" e a paixão que fusiona!

"Talvez alguém da planície como eu não esteja pronta pra viver nas alturas. Talvez!...Talvez!".


Esta é uma das últimas frases de Alice no filme "Mata-me de Prazer" (2001). Alice e Adam vivem uma daquelas aventuras onde só há espaço para uma tremenda atração e paixão na sua forma mais ardente e alienante, ou seja, naqueles momentos em que fechamos os olhos e deixamos que os sentidos tomem conta do resto. É o momento em que o desejo fala mais alto, praticamente não deixando espaço para racionalizações, culpas ou indecisões.

O impressionante nesses momentos de intensa paixão é a quase dissolução da individualidade e o surgimento de outro campo onde ambos estão em "fusão". Claro que, num momento assim, de fusão, é muito alto o risco de uma "idealização" da outra pessoa, como se ela fosse a "única", absolutamente indispensável. É esta "idealização" que, entretanto, por vezes, não resiste às contingências da realidade que vai se impondo lentamente com suas exigências e responsabilidades, e trazendo consigo algumas "frustrações" e amarguras, fazendo com que a continuidade da paixão, naquele mesmo ritmo intenso, se torne uma impossibilidade.

Sempre vou respeitar e admirar a paixão, afinal, não é porque ela traz um forte risco de frustração que deve ser abandonada. Aliás, conseguimos mesmo abandoná-la? Afinal, quem já não enfrentou tudo isto? Quem não corre o risco de enfrentar tudo isto? Quem não deseja e torce por tudo isto? Apesar de ser um momento de absoluta ausência de racionalidade, está repleto de... vida! Está aí para ser vivida, nem tanto para ser pensada. Pode trazer consequências dolorosas? Pode! Mas há como evitar senti-la em alguns momentos da vida?

(José Henrique P. e Silva)

sábado, 25 de janeiro de 2014

A lembrança como companheira


Essa frase me lembrou uma rápida conversa que tive com uma amiga um tempinho atrás. Me recordo que disse a ela que quando envelhecemos nos tornamos muito felizes com nossas lembranças. E ela me respondeu: "que triste, não quero isso para mim. Não quero viver de lembranças".

Eu fiquei calado, meio que atônito, sem palavras. Mas, depois, percebi que ela sendo ainda muito nova e podendo ter toda a mobilidade e disposição necessária para caminhar e experimentar sensações e encontros os mais diversos, não percebeu que, com o tempo, a "lembrança" de tudo isto pode ser mesmo uma de nossas melhores companheiras.

É nesse ponto que recordo sempre do meu pai sempre dizendo: "Eu vivo muito bem com minhas lembranças, e as de menino são as melhores", e sempre com um sorriso. Não tenho dúvida que chegará o momento em que as lembranças também terão um lugar ainda mais especial ao meu lado. Será o momento em que talvez eu já não tenha mais tanta disposição de ir ao encontro dos outros. Nesse momento, aí sim, tendo as lembranças bem ao meu lado, poderei me encontrar novamente com tudo o que me fez feliz... e simplesmente sorrir!!! 


E por que não? Lembrar também é uma forma de encontrar novamente!!! Não é?
"...Uma vez ou outra, quase todos nós nos sentimos aprisionados por coisas que pensamos ou fazemos, enredados por nossos impulsos ou escolhas idiotas; presos em alguma infelicidade ou medo, atolados em nossa própria história. Sentimo-nos incapazes de seguir adiante, mas apesar disso acreditamos que deve haver uma maneira (...) E como mudança e perda estão profundamente conectadas - não pode haver mudança sem perda..."

(Stepen Grosz, A Vida em Análise).

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

A verdade liberta?

Uns dizem que "a verdade liberta", outros que "a verdade dói", outros ainda que, "mais cedo ou mais tarde a verdade se impõe". Enfim, o fato é que a "verdade" é daqueles temas onde não se chega a um termo final. O que me parece muito claro é que, não é, propriamente, uma missão nossa, um destino nosso, buscar a verdade. Não que estejamos imersos em mentiras mas, como abrir mão de nossas fantasias? Como abrir mão das expectativas criadas em torno de algo que sabemos irrealizável? E mesmo quando buscamos a verdade, não fazemos isso tão facilmente, pois geralmente estamos coagidos ou pressionados para tal. Na realidade, buscar a "verdade" é praticamente um ato sobre-humano ou não-humano. A ciência? A religião? Bem, até que a ciência e a religião têm essa pretensão, mas não chegam tão longe assim. Ainda são como que "ilusões", que nos afagam e consolam.

Mas, estamos falando de um processo impossível? Acredito que não. Desde que essa "verdade" seja a nossa verdade. Aquilo que nos diz respeito mais intimamente, aquilo que fala de "eu mesmo". Não aquilo que me define (também acho muito complicado esse conceito), mas aquilo que me permite ser "eu mesmo" hoje. Essa busca sim, podemos fazer e será sempre vasta em descobertas. Mas, o que nos levaria a buscar essa "verdade" de "eu mesmo"?

A tragédia de Édipo tem algo a nos dizer sobre essa motivação. Há algum tempo estive no Teatro Eva Herz, na livraria Cultura, e assisti à peça "Édipo" na versão de Elias Andreato. Foi aí que percebi esta nuance que sempre me aparecia em um plano secundário. Édipo é daquelas tragédias mais conhecidas e, para a psicanálise, Freud praticamente a imortalizou e popularizou no seu famoso "complexo". Sabemos de seu crime, de sua maldição, de seu atentado contra a própria visão, de seu exílio, enfim, de seu martírio. Mas, fica sempre uma dúvida: Por que ele teria caminhado em direção a esse trágico desfecho de forma tão intensa e, convenhamos, de forma voluntária? Édipo buscava a verdade... sobre si mesmo!
 
E a buscou de forma incessante, ainda que para seu próprio sofrimento. Guiado por um forte código moral, ele buscou a resolução de um crime, sem saber que era o próprio autor. Mas, o interessante é que à medida que os indícios foram se tornando mais intrigantes e aproximando-se dele, ainda assim, mais ele insistiu na busca. Seu desejo em conhecer a verdade, então, teria algo de libertador para si mesmo? Para Édipo, essa busca, por pior que fosse, e por mais sacrifícios que impusesse, seria mais reconfortante que a insegurança que experimentava diante de tantas dúvidas. Ao final, a revelação da verdade, ainda que trágica, lhe trouxe algum conforto. Perdeu o poder, perdeu tudo o que tinha, ficou cego, vagou sem destino, mas teve a chance de encontrar-se consigo mesmo e, enfim, entender o que lhe havia acontecido. Ora, como toda boa "tragédia", Édipo nos coloca frente à nossa própria "insegurança", traço marcante da condição humana. Era contra a "insegurança", de não saber "quem era", que Édipo buscou a verdade. 

E hoje? Bem, essa mesma "insegurança", nos dias atuais, é combatida pela ideia de fácil conquista da felicidade e do sucesso. Somos coagidos a isso a todo instante. Claro que nosso mundo atual parece mais luminoso, colorido, diverso, repleto de oportunidades e prazeres. Muita aparência, entretanto. E tanta luminosidade acaba por causar alguma cegueira, o que, por sua vez, só potencializa a mesma insegurança. Ao contrário de Édipo! Acho que não é difícil concordarem que vivemos uma época de forte insegurança, principalmente emocional.

Nosso mundo atual, então, é um mundo de aparências, de imagens, repleto de nuances, nos perdemos em seu colorido e em sua luminosidade. E, na imensa maioria das vezes, preferimos isso a lidar com nossos limites e com o que nos assusta. Bem, não estou aqui para julgar ninguém, mas resta saber se podemos, de fato, encontrar algo da felicidade ocultando nossa insegurança, e por quanto tempo. Não precisamos chegar ao destino de Édipo, mas não podemos virar os olhos à nossos medos e fraquezas. Não dá para virar os olhos por muito tempo. Existe, então, algo de libertador aí, e que pode ser buscado, para nossa própria paz.  (José Henrique P. e Silva)

domingo, 19 de janeiro de 2014

Estranha Compulsão

"Estranha Compulsão" (Richard Fleischer, 1959) é um filme clássico que mostra aquelas tentativas de se realizar um "crime perfeito", e se baseou no famoso caso dos criminosos Leopold e Loeb, nos EUA. "Festim Diabólico" (Hitchcock, 1948) já seguira essa mesma linha. Lembram de James Stewart em meios àqueles dois e o famoso baú em que se encontrava o corpo? Então, a trama do filme se desenvolve em torno do assassinato de um garoto, e dois amigos, Artie e Judd, com personalidades distintas, mas um mesmo desejo de reconhecimento, vão apostar no "crime perfeito" (aquele que jamais é descoberto). O diálogo abaixo retrata bem o quanto um precisa do outro para sua própria glorificação.
 
 Artie - Faremos os tiras de tolos, enquanto rimos deles.
 Judd - Sim, mas juntos Artie! Algo perfeito, algo genial! O verdadeiro teste do intelecto superior.
 Artie - E muito perigoso...para ser divertido!
 Judd - Sim!
 Artie - Não, você entraria em pânico novamente.
 Judd - Não, não entraria não! Deve ser uma experiência sem envolvimento emocional. Só para provarmos que somos capazes.
 Artie - Somos capazes!
 Judd - Juntos!
 
Judd é o "gênio", introvertido, que sente-se deslocado e rejeitado em sua família, e quando recebe de Artie a "atenção" necessária torna-se profundamente decidido a agir para provar o quanto é inteligente e receber aprovações. É ele quem busca justificavas "teóricas" para seus desejos. É em Nietzsche, por exemplo, que vai buscar o conceito de "super-homem" para justificar seu "super-intelecto".
 
Mas, Judd não é o homem de "ação", e sim Artie, que é o "típico" psicopata, não mede esforços em trapacear e desdenhar dos outros. Se compraz em ludibriar, desde que tudo sirva para sua própria glorificação. E, se for preciso, mata sem qualquer sinal de remorso. É disto, então, que nossos personagens falam: da realização de um "crime perfeito" para provarem a si mesmos sua grandeza intelectual e que, por outro lado, os demais são todos tolos.
 
Entretanto, pequenos detalhes vão levar à prisão dos dois. Uma cena do julgamento é marcante. Orson Welles faz o papel do advogado Wilk e fará uma forte defesa da insanidade de ambos para que escapem ao enforcamento:
"... (O. Welles falando ao juri) devem-lhes a mesma compaixão que vocês tiveram com a vítima. Se nosso Estado não for mais bondoso, humano, prudente e inteligente que o ato de loucura desses rapazes perturbados, vou lamentar por ter vivido tanto...".
 
O término do filme parece ser um apelo à nossa capacidade civilizatória, de sermos melhores que os "maus", que os "doentes", e de que o progresso moral está acima de qualquer desejo de vingança e punição. Ok, concordo! Mas, um equívoco que é rotineiro é imaginar-se que, cometer um crime e alegar insanidade pode trazer inocência, perdão ou isenção de responsabilidade. Não! Cometer um crime implica em pagar por ele. Isso é responsabilização. E a saúde mental, se for um atenuante, o é para outras situações, jamais para a isenção de responsabilidade.
 
Isso seria impunidade e "infantilização" dos crimes! E responsabilização é o primeiro passo até mesmo para a melhora da saúde mental. Não concordo mesmo com o enforcamento deles, mas seu afastamento total em relação à sociedade era uma necessidade. Nesse sentido, o discurso de O. Welles me parece bem razoável, e civilizatório.

sábado, 18 de janeiro de 2014

A liberdade bate à porta... e agora?

Hoje me deu vontade de escrever algo. Hoje não, agora!!! Neste mesmo instante. Não dá tempo nem de pensar sobre o que quero escrever. Só quero escrever! E com urgência, muita urgência. Pra que pensar? Pensar eu pensei durante horas, dias, semanas. Agora só quero escrever algo. Mas a vontade mesmo é de escrever uns palavrões, muito palavrões, muitos mesmo. Não pra ofender ninguém. Mas  para comemorar. Claro! Palavrão também foi feito para se comemorar algo. Ou não? Bem, eu sempre gostei de soltar um palavrão em certos momentos de felicidade. Então vá lá...que porra, cacete... estou muito feliz nesse momento. E aposto que vai ser duradouro. Sim, pode ser duradouro sim, e se não for, foda-se, eu arranco a felicidade novamente e a trago para acalmar meu peito. Há momentos que a gente mergulha, percebe logo que, droga, é areia movediça, depois vem aquela cor de lama, em seguida o cheiro de algo muito podre. Sim, nessa hora estamos na merda, na maior merda. E é muito fácil gostar dessa merda toda. Afinal, quem não quer se colocar como vitima, como sofredor, como carente. Tá, tudo isso é legal. Mas, é foda, você vira pra um lado só lama, vira pro outro, só lama.  E aí? Vou ficar nadando de braçadas nesta poça de merda em que me meti? Chego até a dar uns mergulhos, ensaio uns movimentos que lembro ainda do meu tempo de natação, mas, que saco, isso é horrível. Está mais para uma paralisia. É uma posição lastimável, necessária, fundamental, mas lastimável. Me dei o direito sim de ficar na lama por um tempo, mas, de repente ouço um "toc toc" na porta. Não, infelizmente não é o Bob Dylan, nem o Eric Clapton, nem o Roger Waters cantando "Knockin' on Heaven's Door". Se fossem, puta que pariu, eu me ajoelhava. Aliás, pra inveja de alguns, já tive o prazer de apertar as mãos e trocar duas frases com o Roger Waters. Já dava pra morrer feliz. Mas, não! Ainda não! Porra, vou ouvir esta música agorinha mesmo, vou ouví-la umas três vezes antes de dormir, ou mais. Tá, não é nenhum dos três, tudo bem! Mas é a minha liberdade. A liberdade de agora poder me olhar no espelho, com toda a lama no corpo, e retirá-la, pouco a pouco, deixando vir à tona um cara diferente. Não, diferente não! Apenas um cara que estava guardado, meio que soterrado debaixo de entulhos de regras, convenções etc. Foda-se isso, quero ser feliz, não quero ter razão nenhuma. Nenhuma mesmo. Foi A. Schopenhauer quem disse isso? Em tempos dessa bosta de Facebook a gente acaba ficando confuso com as autorias. Bem, se não foi, deve ter sido a Clarice Lispector, afinal atribuem tudo a ela. Não que não seja merecido. Enfim, deixa o Facebook pra lá. O fato é que é a hora de saber o que fazer quando abrir a porta e deixar a liberdade entrar. Recebê-la com carinho, com atenção, com muito respeito. Não vou me lambuzar como me lambuzei na merda. Vou ser mais cauteloso, mas justamente para estar lúcido o suficiente para não deixá-la escapar, mas, quando ela estiver suficientemente seduzida por mim, aí sim, me lambuzarei dela, nadarei de braçadas, como um bom filho da puta que, quando criança, não pode ver um doce na sua mão que vem logo tirar de você, rsrsrs. Ahh, já está bom. Não quero mais escrever. Agora vou dormir. E já sei como quero que seja meu sonho. Aliás, é a última chance dele. É a última chance deste sonho surgir na madrugada e na minha cama, pois a partir de amanhã ele começa a se realizar, e aí o bicho vai pegar!

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Os frágeis laços amorosos da atualidade

Tem sido muito comum que, com a mesma intensidade com que começa, um relacionamento se evapore hoje em dia. Muitos casos estão marcados por uma profunda "intolerância" com o discurso do outro. Muito fácil, portanto, que palavras como "direitos" e "liberdade" sejam ecoadas para defender os interesses específicos de cada parte do casal. Inevitável, então, que a corda estique a um ponto que, mesmo voltando atrás, ela fique, agora, com uma tenacidade mais frouxa.Parece que nada mais será como antes. Não são poucos os casais que não resistem a estas primeiras grandes confrontações.
 
Mas, o que pode estar acontecendo? No início formam um casal, mas não se vêem como "dois". Mergulham, por vezes, em um processo fusional onde um busca a dissolução do outro. Trata-se de um processo guiado pela capacidade de projetarmos sobre o outro nossa própria história e as formas que aprendemos, especialmente, quando de nossa situação triangular, com pai e mãe. Esta forma de se comportar num relacionamento tem enterrado amores intensos, fazendo com que um, quando se sinta contrariado, logo vire o rosto quando diante de dificuldades. Não se trata, então, de uma fusão que gera "um", é uma fusão onde "um" tenta dissolver o "outro" e quando se vê contrariado parte para o embate final logo nas primeiras dificuldades.
 
Ora, dificuldades no relacionamento precisam ser pensadas, discutidas, e não simplesmente "abandonadas" como se não se "encaixassem" naquele "modelo ideal" que é construído para o casamento. Um modelo que me leva a querer que o outro simplesmente se "encaixe". Desistir, então, não é o problema, mas estamos sabemos mesmo por que motivos estamos desistindo de um relacionamento? Não estaríamos desistindo muito facilmente? Enfim, claro que cada caso é um caso. Não há regras gerais.
 
O fato é que quando estamos em um relacionamento apresentamos dois pedidos ao outro. São pedidos velados, sussurrados, quase inaudíveis, mas que parecem gritar dentro de nós mesmos: O primeiro pedido é o de ajuda para uma "libertação" em relação à nossa própria história. Que história? Aquela que nos ensinou a nos comportarmos de tal maneira e que passamos a acreditar ser a única maneira, a verdadeira. Não à toa estamos reproduzindo modelos de relacionamentos que nos foram apresentados. Este é aquele pedido em que projetamos sobre o outro nossa história e nossos modelos fantasiosos. Nos comportamos, muitas vezes, então, como nossos pais ou mães, e buscamos outros pais ou mães, sempre em relações ambivalentes (amor e ódio), onde o "eu mesmo" fica soterrado nesse esquema repetitivo de papéis. É assim que mágoas e rancores do passado acabam transbordando nos relacionamentos atuais. Então, é dessa história que pedimos, veladamente, que o outro nos auxilie na libertação. Queremos ser "nós mesmos".

Mas, quem é o "eu mesmo"? É aí que entra o segundo pedido que existe em um relacionamento, e que contraria o primeiro pedido. Pedimos que o outro não nos traga transformações, mudanças, que não nos tire dos papéis que sempre assumimos. E é aí que inúmeros relacionamentos simplesmente explodem, se estilhaçam em pedaços, pois a fantasia de modelos de relacionamentos supostamente "verdadeiros" se impõem e não deixam que sejamos "nós mesmos".
 
É preciso superar esses papéis antigos, esses modelos antigos. Encontrar um outro é ter a grande oportunidade de, até mesmo em meio a crises, buscar conhecer-se e passar a construir um par novo, diferente do modelo dos nossos pais e mães. É dessa história que nos sobrecarrega que precisamos nos livrar e assumirmos o papel de protagonista de uma outra história. Aquela não desaparece, mas perderá importância diante de uma nova. Assim, o outro, nesse caso, não deve ser uma projeção de nós mesmos, afinal ele é um "outro", é diferente. E é somente sendo diferente que me possibilitará ser "eu mesmo".

Relacionamento, portanto, é construção, é trabalho, é esforço, é suor. Há garantias de sucesso? Não! Não há! Mas dá pra desistir tão fácil? Dá! Mas, pode ser uma pena. Qual a recompensa pelo esforço? A possibilidade de ter alguém que, na nossa frente, ao longo da vida, nos possibilite enxergar nós mesmos, nossos desejos e angústias. Ou seja, a recompensa é ter um outro, diferente de mim, pois só assim serei eu mesmo. Vou projetar minhas fantasias do passado sobre o outro ou vou lutar para ser "eu mesmo" e ter no outro uma parceria para a vida e o futuro? As vezes ainda dá para lutar, e melhorar! Falo isso, especialmente para aqueles jovens casais que usam e abusam da intolerância nos dias atuais.

Os riscos da fantasia da "união incondicional" no casamento

Os questionamentos acerca da qualidade da vida do casal, e seu vínculo, estão muito presentes na clínica, quase sempre tendo como pano de fundo as mágoas, tristezas, omissões e ocultações vindas à tona numa crise. Na maioria das vezes, a presença destes casais, são tentativas de "colar cacos". Não se trata, simplesmente, de uma traição "sexual". Essa, muitas vezes até permite certa acomodação de interesses e fica como uma espécie de "arranhão". O que está em jogo é algo que pode até ser considerado mais profundo: uma quebra de confiança total. Este é um tema recorrente, e grave.

A traição de uma intimidade que se fantasia como total e absoluta, de um compromisso que se sonha incondicional. Hoje, a infidelidade não é tão sexual quanto moral¹.

Mas, o que é, exatamente, esta quebra de "confiança total" depositada, por sua vez, sobre uma fantasia de "união incondicional"? desejo responde essa fantasia? Essa pergunta é fundamental ter sempre em órbita.

É interessante notar que boa parte dos casais que vão à clínica não têm como preocupação central fazer "evoluir" o vínculo conjugal, em transformá-lo. Parecem mais preocupados com algo anterior, mais básico: a própria criação de um laço. Esse processo ainda se torna mais angustiante pelo fato de, desde cedo, conviverem com a fantasia de um casal idealizado. Aquele casal que é glorificado na mídia, nos filmes, na literatura, nos contos de fada.

Esta é a fantasia que praticamente torna impossível a continuação de um vínculo baseado na transformação mútua. É como se esperassem por alguém "inteiro", "pronto", para ser seu eternamente. Como se trata de uma fantasia, e não encontra correspondência no real, vem o desespero.

É neste contexto que a traição sexual perde muita importância diante da quebra da fantasia da "união indissolúvel". Ficar só, ser deixado, adquire fortes proporções de "abandono" e toca em questões narcísicas muito profundas.

Antes mesmo, então, que se construa um laço que é mutuamente transformador, já existe a fantasia de uma fusão completa que, caso quebre, gera intensa angústia de separação. Nada impede que uma união seja eterna, mas o que vai garantir essa eternidade não é uma fantasia, e sim um trabalho de transformação permanente e mútuo do laço. E é sobre isso que se precisa pensar e conversar.

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¹ HEFEZ, Serge. Cenas da Vida Conjugal. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 28

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Disturbio Paranóide

Certamente, um forte traço paranóide não é algo que o terapeuta goste de encontrar no paciente afinal, pensado como uma "história de amor", o tratamento analítico floresce numa atmosfera de abertura, sinceridade e confiança, e o comportamento paranóide é um veneno a essa confiança. É algo que a destrói e leva ao esgotamento as pessoas que estão ao redor. E tudo começa com um "medo", fazendo surgir um leque de distúrbios¹. Entre os mais leves destes distúrbios está o "pensamento relacional", que é aquele segundo o qual determinado acontecimento, que aparentemente em nada nos diz respeito, na verdade tem uma relação oculta conosco².
 
Exemplos são as superstições e crenças que carregamos, ainda que de forma pouco utilizada no dia a dia. A indústria de amuletos e o horóscopo são outros exemplos desse pensar de modo relacional. Tido isso pode parecer estranho à razão, mas existem outros pensamentos que ultrapassam a fronteira e chegam ao "anormal" quando imagino, por exemplo, que um locutor de rádio está falando diretamente para mim. Mais grave ainda é o que acontece cm os que sofrem com a psicose paranóide. Para estes, os pensamentos tomam a forma de delírios, de fundo religioso por exemplo.
 
Mas, para que um pensamento relacional se transforme em pensamento paranóide é preciso que eu acredite que aquilo que escutei do locutor de rádio, por exemplo, tenha uma má intenção para comigo. Ou seja, Pensamento paranóide é aquele que vê intenções maléficas ocultas em acontecimentos comuns ou aos quais é possível dar significados diferentes, geralmente não ameaçadores³.

Ora, más intenções todos nós admitimos que existem mas, no mundo do paranóide só existem más intenções. Enxergar, num fato simples, um perigo potencial, em si não é um distúrbio paranóico, pode mesmo ser um "alerta". O risco, então, é quando isso ocupa um espaço muito grande na vida da pessoa.
 
Não é à toa que, por vezes, o paciente paranóico lance dúvidas sobre a própria atuação de seu analista. Nesse caso, a contratransferência através da raiva do analista tem que ser evitada, pois será interpretada pelo paciente como uma "confirmação" de que existe uma tramóia e que sua desconfiança, portanto, estava correta.
 
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¹ O texto foi escrito como uma sinopse do capítulo 13 ("A Sombra de uma Suspeita") de O inimigo no meu quarto, e outras histórias da psicanálise, de Yoram Yovell. Rio de Janeiro: Editora Record, 2008, p. 331-340 (trechos exclusivos sobre a paranóia).
² Pág. 332.
³ Pág. 333.