A Revista Piauí, em sua edição n. 55, trouxe um texto de Pérsio Arida que, em minha opinião, merece ser lido por todos. O texto é um relato de sua atuação na luta contra a ditadura e de seu relacionamento com o pai. Há muita sensibilidade e inúmeras lições com as quais podemos encontrar identificações. O texto não merece nenhum tipo de reparo, somente uma leitura muito atenta e respeitosa, por isso, limito-me apenas a transcrever alguns trechos que gostaria que fossem mais e mais compartilhados.
- "O passado nunca está definitivamente concluído, age sem que o saibamos, ambíguo, esfinge. Há momentos em que desaparece, como se só importasse o cotidiano atribulado. Mas logo reaparece. Como uma sombra que se projeta sobre o presente. E nós o interpretamos continuamente, temos que decifrá-lo repetidas vezes para restituir coerência e identidade à nossa história";
- "As memórias são lábeis, cada visita ao passado altera a frágil composição do terreno em que estão baseadas. E quando os sentimentos surgem, por milagre, no vigor original, não passam de afrescos preservados debaixo da terra, cujas cores vívidas se esmaecem no ar do presente. Daí minha escolha por um mosaico de fragmentos, flagrantes de emoção justapostos, longe da costura coerente que, tantas vezes, dá vida à ilusão de um processo ordenado";
- "O tempo trouxe também o amadurecimento e a reflexão, muitas vezes quase tão penosas quanto as memórias do sofrimento. Passado o trauma, sobreveio o desencanto. Eu não me reconhecia mais nas ideias de juventude. Ficava arrepiado ao me lembrar quão naturalmente aceitara esfarrapados argumentos em prol da economia planejada e da propriedade coletiva dos meios de produção, ou da inevitabilidade da implosão do capitalismo. Meu muro de Berlim desmoronara muito antes do de concreto e arame farpado. E, mesmo colocando entre parênteses minha formação de economista, o que pensar do Lênin que lia com tanta avidez em castelhano? Os totalitarismos são todos assemelhados. Aquele rapaz de 17 ou 18 anos que considerava a democracia uma ideologia de dominação burguesa, percebi pouco depois, era de uma ignorância abissal, além de pretensioso";
- "Eram pensamentos que embrulhavam o estômago. Demoliam sem piedade meus anos de militância comunista. Tinham o efeito de uma traição, tiravam o chão dos meus pés. Mas não havia como evitá-los, não havia canto no qual pudesse armazená-los – eles se impunham por si mesmos, clarividentes. Não se tratava mais da operação insidiosa daquele estranho sentimento de vergonha e constrangimento que tivera ao voltar para casa, aquele sentimento que faz recair sobre a vítima a responsabilidade do mal que lhe foi feito. Tratava-se agora da razão, cristalina e insofismável, mostrando o equívoco daquele esforço revolucionário nutrido de tão boas intenções. A militância contribuiu, por vias tortas, para a volta da democracia – mas nisso se esgotara todo o seu sentido. O mundo de ideais ao qual eu dedicara o melhor de mim perdeu qualquer encanto"
- "Pois a verdade era uma só: tinha sido levado de roldão pelo movimento coletivo, abdicado da minha própria capacidade de me situar no mundo, arrastado feito uma Maria vai com as outras. E nada havia que pudesse fazer a respeito, a não ser curar as feridas com o tempo e aprender com a experiência. Aprender a prezar a independência de pensamento; a não se iludir com o conforto e amparo que os movimentos coletivos infundem a quem deles participa; e a desconfiar daqueles que invocam a História, o Social, o Interesse Público, o Interesse Nacional ou a pureza e suas boas intenções para violar as liberdades e os direitos individuais".
- "Mais de quarenta anos se passaram desde os meses de prisão. Mas, ao longo desse tempo, senti pulsar a mesma identidade a cada encontro com os que compartilharam comigo aquelas aventuras de juventude. Éramos todos muito jovens e a vida levou-nos por caminhos distantes... Mas basta revê-los para que no seu olhar eu mesmo me reconheça... Há aqui também uma identidade secreta – habitamos a mesma casa, nossa alma foi construída da mesma maneira. É difícil expressá-la. Talvez se possa dizer de uma atitude de vida que desconfia do individualismo, do sentimento nocivo de que cada um cuida de si (e os outros que se danem), que tão frequentemente apequena as pessoas e tolhe sua humanidade. Ter ousado resistir à ditadura em nome de um mundo melhor não é necessariamente a única maneira de incrustar dentro de si essa desconfiança, mas tê-lo feito torna-a marca de alma indelével. Esta é a herança daqueles anos sombrios, aquilo que nos une, uma identidade secreta que faculta o reconhecimento e o autorreconhecimento. Não é mais nem um ideário nem uma plataforma política – mas quem ousaria dizer que é pouco nestes tempos tomados pelo egoísmo?"
O relato de Arida, evidentemente, trás muito mais que isto. Os trechos onde fala do pai são dignos de muito respeito e admiração. Mas, me atenho a um só comentário acerca dos trechos reproduzidos acima. A vida real, quase sempre, contrasta com as fantasias e ilusões proporcionadas pelas "críticas"; a vida real, quase sempre, vai de encontro à crença da "falsa consciência"; a vida real, quase sempre, resiste a qualquer chamamento para o "levante". Por que, então, imaginar que as pessoas são simplesmente vítimas (ou adeptas) do "pão e circo"? Talvez o despropósito da vida real, quase sempre, desarme qualquer espírito crítico. O desafio, portanto, não está na construção de um belo discurso, mas no desvendar dos movimentos dessa vida real. Só assim poderemos encontrar essa "identidade secreta" que nos une, mas nunca é tao aparente.
(José Henrique P. e Silva)
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