quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Encontros e desencontros do amor!

Quem se atreve dizer que o amor não é um encontro. Ele exige mais de um. Como amar sozinho? Pode-se sentir o amor sem lançá-lo sobre outra pessoa? Não! Ele precisa de um encontro. E ele e ela se encontraram, em algum momento, marcado por um enorme acaso. Encontraram-se, através de sensações. Sensações que levam ao toque, ao abraço, ao beijo. Ora, amor precisa de dois. Dois singulares, dois específicos, duas individualidades. Por isso o encontro. O encontro não se dá entre iguais, se dá entre diferentes. Os iguais não existem. E se existissem jamais se encontrariam, pois estariam em busca do diferente. O que é, então, este encontro senão o reconhecimento de algo que sempre faltou. O reconhecimento de algo que se transforma em desejo, inevitável, imprescindível agora mesmo, nesse instante. É aí que se dá o encontro, em meio ao reconhecimento. Os dois, ele e ela, reconhecem, os dois experimentam a possibilidade de superar a falta, de tapar os buracos, de finalmente explodir em gozo. E é esta possibilidade, fornecida pelo encontro que leva a uma busca desenfreada, insana, sem sentido, sem razão, sem ponderação alguma, pela fusão. Ele a quer para si, ela o quer para si. Não só desejam-se, querem-se. Querem que faça parte, que complete, que preencha. É um momento tenso, pura intensidade, mergulho profundo, um caminho quase sem volta, sem fôlego, falta ar. Mas não se importam, o desejo é pela dissolução, ele nela, ela nele. O desejo é por devorar, por ter dentro de si, a cada instante, sem o risco de perder. A sensação é de não se viver sem. Vontade é de se morrer assim, colados, como uma só peça, destrutível, mas impossível de gerar as singularidades de antes. É o momento do pleno êxtase. Ele e ela imaginam-se um só. Mas, a dor e o sofrimento povoam este momento. O que era uma possibilidade logo se revela uma impossibilidade. Como, de dois, gerar um só? A dissolução é só desejo, a colagem não é tão segura. Surgem os medos, as inseguranças, as dúvidas. Como sustentar aquele êxtase permanentemente? Tudo conspira contra a fusão. A realidade se impõe produzindo fissuras, reforçando os traços de individualidade, separando desejos, demarcando vontades. A dor se instala. Veio para ficar. A completude vai ficando distante e o êxtase vai se acalmando. Ele e ela se entristecem, se calam. Volta a individualidade. Retorna vitoriosa, mais forte. Não destrói o encontro, mas diz que a fusão é impossível. Aplaca a dor e o sofrimento, mas faz o êxtase arrefecer. Mas ainda resta o amor. Ele sobrevive a toda esta tormenta, a todas estas possibilidades e impossibilidades. Ele volta mais maduro, sem uma promessa de fusão, mas com a certeza de um encontro muito duradouro. Voltam a ser dois, sabem que ser um só é uma impossibilidade. Mas, não desistem, e, como dois, ele e ela irão viver esse encontro que é o amor. Afinal, se não fossem dois, não haveria encontro entre ele e ela.

Ele surge do silêncio... o amor!

À cada recanto de uma letra sua… onde se esconde o amor.
Explicar o amor? Ilusão, e quem se atreve?
Instantes iniciais existem. Instantes em que o eu sonha em ser nós.
Apontar seu nascimento? Ilusão, e quem consegue?
Mas, o vazio arrefece e o eu sonha em ser nós
 
Num desses instantes, o olhar foi atraído, chamado.
Palavras, palavras… doces, gentis, amigas, mas apenas palavras.
Se antes vagava, não em busca, sem perceber foi capturado.
Como na poesia, nos permitem a fantasia. São as palavras.
 
Surpreso, o olhar protesta: “Não, não sou eu o chamado!”
Tudo o mais se movimenta. Nada mais está quieto.
Mas ele teima, deixa-se prender e todo o resto se pergunta: “É um ser amado?”
Uma busca se inicia. Tudo está inquieto.
 
Havia algo mais, ali. Um espaço, em meio, por entre as palavras… em branco?
O olhar estava capturado… não eram as palavras, nem as letras!
Havia movimento, sombras, nesse espaço. Não era só o branco.
Eram doces, gentis. Mas eram somente palavras… e letras!
 
Era o que estava em meio… em meio, por entre!
Naquele branco, limpo, curto… havia algo, em meio!
Seu contorno foi se dando… era uma mulher, que trazia o amor, em seu ventre.
Chagava, feliz, a certeza… não era um devaneio!
 
Não era mesmo?
Seria apenas… a paixão?
Tudo estava a esmo?
O que era, então?
 
Tentou apagar as palavras, e ficar somente com ela… não conseguia!
As palavras eram necessárias… em meio a elas é que se revelava.
Sem as palavras, não ficava desnuda… desaparecia.
Desistiu, permaneceu com as palavras, continuou a buscá-la.
 
Lia, se perdia… leria, relia, tudo valeria, para encontrá-la!
Ela estava ali, em meio, por entre, só insinuava.
Um sorriso sapeca, infantil, tão rápido, por trás de uma letra… como pegá-la?
Vá, pensava. Vá ler, e ia. Mas, um instante apenas… e não mais era achada!
 
Não é ele, sou eu… eu preciso das palavras, em meio a elas, e por trás, ela corre
Corre livre. Por vezes, para… se agacha, lança um olhar… prendendo-me.
Sem ninguém alcançá-la, livre, novamente ela corre
Foi nesse instante que algo percebi. Eu estava com sede, perdendo-me!
 
Cada letra, cada palavra, era sua moradia… ali ela existia
Se nenhuma letra era fria, era porque ao seu toque… aquecia
Se nenhuma palavra era morta, era porque ao seu olhar… revivia
Ela precisava das letras, e das palavras, pois com elas… seduzia
 
Foi difícil se perder… não! Não foi.
Quanto mais a procurava… me desesperava, pois ela capturava
Sempre ali, em meio, por entre as palavras e as letras, mesmo num curto “oi”
No oculto, no não dito, no inominado… No silêncio que pairava!
 
É no em meio, no por entre, que o silêncio reside.
Entre uma palavra e outra, no recanto de cada letra… ele habitava
Um silêncio que perturba, que traz o barulho, e o movimento permite.
Um salto… e no salto, o silêncio! Mas não a calma.
 
Incomoda… movimenta!
Toma a atenção… desperta!
Tira do lugar… inquieta!
Faz perder-se… oferece a saída!
 
Ela está ali, por entre… em meio!
Correndo, livre… se debatendo!
Sorrindo… gargalhando!
Vivendo, oferecendo o amor!
 
Ela surgiu do silêncio!
Trouxe o amor, e exigiu minha dissolução, nua!
E estou aqui, dissolvendo-me, em silêncio!
Em cada recanto de uma letra, sua!

Uma carta...não enviada!

Oi amor, preciso conversar um pouco com você. Não pelo chat de qualquer rede social. Por ali a chance de mal entendidos é enorme e acabamos nos perdendo em pequenos detalhes insignificantes. E o que precisa ser dito, e sentido, acaba por não ser dito ou sentido. Além, disso, o chat não respeita o silêncio. Ele é logo interpretado como recusa, como desrespeito, como distração, quando, na realidade, é um grito, um apelo, um pedido de socorro.
Você sempre me pergunta se tudo está bem. Se existe algo acontecendo. Sim, existe algo acontecendo sim. Algo que me deixa cansado, desmotivado. Queria muito mesmo poder mudar muita coisa hoje na minha vida. Mas não vou conseguir tão rapidamente como eu gostaria. E ultimamente tenho me sentido muito mal, as vezes um pouco intolerante, propenso a discussões bobas. As vezes passa, parece sumir, e volto a ficar otimista. Mas essa oscilação tá difícil. O que sinto mesmo é que minha vida tá de cabeça pra baixo.
Tenho me sentido muito sozinho. Um tipo de solidão muito aguda, que me impede até de falar. E o pior é que só sinto vontade de me fechar ainda mais. Enfim, preciso muito que você tenha paciência, que não me leve tão a sério em certos momentos, que não se chateie com meus silêncios, vez por outra. Hoje tudo o que gostaria era de estar no meu canto, sozinho, onde pudesse sentar e me deparar comigo mesmo. Estou precisando muito disso. Mas, sei que, ao mesmo tempo, isso só aumentaria minha solidão.
Tem paciência. Meus silêncios são gritos que não podem sair nesse momento. Sufocam, me entalam, me engasgam. Mas não fazem com que eu deixe de te amar. Só estou falando isso porque você é a única pessoa que me interessa que saiba. Eu te vejo feliz, e queria muito estar na mesma sintonia que você. Mas, confesso que não estou, nem sei se consigo. Acho que sou um cara muito limitado quando se trata de felicidade e de amor. Mas a tua felicidade me contagia um pouco, me faz resistir. Só espero, também, estar te fazendo algum bem. Não se assuste nem se magoe com meu silêncio, ele é só a melhor expressão de tudo o que não posso sentir de forma livre e aberta.

E de repente me sinto sozinho. Não, não tão de repente. Na realidade, sempre me senti assim. Não vou ser tolo em dizer que já fui feliz somente para ter a esperança de atrair coisas boas a meu favor. Não, nunca fui feliz. E daí? Por acaso existe algo que me obrigue a isto?
Com quem posso gritar em silêncio? Com quem posso abrir-me ao ponto de ter puxado de minha garganta aquele bolo de pano que parece sufocar e só me permite grunhidos e resmungos?
Onde estão meus amigos? Aqueles com quem posso sentar frente a frente e não ousem me dar conselhos, nem mesmo emitir uma palavra sequer, mas que com o olhar me façam sentir acolhido.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Great Expectations

Gostei muito da versão de Great Expectations (Charles Dickens, 1861) feita pela BBC em 2011. É bastante rica em detalhes, sem falar nos belos cenários que tentam reviver a Londres da primeira metade do século XIX. A "transformação" de Pip é o ponto central. Não podemos esquecer que, em plena Era Vitoriana, a ascensão social era, talvez, a "grande esperança" de qualquer família pobre. Este não é o problema para Dickens, pois vê tais desejos como legítimos, mas como se dará este processo? É disto que tratou nesta obra maravilhosa.
 
Pip é um órfão, que vive com um casal de ferreiros. O homem é bondoso e lhe quer como aprendiz e filho, a mulher o vê como um meio para melhorar sua vida financeiramente. É neste meio de virtudes e interesses que Pip desenvolve-se. A trama está marcada por uma boa ação de Pip, quando criança, ao ajudar o Sr. Abel Magwitch, então preso fugitivo. É esta boa ação de Pip que leva este homem, quando liberto, a, de forma anônima, "financiá-lo" em sua educação com o objetivo de tornar-se um cavalheiro na sociedade.
 
Apaixonado por Estela, desde criança, Pip vê em sua ascensão a oportunidade de realmente estar com ela. É esta paixão que o leva a aceitar o distanciamento de sua família e tudo o que representava o "antes" em sua vida. A ascensão é rápida e no mesmo ritmo surge o desejo de esquecer tudo o que viveu. Mas, os "fantasmas" lhe assombram. O pai, depois de meses sem resposta, vai procurá-lo em Londres e ele demonstra descaso. O antigo aprendiz de seu pai lhe aparece e ele parece assustar-se. Uma criança que conhecera na infância, símbolo da arrogância da alta hierarquia (Herbert), agora é seu ajudante e parece ter trocado todas as suas ambições por um legítimo amor e uma vida simples, ao contrário de Pip. Não há dúvidas que enquanto Pip cresce em suas ambições se defronta, permanentemente com seu passado.
 
"O que era a companhia adequada um dia não é certo agora". Esta frase da Sra. Havisham (tutora de Estela) parece resumir o ponto central desta obra. "Nenhum de nós é o que diz ser", resume, por sua vez, Estela, o que parece ser a essência de uma sociedade construída a partir de meras ambições materiais e que esquece a autenticidade das relações e faz esfriar o coração.
 
Quem já não esteve disposto a "esquecer" um passado em prol de uma "grande esperança"? Mas, valerá a pena? Não seremos todos, no final das contas, "garotos da forja"? Em qualquer época e em qualquer lugar esta pergunta sempre ecoará em nossos ouvidos. É disso que Dickens tratou e é disso que tratamos até hoje. Não à toa Dickens é daqueles autores que chamamos de Clássico.

Renunciar ao "impossível" é necessário

Tudo bem, sei que é difícil chegar à esta conclusão, mas é realmente necessário insistir em RENUNCIAR ao "absoluto". Sei que é difícil porque vivemos uma época em que "desistir" de algo, ou de parte de algo, pode ser logo taxado de "fracasso", "covardia", "fraqueza" e por aí vai. Besteira!
 
O fato é que a pressão que existe lá fora é imensa, afinal vivemos em uma sociedade fortemente competitiva onde o individualismo narcisista é o que dita a regra geral, cada vez mais. Como, então, DESISTIR do "absoluto" e aceitar o "possível"? Não é mesmo uma luta fácil pois toda a nossa estrutura de desejo é a de ir em busca do "impossível". Mas, manter-se prisioneiro dessa busca do "impossível", leva ao fácil esquecimento de que o "possível" não é apenas o "possível", como sinônimo de algo limitado, pequeno, inferior.
 
O "possível" é algo mais... é aquilo que também satisfaz e atende ao nosso desejo. Já o "impossível", quase sempre, só nos mantém numa OBSESSIVIDADE incontrolável e dolorosa, que faz sempre nos sentirmos pequenos e insatisfeitos. No fundo, estamos falando aqui de um processo que leva, ou não, à NEUROSE. Quando não aceitamos o "possível" abrimos uma enorme porta para o sofrimento neurótico. Mas, quando o aceitamos, a chance de um desenvolvimento emocional saudável é imensamente maior.
 
A vida pode ser bem mais leve do que afirmam por aí, basta começarmos a fazer escolhas mais simples e adequadas. Sou um fervoroso defensor da simplicidade, em todos os aspectos da vida, ela nos torna mais autênticos e sadios.Ver mais
 

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Precisamos ser humilhados pela mídia e pela política?

"...Me deixei maltratar por pessoas que não eram melhores que eu em caráter ou capacidade..." (F. S. Fitzgerald, escritor).

Folheando alguns recortes me deparei com uma coluna da Márcia Tiburi (Cult, mar/2013) onde ela cita a frase acima para servir de exemplo para o necessário "esforço de resistência" em entender as estruturas que nos humilham, e resistir à subserviência. A frase, porém, implica...
algo muito forte, ou seja, a tomada da consciência de si, do valor próprio, para que possamos deixar de crer em um destino infeliz que tenta se impor de forma inexorável. Mas, então, a partir de onde estamos sendo humilhados?

Márcia nos dá dois exemplos: o da política e o mídia que, voltada em grande parte para uma indústria cultural e de entretenimento de mau gosto*, brinca com a inteligência e sensibilidade das pessoas, com sua programação desrespeitosa e ignorante. Sobre a política nos diz o seguinte: "...a política de nosso tempo não é mais política porque, em vez de ser laço em que as relações entre indivíduos e instituições são valorizadas constituindo a ação capaz de dar sustentabilidade à sociedade, se transformou no gesto de negar o outro, o gesto antipolítico por excelência...".

Ora, sempre entendi que a "política", conceitualmente falando, tem uma forte capacidade agregadora. Ela junta, reúne, estimula o debate, motiva à ação. É isso que lhe permite criar um "laço" social, dando a sustentabilidade à sociedade de que Márcia Tiburi fala. Mas, na prática, e cada vez mais no tempo atual, o que se vê é a desmoralização da vida política e sua transformação em um campo onde lobos devoram homens, onde domina o preconceito, a mentira, o cinismo e a violência. O político, antes um "representante", cada vez mais nos humilha com suas atitudes (corrupção e descaso, principalmente). Esta, infelizmente, tem sido a regra. A politica tem sido o campo do "impossível". Recuperar este conteúdo da política, enquanto "laço", é fundamental. Mas, para isso, não esperemos por "políticos bonzinhos". Temos que refletir sobre o que F.S. Fitzgerald nos fala na frase acima e...reagir, não permitindo humilhações. Algumas coisas nós podemos fazer sim!

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(*) sei que este termo é "perigoso" e soa elitista, mas é o único que encontro agora para definir uma programação que, longe de ser "popular", não passa de pornográfica, insultuosa, e que não nos exige mais do que apertar o botão que liga e desliga a TV. Vivemos, ou não, uma forte época de "rebaixamento cultural"?

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Acertos de contas!

Dos 40 ele já havia passado. Estava próximo dos 50. Ok, tudo bem. Ele se sentia legal, mas incomodado. Se pegava fazendo comparações. Parecia, as vezes, ver colocado em xeque seus gostos, opiniões e atitudes. Passou até a olhar-se mais no espelho pra identificar sinais de um possível envelhecimento mais rápido. Mas eram as comparações que o perseguiam. De uma hora para outra parecia querer estar sempre "atualizado", "conectado", "antenado". Talvez "antenado" nem tanto, já que o termo parecia de uma época bem passada, e isso o intrigava. 

Fazia isso a todo instante. Parecia estar todo fragmentado e, agora, em busca de algo que lhe desse uma nova estrutura. Sentia medo de ser identificado como "velho", "fraco", e por aí vai. Queria algo que lhe permitisse continuar sentindo-se pertencente à sociedade. Sim, essa sociedade "jovem", "ousada", "corajosa", "feliz", "sorridente", "sem limites". Foi quando começou a perceber que o que fazia era buscar uma nova identidade, ou pelo menos certificar-se que ainda estava em "validade". 

Foi inevitável, então, que começasse a se comparar com os mais jovens. E aí o processo ficou complicado pois, se de um lado via "ousada" e "liberdade", quando voltava-se para si enxergava "acomodação". Não parava de pensar nisso. E só via mesmo complicação nisso tudo.

Foi quando começou a lembrar de si mesmo há um tempo atrás. Se viu jovem, numa época em que quase nenhuma importância dava ao passado ou ao futuro. Recordou que tudo parecia estar dentro de um
"eterno" presente. Isso lhe deixava certa saudade. Mas, quase de imediato, voltou novamente os olhos para o seu presente e se enxergou de outra forma. Viu não mais um jovem que parecia sem limites, mas um homem "maduro". Começou a perceber muitas diferenças entre o antes e o agora, entre aquele jovem e o homem de agora. Notou que tinha passado por mudanças, algumas bem profundas.

Sua história começava a vir à tona com mais clareza. E à medida que essa história ressurgia sua vontade de fazer comparações se atenuava. Estava impregnado de vontade em entender o que havia passado consigo mesmo, com seus desejos, com seus sonhos.

Percebera que algumas mudanças importantes haviam acontecido em sua vida e mais, sentia-se instigado a promover rupturas ainda mais significativas. Foi aí que percebeu que não havia mesmo motivo algum para fazer comparações ou buscar se ajustar ao que lhe parecia "moderno".

Tudo o que ele precisava era continuar fazendo seus "acertos de conta". Com quase 50? Parece tarde? Ele não pensava assim! Quem pode pensar assim? Só quem já desistiu! Notava que ainda tinha um futuro. Mais curto é claro. Mas, quando jovem, nem se preocupava com este futuro. Agora, pelo menos, sabia que tinha um futuro e que podia fazer tudo para que fosse o melhor possível. Foi assim que começou  a perceber importantes diferenças entre ser jovem e ser maduro.

Ainda se via na hora, portanto, de sentar e fazer balanços sim! Enxergava nisso uma manifestação de seu processo de amadurecimento. E amadurecimento também se faz com rupturas. Aliás, e como se faz! Quantas vezes não teve que repensar todos os seus sonhos e projetos de adolescência e início de fase adulta? Pois é, agora só tinha que continuar este processo. Logo ele percebeu que se existisse mesmo essa tal "crise" masculina nesse momento da vida, que fosse entendida também como abertura de "possibilidades", aliás, como todo bom conceito de "crise". Não é assim?

Não ousava mais se mirar nas fantasias da juventude, com todas as ilusões de um mundo perfeito e eterno. Enxergou nelas apenas o inicio de sua vida. Só isso! Mas, ele percebera que ainda continuava marcado implacavelmente pela necessidade da fantasia, ao mesmo tempo que se encontrava aprisionado à realidade. Mas, como abolir uma coisa ou outra? Não dava! Ele sabia que se insistisse em sonhos irrealizáveis só teria pela frente a dura castração da realidade e um monte de neuroses a desenvolver. Mas, sabia também que se ficasse prisioneiro da acomodação sua vida continuaria sem sentido, e aí nenhum futuro lhe bastaria.

Pensou mais um pouco e percebeu que é entre "viver a vida intensamente como se não houvesse amanhã" e "tornar-se um neurótico, prisioneiro das obrigações diárias" que sempre se situara, em seu cotidiano. O que tinha que fazer, então, era não mais negar o seu direito a sonhar. Olhar pra trás, fazer um bom balanço, encontrar um bom lugar para os desejos, e continuar caminhando, pois ainda existia um amanhã sim. E poderia ser vivido de uma forma melhor.


Ele não estava disposto a negar a si mesmo a possibilidade de ter alguma felicidade. Ele não a via como privativa dos jovens. Pelo contrário, com o tempo, notou que aprendera a fazer certas coisas de uma forma bem melhor, e a enxergar com mais nitidez o que poderia lhe fazer realmente feliz. Parou de comparar-se, parou de olhar no espelho, e foi viver, sem medo de rupturas, sem medo do futuro, e ansioso para ser feliz naquilo que a vida lhe proporcionava de mais simples. Não estava disposto, como homem, a abandonar-se.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

"Um Doce Olhar" e o silêncio na vida

Despretensiosamente fui assistir ao filme Um doce olhar (Bal, 2010). Digo despretensiosamente porque realmente não tinha nenhuma informação sobre o filme ou sua direção. Nem mesmo sabia que fazia parte de uma trilogia. O resultado foi muito interessante. Um filme lento e silencioso, muito silencioso. Foi o que mais me chamou a atenção.
 
O filme só pode ser compreendido a partir daquele recurso que é tão típico às crianças, o recurso às fantasias, e sua consequente dificuldade de representação e simbolização. Dessa forma, tudo o que precisamos entender, o fazemos através do olhar de Yusuf, a criança. Um olhar, ao mesmo tempo terno e cheio de vitalidade, mas reflexivo e apreensivo. É esse olhar que nos conduzirá à seus desejos e fantasias. 
 
Sua rotina está marcada pela doença da mãe, o pouco carinho por parte do pai, as dificuldades na escola mas, nada disso, porém, impede Yusuf de imaginar-se feliz. E, não são poucas as vezes que ele se coloca como o esteio daquela família, seja auxiliando o pai, seja dando carinho para a mãe. Suas esperanças parecem ser poucas, mas suficientes para qualquer um de nós: a certeza de que nossa família estará marcada pela felicidade. 
 
Num mundo marcado pelo silêncio, ele praticamente não sorri. Mas, ele quer dar alegria para a mãe doente, ele quer estar ao lado do pai no seu difícil trabalho, ele quer superar suas dificuldades na escola. É na realização destes desejos que ele imagina construir sua felicidade. Yusuf nos revela aquele conflito que parece nos acompanhar permanentemente: seu olhar, ao mesmo tempo reflete um vazio, e uma tremenda esperança. Mas, essa esperança parece se esvair quando se revela para ele a morte do pai.
 
Nesse momento, ele corre, a noite cai, e ele só para nos galhos, ou melhor, nos "braços" de uma imensa árvore. Lá ele se deita, se aconchega, como nos braços da mãe, ou do pai. Lá, talvez, ele se volte ainda mais para seu silêncio tentando, quem sabe, dar conta da violência que o realismo da vida lhe impõe naquele instante. Lá, o olhar de Yusuf se perde na escuridão, mas, certamente, suas fantasias deverão estar trabalhando muito, para dar conta de sua dor. Não há como, em muitos momentos, nos vermos em Yusuf, com todos os seus limites, medos, esperança... e dor.

"O preço do amanhã" e quem quer viver para sempre?

O filme "O Preço do Amanhã" é daquelas produções que trazem um bom tema para discussão, mas que não contribuem em nada com a própria discussão. Algo bem hollywoodiano. Sustentado no avanço tecnológico lança temas "humanos" para discussão e se perde pelo meio do caminho. Mas, como um passatempo não diria que é um filme ruim. Destaco seu tema central: a "monetarização do tempo".

De alguma forma, crescemos ouvindo dizer que "tempo é dinheiro" e este filme leva este clichê às últimas consequências. Ou seja, chegou o momento em que o "tempo" (segundos, minutos, horas, dias, meses, anos, décadas) é, de fato, a moeda que regula a todas as relações. Se você tem "tempo acumulado" em sua maquininha tem, não só dinheiro, mas tem tempo para viver mais. Se não tem, paciência, vai morrer mesmo assim que esgotarem-se seus segundos guardados. Surge, então, a grande metáfora: se fala de uma época em que o "tempo" representa o que o "capital" faz hoje ao produzir injustiças, concentrações de renda etc. Então, nada mais previsível que surgir um comportamento "Robin-Hoodiano" de tirar dos ricos para dar aos pobres.

Deixando de lado este clichê que comove a poucos, o fato é vivemos mesmo em uma época em que o desejo por ser eterno é o que move muitas pessoas. Morrer (ou, de outra forma... envelhecer) parece adquirir o significado do "fracasso" e disso todos parecem querer fugir. Não se consegue mais lidar com o futuro (muito menos com o passado), só com o presente, um eterno presente. Mas isso "cansa" e, embora o corpo esteja bem, a "mente cansa" e chega a hora em que você quer "descansar". Nossa maior maravilha talvez seja nossa capacidade psíquica, que nos faz pensar, ter emoções, sentir, enfim...viver! Mas é justamente essa capacidade psíquica que um dia nos leva a desejar o descanso, pois ela também pode nos... cansar. Talvez para alguns não! O fato é que parece que não evoluímos para sermos eternos... mas para sermos melhores! Só isso. Alguém aguentaria ser eterno?

Pode parecer uma pergunta ridícula. Mas, se o cansaço bater, ela fará sentido.

Sobre a "contemporaneidade" (Z. Bauman)

Abaixo alguns trechos de uma excelente entrevista do sociólogo Z. Bauman ao Estadão¹. Bauman, muito conhecido pelo conceito de "modernidade líquida", é um sociólogo em tempo integral que faz uso permanente de suas ferramentas de análise para decifrar a realidade.
 
1. Sobre as incertezas da modernidade líquida e a construção e reconstrução de estruturas
Nós nos encontramos num momento de "interregno": velhas maneiras de fazer as coisas não funcionam mais, modos de vida aprendidos e herdados já não são adequados à conditio humana do presente, mas também novas maneiras de lidar com os desafios da contemporaneidade ainda não foram inventados, tampouco adotados. Não sabemos quais formas e configurações existentes precisariam ser "liquefeitas" e substituídas... Estamos reagindo ao último problema que se apresenta. E tateamos no escuro... Admitamos: hoje mais sentimos do que sabemos. E temos dificuldade em admitir que o poder, isto é, a capacidade de fazer coisas, foi cruelmente separado da política, isto é, a capacidade de decidir quais coisas precisam ser feitas e priorizadas.
2. Sobre o incômodo rótulo de pós-modernidade
Todos nós, em cada canto deste planeta, somos modernos. As formas de vida moderna podem diferir em muitos aspectos, mas o que as une é precisamente sua fragilidade, fugacidade, seu pendor para câmbios constantes. "Ser moderno" significa mudar compulsivamente. Não tanto "ser", mas "estar se tornando", permanecendo incompleto e subdefinido... O que tempos atrás era apelidado erroneamente de "pós-modernidade", e que prefiro chamar "modernidade líquida", traduz-se na crescente convicção de que a mudança é a nossa única permanência. E a incerteza, a nossa única certeza
3. Sobre a descartabilidade
Tem a ver com a sociedade de consumo... as pessoas começam a valer pela sua "vendabilidade". Elas mesmas procuram desenvolver qualidades para as quais haja demanda ou reciclar qualidades para as quais a demanda ainda possa ser criada, num processo que mistura valor social e autoestima. Nossa sociedade não está preocupada com a satisfação de necessidades, desejos e vontades, mas com a commoditização ou recommoditização do consumidor. Daí o sentido de obsolescência e descartabilidade que nos persegue.
4. Sobre a "cultura da celebridade"
Como sugere o psicanalista francês Serge Tisseron, os relacionamentos significativos passaram do campo da intimité para o da extimité - ou seja, extimidade. Celebridades encarnam essa nova condição, funcionando como estrelas-guias, padrões a serem seguidos. Mostram o caminho para as massas que sonham e lutam para se tornar commodities vendáveis. Tudo isso comprova o apagamento da sacrossanta divisão entre a esfera privada e a esfera pública. Transformamo-nos numa sociedade confessional... Hoje esses microfones se encontram conectados a alto-falantes que bradam nossas vidas em praça pública.
5. Sobre as crises econômicas
A conclusão de Amartya Sen, de tão cristalina, chega a ser óbvia: quem quiser avaliar corretamente a gravidade da crise que examine "a vida de seres humanos, em especial das pessoas menos privilegiadas, no que tange ao seu bem-estar e à liberdade de levar uma existência decente".
6. Por que é difícil reagir à vulnerabilidade econômica?
Entre outros motivos, porque categorias de pessoas cronicamente carentes tendem a aceitar a sua sorte por conta de certa inevitabilidade, ou normalidade, que seja. Sofrem docilmente. São ineptas para denunciar as condições em que vivem. Acho muito pouco provável que cheguemos a um modelo "não contencioso" de sociedade justa. Porque enfrentamos dilemas insolúveis, sendo assim, nosso caminho será o de uma solução "acordada" de sociedade justa.
7. A formação acadêmica é um passaporte para um bom futuro?
Um diploma de primeira linha foi, durante muitos anos, o melhor investimento que pais amorosos poderiam fazer no futuro de seus filhos, e dos filhos de seus filhos. Acreditava-se nisso. Mas esta crença, como tantas outras que fizeram o Sonho Americano (e não só americano, reconheçamos) está sendo abalada hoje. O mercado de trabalho para os possuidores de credenciais de educação encolhe em termos globais, isso é um fato... A verdade é que a "promoção social via educação" serviu durante muitos anos como folha de parreira para tapar a desigualdade nua e indecente: enquanto as conquistas acadêmicas estavam correlacionadas a recompensas sociais generosas, as pessoas que não conseguiam ascender nessa direção só podiam se culpar - descarregando sobre si mesmas amargura e ódio. Agora nós nos defrontamos com um fenômeno novo, que é o desemprego entre os formados, ou então o emprego em nível muito baixo de expectativas, mas tanto uma coisa quanto outra têm potencial explosivo, basta ver os recentes levantes no Oriente Médio.
8. Sobre a mais intensa circulação do luxo e do dinheiro
Cem anos atrás, quando indagado por que decidira dobrar os salários de seus trabalhadores, Henry Ford respondeu que havia feito isso justamente para permitir que eles comprassem os carros que estava produzindo. Na verdade... embora seus operários dependessem dele para ganhar a vida, Ford dependia 100% daquela mão de obra localmente disponível, que mantinha as linhas de montagem operando, o que lhe garantia mais riqueza e poder. A dependência então era mútua e Ford não tinha escolha. Ele não dispunha da "arma de insegurança máxima" que existe no mundo globalizado, ou seja, o poder de decisão sobre mudar a riqueza para outros lugares, particularmente para endereços fervilhantes de pessoas prontas para sofrer sem chiar, muitas vezes em troca de salário miserável: o capital de Ford era "fixado" no lugar... Aquele contrato não escrito entre capital e trabalho, assentado na dependência mútua, se rompeu gerando uma desigualdade estarrecedora, com repercussões nas condições de trabalho da mão de obra metropolitana... o professor Tim Jackson, da Universidade de Surrey, em sua obra mais recente, Redefining Prosperity, alerta: o modelo de crescimento dos nossos dias produz danos terríveis por ser medido apenas pelo aumento da produção material, e não pela melhoria de serviços em áreas como lazer, saúde, educação. E isso evidentemente afeta os emergentes: passamos de uma desigualdade declinante entre os países para uma desigualdade crescente dentro de muitos deles. Porque os capitais, movimentando-se através dos fluxos globais, e agora "livres da política", como bem salientou Manuel Castells (sociólogo espanhol, autor de A Sociedade em Rede), procuram avidamente áreas com padrões rebaixados de vida, portanto mais receptivas a um tratamento de "terra virgem".
9. Sobre a questão ambiental
... Hoje, o que estamos vendo? O planeta, com seus recursos limitados, ainda pode satisfazer às necessidades humanas, mas tem se mostrado totalmente inadequado para saciar a capacidade humana, movida por esse insaciável "apetite pela novidade". Somos incentivados, forçados ou atraídos a comprar e a gastar. Ou melhor, a gastar o que temos e o que não temos, na esperança de ganhar no futuro.
10. Sobre o "apetite pela novidade" como motor do capitalismo
Como destacou Adam Smith, o grande teórico de A Riqueza das Nações, devemos nosso suprimento diário de pão fresco à ganância do padeiro, e não ao seu altruísmo ou aos seus elevados padrões morais... O próprio Amartya Sen admite que não é possível ter uma economia florescente sem a ampla participação dos mercados, também imprescindíveis para a constituição de um mundo próspero e justo. Mas o que se coloca em questão hoje é a capacidade de uma sociedade de resolver, ainda que imperfeitamente, os problemas que ela própria cria, ou os conflitos e os antagonismos sociais que ameaçam sua preservação. A solução, me parece, não virá do reforço ininterrupto do "apetite pela novidade", nem da ganância ou avareza que mantêm a economia florescendo. Afinal, que aspectos da condição humana levam os indivíduos a buscarem compensações nos mercados? Há alternativas a isso? Tim Jackson propõe uma reação baseada em três pontos: 1. conscientizar as pessoas de que o crescimento econômico tem limites. 2. convencer os capitalistas a distribuir lucros não apenas segundo critérios financeiros, mas em função dos benefícios sociais e ambientais. 3. Mudar a "lógica social" dos governos, para que os cidadãos enriqueçam suas existências por outros meios, que não só o material. Como se vê, a economia já não pode mais depender apenas da ganância do padeiro. Terá de se apoiar numa coexistência humana organizada, de que ainda dispomos.
Bauman tem sido fundamental para elucidar alguns aspectos da contemporaneidade, mas ainda estamos "tateando no escuro", como ele próprio diz, quando se trata de encontrar soluções. Vejamos por exemplo os três pontos indicados ao final de sua entrevista:
  • Como convencer ("conscientizar") alguém de que a lógica da "descartabilidade" não é interessante? Isso, sem falar que, nesse processo, há uma presença enorme do inconsciente atuando firme e forte;
  • No caso brasileiro, por exemplo, tem havido alguma distribuição de riqueza, infelizmente unicamente na forma assistencialista, nos últimos anos, mas ao custo dos recursos públicos, já que os bancos nunca antes na história conheceram melhores momentos;
  • Quanto à questão da "lógica social" dos governos, o que vimos, por exemplo, em toda a lógica discursiva do governo Lula (que foi um governo que se pretendia progressista) foi, como ele próprio declarou em várias oportunidades, uma "apologia ao consumo", numa clara, não só identificação, mas redução do conceito de cidadania ao de "consumo".
Há mesmo, muito o que pensar...

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¹ Entrevista concedida, em 30.0.2011, por e-mail, à jornalista Laura Greenhalgh e publicada no Sabático (Estadão).  http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20110430/not_imp712848,0.php.

A "interação" (e a responsabilização) na base do conceito de Política

Conceituar "política", como nos diz Iain Mackenzie¹, já é assumir uma determinada posição política. Apesar das dificuldades, entretanto, ele nos oferece um bom caminho para se pensar um conceito de política, claro que sem qualquer pretensão de esgotar o assunto. 

A política seria uma "atividade", realizada em "conjunto", em "interação", visando a "solução" de "problemas" (divergências, conflitos, bem comum), através de "consensos" e maiorias (o que implica cooperação) que resultem em "normas" e padrões comuns a todos. Em síntese,
Política tem a ver não só com discordâncias sobre se a política trata da resolução de conflitos ou da cooperação em prol de valores comuns, mas tem a ver com o que somos: será que "nós" somos agentes individuais em controle dos próprios interesses, desejos, valores, costumes, e assim por diante, ou será que "nós" somos indivíduos profundamente moldados pela maneira como essas coisas são transmitidas em termos de prática e estrutura social (p. 16).²
Me parece que existe aí uma questão acerca de nossa "RESPONSABILIDADE" sobre a política e seus resultados. De qualquer forma, em uma definição deste tipo a "política" escapa ao campo meramente institucional e ganha uma dimensão de "interação" e "cooperação". Isso faz com que tenhamos a oportunidade de pensar a ação política como resultado não somente da ação de atores institucionais (parlamentos, políticos, partidos, lideranças etc.) mas, fundamentalmente, a partir das mais simples interações no cotidiano.
O que fica de lição? Que não se pode ficar esperando que a solução de problemas ou a adoção de medidas que favoreçam o bem comum venham somente das instituições e governos. Essas agem, em grande parte, sob a pressão, que nelas se reflete, oriunda de outros atores da opinião pública (imprensa, grupos organizados e a própria opinião pública). Abdicar a esta concepção de política significa ficar refém de concepções que negam ao indivíduo sua responsabilidade sobre seu destino. Exemplos? Populismos demagógicos e autoritarismos de toda espécie, seja de "esquerda" ou de "direita" (confesso que não coloco uma unha no fogo por estes conceitos).
A política, então, só se torna "perversa" quando é abandonada pelos cidadãos e deixada aos "especialistas" e "técnicos". Não à toa, hoje em dia, quando cidadania e emancipação são, em grande parte, entendidas como "bem-estar material" (consumismo) vivemos um momento de "refluxo" do interesse pela política e, em consequência, maior possibilidade de "aventuras populistas" dentro da "democracia". Se não nos mantivermos, portanto, em permanente contato, em interação sobre os rumos de nossa política, como poderemos nos queixar quando intervierem negativamente em nossos destinos?

Se na psicanálise clínica nos utilizamos do conceito de "responsabilização" para enfatizar que somos, nós mesmos, os principais responsáveis por nossas atitudes e por nossos dramas, porque não extrapolar esse conceito para o campo da política, através da "interação social". É nesse espaço de interação que se constrói e se mantém, portanto, uma mútua responsabilidade sobre nosso destino, tanto individual, quanto coletivo, se é que é possível pensar nesta divisão.

Assim, tanto no campo de nossas ações individuais, quanto no campo das interações para a ação política, não conquistamos nossa liberdade sem o preço da responsabilidade. Desfrutar de uma liberdade sem responsabilidade seria, simplesmente, ceder a um espaço inconsciente de gozo absoluto, destrutivo, absolutamente narcísico, e incapaz de gerar laço social.

Não precisamos negar a política, mas podemos negar as formas como ela vem sendo praticada e entregue nas mãos de supostos "especialistas" e "técnicos" que, encastelados em suas "instituições" se colocam como benfeitores e "protetores" do povo. É preciso ter cuidado com isso, pois cada vez que acreditamos em um "herói" abdicamos um pouco mais de nossa própria força.

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¹ MACKENZIE, Iain. Política: conceitos-chave em filosofia; tradução: Nestor Luiz João Beck. - Porto Alegre: Artmed, 2001, p. 9-17.
² Neste ponto, o autor nos parece falar de uma dicotomia entre um sujeito "individual e racional" versus um sujeito que "resulta do social". É um momento muito interessante pois talvez aqui precisemos recorrer à Psicologia Social para nos apegarmos a uma concepção de sujeito que, ao mesmo tempo que possui sua singularidade individual, vai formando-se e ganhando especificidade justamente na interação social. A dicotomia, portanto, pode revelar-se falsa.

Édipo e a busca pela verdade

Há algum tempo assisti no Teatro Eva Herz (Liv. Cultura) a peça Édipo, com direção de Elias Andreato. É a terceira ou quarta versão que tenho a oportunidade de ver no teatro. Como toda "tragédia" nos revela, acima de tudo, a "insegurança" como traço marcante de nossa condição humana.
 
Mas, se pensarmos que na atualidade se "vende" a felicidade e o sucesso como algo muito simples de ser conquistado, se torna muito difícil pensarmos em nossas inseguranças. Mas, quanto maior a crença de que "podemos tudo", mais frágil o solo que se estende sob nossos pés. Nosso mundo atual parece mais luminoso, mais colorido, mais diverso, mais repleto de oportunidades e prazeres.
 
Muita aparência, entretanto. Tanta luminosidade só pode mesmo causar tanta cegueira. Imaginamos que é aí que reside nossa segurança e esquecemos de olhar com atenção para nossas limitações. Édipo, por exemplo, buscou a verdade, incessantemente, ainda que para seu próprio sofrimento ao final. Guiado por um código moral, ele busca a resolução de um crime, sem saber que foi o próprio autor. E, à medida que os indícios vão se tornando mais intrigantes e aproximando-se dele, ele mais insiste na busca da verdade. Seu desejo em conhecer a verdade, então, é libertador.
 
Sim, sabemos de seu atentado contra a própria visão, sabemos de seu exílio, sabemos de seu martírio. Mas, por que ele teria caminhado em direção a esse desfecho de forma tão intensa e voluntária? Pela busca da verdade. Quando ao final temos a revelação de que aqueles que são felizes são os que conheceram a dor e o sofrimento podemos entender um pouco melhor.
 
Para Édipo, a busca da verdade, por pior que seja, e por mais sacrifícios que imponha, é muito mais reconfortante que a insegurança que experimentou diante de tantas dúvidas. Ao final, a revelação da verdade, por mais trágica que fosse, lhe trouxe algum conforto. Perdeu o poder, perdeu tudo o que tinha. Mas teve a chance de encontrar-se consigo mesmo. Nosso mundo atual é de aparências, repleto de mentiras, nos perdemos em seu colorido e em sua luminosidade. Preferimos isso, a lidar com nossos limites.
 
Resta saber se podemos, de fato, encontrar a felicidade ocultando nossa insegurança. Não precisamos chegar ao destino de Édipo, mas não podemos virar os olhos à nossos limites e inseguranças.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Sobre a noção de "trauma"

Estava lendo o livro organizado pela Ana Maria Rudge ("Traumas"), que foi resultado do I Congresso Internacional de psicopatologia Fundamental que ocorreu na PUC-RJ em 2004. De cara, alguns comentários seus sobre a própria noção de "trauma" me trouxeram a vontade de compartilhar algo aqui.
 
É fato que  o trauma é um forte tema de interesse na atualidade, até mesmo entre os psicanalistas. Mas, por que? Talvez porque não exista muito como escapar à proliferação da angústia e do sofrimento de desamparo que emergem da intensa exposição midiática da violência e da catástrofe. Mas, o que é o trauma?
 
São inúmeras as acepções do termo mas, inegavelmente, a versão mais conhecida é a do "trauma infantil de ordem sexual". Mas, não é disso, exatamente, que os analistas hoje mais se ocupam. A sexualidade nem mesmo mais ocupa um lugar tão central, como no caso do sofrimento histérico. Há outras modalidades de sofrimento de origem traumática.
 
A noção de "trauma", portanto, com toda sua potencial abordagem múltipla e transdisciplinar, é daquelas que nos faz enxergar toda a capacidade da psicanálise em enfrentar não somente as novas situações clínicas, mas abordar os diversos aspectos socioculturais da atualidade. Assim, o trauma "é daqueles acontecimentos que rompem radicalmente com um certo estado de coisas, provocando desarranjo de nossas foras habituais de funcionar e impondo o árduo trabalho da construção de uma nova ordenação do mundo..." (p. 9).
 
O trauma, portanto, se deu "lá trás", mas é revivido periodicamente. E é aqui que gostaria de chamar a atenção. Não se "sepulta" um trauma, não se "enterra", não se "esquece" tão facilmente. É preciso recuperar aquele sentido mais forte do conceito de trauma. Ou seja, o de que uma situação traumática pode colocar por terra toda a forma pela qual estamos estruturados, interferindo, a partir daí, diretamente em nosso dia a dia, e nos fazendo "funcionar" de uma outra forma, quase sempre de forma fragmentada, quase despedaçada.

Ora, uma das grandes características do "trauma" é que ele é revivido periodicamente nos tornando reféns de uma angústia que, por vezes, nem mesmo sabemos de onde vem, tal o nosso esforço por "esquecer" tudo aquilo que nos machucou. Não tem outra solução. É preciso conversar sobre isto, e encontrar um lugar para tudo o que aconteceu!

Humihação e Medo!

O horário era o do almoço. Perto de umas 13:30. Numa mesa próxima, um pai e duas crianças. Em determinado momento uma delas, a menor (talvez uns 5 anos), abre uma mochila, tira um brinquedo e o coloca sobre a mesa. O "problema" é que o brinquedo ao ser colocado e arrastado sujou a toalha que cobria a mesa. A reação do pai foi absolutamente desproporcional. Numa rápida reação esticou o braço, arrancou o brinquedo das mãos da criança, com uma mão lhe segurou fortemente o braço, com a outra lhe colocou o dedo na cara e desfilou uma série de pequenas ofensas, com uma feição que beirava o ódio.
 
Ele parecia mesmo estar seguro de que realmente tinha feito a coisa certa, afinal estava dando uma demonstração pública de seu "cuidado" com a educação de seu filho. Ok, tudo bem! Parei de olhar e me voltei para meu próprio prato. Mas, logo em seguida, comecei a me chocar por outra coisa. A reação da criança. Ficou absolutamente calada, quase estática em seu lugar durante todo o restante do almoço. Parecia estar paralisada de medo. Sua obediência era exemplar. Nem um pio sequer, nem um esboço de movimento, difícil até perceber se ela levantava o rosto. E isso parece não ter causado nenhuma outra reação no pai, que parecia convencido de sua missão. Mas, e a criança, o que sentia? Vergonha, humilhação, impotência, insegurança, abandono?
 
Ver esta reação da criança que me fez pensar em algo que as vezes parece tão óbvio, mas tão difícil de ser colocado em prática: Uma educação sustentada no afeto, e não na agressividade. Nós precisamos de uma casa e de uma família sadia para nos constituirmos emocionalmente fortes. Aí está o óbvio da questão, pois se trata de um princípio inquestionável. Mas, nunca é tão simples. Se tudo fosse tão simples, talvez a psicanálise nem existisse! E precisaríamos deixar de ser humanos também.
 
Claro que, depois de adultos, podemos recuperar parte do "estrago" que experimentamos na infância, mas poderíamos evitar muito desse sofrimento se existisse mesmo a luta e a disposição para transformar a família em um local de harmonia, onde o respeito ao outro (criança) deve prevalecer acima de tudo, e onde sempre haja motivo para o cuidado e o amor... só isso! Isso não significa ser passivo diante de uma atitude equivocada da criança, significa apenas que algo diferente deve ser colocado no lugar da agressividade e da ofensa. Esse pai, portanto, é exatamente o outro polo daquele pai submisso que, incapaz de colocar  limites, ajuda na formação de "pequenas majestades".
 
Mas, é comum ouvir pessoas, principalmente de uma ou duas gerações passadas, dizerem que o "sofrimento nos fortalece". Isso já serviu como pano de fundo e justificativa para uma educação "tirânica" e carente de afeto. É lógico que a dureza da realidade está aí para nos ensinar algo. Mas, será que não podemos aprender de outra forma? Temos mesmo que agir de uma forma que beira a crueldade com os filhos? Quem disse que uma educação centrada no respeito e no carinho não torna uma criança muito mais forte e segura que uma educação centrada na simples severidade? Veja, não estou falando de limites. Isso é outra coisa! Estou falando de se negar afeto.
 
Ora, o sofrimento, se nos ensina algo, é sempre nos machucando, ferindo, causando dor. O máximo que ele consegue é nos "embrutecer" e isso não é ser "emocionalmente sadio". A realidade já será devidamente dura para todos nós e nossas crianças, mas pra que antecipar estes sofrimentos? Torná-la capaz de sobreviver à dureza da realidade não significa envolve-la em sofrimento desde cedo. Significa dotá-la de afeto, lhe dar a segurança de saber que é amada, pois é este afeto que a tornará forte para enfrentar a vida. Uma vida dura leva ao sacrifício de muitos afetos e, consequentemente, da felicidade. Então, acreditar que uma educação baseada no sofrimento ajuda a suportar melhor a vida é só reproduzir aquilo que se aprendeu e se recebeu: uma vida sem afeto! Nada mais que isso. Temos mesmo que reproduzir isso? E não adianta culpar quem nos causou algum sofrimento. A responsabilidade por mudar é nossa. Somente nossa!
 
Enfim, há poucas coisas tão terríveis na vida quanto ver uma criança que, na sua paralisia e medo, mostra todo o seu desamparo afetivo. Nessa hora, alguma lembrança pode vir à mente, você suspira fundo, se identifica com algo e logo percebe: não precisava ser assim! Podia ter sido de forma diferente! Mas, vamos em frente.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

O gerenciamento do narcisismo tem altos custos

Se tem algo que está se tornando razoavelmente insuportável para os relacionamentos sociais é o crescimento exacerbado de pessoas que ostentam uma forte autopromoção. Não se trata de uma simples questão de mostrar ao mundo sua autoestima. Se fosse isso vá lá, tudo bem. Seria só motivo de parabenizar a pessoa e ficar feliz por ela. Mas, o problema é que essa ostentação quase sempre vem acompanhada de pouco ou nenhum reconhecimento do outro e, por vezes, de comportamentos violentos.
 
Estou falando, então, de indivíduos que se colocam em ambientes sociais e situações de alta competitividade, seja no trabalho, seja na família, seja com amigos, e cuja atenção está sempre voltada para esta anormal promoção de si mesmo, onde tudo deve girar em torno dele mesmo. Para isso, ele manipula e explora as pessoas, vistas quase sempre como "objetos". Para ele, a "imagem" é tudo, pouco existe para "sentir" e quase tudo é para se "ver".
 
Em sua manipulação, ele pode se utilizar de mecanismos como o charme, a beleza, a sedução, a benevolência, a filantropia, o dom da palavra, a crença em possuir uma família perfeita, o fato de possuir todos os "sonhos de consumo" que os demais mortais desejam para si etc. São todos artifícios para suas conquista da atenção e do olhar do outro.
 
É comum que queira cercar-se de "insígnias" que os diferencie de outras pessoas, dando a ele um caráter de "pessoa melhor". Assim, geralmente procura fazer coisas diferentes que acredita que fornecerão estas "insígnias". Então, de repente, ele pode se tornar o "melhor nisso" ou o "melhor naquilo", sempre enfatizando suas próprias qualidades, numa promoção de si mesmo sem controle. É um "vencedor", um "poderoso", nem parece "humano" de tão "perfeito" que se mostra.
 
Como disse, pode se "utilizar" da família como um elemento a mais para sua promoção de si mesmo, ou do seu trabalho, ou do que possui. Mas, sempre como uma espécie de "extensão", uma "prótese" de seu enorme ego narcisista. O que ele tem é, portanto, sempre "o melhor" e, perder isso seria colocar em risco o seu projeto de sempre vangloriar a si mesmo. O que possui, então, ajuda a sustentar seu delírio. É assim que todos e tudo existe e funciona, para sua própria promoção descontrolada.
 
Não é anormal, portanto, que, com esta ânsia de sucesso, crie várias identidades para si. Literalmente, para aqueles que partem para a vida criminosa e, metaforicamente, no seu dia a dia. São novos papéis que assume e troca constantemente como se nenhum lhe coubesse muito bem. Por isso a busca permanente por novas insígnias que lhe forneçam uma distinção em relação aos demais. Um dia ele pode mostrar que sabe "isso", outro dia pode mostrar que sabe "aquilo".
 
O problema é que "gerenciar" estas identidades e papéis, que assume e descarta constantemente, é um alto fator de stress, podendo levar a atitudes percebidas pelos demais como "estranhas", como que mudando muito rapidamente de humor, por exemplo. Quando se vê questionado em um de seus papéis, ou identidades, quando tem a sua certeza abalada, ou quando sua "farsa" ameaça ser revelada, ele parece "desabar", sua expressão muda muito rapidamente e pode se tornar agressivo sem maiores razões. A "farsa" funciona como algo que "tapa" boa parte do "buraco" que está presente em sua existência. Se ela, a farsa, deixa de funcionar, o buraco surge à sua frente, ameaçador, insuportável.
 
Nesses momentos, algo em que está se sustentando parece estar ruindo e ele se sente ameaçado em sua construção delirante de ser alguém "melhor que os demais". Esse é um momento muito perigoso, justamente quando ele começa a se ver diante do horror que pode ser a sua verdade. A metáfora que gosto de utilizar para entender bem este momento é a da "desfragmentação", ou "desintegração", ou seja, enquanto seu delírio estiver funcionando ele parece não ter limites, mais parece um muro bem sólido, mas quando há algum contato com a realidade que ameace a constituição desse delírio, esse muro começa a se desfragmentar, desfazendo-se, em pedaços. É neste momento que ele pode se tornar especialmente doente e, perigoso para quem está ao seu redor.
 
Então, sustentar tantas mentiras cansa, e muito. É um forte fator de stress emocional e pode liberar raiva e violência, pois se houver uma falha nesse "gerenciamento" é a própria estrutura do delírio que se vê ameaçada, podendo ruir. Ou seja, o indivíduo ludibria, mente, manipula, mas tudo isso exige a construção de uma trama muito complexa de farsas. Até quando se consegue sustentar isso? Infelizmente esta patologia está se multiplicando, estimulada por ambientes fortemente competitivos por aí afora. Basta olhar, com atenção, para alguns dos "casos de sucesso" que estão ao nosso redor, ou melhor, "acima" de nós.
 
Pelo seu profundo vazio existencial esse indivíduo se torna presa muito fácil de qualquer ideologia competitiva. Ele vai ser o primeiro a topar uma competição, pois o ambiente de disputa lhe permite sempre uma possibilidade de "vencer", sentir-se "maior" e, consequentemente, sair deste "vazio", ainda que seja através da "farsa". A questão é saber quantas mentiras ele vai construir e o quão forte será seu delírio para sustentar-se. No meio de tudo isto, a delicada questão de ter que gerenciar esta trama repleta de farsas.
 
Quando olho para o futuro fico imaginando que tipo de sociedade teremos com tantos pais, hoje em dia, estimulando, desenfreadamente, a competição em seus filhos, ensinando-os a vencer a qualquer custo e cobrando deles somente... o sucesso! O que significa mesmo o "sucesso"? Qual mesmo a sua relação com a felicidade? É bom estarmos sempre pensando nisso! A competição e o sucesso, em si, não são o maior problema, mas que uso queremos fazer deles? Melhor não busca-los para simplesmente tapar algo com o que imaginamos não poder lidar.

Ser "lider" realmente é bom e necessário?

Um das coisas que gosto na psicanálise é que ela me permite não só o atendimento clínico, mas olhar para o social e enxergar alguns fenômenos sob um outro ponto de vista, geralmente mais crítico. Crítico no sentido de não se contentar com a superficialidade dos conceitos e tentar ir à raiz da questão. Por isso, manter-se em dúvida é fundamental. É uma estratégia necessária para se conhecer melhor, a si mesmo e às coisas.
 
Outro dia me fizeram uma colocação bem direta: "Preciso me tornar uma liderança a todo custo, e bem rápido, você me ajuda?". Não costumo mesmo tomar nada, a princípio, como tão verdadeiro. Mas foi inevitável lembrar que essa exigência de ser "líder" é uma das fortes na atualidade, principalmente no mundo corporativo. É mais do que normal, então, muitos considerarem que tornar-se líder é algo realmente bom, que é algo que, a princípio, todo mundo quer, afinal, significa promoção, oportunidade, ter uma equipe. Mas, é isso mesmo? Temos mesmo que enveredar por esse caminho? Temos mesmo que fazer com que nossos filhos pensem isso a todo instante? O oposto ao "líder" é algo assim tão "fraco" mesmo?
 
Antes de falar sobre o "outro lado" da liderança, é preciso lembrar que assumir um posto assim significa iniciar um período de transição que é uma descontinuidade em relação ao que se vivia antes. E isso é muito importante pois, até então, todo o sucesso dependia exclusivamente do próprio empregado e seus esforços. Agora não! Depende de sua equipe. Isso, por si só, significa perda de controle e advento de tensões. E, num momento tão competitivo, isso beira o mais profundo dos desgastes. O resultado só pode ser um: o novo líder vai enfrentar questões emocionais severas. Como gerenciar esta nova posição? Alguns defendem que não há o que fazer para auxiliá-lo neste momento, e que tudo está por sua própria conta. Não acho! É evidente que existem ajudas, suportes terapêuticos, que o auxiliarão a se conhecer melhor e a descobrir suas potencialidades... e fraquezas, ou limites! Com isso em mãos ele poderá tomar algumas decisões sobre seu futuro. Mas, como o campo da administração não gosta muito de se relacionar com o campo psíquico, o líder acaba ficando á deriva, à sorte de suas próprias escolhas dentro da organização da qual faz parte.
 
Mas bem, falamos, então de uma "transição". E isso precisa ser enfatizado pois, já que ninguém nasce líder, ninguém também se "forma" líder a partir de treinamentos. Esta é uma opinião muito particular, apesar da proliferação de cursos de formação de lideranças. É aí que entra em cena a experiência. Ser líder é vivenciar a liderança, e isso requer experimentação na posição de líder. É desta vivência que vem a "possibilidade" de, efetivamente, se ter um líder. É daí que vai perceber se "quer" e se "pode" realmente ser um líder. Não à toa os momentos de transição na carreira são decisivos, pois é aí que o empregado se mostra mais disposto a aprender e, portanto, encontrar oportunidades de avançar em seus projetos pessoais.
 
Mas, e quanto à questão inicial que coloquei, é realmente bom ser líder? Ora, isto não é para todos. Dizer que todos podem ser líderes é uma postura essencialmente ideológica, fantasiosa e, por vezes, manipuladora. Primeiro porque não há espaço para todos e, segundo, porque nem todos querem ou se vêem nesta posição, justamente pelo severo gerenciamento que vão ter que fazer de sua vida psíquica e social. Não são poucos os casos de absoluto desmoronamento emocional não só de líderes, mas de suas famílias, que sofrem os efeitos imediatos de suas novas tensões. Não, definitivamente, ser líder não deve ser visto como o "topo" a ser conquistado. Ser líder, não tem nada a ver, diretamente, com sucesso e, muito menos, com felicidade. É preciso pensar, e repensar, sobre isso. Há algo tanto aquém, quanto além, da "liderança" e que pode nos tornar muito mais felizes. Então, cuidado, não acredita tão facilmente que ser "líder" te tornará uma pessoa mais feliz. São duas coisas que podem ser bem diferentes, no final das contas.

sábado, 16 de novembro de 2013

O "ciúme" sob o olhar da psicanálise (M. Blévis)

O ciúme não é uma exclusividade das relações amorosas, a experiência profissional mostra que está presente nas mais diversas interações em organizações, instituições, e no quadro geral de nossas relações sociais. Ou seja, faz parte do nosso dia a dia. Talvez seja por isso que o senso comum diz: "uma pitada de ciúme sempre faz bem a qualquer relação". Porém, a coisa não é tão simples assim. O que se vê no cotidiano é uma dificuldade em se saber qual o tamanho exato dessa "pitada" e, quando se extrapola, não são poucos os tormentos que surgem: narcisismo, masoquismo, sadismo, inveja, silêncio, enfim, muito sofrimento.
 
Em quase todos os casos, então, o que surge é um estado extraordinário marcado pelo "sofrimento ansioso" decorrente da ideia fixa de perder a pessoa querida. E quem vai negar que esta é uma de nossas desrazões mais corriqueiras? Uma autora que trata este tema com bastante propriedade é a psicanalista francesa Marcianne Blévis, autora de "O ciúme - delícias e tormentos", publicado por aqui pela Editora Martins Fontes, em 2009. Em seu livro, apresenta diversas situações concretas onde a patologia foi observada e tratada e, ao longo de suas exposições vai nos oferecendo uma ampla abordagem psicanalítica sobre o "ciúme". Vamos lá.
 
Em primeiro lugar, quem é o(a) ciumento(a)? Antes de mais nada, um "isolado" em seu pavor, um "inquieto" que sabe que, mais cedo ou mais tarde, vai ser traído e, por isso, ele vasculha os pequenos sinais de desamor. Se, em algumas vezes, sua profecia se realiza, ele erra quando não se enxerga como o principal responsável pelo seu infortúnio.
 
Mas, a sua regra é não romper, não conseguir separar-se, não realizar a "profecia", ficando sempre num clima de "suspensão". Nesse sentido, o ciúme é uma "droga", cujo vício, as vezes, é até compartilhado pelo parceiro (que torna-se dependente da vigilância, ou tão ciumento quanto). Uma droga sustentada pela necessidade de um vínculo fusional, violenta, que acaba por impedir o próprio amor, em troca de uma satisfação em ter a "posse de seu objeto". Vigiar, portanto, é uma forma de apaziguar o sofrimento, provocando uma excitação que substitui o erotismo. É por isso que é preciso, apreender suas causas, em vez de negar seus tormentos: o ciúme não está ligado apenas à perda efetiva daquele ou daquela a quem se ama, porém antecipa essa perda. E assim se confirma a total insegurança que corrói os ciumentos (p. 19).
 
Assim, o ciumento, em grande parte, se sente indigno de amor e constrói uma relação objetal equivocada onde sempre se coloca como não portador de algo que só outros possuem e por isso tanto teme. O que o psicanalista pode fazer? não acatar ao pé da letra as queixas do analisando e lhe apontar perguntas de uma forma que lhe permita remontar às origens de seu ciúme. Como é que sua mãe amou o menino que ele foi, desde sua chegada ao mundo? O pai deu-lhe apoio ou o abandonou, sem lhe dar a possibilidade de sentir qualquer orgulho? Ele pôde buscar ajuda com irmãos e irmãs? Cercou-se dessa preciosa família adotiva que são os colegas e os amigos? Em todo caso, por que ele não buscou, fora da posição de vítima, a solução para suas verdadeiras feridas? (p. 22).
 
Dessa forma, há uma clara questão envolvendo o amor-próprio, e suas próprias qualidades e virtudes. Ou seja, sua "doença" tem origem numa perda que ele não consegue expressar em palavras nem imaginar. Naquele a quem atormenta com seu amor, ele procura um bem que perdeu; enquanto o indizível sofrimento decorrente disso não for situado, ele não parará de temer as infidelidades futuras (p. 23).
 
Seja como for, o que o ciumento nos diz é que existe um "outro(a)" que lhe ameaça a ponto de retirar a pessoa amada. Quem é este outro(a)? Será que é alguém a quem ele deseja mesmo destruir ou pode ser uma espécie de "irmão", um "outro eu", por exemplo? Nesse caso, o(a) "outro(a) seria odiado justamente por ser amado demais. Assim, desalojado de um lugar do qual espera a restauração, e não a consideração de seus limites, o ciumento quer fundir-se com o objeto de sua paixão e exige, eternamente nostálgico, que o "envoltório volte a ser perfeito". Ele quer esquecer que há na origem de seu ciúme a estranheza inquietante do confronto com um outro diferente dele e, ao mesmo tempo, igual a ele (p. 25).
 
Um dos grandes desafios da psicanálise seria, justamente, o de devolver-lhe a linguagem amorosa da infância, despreocupada e livre, deixando-o mais apto para o amor. Claro que existe muito mais a ser dito pela psicanálise sobre o ciúmes, mas é um bom começo.