sexta-feira, 28 de junho de 2013

"Desisto!"

A vida se assemelhava a um tormento. A todo instante se via diante de um apelo: "Não desista, nunca!". Isso o atordoava porque, embora se considerasse um "lutador", em certos momentos o que queria mesmo era desistir, deixar de lado, abandonar.

Mas, o que fazer? Seguir o seu desejo naquele momento ou ceder a uma máxima que a todo instante é repetida como um mantra, multiplicada como uma oração em que todos acreditam. Como ir contra isto?

De todos os cantos pareciam vir apelos: "a vitória final é o que interessa!", "resistir nos fortalece!". Ele sabia que tudo isto tinha alguma verdade. Ele sabia que em certos momentos lutara, e muito. Mas, agora, nesse momento, ele queria desistir. Ninguém iria lhe apoiar?

Parecia estar sozinho. Experimentava uma sensação de solidão muito intensa. Parecia mesmo que até sua alma o havia abandonado neste instante de decisão. Passavam-se horas, dias, semanas, e o aperto não cessava. Aquilo não lhe saia da cabeça. Seria ele um louco por desejar abandonar algo que todos parecer querer, até mesmo invejar?

As dores eram muitas. Afinal, ele podia até enfrentar a muitos, ou ao mundo inteiro, para afirmar algo em que acreditava. Mas, e quando parecia enfrentar a si mesmo? A luta lhe parecia perdida, desde o seu momento inicial.

A cada dia o peso se tornava maior. Parecia enlouquecer. Não tinha mais argumentos para se defender. Só o seu desejo a lhe pressionar, bem fundo. Estava cansado, isolado, já olhava o mundo com certo desdém. Se fosse render-se, que fosse até as últimas consequências. Já não tinha muitos momentos de paz mesmo. Seus pensamentos eram tomados, obsessivamente, pela dúvida. Como ele poderia estar certo com tantas pessoas lhe dizendo "não faça!". Quem era ele para opor resistência a tantos?

Já estava esgotado, passaram-se meses. Parecia fraco, indeciso. Estava prestes a se tornar um autômato, cultivando uma catatonia para não mais ter que se posicionar. Queria recuar, recuar. Quem sabe até desaparecer. Se não podia expressar seu desejo, para que então render-se a todos tão facilmente?

Mas, eis que, certo dia, tomado por uma força, uma última força, tomou a decisão. Não queria mais sofrer. Queria voltar a sorrir e a viver bem com todos. Finalmente entendia o quanto todos eram importantes para ele e que, para mantê-los bem e felizes ele só precisava tomar uma decisão.

Finalmente aceitou. "Desistiu". Como que, num passe de mágica, como que através de um milagre, suas dores foram desaparecendo, seu olhar voltou a brilhar, os próprios músculos começaram a experimentar mais força. E, se havia uma palavra que lhe deixava feliz era: "desisti!"

Ele enfrentara a todos, mas foi ao perceber que estava enfrentando a si mesmo que finalmente chegou à conclusão que poderia desistir de qualquer coisa, menos de si mesmo. Ele sabia, agora, com mais clareza, que existem momentos de exceção na vida. Se "lutar" é a regra, "desistir" é a exceção. E tão válida quanto. Na "desistência" ele se fortalecera novamente. Não se deixava mais aprisionar pela dúvida.

Ele percebera que continuar lutando não o estava fortalecendo. Pelo contrário, era uma luta que o sugava, retirava-lhe toda força, atormentando-o, paralisando-o. A "desistência" não lhe veio como fracasso, como fim. Não! O "não!" soou como força, liberdade... "não quero!", "não quero isso para mim!", "não é isto que me faz feliz!".

Ele se tornou mais leve. Acabara de "desistir" e estava mais feliz. Os outros ainda estavam atônitos. Mas, quando começaram a perceber que os seus olhos já não carregavam tanto peso, viram que ele estava correto. Reconheceram que sua luta por desistir estava carregada de força e dignidade. Era a sua felicidade que estava em jogo. E, assim, cada um começou a pensar sobre si, sobre o peso que carrega por, simplesmente, estar obedecendo a uma ordem de nunca, jamais, se permitir desistir.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Uma Pequena Nuvem (James Joyce, "Dublinenses")

Neste conto de Joyce, inserido em Dublinenses, Chandler é um típico funcionário e chefe de família que ganha sua vida em um também típico escritório em Dublin e hoje vive uma situação que lhe tira da rotina, pelo menos em seus pensamentos.

Vive a expectativa de reencontrar um amigo que chega de Londres e, com isso, aproveita para dar espaço à lembranças que nem sempre agradáveis. Nesse processo de recordação...
Várias vezes, abandonou sua tediosa tarefa para olhar da janela do escritório. O fulgor de um tardio crepúsculo de outono cobria a grama dos canteiros e as calçadas, envolvendo em suave poeira dourada as empregadinhas malvestidas e os velhos decrépitos que dormitavam nos bancos. Reluzia também sobre todas as formas móveis: crianças que corriam gritando pelas veredas de cascalho e pessoas que perambulavam pelos jardins. Contemplava a cena e pensava na vida. E como sempre acontecia quando pensava na vida, ficou triste. Uma suave melancolia apossou-se dele. Sentia o quanto era inútil lutar contra o destino.
Seu refúgio era pensar nos livros de poesia e em como ainda poderia vir a se tornar um escritor reconhecido. Ao mesmo tempo, não parava de pensar no amigo Gallaher que ocupava o posto de jornalista em Londres e estava chegando. Ele parecia que estava predestinado a vencer na vida. 

Em seus devaneios Chandler imaginava-se distante da vida medíocre que levava. Saiu e logo encontrou o amigo de Londres em um bar, e à medida que a conversa entre os dois avançava, Chandler experimentava sentimentos contraditórios: ora de entusiasmo pelo amigo, ora de desilusão e inveja.
Sentia agudamente o contraste entre suas vidas, que lhe parecia injusto. Gallaher era inferior em nascimento e educação. Se tivesse uma oportunidade, estava certo de que poderia fazer algo muito melhor do que tudo o que o amigo fizera ou viria a fazer... e o que é que o impedia? Sua desafortunada timidez!
Momentos depois, de volta à sua casa, Chandler, sem tirar os olhos da fotografia da esposa pensou na vida de Gallaher e pensou também em uma vida diferente da sua atual. Distanciando-se de tudo que estava ao seu redor.
O pensamento assustou-o e ele correu o olhar nervoso pela sala. A mobilia bonita, comprada a crédito, pareceu-lhe também um tanto vulgar. Fora escolhida por Annie e o fez lembrar-se dela novamente. Era enfeitada demais aquela mobília, bonitinha demais. Um sombrio ressentimento contra sua própria vida cresceu dentro dele. Não escaparia nunca daquela casa? Seria demasiado tarde para tentar a vida audaciosa de Gallaher? Poderia ir para Londres? A mobília ainda não estava paga. Se conseguisse escrever um livro e publicá-lo, talvez isso lhe abrisse o caminho.
Logo o choro da criança, seu filho, o traz à realidade. Não conseguia fazê-la parar de chorar. Tremia de raiva. Apertava a criança contra sí e chegou a pensar...
Se ela morresse...
Neste instante Annie, sua esposa, chegou. Ele se assustou, talvez muito mais com seus próprios pensamentos.
Com o rosto queimando de vergonha, Little Chandler afastou-se da luz do abajur. Ouvia o pranto da criança abrandar-se pouco a pouco e lágrimas de remorso inundaram-lhe os olhos.
Pobre Chandler! A submissão à crença no destino e ao ressentimento, o fato de estar sempre à espera de uma oportunidade e a incapacidade de ter a audácia de reconhecer-se a si próprio o aprisionavam em seus pensamentos medíocres e mortíferos, tornando a melancolia a "nota predominante em seu temperamento".

Um belo conto de Joyce. Destaquei apenas alguns trechos, mas, é evidente, que merece ser lido na íntegra.

sábado, 22 de junho de 2013

13 equívocos no discurso de Dilma, em 21/06/2013

O Brasil vive um momento muito especial em termo de politização e de discussão pública de temas tradicionalmente circunscritos a especialistas, mídia e atores políticos. O processo começou "não oficialmente" com a retomada da inflação desde o início deste ano e foi adensado por um ritmo de crescimento econômico tão baixo que, no máximo, só consegue manter os níveis de emprego do jeito que estão. 

Havia, portanto, um clima de insatisfação no ar. Lula antecipou o debate eleitoral, ainda em fevereiro, e a oposição mostrou que estava disposta a levar muito a sério a disputa de 2014. Eduardo Campos começou a ocupar espaço na mídia, Marina Silva iniciou a reorganização de seu partido e Aécio Neves conseguiu a união do PSDB em torno de seu nome.

De um lado, um quadro econômico pouco promissor e insatisfação ascendente. De outro, uma oposição animada e ansiosa por 2014. Não deu em outra. A aprovação do Governo Dilma caiu 8 pontos percentuais, com sérias desconfianças sobre sua capacidade de corrigir os problemas econômicos.

Lutando contra a aceleração da inflação, Dilma havia solicitado que as prefeituras e governos não elevassem as tarifas de transporte público no início do ano, e tudo ficou para junho. E assim foi. Subiram as tarifas em junho. Com um histórico de conflitos já acontecidos em algumas capitais brasileiras motivados pela alta das tarifas, surge em São Paulo um movimento de resistência. 

Vem às ruas a luta pela redução da tarifa. Começa a revolta dos R$ 0,20, liderada pelo Movimento Passe Livre, uma pequena organização de extrema-esquerda apoiada politicamente pelo PSOL e PSTU, mas que se define como apartidária. Até aí tudo bem, sua causa é horizontal, enquanto seu posicionamento ideológico é de extrema-esquerda.

De imediato a "causa" dos R$ 0,20 foi amplamente superada por uma lista de causas mais difusas que acabaram por se concentrar na questão do mau uso do dinheiro público e da corrupção. Mas, isso só se deu porque as manifestações deixaram de ser "puxadas" pelo Movimento Passe Livre e a sociedade como um todo ocupou as ruas.

Perdendo o controle de uma situação que visava, politicamente, sitiar o governador de São Paulo, e vendo que a causa das manifestações dirigiam-se, na totalidade, ao Palácio do Planalto e, além disso, saíram de São Paulo e explodiam pelo Brasil afora, o PT, motivado por Lula e seu presidente Rui Falcão, enviam às ruas os militantes do PT. O clima é de disputa de "espaço". Controlando as manifestações o PT diluiria as críticas ao governo federal. 

Não foi o que se deu. Foram mal aceitos nas manifestações e nasceu, daí, o discurso de que a "direita" estava controlando as manifestações, além de todo um "chororô" afirmando que os manifestantes estavam sendo "antidemocráticos" por não aceitar a presença de bandeiras partidárias. Ora, vamos falar sério, o PT tenta desqualificar as manifestações e depois vem querer ocupar um espaço para direcionar as manifestações. O povo não é tão ingênuo Deputado Rui Falcão.

Depois que a população deu seu recado principal e o próprio PT perceber que não tinha muito como "sair dessa", e tendo que enfrentar séria rejeição entre os manifestantes, e, ainda, apostando que as manifestações se desmoralizariam com a violência, a presidente vai às TVs para dar a sua opinião sobre tudo.

Sobre este discurso, aponto 13 grandes equívocos na fala da presidente Dilma, a partir de uma rápida análise de seus sentidos implícitos (1):

1) Discurso esteticamente feio e vazio - A presidente passa muito pouca segurança. Seu discurso não é contínuo, é sempre recortado, como na eterna busca eterna por um sorriso, por uma simpatia, uma expressão mais leve. Suas frases são mal "arrumadas", parecendo não trabalhar bem a pontuação e as necessárias ênfases e tons. Sua expressão está sempre carregada de um nervosismo, que tenta esconder sob uma fala mais "dura", do tipo "gerente". Não é um discurso atabalhoado, mas é um discurso fraco do ponto de vista da comunicação, soando quase sempre como "vazio" por não permitir que fiquem guardados seus pontos principais;

2) Desqualificação das manifestações, vistas como de "jovens" - A presidente fala que as manifestações mostram o desejo da juventude em avançar. Não! Não se trata de um movimento da juventude. Seria se tivesse ficado sob controle do Movimento Passe Livre e se sua pauta se restringisse aos R$ 0,20. Foram as famílias que foram às ruas, foram os adultos que somaram-se a todos os jovens, foram crianças que sentaram no asfalto para pintarem seus cartazes, num imenso aprendizado de cidadania. E mais, associar as manifestações aos "jovens" pé querer, de alguma forma, circunscrevê-la a uma suposta inclinação "natural" do jovem para a rebeldia, primeiro passo para sua desqualificação;

3) Não reconhecimento das manifestações, associadas à baderna - A presidente oscila, permanentemente, entre um reconhecimento das manifestações como legítimas e um "alerta" com relação à violência. A presidente não percebe que uma coisa é a "manifestação" e outra coisa é a ação isolada de "vândalos". Seu não entendimento causa uma confusão conceitual que muito facilmente leva a opinião pública a associar manifestação com violência (nisso, evidentemente, o discurso da presidente é reforçado pela cobertura jornalística). Não à toa, seu curto discurso está repleto de "ameaças": "correndo o risco de colocar muita coisa a perder"; "ouvir dentro dos primados da lei e da ordem"; "fazer isso de forma ordeira e pacífica"; "violência que envergonha o Brasil"; "vamos manter a ordem";

4) Desqualificação das lutas presentes, quando comparadas às lutas passadas - Ao afirmar que "o Brasil lutou muito para se tornar um país democrático" e que "não foi fácil chegar onde chegamos" há uma sobrevalorização das lutas contra a ditadura, sem perceber que a democracia não se conquista simplesmente com a luta contra uma ditadura, mas com sua construção no cotidiano da população. Nesse sentidos, manifestações cidadãs como as atuais são tão os mais importantes que as lutas contra um ditadura. Do contrário, o que terá sobrevivido será sempre uma democracia fisiologista e péssima em termos de representação política. Uma espécie de Democracia sem República. Alguém lembra quando um dos defensores de José Dirceu disse que ele deveria ser absolvido "por tudo que já fez pelo país". Ora, se isto for verdade, na melhor das hipóteses ele é um traidor de suas causas e do próprio país, pois teria lutado em causa própria;

5) Institucionaliza o debate público acerca da política - Todos sabemos que o PT construiu sua história em grande parte nas ruas, com fortes mobilizações, com recusas em assinar a Constituição de 1988, com recusa em aceitar o Plano Real, com fortes ataques aos governantes deste país etc. Ótimo, sem problemas, justamente porque isso mostra que política se faz nas ruas sim. Então, porque a presidente dar mais destaque aos minoritários atos de violência que ao pacifismo das manifestações? Ela simplesmente está adotando a ótica do "poder", ou seja, de quem está no comando e, para quem, a ordem é fundamental. Entretanto, é na desordem que se avança também, e de forma legítima. Como o próprio PT fez em toda a sua história e que, agora, parece perplexo diante de movimentos de massa contra si mesmo;

6) Forte contradição quanto ao uso da força militar - No início das manifestações em São Paulo o Ministro da Justiça veio a público, de forma quase irônica, oferecer ajuda ao governador para "conter" a violência de forma "adequada". Aquele foi o momento de auge do PT pois a questão parecia se canalizar para a "incompetência do governador de SP em lidar com a segurança pública", tema que o PT vai adotar de forma central nas eleições do próximo ano aqui em São Paulo. mas, quando a coisa saiu do controle ressurge o "discurso de ordem" e de intolerância". O que o Governo Dilma pensa, de fato, sobre a segurança pública? Isso é uma incógnita;

7) Pega carona nas manifestações, sem nenhuma auto-crítica - Ao querer aproveitar o "vigor" das manifestações diz que sua pauta ganhou prioridade nacional. Mas, como? Vai haver um combate à PEC 37? O que vai ser feito contra a corrupção? Nada disso foi dito. trata-se de uma "apropriação" meramente ideológica, vazia de conteúdo e sem qualquer possibilidade de resposta futura em termos de atendimento às causas levantadas. Pior, em nenhum momento a sua fala reconhece algum problema, algum erro. Diz que "não abre mão" do combate à corrupção e desvio de recursos públicos, mas o que faz, de fato, contra isso? Era esse o ponto central do seu discurso e só ocupou duas linhas ou poucos segundos;

8) De novo, a promessa de melhorias - O PT se elegeu à Presidência, em 2002, com um fortíssimo discurso de "esperança", assentado, fundamentalmente, nas questões da educação, segurança e da saúde. O que foi feito, de fato? O que mudou, qualitativamente falando? O que mudou em termos de gestão? Conversar com governadores e parlamentares em busca de um "pacto"? O que é isso, de fato? 11 anos de governo petista e nada significativo na área de saúde e educação? Inacreditável!

9) Transferência do problema para "terceiros" - Colocou a responsabilidade sobre a aprovação dos 100% de recursos do petróleo nas mãos do Congresso. É um ultimato, novamente? Disse que vai trazer "milhares de médicos do exterior". Que oportunismo! Por que não discutiu essa questão ao longo dos 11 anos em que o PT está no poder?

10) Demagogia - A presidente diz que vai receber os líderes das manifestações. Que líderes? estes, que diante da pressão petista, recuaram e disseram não mais convocar nenhuma manifestação? Vai transferir mais recursos públicos para eles? E a reforma política, vai ter mesmo prosseguimento? Ou trata-se de um discurso que, mais uma vez, só é muito bom para ser usado nos momentos em que os políticos estão sob fogo cerrado? O que a presidente vai, de fato, propor em termos de reforma política para garantir maior cidadania? Ela já sabe das dezenas de propostas que existem no Congresso Nacional? Já ouviu falar sobre o "Voto Distrital"?

11) Cinismo I ? - Dizer que a transparência é o melhor combate à corrupção e "fechar" o acesso aos gastos com viagens da comitiva presidencial não é bem o que se entende por uma fala coerente. Ou é má-fé ou uso indevido da paciência dos outros;

12) Cinismo II ? - Dizer que o dinheiro público (e não do "Governo Federal") gasto com os estádios é fruto de financiamento e que vai ser devolvido pelas empresas é brincar com a racionalidade dos que conhecem a história dos "perdões" de recursos públicos em nome do "interesse nacional". É preciso, sobre isso, um discurso mais claro, duro e transparente acerca dos reais benefícios que a Copa vai deixar para o país, de como esses recursos serão devolvidos e das razões para tanto atraso nas obras e liberação de recursos sem licitação;

13) O momento de "jogar com a platéia" - É próprio do discurso político apelar a "brincadeirinhas" para aliviar a pressão do momento. Lula foi o maior entre todos nesta "arte". Agora, apelar à nossa "alma" e nosso "jeito de ser" futebolístico ao dizer que participamos de todas as copas, ganhamos cinco delas e sempre fomos bem recebidos em todo lugar, é demais! Acho que 95% dos intelectuais petistas sempre foram radicalmente contrários ao uso ideológico do futebol na política. Por que isso agora? É a "Pátria de Chuteiras" de volta? O PT não consegue ser mais inteligente que isso? Para fechar, nada mais ideológico que dizer "... o Brasil fará uma grande copa...";

OK, presidente, podemos até tirar a camiseta branca das manifestações e vestir a amarela da seleção brasileira. Mas, coloque-se no lugar da população e veja se este seu pedido tem o mínimo de coerência, dada a urgência de resposta do Governo Federal às necessidades sociais e efetivo combate à corrupção. Ah, e por favor, peça a seus assessores e intelectuais para pararem de classificar de "udenismo moralista" a luta dos que são contra a corrupção, afinal, o dinheiro que lhe paga, e aos seus assessores, é nosso, do povo brasileiro.

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Todos nós, brasileiras e brasileiros, estamos acompanhando, com muita atenção, as manifestações que ocorrem no país. Elas mostram a força de nossa democracia e o desejo da juventude de fazer o Brasil avançar.

Se aproveitarmos bem o impulso desta nova energia política, poderemos fazer, melhor e mais rápido, muita coisa que o Brasil ainda não conseguiu realizar por causa de limitações políticas e econômicas. Mas, se deixarmos que a violência nos faça perder o rumo, estaremos não apenas desperdiçando uma grande oportunidade histórica, como também correndo o risco de colocar muita coisa a perder.

Como presidenta, eu tenho a obrigação tanto de ouvir a voz das ruas, como dialogar com todos os segmentos, mas tudo dentro dos primados da lei e da ordem, indispensáveis para a democracia.

O Brasil lutou muito para se tornar um país democrático. E também está lutando muito para se tornar um país mais justo. Não foi fácil chegar onde chegamos, como também não é fácil chegar onde desejam muitos dos que foram às ruas. Só tornaremos isso realidade se fortalecermos a democracia – o poder cidadão e os poderes da República.

Os manifestantes têm o direito e a liberdade de questionar e criticar tudo, de propor e exigir mudanças, de lutar por mais qualidade de vida, de defender com paixão suas ideias e propostas, mas precisam fazer isso de forma pacífica e ordeira.

O governo e a sociedade não podem aceitar que uma minoria violenta e autoritária destrua o patrimônio público e privado, ataque templos, incendeie carros, apedreje ônibus e tente levar o caos aos nossos principais centros urbanos. Essa violência, promovida por uma pequena minoria, não pode manchar um movimento pacífico e democrático. Não podemos conviver com essa violência que envergonha o Brasil. Todas as instituições e os órgãos da Segurança Pública têm o dever de coibir, dentro dos limites da lei, toda forma de violência e vandalismo.

Com equilíbrio e serenidade, porém, com firmeza, vamos continuar garantindo o direito e a liberdade de todos. Asseguro a vocês: vamos manter a ordem.

Brasileiras e brasileiros,

As manifestações dessa semana trouxeram importantes lições: as tarifas baixaram e as pautas dos manifestantes ganharam prioridade nacional. Temos que aproveitar o vigor destas manifestações para produzir mais mudanças, mudanças que beneficiem o conjunto da população brasileira.
A minha geração lutou muito para que a voz das ruas fosse ouvida. Muitos foram perseguidos, torturados e morreram por isso. A voz das ruas precisa ser ouvida e respeitada, e ela não pode ser confundida com o barulho e a truculência de alguns arruaceiros.

Sou a presidenta de todos os brasileiros, dos que se manifestam e dos que não se manifestam. A mensagem direta das ruas é pacífica e democrática.
Ela reivindica um combate sistemático à corrupção e ao desvio de recursos públicos. Todos me conhecem. Disso eu não abro mão.

Esta mensagem exige serviços públicos de mais qualidade. Ela quer escolas de qualidade; ela quer atendimento de saúde de qualidade; ela quer um transporte público melhor e a preço justo; ela quer mais segurança. Ela quer mais. E para dar mais, as instituições e os governos devem mudar.
Irei conversar, nos próximos dias, com os chefes dos outros poderes para somarmos esforços. Vou convidar os governadores e os prefeitos das principais cidades do país para um grande pacto em torno da melhoria dos serviços públicos.

O foco será: primeiro, a elaboração do Plano Nacional de Mobilidade Urbana, que privilegie o transporte coletivo. Segundo, a destinação de cem por cento dos recursos do petróleo para a educação. Terceiro, trazer de imediato milhares de médicos do exterior para ampliar o atendimento do Sistema Único de Saúde, o SUS.

Anuncio que vou receber os líderes das manifestações pacíficas, os representantes das organizações de jovens, das entidades sindicais, dos movimentos de trabalhadores, das associações populares. Precisamos de suas contribuições, reflexões e experiências, de sua energia e criatividade, de sua aposta no futuro e de sua capacidade de questionar erros do passado e do presente.

Brasileiras e brasileiros,

Precisamos oxigenar o nosso sistema político. Encontrar mecanismos que tornem nossas instituições mais transparentes, mais resistentes aos malfeitos e, acima de tudo, mais permeáveis à influência da sociedade. É a cidadania, e não o poder econômico, quem deve ser ouvido em primeiro lugar.

Quero contribuir para a construção de uma ampla e profunda reforma política, que amplie a participação popular. É um equívoco achar que qualquer país possa prescindir de partidos e, sobretudo, do voto popular, base de qualquer processo democrático. Temos de fazer um esforço para que o cidadão tenha mecanismos de controle mais abrangentes sobre os seus representantes.

Precisamos muito, mas muito mesmo, de formas mais eficazes de combate à corrupção. A Lei de Acesso à Informação, sancionada no meu governo, deve ser ampliada para todos os poderes da República e instâncias federativas. Ela é um poderoso instrumento do cidadão para fiscalizar o uso correto do dinheiro público. Aliás, a melhor forma de combater a corrupção é com transparência e rigor.

Em relação à Copa, quero esclarecer que o dinheiro do governo federal, gasto com as arenas é fruto de financiamento que será devidamente pago pelas empresas e os governos que estão explorando estes estádios. Jamais permitiria que esses recursos saíssem do orçamento público federal, prejudicando setores prioritários como a Saúde e a Educação.

Na realidade, nós ampliamos bastante os gastos com Saúde e Educação, e vamos ampliar cada vez mais. Confio que o Congresso Nacional aprovará o projeto que apresentei para que todos os royalties do petróleo sejam gastos exclusivamente com a Educação.

Não posso deixar de mencionar um tema muito importante, que tem a ver com a nossa alma e o nosso jeito de ser. O Brasil, único país que participou de todas as Copas, cinco vezes campeão mundial, sempre foi muito bem recebido em toda parte. Precisamos dar aos nossos povos irmãos a mesma acolhida generosa que recebemos deles. Respeito, carinho e alegria, é assim que devemos tratar os nossos hóspedes. O futebol e o esporte são símbolos de paz e convivência pacífica entre os povos. O Brasil merece e vai fazer uma grande Copa.

Minhas amigas e meus amigos,

Eu quero repetir que o meu governo está ouvindo as vozes democráticas que pedem mudança. Eu quero dizer a vocês que foram pacificamente às ruas: eu estou ouvindo vocês! E não vou transigir com a violência e a arruaça.

Será sempre em paz, com liberdade e democracia que vamos continuar construindo juntos este nosso grande país.

Boa noite!

sexta-feira, 21 de junho de 2013

"Como era verde meu vale" e a função integradora das lembranças

Como era verde meu vale” (1941, EUA, dir. de John Ford, com Maurren O’ Hara) é daqueles filmes que ficam para sempre na sua vida. Lembro que era moleque e ouvi meu pai comentando umas duas ou três vezes sobre este filme. E notava que ele falava com certo prazer no rosto. Passados muitos anos lembrei deste filme e resolvi assisti-lo, não só por curiosidade, mas por saudades mesmo do meu pai. 
Apesar de sempre nos falarmos, moramos em cidades distintas, e ele sempre me deixa muitas saudades, pois sua presença física é muito marcante, além de ser uma das poucas pessoas que conheci nesta vida com tanto entusiasmo. Claro que, inevitavelmente, isto faz dele o meu melhor modelo de identificação. Então, o fato é que só assisti a este filme a uns cinco anos atrás, e depois o revi mais duas vezes, principalmente quando a saudade aperta.
Trata-se de um filme que já se tornou clássico. E, claro, é um filme em P&B e com forte trilha sonora e, além do mais, do mestre John Ford. Alguns críticos o situam como um filme com forte teor conservador e ideológico, mas o que importa é quando a arte nos toca, de uma forma específica, pois ela fala de nós mesmos. Talvez por isso eu nunca dê bola para "críticos de cinema", afinal, na imensa maioria das vezes, não conseguem mesmo “sentir” o filme, daí se apegam a questões técnicas que, para quem assiste, na maioria das vezes, são secundárias.
O filme nos fala da importância das lembranças, da memória. Ele é todo fruto da restauração da infância a partir dos olhos de quem já está mais velho. Talvez por isso seu encanto, pois estamos lidando com fantasias infantis, aquelas que não nos deixam nunca… ainda bem! É um filme, portanto, que nos inspira saudades, mesmo de algo que não se viveu. Que nos inspira fraternidade, mesmo pelos que não estão ao nosso lado, e que nos inspira gratidão, mesmo pelo que não recebemos.
Gostaria de compartilhar este momento inicial do filme, marcante. No início, nosso personagem principal, já adulto, nos diz:
estou embrulhando meus pertences no chale que minha mãe costumava usar quando ia ao mercado. Estou indo embora do meu vale. Dessa vez nunca mais voltarei. Deixo atrás de mim meus cinquenta anos de lembranças. É estranho que a memória esqueça tanto do que aconteceu apenas a poucos momentos e guarde claro e brilhante o que aconteceu a anos com homens e mulheres a muito tempo mortos. Contudo, quem vai dizer o que é real e o que não é. Posso crer que meus amigos estão mortos quando suas vozes ainda são uma glória em meus ouvidos? Não! Ergo-me para dizer não, e não de novo, pois eles permanecem uma verdade viva em minha mente. Não há cercas em torno do tempo que se passou. Pode-se voltar e escolher o trecho que quiser caso ainda se lembre. Por isso, fecho os olhos no meu vale como é hoje e ele some e o vejo como era na minha infância. Todo ele verde e impregnado da força da terra…tudo que aprendi como menino veio de meu pai, e jamais qualquer coisa que ele me disse acabou sendo errada ou inútil. As lições simples que ele me deu estão claras e vivas em minha mente como se as tivesse ouvido ontem...
O que estamos fazendo com nossa memória, nossas lembranças? Vamos permitir mesmo que a aceleração do tempo atual as destrua? Ora, que o tempo voe e destrua tudo o que tenho, mas eu continuarei a lembrar… e sentir saudades, não do que tive, mas do que vivi. A vida não é só este “presente” acelerado e esquizofrênico, é muito mais, um “passado” que nos tornou homens e mulheres. O que vamos fazer hoje e daqui para frente, depende muito de nossa capacidade de preservar nossas lembranças e sabermos quem fomos.
Nas lembranças podemos reconstruir o passado da forma que mais nos contenta e nos deixa feliz. Daí a saudade, a saudade de tempos que fomos felizes e que nos dão a certeza de que a vida valeu a pena. Saudade de um tempo que a vida era mais simples, mais fácil de dizer o que sentíamos. 
Nas lembranças esse tempo retorna, a todo instante, por vezes de maneira perfeita. Fechando os olhos agora, também vejo em minhas lembranças todos reunidos. Meu pai ao meu lado, segurando minha mão e guiando-me, os irmãos felizes e brincando. A mãe cuidando de todos. Enfim, que saudades! Que saudades de algo que nem sei ao certo se vivi. O que sei é que homens como meu pai jamais vão morrer. Ele estará sempre vivo em mim, no meu filho, e no filho de meu filho.
É essa permanência das lembranças que nos torna fortes, e que dá à vida um significado especial, muito além das banalidades que ela nos apresenta a todo dia, como novidades. Aquilo que passa pela minha vida… e fica… é aquilo que me constitui, que me integra, garantindo uma origem e uma história.
Bem, não preciso dizer que gostei do filme!

domingo, 16 de junho de 2013

O "sucesso" e o "fracasso" da ideologia consumista no "caos" das manifestações

Em tempos de manifestações de toda ordem, lembrei de um texto do Slavoj Zizek, publicado na Revista CULT*, n. 161, de setembro/2011, cujo título é: "Saqueadores, uni-vos!". Nele, Zizek discute rapidamente a natureza de algumas manifestações sociais como as de Paris em 2005, e as de Londres e Egito em 2011, e faz uma  associação entre os tumultos e a ideologia do consumo.

O texto é interessante porque traz à tona um assunto que geralmente escapa nas análises que se faz sobre os movimentos sociais recentes, como estes que tomam conta de São Paulo nos últimos dias. Acredito que todos concordam que não há uma análise que dê conta completamente do que está acontecendo. As redes sociais estão "perplexas" e proliferam as tentativas de se entender os acontecimentos recentes. 

Neste "caos" interpretativo proliferam explicações de toda ordem: "os manifestantes são apenas baderneiros"; "trata-se de um ataque a Alckmin visando 2014"; "a PM continua fascista"; "é o Brasil abrindo o olho contra a corrupção"; "são pequenos grupos tentando manipular as massas"... Enfim, talvez exista um pouco de verdade em tudo isso. Mas, o fato é que há um sentimento de "errância" nas análises e ninguém parece dar conta da explicação. Pior, com a dinâmica dos próprios movimentos, alterando suas "palavras de ordem", a tentativa de compreensão exige mais cuidados.

Assim, o texto de Zizek é só mais um no meio do turbilhão e traz algo novo para se pensar também. De cara, ele faz uma constatação: Segundo ele, os mais conservadores  enxergam nestes tumultos (incêndios, saques, destruições, etc.) somente caos e a falta de disciplina e responsabilidade, por outro lado, a esquerda enxerga somente o fracasso do bem-estar da população, mal tratada pelos que estão no poder, como no exemplo de Alckmin, aqui em São Paulo, atacado pela esquerda. Para Zizek, os diagnósticos conservadores e da esquerda são equivocados.

Por outro lado, segundo Zizek, não dá para se falar em "sujeitos revolucionários", pois estas manifestações (e aí incluo as de São Paulo e as demais que proliferam pelo Brasil afora) estariam muito mais para aquilo que Hegel chamou de "negatividade abstrata", ou seja, uma turba que se expressa de modo "violento" e "irracional", sem reivindicar nada de forma clara. Não dá pra esquecer que a luta pelos R$ 0,20 já se transformou em outra coisa que não sabemos bem o que é. 

Zizek nos lembra que, já a algum tempo vivemos sob o predomínio de teses como a do "fim da ideologia" e a ascensão da "sociedade pós-ideológica". Ora, o que é isso? Anunciou-se o predomínio do mercado, o império do consumismo. Chegou-se a imaginar o "fim da história". Besteira!

estágio atual do capitalismo se sustenta, portanto, sobre uma ideologia que convida todos a escolher e a consumir. Mais do que a classes ou grupos sociais , então, pertencemos ao mundo do consumo. E é neste mundo do consumo que vivemos a plenitude da "alienação". E a esquerda que hoje governa o Brasil, através do PT, não escapa à isso. É patrocinadora, por excelência da ideologia do consumo. Ou sobre o que está assentada toda a política econômica e o "sucesso" eleitoral de Lula e Dilma? Dessa forma, a ideologia consumista, através da esquerda, parece estar realizando de forma perfeita e acabada aquilo que Marx já denunciava como "alienação".

Este é o "sucesso" da ideologia consumista. Ela nos acomodou, nos tirou a vontade de sonhar, nos tirou a utopia pela mudança, o que faz é atiçar nossos desejos por aquilo que é novo, desde que oferecido pelo mercado.

Ora, enquanto dá para consumir, ótimo, vamos satisfazendo nossos desejos, por mais absurdos que sejam. Mas, e quanto àquelas pessoas tidas como "deficientes" e "desqualificadas" do ponto de vista do mercado? O que o mercado oferece para elas? Nada! O Estado, com seus populismos, ainda tenta ter uma postura paternalista, que sabemos insuficiente e distorcida. No caso brasileiro, a proliferação de "bolsas" visa simplesmente minimizar esse impacto que vem de baixo para cima. Não é emancipador!

O fato é que, no mercado e no paraíso do consumo, não há espaço para todos, pois a base do sistema é competitiva, e destrói sempre algo para que outra coisa sobreviva. E, para complicar ainda mais a situação, por cima desta ideologia do consumo existe outra, a "ideologia da liberdade", apoiada, evidentemente, na tese da oportunidade de consumo, ou seja, liberdade para escolher e consumir. Mas, não dá para todos. E aí? O que fazer? Ela, a "turba" parece estar fazendo algo.

Por vezes explodem em ondas de violência (como as manifestações) mas, no geral, essa "violência" vem como uma maré que, lentamente, parece ir engolindo a sociabilidade humana no nosso cotidiano (como no caso da criminalidade, que só cresce). Por isso, as manifestações causam raiva e indignação no início, mas, com o passar dos dias, vão causando perplexidade e exigindo maior atenção e explicação. E mais, vão gerando fortes sentimentos de "identificação", pois acabamos por nos enxergar "dentro" dela, por algum motivo, por alguma forte insatisfação. Por isso essas manifestações parecem difusas, mas não são vazias de conteúdo.

Os tumultos vêm daí, sem um sentido lógico, verdadeiro caos, sem uma direção certa, sem uma comunicação clara. Este é o "fracasso" da ideologia consumista. Ela obtém o sucesso quando nos aliena e domestica, mas fracassa quando não permite que todos possam consumir.

No fundo, o que precisa ser discutido, fortemente, é a democracia que, segundo Zizek, se assemelha àquela jangadinha que desliza em meio a um mar tumultuado repleto de ameaças e seduções paternalistas e autoritárias, e não cumpre seu papel de criar mais cidadãos que consumidores. É preciso transformá-la em uma embarcação maior, mais sólida, que resista a estas seduções populistas às quais parece que nenhum discurso escapa.

Para isso, é preciso "recuperar a política". Talvez estas manifestações não saibam exatamente contra o que estão lutando, mas o que importa? Elas sabem que a democracia está assentada sobre bases muito frágeis. De que adianta dizer que a democracia foi conquistada a "duras penas"? De que adianta pedir para que as manifestações sejam de "paz". Há uma "violência" implícita na ideologia do consumo e na forma como a democracia se dá no cotidiano que, para muitos, vai ficando cada vez mais clara. 

E aí? O que prometer e oferecer em troca para que essas manifestações saiam das ruas e voltem para casa? Talvez uma democracia mais clara, transparente, efetivamente inclusiva, com políticas públicas centradas no cidadão, respeito ao dinheiro público - não há garantias para que nada disso funcione e acalme a todos, mas pode ser um bom começo.

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O Estadão e a cobertura da onda de protestos em São Paulo: do "vandalismo" à negociação

Ninguém ficou imune à onda de manifestações nestas últimas duas semanas. Mesmo quem somente observava, lançou um olhar mais atento tentando entender o que estava acontecendo. No meu caso, gostaria de contribuir com o que faço rotineiramente, ou seja, nesse caso específico, verificar as principais "reações" do Estadão às manifestações ocorridas, sem me preocupar, entretanto, com o debate interno entre colunistas e colaboradores. O que ganha importância, aqui, são seus títulos de capa, manchetes internas e editoriais. Como escrevi isto hoje, 16.06, pela manhã, véspera da 5a. manifestação, trata-se de algo escrito em meio a um rio caudaloso que não cessa. Portanto, é importante que, depois, venha a ser revisto, ou completado.

Tivemos até aqui quatro manifestações em São Paulo, nos dias 6, 7, 11 e 13 e o maior interesse é mostrar que, não somente as manifestações "evoluíram" na sua dinâmica interna, como a própria cobertura do Estadão foi assumindo outras conotações ao longo deste período. Claro que, em meio a tudo isto, é visível que a própria opinião pública, que não tem chances de ficar imune à discussão, tenha, também, a sua dinâmica na forma de entender e encarar as manifestações.

Estou falando, portanto, de um espaço público de discussão da política onde os principais atores (políticos, manifestantes, opinião pública e imprensa) mutuamente se influenciam ao longo de todo o processo. Querer, portanto, analisar a situação partindo de estereótipos traçados para cada um destes atores é, como sempre, incorrer em gravíssimo erro metodológico e de análise. Como, por exemplo, partir do suposto que um governo por ser do PSDB está mais propenso a "agredir" os manifestantes. O que aconteceu em Brasília, momentos antes do jogo da seleção brasileira, mostra que esta é uma questão complexa. Este é o "jogo de espelhos" do qual fala P. Charaudeau quando observa a relação entre a mídia e os demais atores da cena política: todos se influenciam mutuamente e criam dinâmicas específicas de discurso e ação.

Assim, todos influenciam-se mutuamente provocando alterações, por vezes substanciais, em sua atuação e seu discurso. O Movimento Passe Livre, por exemplo, passou de uma defesa da redução da passagem para algo mais genérico do tipo "lutamos pela melhoria do transporte", e se depara, também, com a questão da luta contra a corrupção no governo federal. Dado o caráter nacional, e internacional, das manifestações (solidariedades de brasileiros em vários países), o "tema unificador" caminha para ser o da "corrupção" e para ficar mais colado ao "Governo Dilma".

Da parte dos políticos, existe uma luta no sentido de evitar colocar-se como o alvo principal do movimento. E este acontecimento de ontem em Brasília, com ações duras da polícia contra manifestantes e as estonteantes vaias contra a presidente Dilma, só deixaram o quadro ainda mais confuso para todos. Contra quem, ou o que, estas manifestações lutam? Os movimentos do prefeito Haddad são um exemplo: no início mostrou disposição para o diálogo, depois seguiu a linha do governador Alckmin de mostrar-se resistente às manifestações, depois tentou descolar-se do problema e criticar severamente a ação policial. Pelo meio do caminho Haddad recebeu "apoio" do Ministro da Justiça Eduardo Cardozo em sua tentativa de culpabilizar a ação da PM e, por conseguinte, o governador Alckmin. São exemplos de como as posturas de todos os atores são dinâmicas e precisam ser captadas neste dinamismo, para que as análises não se tornem apenas caricaturas do real.

Mas, vou me concentrar na dinâmica específica do Estadão.

Numa tentativa de resumir esta dinâmica em uma frase, diria que a cobertura do Estadão acerca das manifestações passou, até o momento, por três fases distintas, mas relacionadas: a da indignação e raiva; a de maior percepção da realidade e do "outro"; e a da negociação e aceitação do fato como legítimo. Vejamos de forma mais didática.

A 1a. manifestação ocorreu no dia 6. Saindo das proximidades do Anhangabaú, chega a interditar avenidas como a 23 de Maio, 9 de Julho e Paulista, alcança o Shopping Paulista e estações do Metrô (Trianon, Brigadeiro e Vergueiro). A ênfase da cobertura do Estadão, no dia seguinte, dia 7, se dá sobre o "caos". O título de capa foi Protesto contra tarifa acaba em depredação e caos em SP e a principal manchete interna foi Protesto contra tarifa acaba em caos, fogo e depredação no centro, numa reafirmação do título de capa. As ilustrações, tanto de capa, quanto internas foram no sentido de evidenciar a "destruição" (jovens destruindo uma cabine da PM, estação do metrô depredada, barricadas com fogo no meio da rua). Apesar do impacto trazido pelas manchetes e pelas fotografias não houve manifestação do jornal através de editorial.

A 2a. manifestação ocorreu no dia seguinte, dia 7. Dessa vez, foi a Marginal do Pinheiros que foi afetada. Parte da estação Faria Lima do Metrô foi depredada e alguns alcançaram a av. Paulista, mas os confrontos foram mais reduzidos. No dia seguinte, dia 8, Estadão trouxe como título de capa: Protesto fecha a Marginal e lentidão chega a 226 km. Internamente, a principal manchete foi: No 2o. dia de confronto e destruição, protesto fecha Marginal do Pinheiros. A ênfase da cobertura continua sendo a "destruição", mas dessa vez, mais sob a ótica dos "engarrafamentos" causados e da perturbação da ordem dos habitantes da cidade. Uma "lógica" que sempre vem à tona quando o assunto é alguma das Marginais, que escoam grande parte do fluxo de carros na cidade. natural, portanto, que, dessa vez, as cenas de "destruição" dessem maior espaço às ilustrações da própria mobilização das pessoas. Recebe bom destaque, também, a iniciativa de se "cobrar" do Movimento Passe Livre, o prejuízo financeiro, principalmente da av. Paulista, e uma entrevista onde o prefeito Haddad diz que irá recorrer à Presidente Dilma para baixar a passagem. Pela primeira vez, o jornal se posiciona em termos editoriais: Puro vandalismo é o título do editorial. "Festival de vandalismo", "cidade refém", "bandos de irresponsáveis travestidos de manifestantes", "atrevimento dos manifestantes", "aterrorizar os passantes", "PM recebida a pedradas", "seus militantes são radicais". São estes os termos que definem o editorial que finaliza com uma forte crítica ao prefeito Haddad que "em vez de condenar o vandalismo se apressou a informar que está aberto ao diálogo". O apelo do jornal é para que as autoridades políticas tenham "firmeza" na manutenção da ordem.

A 3a. manifestação ocorreu no dia 11. Nos dias 09, 10 e 11 o jornal não trouxe em sua capa nenhum título com referências às manifestações. Apenas no dia 11, dia marcado para a terceira manifestação em SP, o jornal traz uma impactante foto do confronto ocorrido na véspera, no RJ, pelos mesmos motivos. Dessa vez, reunidos na av. Paulista, os manifestantes foram barrados e seguiram para o Parque D. Pedro II onde se deram choques e, ao final, retornaram para a av. Paulista onde os conflitos se intensificaram no final da noite. No dia seguinte, dia 12, o Estadão trouxe como título de capa: Maior protesto contra tarifas tem bombas e depredação. E, internamente, a principal manchete foi: Fogo, bombas e depredação no maior protesto contra as tarifas.

Entretanto, apesar de ainda trazer as ilustrações impactantes de policiais em choque direto com manifestantes, e estes pixando e colocando fogo em um ônibus, a cobertura do jornal começou a "notar" outras coisas além da "destruição" em si. Fala-se muito, por exemplo, do crescimento do movimento e da adesão de outras entidades e grupos sociais. O jornal dá destaque para a "irritação" do prefeito Haddad quando soube das depredações e sua disposição de crítica às manifestações.

Na quinta-feira, dia 13, ocorre a 4a. manifestação. Indiscutivelmente, os acontecimentos ganham ares de "espetacularização". As TVs praticamente transmitem "ao vivo" todo o desenrolar dos fatos. Claro que todo o "caos" e "imprevisibilidade" típicos de movimentos como este são passados para a TV que tenta, sem grande sucesso, acompanhar e dar um "sentido" a toda a cobertura. Vive-se, então, o momento em que o acontecimento se transforma em "espetáculo", o que foi reforçado pelo fato da manifestação em São Paulo ter sido simultânea com a ocorrida no Rio de Janeiro, e de haver uma maior preocupação dos  manifestantes em deixar evidente "situações de paz" retratadas pela mídia através de "gritos contra a violência", "flores dadas aos policiais" e pelas cenas dos próprios repórteres machucados.

O que se percebe, em meio a opinião pública, é que a manifestação vai ganhando ares de "humanidade", ou seja, deixa-se de se observar somente o "caos" e a "destruição" e passa-se a notar o elemento "humano", a pessoa, ou seja, os efeitos diretos sobre o policial, o manifestante, o passante, o repórter. Isto vai ser percebido no título de capa do Estadão no dia seguinte, dia 14: Confronto fere mais de 100; paulistano vive dia de caos. A mudança na cobertura também se nota com as principais manchetes internas: Paulistano fica "refém" de bombas, gás e tiros de borracha em novo confronto; Ação deixa 105 feridos, repórter é atingida no olho; 130 manifestantes são detidos e lotam DP; Haddad critica possível excesso da força policial.

Ou seja, o "caos" continua sendo retratado, mas sob um olhar distinto.  Ele traz prejuízos, mas não só à cidade e seus moradores. Os próprios protagonistas da batalha, policiais, manifestantes e jornalistas (que ficam entre eles) surgem agora como "vítimas" que não podem ser ignoradas. É nesse contexto que o jornal começa a dar mais atenção àquela violência, potencialmente maior, que vem da polícia, com suas bombas, gás e tiros de borracha). Entretanto, nenhum pronunciamento do jornal através de editorial.

No dia seguinte, dia 15, o jornal traz em seu título de capa: Alckmin vê "ação política" e Haddad marca reunião. As principais manchetes internas são: Alckmin diz que a ação foi política e Haddad marca reunião após protesto; Ministros criticam intervenção policial após protesto; Repressão da PM faz apoio crescer. Além disso, o jornal traz um editorial (Entender as Manifestações) que mostra claramente que a cobertura não é estática, prisioneira de uma opinião, e sim dinâmica, acompanhando, forçosamente ou não, a dinâmica dos acontecimentos e sua ressonância na opinião pública.

O editorial aponta para a necessidade de um "esforço de compreensão do que exatamente se passa". A "insistência" das manifestações parece ter causado certa perplexidade na cobertura do jornal e percebeu-se que a forma como a PM se dispôs a manter a ordem acabou por causar maior agitação. Para isso, o jornal usou o número de feridos e de detentos. Nesse sentido o jornal faz um apelo à PM para manter o "sangue frio" e finaliza mostrando o quanto as atitudes do prefeito Haddad não estão sendo "nem um pouco claras", mostrando uma ida e vinda em sua postura, ora contrária, ora aberta ao diálogo, como se não quisesse "pagar o preço de atitudes nítidas". 

Esses exemplos já mostram o dinamismo de uma cobertura jornalística.

Neste domingo, momento de interregno entre as manifestações, o destaque não poderia ser outro, e não somente no Estadão. As 3 ondas de vaias que a Presidente Dilma sofreu na abertura da Copa das Confederações em Brasília tomam conta dos noticiários e das redes sociais, mostrando que, muito além de "polícia fascista do Alckmin" ou "fim do aumento de R$ 0,20", existem outras fortes críticas ocorrendo neste momento. 

Talvez estejamos vivendo um momento especial. Daqueles em que os políticos e a mídia deixam o lugar de protagonistas do espaço público de discussão e abrem espaço para as manifestações e a opinião pública que, mesmo em seu caráter difuso, "faz algo acontecer" e faz com que os discursos de políticos e da mídia tenham que ser mais dinâmicos talvez do que gostariam, de fato.

Bem, mas pelo que parece, só estamos no meio do caminho. Para amanhã está marcada a 5a. manifestação.

domingo, 2 de junho de 2013

Pais e Filhos: chega de tantas "desculpas"

Outro dia, assistindo ao programa na TV com o R. Cabrini, vi o quanto anda pecária nossa educação nas escolas públicas, principalmente. Digo principalmente, não exclusivamente, pois problemas muito sérios existem nas escolas em geral. Brigas contínuas entre alunos, presença da droga dentro da escola, total falta de controle por parte de diretorias, conflitos severos entre alunos e professores. Tudo isso revelando um quadro de indisciplina e apatia crescente e sem controle algum.

De imediato, pensei na total perda de autoridade por parte dos professores, e fiquei me perguntando, onde estão os pais dessas crianças e adolescentes? Sim, porque limites são colocados dentro de casa. Esperar que a escola faça isso é de um erro brutal para a educação de crianças e adolescentes. Mas, onde estão os pais dessas crianças e adolescentes?

Se ouvirmos os próprios pais vamos ver que algumas respostas se repetem: a mãe diz que é sozinha e não consegue controlar o filho (tentando chamar para si uma certa complacência); outros dizem que não conseguem impedir as "más companhias" (tentando transferir para os outros certas culpas), a maioria talvez diga que "está trabalhando" e não consegue acompanhar (mostrando a opção que fizeram pelo aporte exclusivamente "material"). Enfim, parece que estou sendo "duro", mas são todas "desculpas". É evidente que um caso ou outro se revela fora do controle dos pais, mas um caso ou outro. O que percebo é que tais "desculpas" estão se institucionalizando.

Por outro lado, se percebe uma faceta ainda mais monstruosa. Pais que, desde muito cedo têm filhos e que praticamente crescem e amadurecem "juntos". Ora, tudo isto conspira para uma imensa ausência de funções materna e paterna dentro da própria casa. E as crianças e adolescentes vão ficando por aí, ao sabor dos ventos que sopram.

Parece que estou sendo "duro" com os pais? Sim, estou! Ou a quem mais podemos chamar à responsabilidade nesses casos? Ou os pais não são os principais e quase exclusivos responsáveis pela educação de seus filhos? Mudou algo e não fui avisado?

Chega. É preciso falar duro, chamar à responsabilidade. Dizer claramente: "essa criança é sua, se responsabilize por ela. Lute contra o mundo, mas se responsabilize por ela". Muitos vão dizer, mas que estrutura os pais possuem para isso? Em primeiro lugar, pais não precisam ser ricos para dar uma boa educação (uma questão não tem nada a ver com a outra), e em segundo lugar, pais não precisam ter educação formal para educarem bem (estamos falando de valores e ética e isso não se aprende em escola).

Onde estão aquelas ideias que os pais tinham, antes, de que iam preparar seus filhos para serem pessoas melhores que eles? Onde foi parar este pensamento? Talvez tenha se perdido em meio à expansão consumista que trouxe consigo um rebaixamento cultural e de perspectivas sem precedentes. mas, nada disso serve de desculpa, pois, no fundo, a questão é entre os pais e os filhos. Que relação é essa de paternidade / maternidade que está se evaporando?

O resultado já conhecemos. A falência da autoridade paterna se reflete diretamente na escola com o absoluto desrespeito ao professor e qualquer noção de "limite". Pais estão tendo filhos como que "por acaso". Melhor que não os tivessem, pois não se movem para dar a eles um melhor preparo. São os pais "irresponsáveis" que, por algum motivo, não internalizaram a noção de paternidade / maternidade, e não possuem a mínima noção do que é criar um filho e prepará-lo para a vida em sociedade. E essa equação parece só estar proliferando, pois uma geração de filhos sem limites só pode resultar em uma geração de adultos irresponsáveis (que não se responsabilizam pelos seus atos em sociedade).

Não dá mais pra ficar "passando a mão na cabeça", é preciso adotar um discurso mais "duro", direto, de responsabilização, pois independentemente do que os pais façam, independentemente do tempo que tenham a dispor para os filhos, vão ter que ser inventivos o suficiente para dar a eles afeto e limites. Do que mais, essencialmente, as crianças vão precisar, no futuro?

Não estou atribuindo uma "culpa" aos pais. Mas os estou relembrando de suas "responsabilidades" que, no fundo, são intransferíveis. Não é o governo ou a escola que são responsáveis. São os próprios pais, em última instância. É deles que tem que vir a conversa, o acompanhamento, o afeto, a compreensão, a direção e os limites. Sem isso, a criança e o adolescente "perdem-se" em seus caminhos, sem ter a chance de poder fazer as pazes consigo mesmo, com seus pais, e com a sociedade.

Só um detalhe, não estou escrevendo para pais "pobres", mas para "pais"!

sexta-feira, 31 de maio de 2013

"A Interpretação dos Sonhos" (Freud)

Algum tempo atrás o canal Discovery Civilization discorreu sobre o livro "A Interpretação dos Sonhos", de Freud, em sua série "Great Books". A intenção da série é levantar os principais aspectos de cada obra em questão. No caso deste livro de Freud os principais pontos comentados foram os seguintes.

De acordo com a série, haveria um lado obscuro onde se ocultam o medo, a luxúria, a raiva, desejos inconscientes que não repousam tranquilamente na psique humana e que, através do sonho poderiam ser acessados. O sonho seria aquele momento em que tais desejos inconscientes estariam em campo aberto e, com certa técnica psicanalítica poderiam ser desvendados em seus significados. 

O sonho é um terreno fantasioso onde as leis da lógica não se aplicam, mas o fato é que, depois de Freud, não foi mais tão fácil evitar nossa própria responsabilidade por nosso comportamento inconsciente. Não à toa a psicanálise se transformou em base de boa parte da cultura do século XX. Hitchcock, por exemplo, entre suas brilhantes obras, tentou mostrar um pouco disso em "Quando fala o coração" (Spellbound, 1945), com a lindíssima Ingrid Bergman. O trecho abaixo mostra um pouco dessa dinâmica da interpretação, em linhas muito gerais, evidentemente.


Dessa forma, os sonhos teriam forte papel na revelação de tramas ocultas no inconsciente e o procedimento técnico para essa revelação seria simples: lembrar do conteúdo manifesto do sonho e fazer associações de cada trecho com fatos conscientes, seguidas de interpretações - era a "livre associação" freudiana.

O "sonho de Irma" teria sido o sonho base de Freud que ilustrou este seu novo método, cuja formulação geral era a de que o sonho é a realização de um desejo. Foi isto que o teria inspirado a escrever "A Interpretação dos Sonhos", livro que, à época, vendeu muito pouco e deixou Freud acuado diante de boa parte dos médicos, que resistiam à nascente Psicanálise.

Sua interpretação dos sonhos, então, está totalmente baseada em sua concepção da natureza humana. Esta, para Freud, está sustentada em desejos reprimidos, procedimento necessário para a vida em sociedade, do contrário como sustentar o egoísmo total. É esta "repressão" que, incessantemente, alimenta nosso inconsciente.

Dessa forma, continua a série televisiva, Freud nos falaria, quando de sua análise do sonho, de uma parte da mente que chama de "censura". Parte essa, cuja função é a de impedir que sonhemos nossos desejos de forma literal, do contrário as angústias poderiam ser insuportáveis. Estamos no processo, então, de "elaboração" do sonho. Por isso os sonhos nos parecem tão "ilógicos" e "incompreensíveis".

Em seguida, com o recurso da "condensação", o sonho permitiria a combinação de múltiplos símbolos e imagens "aceitáveis" à censura. Ao final do processo, o ego trabalharia para dar um sentido aparente ao sonho. Desvendar esse sonho manifesto é que é fundamental para revelar o significado oculto latente. Como imaginar, a partir destas considerações que os sonhos ainda fossem mensagens divinas ou premonições? Não se trata, portanto, da mera interpretação de símbolos, mas da busca de seus significados.

Hoje, muitos já não consideram os sonhos tão importantes na psicanálise. pelo menos para aqueles que buscam respostas mais rápidas para acontecimentos mais correntes. Mas, os sonhos continuam a aparecer na clínica e, quando desvendados, auxiliam em muito os tratamentos.

O sonho, portanto, fala de nós mesmos, de nosso inconsciente. Nos fala daquilo que não tem data, mas que está presente e não nos deixa até que possamos lhe dar um significado. Conhecer a nós mesmos, portanto, passa, necessariamente, pela aventura que é buscar o seu próprio inconsciente. O sonho seria um dos caminhos mais interessantes para essa busca.

Como desconhecer o inconsciente? Só mesmo construindo uma versão de uma natureza humana completamente dominada pela razão. Muitos ainda tentam isto!

"Cidadão Kane": Todos temos o nosso Rosebud... ou não?

Depois de muitos anos, assisti novamente a Cidadão Kane (Orson Welles, 1941). Dizer que o filme é fantástico é chover no molhado. Está sempre nas listas de "melhores filmes" já produzidos. 
Mas, porque eu o acho fantástico? Todos devem ter o seu motivo e eu também tenho o meu. Pra me explicar melhor vou reproduzir um rápido diálogo de nosso personagem principal, Chales F. Kane e o seu "guardião" financeiro, o Sr. Bernstein.

  • Charles Foster Kane – … Sabe Sr. Bernstein, se eu não tivesse sido um homem tão rico eu poderia ter sido um grande homem…
  • Sr. Bernstein - O que teria gostado de ser?
  • Charles Foster Kane - Tudo o que você odeia!
Kane veio de uma infância pobre, com pais endividados, e construiu um império, acumulou riquezas e prazeres que nenhum mortal poderia sonhar. Mas, e aí? Ele passou a vida conquistando… e perdendo tudo, como em uma montanha russa. Sua insaciável busca, entretanto, não era pelo dinheiro. Não à toa, diz ao Sr. Bernstein: 
Não é difícil ganhar muito dinheiro… quando a única coisa que se quer é ganhar muito dinheiro.
Ao morrer e pronunciar a palavra “Rosebud”, nosso personagem simplesmente mostrou que existem coisas que precisamos e que não podemos simplesmente descartar nessa busca ensandecida por dinheiro e poder. Pior, essas coisas não podem ser "compradas", como querem acreditar aqueles que se entregam facilmente à crença de que "o dinheiro pode tudo". Foster Kane tentou comprar a tudo, mas o preço que pagava era sempre muito alto: sua infelicidade, sua ruína pessoal.
A incessante busca, mostrada pelo filme, para se desvendar o mistério do significado da palavra "Rosebud", dita por Kane quando de sua morte, revela a própria incapacidade da sociedade em perceber o beco sem saída em que cada vez mais estamos entrando: o da supervalorização da imagem e do sucesso. Quanta infelicidade isso está gerando. A busca incessante pelo significado da palavra é a busca que fazemos todos os dias por reencontrar algo que "perdemos" ou "deixamos de lado" em troca de alguma coisa.
Nesse sentido, a palavra “Rosebud” definia sim nosso personagem: Kane era um homem que tinha saudades de uma época em que fora feliz, quando criança, em sua família. Isso o atormentava, fazia de sua vida uma aparente felicidade, corroída por uma destrutividade interna silenciosa. Mas, no momento de sua morte, ele foi sincero consigo mesmo e "agarrou-se" à sua melhor lembrança, o seu "Rosebud".
Todos temos o nosso pequeno trenó (“Rosebud”), que nos lembra de uma felicidade absolutamente honesta… ou não? Só precisamos saber o que fazer com isso. Vamos descartá-lo? Ou vamos lutar para mantê-lo por perto, como uma lembrança e uma certeza de que a felicidade é possível, e está sempre nas coisas mais simples ao nosso redor?