terça-feira, 19 de novembro de 2013

O gerenciamento do narcisismo tem altos custos

Se tem algo que está se tornando razoavelmente insuportável para os relacionamentos sociais é o crescimento exacerbado de pessoas que ostentam uma forte autopromoção. Não se trata de uma simples questão de mostrar ao mundo sua autoestima. Se fosse isso vá lá, tudo bem. Seria só motivo de parabenizar a pessoa e ficar feliz por ela. Mas, o problema é que essa ostentação quase sempre vem acompanhada de pouco ou nenhum reconhecimento do outro e, por vezes, de comportamentos violentos.
 
Estou falando, então, de indivíduos que se colocam em ambientes sociais e situações de alta competitividade, seja no trabalho, seja na família, seja com amigos, e cuja atenção está sempre voltada para esta anormal promoção de si mesmo, onde tudo deve girar em torno dele mesmo. Para isso, ele manipula e explora as pessoas, vistas quase sempre como "objetos". Para ele, a "imagem" é tudo, pouco existe para "sentir" e quase tudo é para se "ver".
 
Em sua manipulação, ele pode se utilizar de mecanismos como o charme, a beleza, a sedução, a benevolência, a filantropia, o dom da palavra, a crença em possuir uma família perfeita, o fato de possuir todos os "sonhos de consumo" que os demais mortais desejam para si etc. São todos artifícios para suas conquista da atenção e do olhar do outro.
 
É comum que queira cercar-se de "insígnias" que os diferencie de outras pessoas, dando a ele um caráter de "pessoa melhor". Assim, geralmente procura fazer coisas diferentes que acredita que fornecerão estas "insígnias". Então, de repente, ele pode se tornar o "melhor nisso" ou o "melhor naquilo", sempre enfatizando suas próprias qualidades, numa promoção de si mesmo sem controle. É um "vencedor", um "poderoso", nem parece "humano" de tão "perfeito" que se mostra.
 
Como disse, pode se "utilizar" da família como um elemento a mais para sua promoção de si mesmo, ou do seu trabalho, ou do que possui. Mas, sempre como uma espécie de "extensão", uma "prótese" de seu enorme ego narcisista. O que ele tem é, portanto, sempre "o melhor" e, perder isso seria colocar em risco o seu projeto de sempre vangloriar a si mesmo. O que possui, então, ajuda a sustentar seu delírio. É assim que todos e tudo existe e funciona, para sua própria promoção descontrolada.
 
Não é anormal, portanto, que, com esta ânsia de sucesso, crie várias identidades para si. Literalmente, para aqueles que partem para a vida criminosa e, metaforicamente, no seu dia a dia. São novos papéis que assume e troca constantemente como se nenhum lhe coubesse muito bem. Por isso a busca permanente por novas insígnias que lhe forneçam uma distinção em relação aos demais. Um dia ele pode mostrar que sabe "isso", outro dia pode mostrar que sabe "aquilo".
 
O problema é que "gerenciar" estas identidades e papéis, que assume e descarta constantemente, é um alto fator de stress, podendo levar a atitudes percebidas pelos demais como "estranhas", como que mudando muito rapidamente de humor, por exemplo. Quando se vê questionado em um de seus papéis, ou identidades, quando tem a sua certeza abalada, ou quando sua "farsa" ameaça ser revelada, ele parece "desabar", sua expressão muda muito rapidamente e pode se tornar agressivo sem maiores razões. A "farsa" funciona como algo que "tapa" boa parte do "buraco" que está presente em sua existência. Se ela, a farsa, deixa de funcionar, o buraco surge à sua frente, ameaçador, insuportável.
 
Nesses momentos, algo em que está se sustentando parece estar ruindo e ele se sente ameaçado em sua construção delirante de ser alguém "melhor que os demais". Esse é um momento muito perigoso, justamente quando ele começa a se ver diante do horror que pode ser a sua verdade. A metáfora que gosto de utilizar para entender bem este momento é a da "desfragmentação", ou "desintegração", ou seja, enquanto seu delírio estiver funcionando ele parece não ter limites, mais parece um muro bem sólido, mas quando há algum contato com a realidade que ameace a constituição desse delírio, esse muro começa a se desfragmentar, desfazendo-se, em pedaços. É neste momento que ele pode se tornar especialmente doente e, perigoso para quem está ao seu redor.
 
Então, sustentar tantas mentiras cansa, e muito. É um forte fator de stress emocional e pode liberar raiva e violência, pois se houver uma falha nesse "gerenciamento" é a própria estrutura do delírio que se vê ameaçada, podendo ruir. Ou seja, o indivíduo ludibria, mente, manipula, mas tudo isso exige a construção de uma trama muito complexa de farsas. Até quando se consegue sustentar isso? Infelizmente esta patologia está se multiplicando, estimulada por ambientes fortemente competitivos por aí afora. Basta olhar, com atenção, para alguns dos "casos de sucesso" que estão ao nosso redor, ou melhor, "acima" de nós.
 
Pelo seu profundo vazio existencial esse indivíduo se torna presa muito fácil de qualquer ideologia competitiva. Ele vai ser o primeiro a topar uma competição, pois o ambiente de disputa lhe permite sempre uma possibilidade de "vencer", sentir-se "maior" e, consequentemente, sair deste "vazio", ainda que seja através da "farsa". A questão é saber quantas mentiras ele vai construir e o quão forte será seu delírio para sustentar-se. No meio de tudo isto, a delicada questão de ter que gerenciar esta trama repleta de farsas.
 
Quando olho para o futuro fico imaginando que tipo de sociedade teremos com tantos pais, hoje em dia, estimulando, desenfreadamente, a competição em seus filhos, ensinando-os a vencer a qualquer custo e cobrando deles somente... o sucesso! O que significa mesmo o "sucesso"? Qual mesmo a sua relação com a felicidade? É bom estarmos sempre pensando nisso! A competição e o sucesso, em si, não são o maior problema, mas que uso queremos fazer deles? Melhor não busca-los para simplesmente tapar algo com o que imaginamos não poder lidar.

Ser "lider" realmente é bom e necessário?

Um das coisas que gosto na psicanálise é que ela me permite não só o atendimento clínico, mas olhar para o social e enxergar alguns fenômenos sob um outro ponto de vista, geralmente mais crítico. Crítico no sentido de não se contentar com a superficialidade dos conceitos e tentar ir à raiz da questão. Por isso, manter-se em dúvida é fundamental. É uma estratégia necessária para se conhecer melhor, a si mesmo e às coisas.
 
Outro dia me fizeram uma colocação bem direta: "Preciso me tornar uma liderança a todo custo, e bem rápido, você me ajuda?". Não costumo mesmo tomar nada, a princípio, como tão verdadeiro. Mas foi inevitável lembrar que essa exigência de ser "líder" é uma das fortes na atualidade, principalmente no mundo corporativo. É mais do que normal, então, muitos considerarem que tornar-se líder é algo realmente bom, que é algo que, a princípio, todo mundo quer, afinal, significa promoção, oportunidade, ter uma equipe. Mas, é isso mesmo? Temos mesmo que enveredar por esse caminho? Temos mesmo que fazer com que nossos filhos pensem isso a todo instante? O oposto ao "líder" é algo assim tão "fraco" mesmo?
 
Antes de falar sobre o "outro lado" da liderança, é preciso lembrar que assumir um posto assim significa iniciar um período de transição que é uma descontinuidade em relação ao que se vivia antes. E isso é muito importante pois, até então, todo o sucesso dependia exclusivamente do próprio empregado e seus esforços. Agora não! Depende de sua equipe. Isso, por si só, significa perda de controle e advento de tensões. E, num momento tão competitivo, isso beira o mais profundo dos desgastes. O resultado só pode ser um: o novo líder vai enfrentar questões emocionais severas. Como gerenciar esta nova posição? Alguns defendem que não há o que fazer para auxiliá-lo neste momento, e que tudo está por sua própria conta. Não acho! É evidente que existem ajudas, suportes terapêuticos, que o auxiliarão a se conhecer melhor e a descobrir suas potencialidades... e fraquezas, ou limites! Com isso em mãos ele poderá tomar algumas decisões sobre seu futuro. Mas, como o campo da administração não gosta muito de se relacionar com o campo psíquico, o líder acaba ficando á deriva, à sorte de suas próprias escolhas dentro da organização da qual faz parte.
 
Mas bem, falamos, então de uma "transição". E isso precisa ser enfatizado pois, já que ninguém nasce líder, ninguém também se "forma" líder a partir de treinamentos. Esta é uma opinião muito particular, apesar da proliferação de cursos de formação de lideranças. É aí que entra em cena a experiência. Ser líder é vivenciar a liderança, e isso requer experimentação na posição de líder. É desta vivência que vem a "possibilidade" de, efetivamente, se ter um líder. É daí que vai perceber se "quer" e se "pode" realmente ser um líder. Não à toa os momentos de transição na carreira são decisivos, pois é aí que o empregado se mostra mais disposto a aprender e, portanto, encontrar oportunidades de avançar em seus projetos pessoais.
 
Mas, e quanto à questão inicial que coloquei, é realmente bom ser líder? Ora, isto não é para todos. Dizer que todos podem ser líderes é uma postura essencialmente ideológica, fantasiosa e, por vezes, manipuladora. Primeiro porque não há espaço para todos e, segundo, porque nem todos querem ou se vêem nesta posição, justamente pelo severo gerenciamento que vão ter que fazer de sua vida psíquica e social. Não são poucos os casos de absoluto desmoronamento emocional não só de líderes, mas de suas famílias, que sofrem os efeitos imediatos de suas novas tensões. Não, definitivamente, ser líder não deve ser visto como o "topo" a ser conquistado. Ser líder, não tem nada a ver, diretamente, com sucesso e, muito menos, com felicidade. É preciso pensar, e repensar, sobre isso. Há algo tanto aquém, quanto além, da "liderança" e que pode nos tornar muito mais felizes. Então, cuidado, não acredita tão facilmente que ser "líder" te tornará uma pessoa mais feliz. São duas coisas que podem ser bem diferentes, no final das contas.

sábado, 16 de novembro de 2013

O "ciúme" sob o olhar da psicanálise (M. Blévis)

O ciúme não é uma exclusividade das relações amorosas, a experiência profissional mostra que está presente nas mais diversas interações em organizações, instituições, e no quadro geral de nossas relações sociais. Ou seja, faz parte do nosso dia a dia. Talvez seja por isso que o senso comum diz: "uma pitada de ciúme sempre faz bem a qualquer relação". Porém, a coisa não é tão simples assim. O que se vê no cotidiano é uma dificuldade em se saber qual o tamanho exato dessa "pitada" e, quando se extrapola, não são poucos os tormentos que surgem: narcisismo, masoquismo, sadismo, inveja, silêncio, enfim, muito sofrimento.
 
Em quase todos os casos, então, o que surge é um estado extraordinário marcado pelo "sofrimento ansioso" decorrente da ideia fixa de perder a pessoa querida. E quem vai negar que esta é uma de nossas desrazões mais corriqueiras? Uma autora que trata este tema com bastante propriedade é a psicanalista francesa Marcianne Blévis, autora de "O ciúme - delícias e tormentos", publicado por aqui pela Editora Martins Fontes, em 2009. Em seu livro, apresenta diversas situações concretas onde a patologia foi observada e tratada e, ao longo de suas exposições vai nos oferecendo uma ampla abordagem psicanalítica sobre o "ciúme". Vamos lá.
 
Em primeiro lugar, quem é o(a) ciumento(a)? Antes de mais nada, um "isolado" em seu pavor, um "inquieto" que sabe que, mais cedo ou mais tarde, vai ser traído e, por isso, ele vasculha os pequenos sinais de desamor. Se, em algumas vezes, sua profecia se realiza, ele erra quando não se enxerga como o principal responsável pelo seu infortúnio.
 
Mas, a sua regra é não romper, não conseguir separar-se, não realizar a "profecia", ficando sempre num clima de "suspensão". Nesse sentido, o ciúme é uma "droga", cujo vício, as vezes, é até compartilhado pelo parceiro (que torna-se dependente da vigilância, ou tão ciumento quanto). Uma droga sustentada pela necessidade de um vínculo fusional, violenta, que acaba por impedir o próprio amor, em troca de uma satisfação em ter a "posse de seu objeto". Vigiar, portanto, é uma forma de apaziguar o sofrimento, provocando uma excitação que substitui o erotismo. É por isso que é preciso, apreender suas causas, em vez de negar seus tormentos: o ciúme não está ligado apenas à perda efetiva daquele ou daquela a quem se ama, porém antecipa essa perda. E assim se confirma a total insegurança que corrói os ciumentos (p. 19).
 
Assim, o ciumento, em grande parte, se sente indigno de amor e constrói uma relação objetal equivocada onde sempre se coloca como não portador de algo que só outros possuem e por isso tanto teme. O que o psicanalista pode fazer? não acatar ao pé da letra as queixas do analisando e lhe apontar perguntas de uma forma que lhe permita remontar às origens de seu ciúme. Como é que sua mãe amou o menino que ele foi, desde sua chegada ao mundo? O pai deu-lhe apoio ou o abandonou, sem lhe dar a possibilidade de sentir qualquer orgulho? Ele pôde buscar ajuda com irmãos e irmãs? Cercou-se dessa preciosa família adotiva que são os colegas e os amigos? Em todo caso, por que ele não buscou, fora da posição de vítima, a solução para suas verdadeiras feridas? (p. 22).
 
Dessa forma, há uma clara questão envolvendo o amor-próprio, e suas próprias qualidades e virtudes. Ou seja, sua "doença" tem origem numa perda que ele não consegue expressar em palavras nem imaginar. Naquele a quem atormenta com seu amor, ele procura um bem que perdeu; enquanto o indizível sofrimento decorrente disso não for situado, ele não parará de temer as infidelidades futuras (p. 23).
 
Seja como for, o que o ciumento nos diz é que existe um "outro(a)" que lhe ameaça a ponto de retirar a pessoa amada. Quem é este outro(a)? Será que é alguém a quem ele deseja mesmo destruir ou pode ser uma espécie de "irmão", um "outro eu", por exemplo? Nesse caso, o(a) "outro(a) seria odiado justamente por ser amado demais. Assim, desalojado de um lugar do qual espera a restauração, e não a consideração de seus limites, o ciumento quer fundir-se com o objeto de sua paixão e exige, eternamente nostálgico, que o "envoltório volte a ser perfeito". Ele quer esquecer que há na origem de seu ciúme a estranheza inquietante do confronto com um outro diferente dele e, ao mesmo tempo, igual a ele (p. 25).
 
Um dos grandes desafios da psicanálise seria, justamente, o de devolver-lhe a linguagem amorosa da infância, despreocupada e livre, deixando-o mais apto para o amor. Claro que existe muito mais a ser dito pela psicanálise sobre o ciúmes, mas é um bom começo.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Winnicott - Formamos cidadãos ou consumidores?

Em um artigo de 1950 o psicanalista D. Winnicott se aventurou pelo campo da política*. Ele sabia que não era seu campo predileto, mas também sabia que sempre era valioso cruzar-se fronteiras. Seu objetivo foi discutir a "democracia". Inicialmente, nos disse que a palavra tem múltiplos sentidos, sendo tratada como um sistema social onde: quem manda é o povo; o povo escolhe o líder; o povo escolhe o governo; o governo dá liberdade ao povo; os indivíduos possuem liberdade de ação. Mas, como tratar tal conceito psicologicamente?
 
Para Winnicott, uma das tarefas da psicologia é, justamente, a de estudar, nos conceitos, suas ideias presentes (significados óbvios e conscientes) e latentes. Este seria um bom ponto de partida. No caso da palavra "democracia" ele nos sugere que um dos conteúdos latentes seria o de que se trata de uma sociedade "madura", algo que está muito ligado à ideia de um desenvolvimento saudável e bem ajustado, como dizia Money-Kyrle. Portanto,
 
é o modo como as pessoas usam o termo que tem importância para o psicólogo (p. 190).
 
Mas, o que é o normal e o saudável? Levando-se a expressão para o campo do indivíduo diz-se que existe um "grau apropriado de desenvolvimento emocional", uma espécie de "maturidade", diretamente associada à "saúde". São significados que não são tão fixos, mas que se relacionam plenamente. Assim, democracia = momento saudável e de maturidade.
 
Vamos avançar. Como sistema  social a democracia também nos apresenta uma máquina através da qual existem eleições e mudanças nos governos, e sua essência é o voto livre (secreto) através do qual se pode expressar sentimentos profundos, inconscientes. Mas, como funciona o ato de votar?
 
Ora, o voto expressa o desfecho de uma luta dele consigo mesmo, tendo sido a cena externa internalizada e portanto trazida em forma de associações ao interjogo de forças existente em seu próprio mundo pessoal, interno. Isto é, a decisão sobre a maneira de votar é a expressão da solução de uma luta dentro da pessoa... o indivíduo torna pessoal a cena externa, com seus muitos aspectos sociais e políticos, no sentido de que se identifica gradualmente com todas as partes em conflito. Isso significa que ele percebe a cena externa em termos de sua própria luta interna, e temporariamente permite que sua luta interna seja travada em termos da cena política externa (p. 191).
 
É como se o mundo interno do eleitor se transformasse numa arena de disputa política. Voltando à questão da "maturidade", é fácil perceber que a democracia não é um sistema que pode ser imposto. Ela é sempre uma aquisição, daí pertencer à uma fase "madura" da sociedade. Como isto se explicaria, segundo Winnicott?
 
Nesta sociedade, neste momento, há maturidade suficiente no desenvolvimento emocional de uma proporção suficiente de indivíduos que a compõem, a ponto de existir uma tendência inata em direção à criação, à recriação e à manutenção da máquina democrática (p. 192).
 
Existe uma proporção de indivíduos específica para que a democracia sobreviva? Ou, ao contrário, existe uma proporção de indivíduos anti-sociais, específica, para que a democracia submerja, questiona-se Winnicott. Ele avança nestas questões mais específicas e nos diz que, em dado momento, numa sociedade, se existirem x indivíduos anti-sociais, há sempre uma quantidade z de indivíduos que, como reação, identificam-se à autoridade. Que postura é essa?
 
É uma tendência pró-sociedade mas antiindivíduo. As pessoas que se desenvolvem dessa maneira podem ser chamadas de "anti-sociais ocultas" (p. 193).
 
Seria uma postura doentia e imatura para Winnicott. Mas, então o que sobrar de 100 - (x + z) é igual à indivíduos "sociais"? Não! Ainda há os que ocupam posição indeterminada (y %). Então, saudáveis e sociais são aqueles que resultam da equação 100 - (x + z + y).
 
É sobre este restante que cairá a responsabilidade democrática. Mas, como surge este fator democrático? É inato? Estimulado pelas lideranças? Se pensarmos  em um caráter inato temos que pensar na forma como os pais agiram com seus filhos. São os "bons lares comuns" os únicos que podem fornecer um fator democrático inato.
 
É no homem comum, então, que repousa a essência de uma democracia. Entretanto, muita coisa conspira para o bom funcionamento do lar e isso sem falar que muitos pais não são "bons", são anti-sociais, imaturos, doentes, etc.
 
Mas, como a sociedade age contra isso? Sejamos fancos, há alguma preocupação com uma formação familiar saudável? Será que não estamos sendo absolutamente displicentes com o surgimento de patologias as mais diversas no seio familiar?
 
Mas, não quero aqui, fazer "sociologismo barato" e dizer que tudo se resume à questão econômica. Isso é mentira! Há bem mais coisas envolvidas, principalmente as de ordem psíquica. O que oferecemos, então, para a saúde psíquica da sociedade?
 
Para piorar, me parece que vivemos em uma época em que não só as condições psíquicas para a formação de crianças está cada vez mais comprometida, como também não sabemos exatamente se esta criança está se integrando a uma "sociedade" ou a um "mercado", competitivo e individualista, anti-social, portanto.
 
Não podemos cair no erro de acreditar que a única coisa que realmente importa é o cuidado físico, como nos diz Winnicott. Isso é a melhor expressão de fantasias que orbitam em torno da relação mãe-bebê (momento crucial para o cuidado físico necessário). Não à toa proliferam lideranças "maternas" e que "cuidam" dos indivíduos na sociedade.
 
Por outro lado, se tudo isto realmente for sensato e verdadeiro, resgatamos a importância da educação para a sustentação dos procedimentos democráticos. Mas, mais uma vez, é isto que vemos no cotidiano dos governos e lideranças?
 
No texto, Winnicott ainda faz referências ao papel da mulher no poder, à existência da democracia em estados de guerra e à questão das fronteiras geográficas da democracia, mas fico com estas questões já levantadas.
 
Nada sustenta melhor uma democracia que a existência de um fator democrático em determinado percentual da sociedade, e isso resulta, por sua vez, em grande parte, de um desenvolvimento emocional saudável, sobre o qual o governo não deve interfirir, mas oferecer apoios, como através, principalmente, da educação e de suportes psicológicos, além, evidentemente, de buscar condições para atenuar as carências materiais.
 
O grande problema e que me parece algo que merece ser estudado com muita atenção, é o fato de vivermos uma conjuntura de forte investimento em distribuição de dinheiro, precário investimento na educação e forte dose de credulidade no mercado. Isso precisa ficar mais claro. Precisa ser estudado com mais atenção para chegarmos a conclusões mais efetivas.
 
Por enquanto, são especulações, pessimistas, mas são só especulações de que não estamos formando cidadãos, e sim tão somente consumidores com alto potencial anti-social. Pior para a democracia? Melhor para os populismos?
 
Realmente Winnicott se aveturou pelo campo da política, mas não acredito que nenhum sociólogo ou cientista político não o respeite por isto, principalmente por nos fornecer, há tanto tempo, ferramentas para a análise da sociedade atual.
 
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* “Algumas reflexões sobre o significado da palavra “democracia”. In: D. W. Winnicott. Tudo começa em casa. Tradução Paulo Sandler. – 2a ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1996. – (Psicologia e Pedagogia), p. 189-204. Título original: Home is where we start from. O texto foi escrito para o “Human Relations” em junho de 1950.

Pierre Bourdieu (Dossiê - Revista Cult 166/2012)

Impossível não registrar algo acerca do dossiê preparado pela Revista Cult (n. 166, março 2012) para relembrar alguns conceitos de Pierre Bourdieu neste momento de 10 anos de sua morte (1930-2002). Uma justa homenagem a um dos maiores intelectuais do século XX, principalmente num momento em que, como diz Daysi Bregantini (editora da Cult),
nossos poucos intelectuais públicos são desmotivados, assim como nossos bons criadores. A economia vive um momento inédito de crescimento, mas não é representada na produção cultural, que está desbotada e sem vigor. O jornalismo cultural, com poucas exceções, está quase desmoralizado e a reboque da indústria do entretenimento. Por que nos conformamos?
Bourdieu é aquele intelectual ao qual podemos atribuir duas grandes características: é "engajado" (segue a tradição francesa de participar ativamente de movimentos sociais, integrando a teoria com a prática) e é "total" (sua obra cobre uma gama extremamente variada de problemas, domínios e dimensões da vida social).
 
Sua produção é vasta e, recentemente, foi publicado na França o livro "Sobre o Estado", produto de um curso oral entre 1989 e 1992 onde discutiu o papel do Estado e do indivíduo na sociedade. Segundo Franck Poupeau, ali Bourdieu constrói um modelo de gênese do Estado, pensado no cruzamento da História, da Sociologia e da Filosofia Política, com referências ao contexto francês da época, quando da desconstrução dos serviços públicos, das políticas sociais e da própria ideia de "público".
 
O termo que usava era o do "abandono do Estado", imaginando que o neoliberalismo estaria esvaziando completamente o Estado de suas funções. Nesse aspecto talvez tivesse se surpreendido, hoje em dia, com a sobrevivência de inúmeras funções e, talvez, optasse por falar em "transformação" do Estado e suas funções. Mas, é esperar pra ver, com calma, como tratou esta questão do Estado num momento decisivo de seu questionamento.
 
Entretanto, apesar de ser um dos autores mais citados no mundo (e "descoberta" no mundo inglês), sua obra vem sendo muito atacada pelos sociólogos franceses. Para Bernard Lahire, um de seus  herdeiros, estaria ocorrendo um processo de "desqualificação" (muito típico nas Ciências Sociais) que obedeceria à lógica da moda*, onde não há espaço para argumentações e evidências empíricas, somente para o "novo" e o "ultrapassado".
 
O que existiria por trás disso, então, seria uma recusa de uma sociologia subjetiva, apegada aos estudos da dominação e da desigualdade, dos determinismos sociais. Predomina, na atualidade, uma sociologia consensual, ausente de relações de dominação.
 
Vê-se aí reflexos da ideologia consumista onde os intelectuais estariam se comportando como crianças que, em busca de reconhecimento por parte do poder, estariam se tornando dóceis e se recusando a denunciar as violências. Um comportamento que tira das Ciências Sociais qualquer possibilidade de se tornar um contrapoder.
 
É neste contexto que Geoffroy de Lagasnerie critica a relação de muitos intelectuais (como Alain Badiou) com a mídia, também expressão dessa busca frenética por um tipo de reconhecimento similar à das celebridades.
 
Para ele, tais autores estariam se tornando ensaistas de segunda linha e produzindo subpesquisas, fazendo praticamente desaparecer o debate intelectual. Entretanto, o autor não demoniza a mídia e vê que Bourdieu, por sua vez, não soube avaliar com clareza o papel da mídia, perdendo-se, junto a outros importantes teóricos, numa feroz crítica aos jornais e suplementos culturais. Havia um receio de se perder o "monopólio" do discurso acadêmico?
 
Não há como negar o importante papel destes outros espaços como "críticos" das práticas acadêmicas, papel importante para se atenuar as chamas "imposturas" acadêmicas (similares às imposturas midiáticas). A crítica feroz, portanto, mais parecia uma tentativa de salvaguardar de críticas o espaço acadêmico, contribuindo para isolá-lo cada vez mais da sociedade, fechando-o em si mesmo.
Quando refletimos sobre o jornalismo, insistimos com frequência na censura que exerce. Mas a contribuição essencial do jornalismo reside no fato de que se trata de uma instância exterior à universidade. Ele representa um espaço de acolhimento para as obras, os autores e questionamentos em ruptura com as normas científicas (p. 39).
Outra publicação de Bourdieu, que deve ser lançada ainda este ano no Brasil, é "Os Herdeiros". Segundo sua tradutora, Ione Ribeiro Valle (UFSC), o livro inspira-se na tradição weberiana de não considerar a relação de dominação como exclusivamente econômica, embora sustente (como o marxismo) a ideia de divisão da sociedade entre dominantes e dominados.
 
No livro, Bourdieu rompe com a "ingenuidade" da ideologia da igualdade de oportunidades assentada na ideia de uma escola que alcance a todos. Independente de qualquer coisa, a escola ainda tem a função de legitimadora das desigualdades, mais do que um instrumento de mobilidade social. Para Bourdieu, a cultura de elite ainda predomina e seria necessário uma socialização diversa daquela preconizada pela escola (**). Vejamos, em síntese, alguns dos principais conceitos de Bourdieu:
 
1) Capital Cultural - Conjunto de qualificações intelectuais produzidas pela escola ou transmitidas pela família. Pode ser "incorporado" (como a facilidade de expressão), "objetivo" (como livros) ou "institucionalizado" (como títulos escolares). É uma propriedade que se tornou parte integrante da pessoa através da aprendizagem e aculturação, e fortemente relacionado ao capital econômico do indivíduo;
 
2) Capital Econômico - Conjunto de recursos patrimoniais e de rendas ligados ao capital ou a um exercício profissional assalariado ou não assalariado;
 
3) Contato Social - Conjunto de contatos, relações, amizades, obrigações, relações socialmente úteis que podem ser mobilizadas ao longo da trajetória profissional ou pessoal do indivíduo. É uma variável que confere maior ou menor "espessura" social, poder de ação e reação. "A rede de relações é o produto de estratégias de investimento social", consciente ou não, a fim de criar, manter, reforçar, reativar ligações das quais pode esperar retirar "lucros materiais ou simbólicos";
 
4) Campo -Espaço social estruturado e conflitual no qual os agentes sociais ocupam uma posição definida pelo volume e pela estrutura do capital eficiente no campo, agindo segundo suas posições nesse campo. Cada campo - um "campo de força" de agentes e instituições em luta - é dotado de regras de funcionamento e de agentes investidos de hábitos específicos (campo universitário, jornalístico, literário, jurídico, econômico etc). São campos autônomos que resultam da diferenciação do mundo social e dos modos de conhecimento do mundo. Assim, cada campo tem um ponto de vista fundamental sobre o mundo e cria, portanto, seu objeto próprio;
 
5) Distinção - Corresponde a uma estratégia de diferenciação que está no âmago da vida social. É uma propriedade que marca um desvio, uma diferença em relação a outros e que funda uma hierarquia entre indivíduos e grupos;
 
6) Capital Simbólico - Conjunto de rituais (como a etiqueta e o protocolo) ligados à honra e ao reconhecimento. É o crédito e a autoridade que conferem a um agente o reconhecimento e a posse das três outras formas de capital (econômico, cultural e social). Ele é produto da "transfiguração de uma relação de força em relação de sentido", designando o efeito de violência imaterial das outras formas de capital sobre a consciência. Um exemplo típico das transmutações das outras espécies de capital em efeitos simbólicos é o "grande nome" (de uma "grande família"), que condensa todas as propriedades materiais e imateriais acumuladas e herdadas. A compreensão da lógica dos efeitos simbólicos de posições e de recursos advém de uma economia dos bens simbólicos;
 
7) Espaço Social -~Representação multidimensional e relacional da estrutura da sociedade de acordo com o volume e a estrutura do capital em posse das diferentes classes sociais em conflito. É aqui que se encontra a verdadeira lógica da dinâmica social, pois a sociedade não é mais que um espaço de distribuição, ou seja, um vasto conjunto de posições hierarquizadas através de múltiplas dimensões, recortado por tensões e dominações, definido pela exclusão mútua, ou distinção, das posições que o constituem;
 
8) Habitus - Talvez seja o conceito central em Bourdieu. É um sistema de disposições duráveis e transponíveis, que podem gerar práticas em outras esferas no curso do processo de socialização. São potencialidades objetivas que têm a tendência a se atualizar e a operar nas práticas e representações que elas moldam de forma duradoura. Embora Bourdieu negue um determinismo social rígido (pois há uma margem de manobra para o "jogo" e a improvisação) o habitus seria sempre produto do condicionamento histórico e social. Ele não pode ser revertido com uma mera tomada de consciência, pois está profundamente inscrito, internalizado, nos corpos, gestos e posturas, mas nem sempre percebido e muito menos entendido racionalmente.
 
9) Hysteresis - É estar atrasado, defasado, em descompasso.
 
10) Violência Simbólica - É a violência não percebida, obtida por um trabalho de inculcação da legitimidade dos dominantes sobre os dominados e que assegura a permanência da dominação e da reprodução social. Um exemplo é a transmissão da cultura escolar;
O dossiê elaborado pela revista ainda tráz uma série de revelações da trajetória de Sérgio Miceli, para muitos o maior divulgador de Bourdieu no Brasil. No texto se percebe o fascínio e o caminho percorrido por Miceli no encontro com as ideias de Bourdieu, sua forte preocupação com as questões culturais e o pouco espaço encontrado nas universidades brasileiras dos anos 70, que se concentravam demasiadamente em Marx e em O Capital. Era uma época de "má vontade" da Sociologia com a cultura.
 
Para Miceli, enquanto o marxismo tratava a cultura de forma reducionista, o trabalho de Bourdieu era mais complexo e fascinante. Ele trazia uma nova leitura, menos dogmática e mais simbólica. Era, segundo muitos, a consolidação daquilo que os frankfurtianos iniciaram: uma análise central da cultura. Trata-se de um belo texto, revelador de uma época. Assim como Bourdieu pode ser muito revelador para a época atual.
 
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(*) interessante como a Universidade e, em especial o competitivo campo das Ciências Sociais, se utilize justamente daquilo que mais critica: a descartabilidade. Na ânsia por um "lugar" na história se patrocina, seguidamente, o "enterro" de teorias e metodologias (e seus representantes) para dar lugar às novidades. Ora, o que mais isso é além da "lógica da moda"?
(**) um bom terreno para se avaliar esta questão é o Brasil atual com sua migração social e o papel da escolaridade nesse processo como um todo. se pode tentar observar como o "desprezo" pela educação pode, de um lado, continuar servido a uma reproduzção cultural elitista, mas, também, a uma outra socialização, que menospreza qualquer valor oriundo da cultura escolar e acadêmica.

Uma rápida leitura: Paranóia (Laplanche e Pontalis)

 
Psicose crônica caracterizada por um delírio mais ou menos bem sistematizado, pelo predomínio da interpretação e pela ausência de enfraquecimento intelectual, e que geralmente não evolui para a deterioração (p. 334).
Esta é a definição de "Paranóia" encontrada no "Vocabulário da Psicanálise", dos autores citados no título deste post. Trata-se, então, em primeiro lugar, de uma patologia que se insere no grupo mais amplo das "psicoses", marcada, portanto, por delírios crônicos. Mas, dizer só isto não basta pois precisamos especificá-la melhor no interior desse amplo conjunto de patologias que é a "psicose". Em grego, a palavra paranóia significa "loucura" ou "desregramento do espírito" e Freud, naquilo que denominou paranóia, agrupou inúmeros delírios crônicos como os de "perseguição", os ligados à "erotomania", os de "ciúme" e os de "grandeza". A paranóia, portanto, é algo mais que simplesmente "mania de perseguição", como comumente se conhece.
 
Nesse sentido, Freud concordou com Kraepelin que já havia distinguido a paranóia das chamadas "demências precoces" (catatonia). Ambas, paranóia e demência precoce, compartilham delírios, mas jamais no mesmo nível de deterioração, pois, no caso da paranóia, se tratam de delírios mais sistematizados e eficazes. Esta é uma primeira grande distinção.
 
Mas, a paranóia também precisa ser bem definida no interior do campo das psicoses, até para não ser, como de fato é, frequentemente confundida com a "esquizofrenia", por exemplo. Ora, não é porque o delírio paranóico também produz uma "dissociação" com a realidade que ela pode ser confundida com a esquizofrenia, embora os sintomas possam combinar-se de diversas formas e proporções.
 
Mais precisamente, a paranóia se define, nas suas diversas modalidades delirantes, pelo seu caráter de defesa contra a homossexualidade. E temos que entender "homossexualidade" para além de sua conotação meramente sexual, ou seja, como "fantasia feminina", de "impotência".
 
É no estudo e desconstrução de seu delírio específico, portanto, que entenderemos melhor o funcionamento desta modalidade de psicose que é a paranóia.
 
A definição proposta pelos autores nos fornece um bom ponto de partida: trata-se de um delírio, bem sistematizado (pois é coerente), com forte caráter interpretativo (explica com veracidade a realidade) e ausência de enfraquecimento intelectual (gera convicções e certezas difíceis de serem abaladas). Por isso, a base do tratamento de um delírio paranóico é, justamente, sua desconstrução e revelação enquanto dissonante (incoerente) em relação á realidade. Tarefa difícil, mas não impossível.

A "identidade" entre a reflexão e a história

A Revista Piauí, em sua edição n. 55, trouxe um texto de Pérsio Arida que, em minha opinião, merece ser lido por todos. O texto é um relato de sua atuação na luta contra a ditadura e de seu relacionamento com o pai. Há muita sensibilidade e inúmeras lições com as quais podemos encontrar identificações. O texto não merece nenhum tipo de reparo, somente uma leitura muito atenta e respeitosa, por isso, limito-me apenas a transcrever alguns trechos que gostaria que fossem mais e mais compartilhados.
  • "O passado nunca está definitivamente concluído, age sem que o saibamos, ambíguo, esfinge. Há momentos em que desaparece, como se só importasse o cotidiano atribulado. Mas logo reaparece. Como uma sombra que se projeta sobre o presente. E nós o interpretamos continuamente, temos que decifrá-lo repetidas vezes para restituir coerência e identidade à nossa história";
  • "As memórias são lábeis, cada visita ao passado altera a frágil composição do terreno em que estão baseadas. E quando os sentimentos surgem, por milagre, no vigor original, não passam de afrescos preservados debaixo da terra, cujas cores vívidas se esmaecem no ar do presente. Daí minha escolha por um mosaico de fragmentos, flagrantes de emoção justapostos, longe da costura coerente que, tantas vezes, dá vida à ilusão de um processo ordenado";
  • "O tempo trouxe também o amadurecimento e a reflexão, muitas vezes quase tão penosas quanto as memórias do sofrimento. Passado o trauma, sobreveio o desencanto. Eu não me reconhecia mais nas ideias de juventude. Ficava arrepiado ao me lembrar quão naturalmente aceitara esfarrapados argumentos em prol da economia planejada e da propriedade coletiva dos meios de produção, ou da inevitabilidade da implosão do capitalismo. Meu muro de Berlim desmoronara muito antes do de concreto e arame farpado. E, mesmo colocando entre parênteses minha formação de economista, o que pensar do Lênin que lia com tanta avidez em castelhano? Os totalitarismos são todos assemelhados. Aquele rapaz de 17 ou 18 anos que considerava a democracia uma ideologia de dominação burguesa, percebi pouco depois, era de uma ignorância abissal, além de pretensioso";
  • "Eram pensamentos que embrulhavam o estômago. Demoliam sem piedade meus anos de militância comunista. Tinham o efeito de uma traição, tiravam o chão dos meus pés. Mas não havia como evitá-los, não havia canto no qual pudesse armazená-los – eles se impunham por si mesmos, clarividentes. Não se tratava mais da operação insidiosa daquele estranho sentimento de vergonha e constrangimento que tivera ao voltar para casa, aquele sentimento que faz recair sobre a vítima a responsabilidade do mal que lhe foi feito. Tratava-se agora da razão, cristalina e insofismável, mostrando o equívoco daquele esforço revolucionário nutrido de tão boas intenções. A militância contribuiu, por vias tortas, para a volta da democracia – mas nisso se esgotara todo o seu sentido. O mundo de ideais ao qual eu dedicara o melhor de mim perdeu qualquer encanto"
  • "Pois a verdade era uma só: tinha sido levado de roldão pelo movimento coletivo, abdicado da minha própria capacidade de me situar no mundo, arrastado feito uma Maria vai com as outras. E nada havia que pudesse fazer a respeito, a não ser curar as feridas com o tempo e aprender com a experiência. Aprender a prezar a independência de pensamento; a não se iludir com o conforto e amparo que os movimentos coletivos infundem a quem deles participa; e a desconfiar daqueles que invocam a História, o Social, o Interesse Público, o Interesse Nacional ou a pureza e suas boas intenções para violar as liberdades e os direitos individuais".
  • "Mais de quarenta anos se passaram desde os meses de prisão. Mas, ao longo desse tempo, senti pulsar a mesma identidade a cada encontro com os que compartilharam comigo aquelas aventuras de juventude. Éramos todos muito jovens e a vida levou-nos por caminhos distantes... Mas basta revê-los para que no seu olhar eu mesmo me reconheça... Há aqui também uma identidade secreta – habitamos a mesma casa, nossa alma foi construída da mesma maneira. É difícil expressá-la. Talvez se possa dizer de uma atitude de vida que desconfia do individualismo, do sentimento nocivo de que cada um cuida de si (e os outros que se danem), que tão frequentemente apequena as pessoas e tolhe sua humanidade. Ter ousado resistir à ditadura em nome de um mundo melhor não é necessariamente a única maneira de incrustar dentro de si essa desconfiança, mas tê-lo feito torna-a marca de alma indelével. Esta é a herança daqueles anos sombrios, aquilo que nos une, uma identidade secreta que faculta o reconhecimento e o autorreconhecimento. Não é mais nem um ideário nem uma plataforma política – mas quem ousaria dizer que é pouco nestes tempos tomados pelo egoísmo?"
O relato de Arida, evidentemente, trás muito mais que isto. Os trechos onde fala do pai são dignos de muito respeito e admiração. Mas, me atenho a um só comentário acerca dos trechos reproduzidos acima. A vida real, quase sempre, contrasta com as fantasias e ilusões proporcionadas pelas "críticas"; a vida real, quase sempre, vai de encontro à crença da "falsa consciência"; a vida real, quase sempre, resiste a qualquer chamamento para o "levante". Por que, então, imaginar que as pessoas são simplesmente vítimas (ou adeptas) do "pão e circo"? Talvez o despropósito da vida real, quase sempre, desarme qualquer espírito crítico. O desafio, portanto, não está na construção de um belo discurso, mas no desvendar dos movimentos dessa vida real. Só assim poderemos encontrar essa "identidade secreta" que nos une, mas nunca é tao aparente.

(José Henrique P. e Silva)

Política Midiatizada e Mídia Politizada

O texto abaixo é uma síntese das ideias apresentadas por Piovezani Filho¹ acerca das transformações envolvendo a mídia e a política. Piovezani parte do conceito de "pós-modernidade" de David Harvey, baseada na "acumulação flexível", para enfatizar a efemeridade do que é produzido e consumido no capitalismo atual.
Volatilidade e efemeridade nos serviços, nas ideias e nos desejos, e instantaneidade e descartabilidade das mercadorias são duas tendências do refinamento do capitalismo nos tempos pós-modernos. Em detrimento da ética, aflora a estética capitalizada, a era é a da imagem, do parecer e do aparecer (p. 51).
Em paralelo, a política também "espetacularizou-se". Não que desde sempre a política já não possuísse uma intrínseca propriedade imaginária, mas, agora, esse processo teria se intensificado, com uma "nova linguagem política", cujas maiores características seriam (segundo Courtine - post neste blog: "Os deslizamentos do espetáculo político"): a brevidade e a conversação. No que diz respeito à "brevidade", o campo político passou a organizar-se em termos de "arcaico x moderno" e não mais em termos de "esquerda x direita" -  (um exemplo está na eleição para a Prefeitura paulistana em 2012).
 
A "conversaçao", por sua vez, supõe uma forma dialógica que teria por missão construir a imagem de um político acessível (não distante do cidadão), sempre próximo e aberto ao diálogo. Mas, se a política se "espetacularizou", a mídia se "politizou", paralelamente. Com isso, a mídia busca sua posiçao de agente político, intensificando seu exercício sobre a política por meio da revelaçao de segredos e mentiras.
Subsidiada na pretensa existência, no espaço político, de um nível profundo (e, por isso mesmo, mais real), ou de uma dupla dimensão - a da manifestação (aparência) e da imanência (essência) -, a mídia reinvindica a legitimidade de sua laboração politizada, na medida em que diante daquilo que não é, mas que se manifesta como sendo ou daquilo que é, mas que aparenta não ser, a postura crítico-heurística que ela toma cumpre a funçao de deslindar o obtuso, de revelar o real (p. 57).
Natural daí surgir aquela postura de porta-voz dos que estão alijados do poder.  O que temos, então, é um simulacro da fala do povo, já que se o povo realmente falasse não precisaria de um porta-voz. Neste processo, a mídia acaba por assumir duas posições, como afirmava Bourdieu: a de "tribuno" (falando em nome do povo e para o povo) e do "debater" (fala da, para e contra a classe política). Existe aí uma "vontade de verdade" que, evidentemente, não elimina possíveis manipulações.
 
Um ponto necessário a ressaltar é com relação à audiência. Não estamos falando de uma subjetividade passiva, mas que interpreta, em parte, o produto midiático que consome, o que, necessariamente, influi na própria mídia. Ou seja,
Faz-se anunciar a inscrição de uma subjetividade consumidora, em certa medida subversiva, manifesta sob a forma do uso, de modo que se estabelece, com efeito, na produção discursiva midiática, uma interpretação espectadora e não uma mera recepção passiva (p. 62).
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¹ PIOVEZANI FILHO, Carlos Félix. Política Midiatizada e Mídia Politizada: Fronteiras mitigadas na pós-modernidade. In: GREGOLIN, M.R.V. (org.). Discurso e Mídia: A cultura do espetáculo. - São Carlos: Claraluz, 2003, p. 49-64.

A Espetacularização da Política e da Mídia e a Tarefa da Análise do Discurso

O texto abaixo é uma síntese das principais ideias trazidas por M.R.V. Gregolin¹ acerca da relação entre mídia e política na atualidade. A autora nos relembra, inicialmente, que Guy Debord, em 1967 ("A Sociedade do Espetáculo"), ao falar da indistinção entre o "real" e aquilo que é produzido e colocado em circulação, dá mais um passo ao que Adorno já anunciava como "industrialização cultural". Como analisar este caráter "espetacular" do que é circulado? Para a autora não há como não pensar esta "cultura do espetáculo" como um fato de "discurso", e que pode, portanto, ser trabalhada pela Análise do Discurso, cujo objetivo é o de:
explicar os mecanismos discursivos que embasam a produção dos sentidos [a partir de uma] compreensão de como se dá a produção e a interpertação dos textos em um determinado contexto histórico, em uma determinada sociedade (p. 10).
Em 1983, Pêcheux ("Discurso: estrutura ou acontecimento"), quando da vitória de Mitterand, percebeu como a mídia opera a transformação da política. Para ele, a estrutura enunciativa do discurso da mídia se assemelhava aos gritos das torcidas esportivas. Estaria ocorrendo a "espetacularização da política", através de uma metáfora popular, esportiva, que adequava-se ao campo político. Mas, o que isto significa?
 
Ora, quando a mídia diz "ganhamos!", referindo-se à vitória de Mitterand, o acontecimento político se associa ao resultado de um jogo esportivo. Mas, o problema é que, ao final de um jogo, o que se tem, sempre, é um resultado estável, que não se questiona. Perguntas como: "quem ganhou de verdade?", "o que está além das aparências?", não são colocadas, e perde-se qualquer relação entre o "real da língua" e o "real da história". É aí que deve entrar em cena o analista de discurso e sua tarefa de entender a relação entre essas duas ordens para poder falar sobre o "sentido" produzido. Afinal,
Há sempre batalhas discursivas movendo a construção dos sentidos na sociedade. Motivo de disputa, signo de poder, a circulação dos enunciados é controlada de forma a dominar a proliferação dos discursos. Por isso, aquilo que é dito tem de, necessariamente, passar por procedimentos de controle, de interdição, de segregação dos conteúdos (p. 12).
Nesse sentido,
A análise do discurso propõe, portanto, descrever as articulações entre a materialidade dos enunciados, seu agrupamento em discursos, sua inserção em formações discursivas, sua circulação através de práticas, seu controle por princípios relacionados ao poder, sua inserção em um arquivo histórico (p. 12)
Podemos, então, num esforço de síntese, dizer que a grande tarefa do analista de discurso é desvendar os sentidos produzidos pelos enunciados colocados em circulação em determinado contexto sócio histórico. Voltando à autora, o grande operador de todo este processo de espetacularização seria a mídia, com as transformações nas práticas discursivas por três meios:
 
1) A política como espetáculo - Com a forte aproximação entre a mídia e a política, aquela passou a exigir uma nova "fala" pública, cambiável, flúida e imediata. Desse modo, técnicas de comunicação foram aplicadas ao discurso político que ficou cada vez mais homogeneizado, um produto de consumo vendido a partir da "teatralização". Como consequência, os políticos cada vez mais oscilaram entre heróis de novelas e mercadorias a venda, cada vez mais se utilizou jogos de palavras e recursos que evitavam explicações, que afastaram o debate político e o aprofundamento dos temas.
Esse estilo é adequado à mídia hoje dominante - a televisão - que valoriza as performances exuberantes e faz com que a aparição de políticos se transforme em um espetáculo para o grande público (p. 13-4).
O resultado é o que se chama de "midiatização da política". Mas, este processo é mais amplo e implica na transformação da própria mídia que, cada vez mais, se atribui a função de investigação, situando-se como "porta-voz" da coletividade, que vai descobrir os "segredos" dos agentes políticos. Resulta daí, então, a "politização da mídia". Midiatização da política e politização da mídia são, portanto, dois processos correlatos, que se alimentam.
 
2) A língua como espetáculo - A língua portuguesa, na mídia, tem como objetivo não apenas comunicar, mas um efeito simbólico (ordenação, categorização etc.) e político (luta pelo poder).
 
3) A história como espetáculo - A mídia desenvolve estratégias para a construção de uma "história espetacularizada", como se acompanhássemos ao vivo a produção da história, mas dela não participássemos (uma história sem sujeitos, portanto).
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¹ GREGOLIN, Maria do Rosário V. A Mídia e a Espetacularização da Cultura. In: GREGOLIN, M.R.V. (org.). Discurso e Mídia: A Cultura do Espetáculo. - São Carlos: Claraluz, 2003, Apresentação, p. 9-17.

A Demanda por "Reconhecimento" (Teoria Crítica e Psicanálise)

Certamente são muitas as demandas atuais da clínica psicanalítica e, em boa parte dos casos, é possível construir uma "ponte" entre a queixa individual e as questões sociais nas quais este indivíduo está colocado. Não é um exercício muito simples, mas considero necessário, até para vermos o que "é" do sujeito e o que "é" do social, sem nenhuma pretensão, é claro, que sejam esferas autônomas.
 
Uma destas demandas que a clínica psicanalítica mostra é a que vou chamar "Demanda por Reconhecimento", na qual existe uma luta do sujeito para emancipar-se através da (re)construção de sua identidade. Isto fica muito claro em inúmeros discursos que chegam à clínica psicanalítica. E é sobre ela que gostaria de fazer alguns comentários.
 
A "ponte" com o social pode ser feita através da Teoria Crítica (TC). O que é a Teoria Crítica? Em um rápido retrospecto, com o total auxílio da "apresentação" feita pelo professor Marcos Nobre, ao livro "Luta por Reconhecimento", de Axel Honneth, podemos dizer que, em 1924, foi fundado junto à Universidade de Frankfurt, na Alemanha, o Instituto de Pesquisa Social. Horkheimer assumiu sua direção em 1930 e propôs um programa interdisciplinar cuja referência teórica era o marxismo.
 
Nascia a TC que tanto influenciou o debate contemporâneo após a II Guerra. Buscava-se descrever o funcionamento da sociedade e, mais, compreendê-la criticamente à luz de uma possível emancipação. Esta entretanto, apresentava-se como "bloqueada" pela própria lógica da organização social.
 
A partir dos anos 40 Horkheimer e Adorno vão se distanciando dos diagnósticos e soluções marxistas e passam a dar a estas uma nova versão intelectual. Atualmente, Axel Honneth é um dos mais fortes expoentes da TC. Assim como Habermas, posicionou-se sempre em contraste com seus antecessores e apresentou sua teoria como solução para, justamente, os impasses detectados nas teorias anteriores - é essa postura de crítica interna da TC que me fascina metodologicamente, pois me parece muito mais científica e honesta do que ficar simplesmente, reproduzindo dogmas que, muitas vezes, já não explicam a realidade. Sua postura foi de procurar encontrar nos escritos de seus antecessores pistas e traços de um rumo teórico que não havia sido trilhado e que poderia ter evitado as dificuldades. Como diz o prof. Marcos Nobre:
Esses elementos negligenciados podem dar novo rumo à teoria social crítica,agora ancorada no processo de construção social da identidade (pessoal e coletiva) e que possa ter como sua gramática o processo da "luta" pela construção da identidade, entendida como uma "luta pelo reconhecimento" (p. 11, apresentação).
Mas, em que aspectos Honneth estaria confrontando Habermas e oferecendo novas respostas? Habermas havia, por sua vez, procurado criticar o diagnóstico de Horkheimer e Adorno em seu clássico "A Dialética do Esclarecimento" onde investigavam a "razão" humana e concluíam que a racionalidade "instrumental" era a forma estruturante e "única" da racionalidade social apresentada pelo "capitalismo administrado" que podiam observar à época.
 
Mas, aqui existiria uma "aporia" (um impasse), pois se a razão instrumental é a única no sistema e bloqueia toda e qualquer emancipação, como criticá-la? Para Habermas, insistir nessa aporia seria colocar em risco o próprio projeto da TC. É a partir daí que Habermas vai propor novo diagnóstico e recuperar a capacidade crítica da teoria. Aspectos decisivos das relações lhe pareciam estar sendo ignorados.
Ele pensou, então, em um novo conceito de "racionalidade". Habermas partiu do pressuposto que a racionalidade instrumental não deveria ser "demonizada", mas que deveria ter "freios", daí vir com o conceito de "racionalidade de dupla face", onde a "instrumental" convive coma "comunicativa".
 
A "instrumental" é uma racionalidade orientada para o "êxito",o que possibilita a reprodução material da sociedade. A "comunicativa", por sua vez, é orientada para o "entendimento", que possibilita a reprodução simbólica da sociedade. Uma, então, responde ao "sistema", outra ao "mundo da vida", das relações sociais.
Trata-se de apontar ara uma racionalidade cujo padrão não é o absoluto hegeliano ou do sujeito característico da "filosofia da práxis" sem, com isso, dar adeus à modernidade e seu projeto. Trata-se de mostrar que há vertentes do projeto, moderno que não foram levadas adiante (p. 14, apresentação).
A aporia, portanto, é um impasse, mas não uma impossibilidade, possui alternativas. A conjuntura de Habermas era distinta. Com o capitalismo sendo regulado pelo Estado, concluiu que aquelas tendências que poderiam levar à emancipação tinham sido neutralizadas (o colapso interno do sistema, e a organização do proletariado).
 
Algo disso já estava em Horkheimer e Adorno, mas Habermas não conclui que a emancipação estava definitivamente bloqueada, afinal, às tentativas de colonização do mundo da vida pelo sistema, estruturas da ação comunicativa iriam se opor.
 
Mas, para Honneth, faltava enfrentar o problema por inteiro. Tanto em "Dialética do Esclarecimento" quanto em "Teoria da Ação Comunicativa" (Habermas), haveria um déficit sociológico. Um exemplo está na própria distinção dual entre sistema e mundo da vida, muito mecânica, e não permeada pelo "conflito social".
 
Com isso, Habermas não conseguiu pensar o próprio sistema e sua lógica instrumental como resultados de permanentes conflitos sociais, capazes de moldá-lo de acordo com a correlação de forças políticas e sociais. O conflito é abstraído da teoria. Mas, se a base da interação é o conflito, sua gramática, segundo Honneth, seria a luta por reconhecimento.
 
O que Honneth faz, então, é o sentido inverso: partindo dos conflitos vai em busca das lógicas da sociedade. Não se interessa, entretanto, primeiramente, pelos conflitos pelo aumento de poder, mas...
interessam-lhe aqueles conflitos que se originam de uma experiência de desrespeito social, de um ataque à identidade pessoal ou coletiva, capaz de suscitar uma ação que busque restaurar relações de reconhecimento mútuo ou  justamente desenvolvê-las num nível evolutivo superior. Por nisso, para Honneth, é possível ver nas diversas lutas por reconhecimento uma força moral que impulsiona desenvolvimentos sociais (p. 18, apresentação).
Isso lhe vai exigir a análise do indivíduo a partir de 3 dimensões:
  • A esfera emotiva que permite ao indivíduo a confiança em si mesmo;
  • A esfera jurídico-moral em que o indivíduo é reconhecido como autônomo;
  • A esfera da estima social em que seus projetos de autorrealização pessoal são objetos de respeito solidário;
O que vemos, então, até aqui, é a recuperação que Honneth faz, no interior da TC, da ideia e do valor do "conflito social" (com sua gramática vinculada à luta pelo reconhecimento) para explicar a dinâmica da sociedade. Algo similar, um conflito de tal ordem, sem dúvida, ocorre na esfera psíquica. É esta gramática que inunda os conflitos sociais atuais e, a clínica psicanalítica.
 
O que podemos dizer, então, é que o indivíduo enfrenta uma dura batalha psicossocial em busca de reconhecimento, tanto de si mesmo, quanto social. Hoje, vivendo a sociedade que define a todos pelo "sucesso", o indivíduo, evidentemente, não encontra o seu lugar, o espaço necessário de reconhecimento em que possa atuar. Nos defrontamos, a todo instante, com a ameaça, ou com o próprio "fracasso", e isso destrói um pouco mais nossa própria confiança.
 
É nesta riquíssima interação entre o psíquico e o social, mediada, justamente, pelas relações emocionais e sociais, que encontramos a oportunidade, ou não, de nosso auto reconhecimento, base para que esse respeito seja solidário.
 
É aí que se constrói a ponte entre a "clínica" e o "social", entre o indivíduo e a sociedade. se não nos situarmos nessa metafórica ponte dificilmente poderemos enxergar o indivíduo em sua totalidade. Se é que isto é possível.
 
É no real, no social, que o psíquico transborda. E é neste terreno, absolutamente pantanoso, movediço, que temos que atuar para entender e auxiliar nessa reconstrução identitária. Só não podemos esquecer que também vivemos por sobre este mesmo terreno.
 
Em outros posts tentarei explicitar melhor essa "luta pelo reconhecimento" de Honneth.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Vergonha, Depressão e Narcisismo: O conflito que vive o "envergonhado"

Hoje se dá uma maior atenção à "vergonha" como objeto de estudo. E isto se deve ao fato de que a disseminação de novas configurações neuróticas após Freud não cessa, sempre mostrando facetas até então ocultas ao olhar da metapsicologia. Assim, o caso das fobias sociais é um exemplo, pois, tradicionalmente vistas sob o ângulo do "medo", hoje pode-se colocar em relevo a "vergonha".
 
Na edição de out/2013 da Revista Mente&Cérebro o psicanalista Jurandir Freire Costa nos oferece um artigo justamente sobre a "vergonha" (Os sobrenomes da vergonha: melancolia e narcisismo), aquele sentimento que reflete bem o paradoxo de querer ser visto e reconhecido pelo outro, ao mesmo tempo que recusa ser visto por acreditar não possuir o que o outro deseja. É este paradoxo que é o cerne do conflito envergonhado. 

Neste conflito, depressão e narcisismo estão presentes. Segundo Jurandir, a DEPRESSÃO se faz notar através da "ausência de culpa", ou seja, o envergonhado não sente culpa por um dano real ou imaginário causado a outro, mas pelo "sentimento de insuficiência diante do desejo do outro". A marca principal da culpa é o "traço vergonhoso" que chega como uma sombra que recai sobre o sujeito. Mas, não confundir com a melancolia, pois esta é uma desorganização mental grave que pode levar à morte ou paralisia da atividade psíquica. Na vergonha o que há é uma desproporção entre a natureza dos mecanismos de defesa (semelhantes à melancolia) e os efeitos sintomáticos (próximos da neurose fóbica e das depressões por culpa) e o alvo do ódio é o próprio sujeito e não o objeto incorporado. É neste contexto que "a imagem corporal é submetido à mais cruel inspeção persecutória, racionalizada como prova de 'inferioridade real...", com consequências desastrosas. É a partir daí que o indivíduo lança mão, como defesa, da "recusa da intenção" (conceito de Marie-Claude Lambotte), que abandonando a intencionalidade (ação) tenta calar o psiquismo. É assim que o sujeito acabar por encenar para si e os outros a pantomima (abuso dos gestos para se comunicar e chamar a atenção).

É na tentativa de explicar melhor esta dinâmica melancólica que se recorre ao NARCISISMO. O que se percebe na vergonha é uma "precariedade narcísica" marcada por um olhar materno sem a intenção e amor, como uma moldura vazia do desejo do outro. A criança é despida de qualidades, seu imaginário se cristaliza no vácuo de ideais de eu maternos. Daí a inconsistência da formação egóica (baixa autoestima) e a dificuldade em sentir-se como suporte de narrativas positivas. Predomina uma história marcada por subtrações: eu não sou, eu não posso, eu não sei, eu não quero, eu não penso etc.

Como, então, analisar este indivíduo que não tem o ímpeto necessário para preencher sua moldura vazia com histórias e conteúdos suficientemente bons? Parece que o conceito de "perdão" terá uma importância decisiva. Mas, o que é o perdão? De original conotação religiosa passou a ter um sentido leigo como algo indispensável à manutenção da imprevisibilidade das ações humanas, pois sem o perdão não nos arriscaríamos a agir, já que não conseguimos prever ou controlar os efeitos de nossas ações. O perdão seria como um passaporte para a entrada no universo simbólico da relação com o outro, que precisa de nossa confiança em sua suposta benevolência. Na psicanálise, o "perdoar a si" é fundamental para este processo com o outro, já que seria reconhecer em nós mesmos a existência do gozo e do real, ou seja, daquilo que é "abjeto" (desprezível). É este reconhecimento que implica em nos tornarmos agentes de nossa história, que deixa de ser contada somente como se tudo fosse resultado da intenção do outro.

Daí é um passo para se concluir que a própria "moldura vazia" é uma fantasia defensiva, uma cena congelada pelo ego em favor de sua própria homeostase. Como nos diz Jurandir:

No começo, o vazio da moldura se impõe como o espelho da impotência da mãe-ambiente para criar uma imagem narcísica suficientemente boa do próprio sujeito. Depois esse vazio é progressivamente engessado numa outra fantasia, desta feita de autoria egóica: a do sujeito como replicante do não-desejo do outro (p. 73).

Ou seja, a vergonha não é só efeito da incapacidade do outro em projetar conteúdos bons e positivos, mas também uma resistência do ego em aceitar um sujeito que resiste à "intrusão" do outro.

A vergonha, a vitimização do ego pelo ego, faz da "moldura vazia" uma fachada que esconde a existência de um sujeito coautor de seu destino psíquico. Ao apegar-se à posição de traído pelo desejo do outro, o ego, inconscientemente, buscar furtar-se ao trabalho de desejar segundo a castração (p. 73).

Desse modo, "perdoar a si mesmo é tornar-se responsável inclusive pelo que o outro fez de 'irresponsável'...". 

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Os homens e a questão da fidelidade

A fidelidade masculina é praticamente uma questão de honra para as mulheres, que parecem não querer abrir mão dessa exigência. Por outro lado, "traição" praticamente virou um sobrenome masculino. Diante de todo este quadro, os homens têm tido a oportunidade de se explicar? Não é uma tarefa fácil, praticamente para quem se dispõe a ser advogado do diabo.
 
O texto abaixo foi escrito a partir das considerações trazidas por Maryse Vaillant¹ e seu método foi o de, pós fazer a escuta (nem um pouco "moralista") de inúmeros casos, elencar aqueles que considerou de "infidelidade (ou fidelidade) extrema" e compreendê-los em seus pormenores para, a partir daí, lançar luz sobre as chamadas "pequenas fraquezas corriqueiras". Importante lembrar que a autora se concentrou nas uniões heterossexuais, plenamente estabelecidos. Sobre a escuta, ela nos diz:
Ao deixar que a história de cada um explique a aventura passageira, avassaladora ou discreta, que pode abalar um casal ou levá-lo à ruptura, sem dar definição a alguém, procurei as forças profundas que sustentam os discursos dos homens nos que diz respeito à sua maneira de conceber o compromisso, o amor e o casamento (p. 176).
Dentre os principais temas investigados podemos elencar os seguintes:
  • Que motivos levam um homem a enganar a mulher que ama?
  • Que motivos levam um homem a amar a mulher que engana?
  • Por que diversos maridos adúlteros jamais deixam suas esposas?
  • Que motivos levam as mulheres a praticamente não desconfiarem de quase nada?
  • Quais as dificuldades em manter-se monogâmico?
  • Por que motivos consideram as conquistas como garantia de virilidade?
  • O que definem como mentira, escapada, traição e adultério?
  • Por que consideram a existências de "mentiras protetoras"?
Parece-me, entretanto, que duas grandes questões rondam todo o trabalho de Maryse Vaillant:
  • Até que ponto a (in) fidelidade está relacionadas às qualidades de homens que traem ou mulheres amadas?
  • E, qual a relação, de fato, entre a (in) fidelidade e o amor?
Então, o que alegam os fiéis e os infiéis?
 
Para tentar responder à esta questão, e todas as demais, citadas acima, a autora nos apresentará cinco grandes "tipos" comportamentais:
  1. O monogâmico mentiroso e sua "arte de acomodar o casamento"
  2. O poligâmico ansioso e seu "desejo de ter todas as mulheres"
  3. O poligâmico indeciso e seu "sonho de amar todas as mulheres"
  4. O monogâmico cativo e sua "concepção específica de homem"
  5. O poligâmico resolvido / monogâmico perdido e a "possibilidade de mudança"
 É a partir, então, da análise destes "tipos" que a autores vai chegar  a algumas conclusões:
  • Não veio à tona um "modo amoroso masculino" específico, distinto daquilo que serve de âncora para as mulheres (amor pelo pai, dedicação ao filho, arte de apoiar ou forjar os homens). Os homens, então, não falam das mulheres, nem de suas figuras sedutoras e maternas. Se ocorre, é de forma muito ocasional. Os homens falam de si mesmos, suas dúvidas  identitárias, sonhos, dificuldades com o compromisso. Falam mais de suas angústias e limitações que de seus amores e amantes;
  • Duas grandes angústias emergem: a clássica "castração" e o medo de ver o "desejo" acabar ("afânise"). Por isso, para o homem, independente da fase de sua vida, a necessidade de amar e ser amado assume uma nuance fálica;
  • Há uma clara dificuldade por parte dos homens em deixar a infância para trás, e isso, fundamentalmente, pelo fato de que o que faz mesmo diferença em matéria de fidelidade é a capacidade (não de amar) mas de renunciar ou separar-se do outro;
SOBRE OS INFIÉIS - Reivindicam a liberdade sexual e o pleno direito ao desejo. Praticam o adultério de forma crônica e mentem para preservar o casamento. Possuem uma fome insaciável de amor. "...Acham impossível abrir mão da liberdade de seduzir, uma vez que a única coisa que importa aos homens atormentados pelo medo da castração é a disponibilidade sexual" (p. 177). Estamos sempre presos à equação que une masculinidade e virilidade. "...As infidelidades daí decorrentes são apenas a consequência de um drama íntimo de um homem que, por detrás de sua profissão e fé, oculta autêntica fragilidade. Assim, a infidelidade é o sintoma da dificuldade de assumir as escolhas e as imposições inerentes a qualquer existência" (p. 178). Existem os "poligâmicos indecisos" que cultivam amores múltiplos e paralelos. Geralmente ficam infelizes por terem que se utilizar de mentiras e acham que suas companheiras são intolerantes.

SOBRE OS FIÉIS - Alguns podem ser indiscutivelmente fiéis, seja por uma questão de natureza, estrutura ou cultura. São homens de uma única mulher, enclausurados na monogamia, seja por imposições, honra ou loucura, prisioneiros de si mesmo ou de seu passado. São homens que mentem para si mesmos, pois estar com a consciência tranquila é fundamental para eles. "Todos são incapazes de escolher ou de se desvencilhar das imposições que os amarram. São fiéis por medo, por inibição, por adição, porém também por preguiça. Incapazes de escolher ou de se desvencilhar, só lhes resta serem fiéis. Duplicadas ao infinito pelas suas uniões e seus casamentos, as figuras parentais arcaicas que os enquadram não lhes deixam nenhuma esperança de liberdade intima. Então, a felicidade é o sintoma de sua dificuldade de se desvencilhar - da história de sua infância, por exemplo - para construir sua vida de homem" (p. 178).

Mas, o que é um HOMEM? O fato é que nestas últimas décadas a figura masculina se tornou muito complexa e seus esquemas comportamentais e identitários não estão mais tão bem estruturados, estão obsoletos. Isso implica em que os homens de amanhã terão que inventar novas estruturas amorosas de longo prazo. Não bastará mais tomar seu pai como modelo (ou contraexemplo) para poder deixar a mãe e as ilusões da infância. "...Entre os desafios mais difíceis, ele talvez tenha de procurar outra unidade de medida identitárias em vez do tamanho ou do vigor do seu órgão reprodutor e dos seus substitutos, como o poder e o dinheiro..." (p. 179). São mudanças no imaginário masculino que precisam se refletir na realidade, pois a libido não pode mais ser a única força motriz de sua existência e razão única para viver. Os homens, então, devem abandonar o amor de uma mulher (mãe) e a promessa do pênis, para procurar em seu pai e em seus pares o modo de se tornarem si mesmos.

 
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¹ VAILLANT, Maryse. Os Homens, o Amor e a Fidelidade; Tradução: Elena Gaidano. - Rio de Janeiro: BestSeller, 2013 (c) 2009. A autora foi uma psicóloga francesa, prof. da Universidade de Paris.