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sábado, 16 de novembro de 2013

O "ciúme" sob o olhar da psicanálise (M. Blévis)

O ciúme não é uma exclusividade das relações amorosas, a experiência profissional mostra que está presente nas mais diversas interações em organizações, instituições, e no quadro geral de nossas relações sociais. Ou seja, faz parte do nosso dia a dia. Talvez seja por isso que o senso comum diz: "uma pitada de ciúme sempre faz bem a qualquer relação". Porém, a coisa não é tão simples assim. O que se vê no cotidiano é uma dificuldade em se saber qual o tamanho exato dessa "pitada" e, quando se extrapola, não são poucos os tormentos que surgem: narcisismo, masoquismo, sadismo, inveja, silêncio, enfim, muito sofrimento.
 
Em quase todos os casos, então, o que surge é um estado extraordinário marcado pelo "sofrimento ansioso" decorrente da ideia fixa de perder a pessoa querida. E quem vai negar que esta é uma de nossas desrazões mais corriqueiras? Uma autora que trata este tema com bastante propriedade é a psicanalista francesa Marcianne Blévis, autora de "O ciúme - delícias e tormentos", publicado por aqui pela Editora Martins Fontes, em 2009. Em seu livro, apresenta diversas situações concretas onde a patologia foi observada e tratada e, ao longo de suas exposições vai nos oferecendo uma ampla abordagem psicanalítica sobre o "ciúme". Vamos lá.
 
Em primeiro lugar, quem é o(a) ciumento(a)? Antes de mais nada, um "isolado" em seu pavor, um "inquieto" que sabe que, mais cedo ou mais tarde, vai ser traído e, por isso, ele vasculha os pequenos sinais de desamor. Se, em algumas vezes, sua profecia se realiza, ele erra quando não se enxerga como o principal responsável pelo seu infortúnio.
 
Mas, a sua regra é não romper, não conseguir separar-se, não realizar a "profecia", ficando sempre num clima de "suspensão". Nesse sentido, o ciúme é uma "droga", cujo vício, as vezes, é até compartilhado pelo parceiro (que torna-se dependente da vigilância, ou tão ciumento quanto). Uma droga sustentada pela necessidade de um vínculo fusional, violenta, que acaba por impedir o próprio amor, em troca de uma satisfação em ter a "posse de seu objeto". Vigiar, portanto, é uma forma de apaziguar o sofrimento, provocando uma excitação que substitui o erotismo. É por isso que é preciso, apreender suas causas, em vez de negar seus tormentos: o ciúme não está ligado apenas à perda efetiva daquele ou daquela a quem se ama, porém antecipa essa perda. E assim se confirma a total insegurança que corrói os ciumentos (p. 19).
 
Assim, o ciumento, em grande parte, se sente indigno de amor e constrói uma relação objetal equivocada onde sempre se coloca como não portador de algo que só outros possuem e por isso tanto teme. O que o psicanalista pode fazer? não acatar ao pé da letra as queixas do analisando e lhe apontar perguntas de uma forma que lhe permita remontar às origens de seu ciúme. Como é que sua mãe amou o menino que ele foi, desde sua chegada ao mundo? O pai deu-lhe apoio ou o abandonou, sem lhe dar a possibilidade de sentir qualquer orgulho? Ele pôde buscar ajuda com irmãos e irmãs? Cercou-se dessa preciosa família adotiva que são os colegas e os amigos? Em todo caso, por que ele não buscou, fora da posição de vítima, a solução para suas verdadeiras feridas? (p. 22).
 
Dessa forma, há uma clara questão envolvendo o amor-próprio, e suas próprias qualidades e virtudes. Ou seja, sua "doença" tem origem numa perda que ele não consegue expressar em palavras nem imaginar. Naquele a quem atormenta com seu amor, ele procura um bem que perdeu; enquanto o indizível sofrimento decorrente disso não for situado, ele não parará de temer as infidelidades futuras (p. 23).
 
Seja como for, o que o ciumento nos diz é que existe um "outro(a)" que lhe ameaça a ponto de retirar a pessoa amada. Quem é este outro(a)? Será que é alguém a quem ele deseja mesmo destruir ou pode ser uma espécie de "irmão", um "outro eu", por exemplo? Nesse caso, o(a) "outro(a) seria odiado justamente por ser amado demais. Assim, desalojado de um lugar do qual espera a restauração, e não a consideração de seus limites, o ciumento quer fundir-se com o objeto de sua paixão e exige, eternamente nostálgico, que o "envoltório volte a ser perfeito". Ele quer esquecer que há na origem de seu ciúme a estranheza inquietante do confronto com um outro diferente dele e, ao mesmo tempo, igual a ele (p. 25).
 
Um dos grandes desafios da psicanálise seria, justamente, o de devolver-lhe a linguagem amorosa da infância, despreocupada e livre, deixando-o mais apto para o amor. Claro que existe muito mais a ser dito pela psicanálise sobre o ciúmes, mas é um bom começo.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Uma rápida leitura: Paranóia (Laplanche e Pontalis)

 
Psicose crônica caracterizada por um delírio mais ou menos bem sistematizado, pelo predomínio da interpretação e pela ausência de enfraquecimento intelectual, e que geralmente não evolui para a deterioração (p. 334).
Esta é a definição de "Paranóia" encontrada no "Vocabulário da Psicanálise", dos autores citados no título deste post. Trata-se, então, em primeiro lugar, de uma patologia que se insere no grupo mais amplo das "psicoses", marcada, portanto, por delírios crônicos. Mas, dizer só isto não basta pois precisamos especificá-la melhor no interior desse amplo conjunto de patologias que é a "psicose". Em grego, a palavra paranóia significa "loucura" ou "desregramento do espírito" e Freud, naquilo que denominou paranóia, agrupou inúmeros delírios crônicos como os de "perseguição", os ligados à "erotomania", os de "ciúme" e os de "grandeza". A paranóia, portanto, é algo mais que simplesmente "mania de perseguição", como comumente se conhece.
 
Nesse sentido, Freud concordou com Kraepelin que já havia distinguido a paranóia das chamadas "demências precoces" (catatonia). Ambas, paranóia e demência precoce, compartilham delírios, mas jamais no mesmo nível de deterioração, pois, no caso da paranóia, se tratam de delírios mais sistematizados e eficazes. Esta é uma primeira grande distinção.
 
Mas, a paranóia também precisa ser bem definida no interior do campo das psicoses, até para não ser, como de fato é, frequentemente confundida com a "esquizofrenia", por exemplo. Ora, não é porque o delírio paranóico também produz uma "dissociação" com a realidade que ela pode ser confundida com a esquizofrenia, embora os sintomas possam combinar-se de diversas formas e proporções.
 
Mais precisamente, a paranóia se define, nas suas diversas modalidades delirantes, pelo seu caráter de defesa contra a homossexualidade. E temos que entender "homossexualidade" para além de sua conotação meramente sexual, ou seja, como "fantasia feminina", de "impotência".
 
É no estudo e desconstrução de seu delírio específico, portanto, que entenderemos melhor o funcionamento desta modalidade de psicose que é a paranóia.
 
A definição proposta pelos autores nos fornece um bom ponto de partida: trata-se de um delírio, bem sistematizado (pois é coerente), com forte caráter interpretativo (explica com veracidade a realidade) e ausência de enfraquecimento intelectual (gera convicções e certezas difíceis de serem abaladas). Por isso, a base do tratamento de um delírio paranóico é, justamente, sua desconstrução e revelação enquanto dissonante (incoerente) em relação á realidade. Tarefa difícil, mas não impossível.

A Demanda por "Reconhecimento" (Teoria Crítica e Psicanálise)

Certamente são muitas as demandas atuais da clínica psicanalítica e, em boa parte dos casos, é possível construir uma "ponte" entre a queixa individual e as questões sociais nas quais este indivíduo está colocado. Não é um exercício muito simples, mas considero necessário, até para vermos o que "é" do sujeito e o que "é" do social, sem nenhuma pretensão, é claro, que sejam esferas autônomas.
 
Uma destas demandas que a clínica psicanalítica mostra é a que vou chamar "Demanda por Reconhecimento", na qual existe uma luta do sujeito para emancipar-se através da (re)construção de sua identidade. Isto fica muito claro em inúmeros discursos que chegam à clínica psicanalítica. E é sobre ela que gostaria de fazer alguns comentários.
 
A "ponte" com o social pode ser feita através da Teoria Crítica (TC). O que é a Teoria Crítica? Em um rápido retrospecto, com o total auxílio da "apresentação" feita pelo professor Marcos Nobre, ao livro "Luta por Reconhecimento", de Axel Honneth, podemos dizer que, em 1924, foi fundado junto à Universidade de Frankfurt, na Alemanha, o Instituto de Pesquisa Social. Horkheimer assumiu sua direção em 1930 e propôs um programa interdisciplinar cuja referência teórica era o marxismo.
 
Nascia a TC que tanto influenciou o debate contemporâneo após a II Guerra. Buscava-se descrever o funcionamento da sociedade e, mais, compreendê-la criticamente à luz de uma possível emancipação. Esta entretanto, apresentava-se como "bloqueada" pela própria lógica da organização social.
 
A partir dos anos 40 Horkheimer e Adorno vão se distanciando dos diagnósticos e soluções marxistas e passam a dar a estas uma nova versão intelectual. Atualmente, Axel Honneth é um dos mais fortes expoentes da TC. Assim como Habermas, posicionou-se sempre em contraste com seus antecessores e apresentou sua teoria como solução para, justamente, os impasses detectados nas teorias anteriores - é essa postura de crítica interna da TC que me fascina metodologicamente, pois me parece muito mais científica e honesta do que ficar simplesmente, reproduzindo dogmas que, muitas vezes, já não explicam a realidade. Sua postura foi de procurar encontrar nos escritos de seus antecessores pistas e traços de um rumo teórico que não havia sido trilhado e que poderia ter evitado as dificuldades. Como diz o prof. Marcos Nobre:
Esses elementos negligenciados podem dar novo rumo à teoria social crítica,agora ancorada no processo de construção social da identidade (pessoal e coletiva) e que possa ter como sua gramática o processo da "luta" pela construção da identidade, entendida como uma "luta pelo reconhecimento" (p. 11, apresentação).
Mas, em que aspectos Honneth estaria confrontando Habermas e oferecendo novas respostas? Habermas havia, por sua vez, procurado criticar o diagnóstico de Horkheimer e Adorno em seu clássico "A Dialética do Esclarecimento" onde investigavam a "razão" humana e concluíam que a racionalidade "instrumental" era a forma estruturante e "única" da racionalidade social apresentada pelo "capitalismo administrado" que podiam observar à época.
 
Mas, aqui existiria uma "aporia" (um impasse), pois se a razão instrumental é a única no sistema e bloqueia toda e qualquer emancipação, como criticá-la? Para Habermas, insistir nessa aporia seria colocar em risco o próprio projeto da TC. É a partir daí que Habermas vai propor novo diagnóstico e recuperar a capacidade crítica da teoria. Aspectos decisivos das relações lhe pareciam estar sendo ignorados.
Ele pensou, então, em um novo conceito de "racionalidade". Habermas partiu do pressuposto que a racionalidade instrumental não deveria ser "demonizada", mas que deveria ter "freios", daí vir com o conceito de "racionalidade de dupla face", onde a "instrumental" convive coma "comunicativa".
 
A "instrumental" é uma racionalidade orientada para o "êxito",o que possibilita a reprodução material da sociedade. A "comunicativa", por sua vez, é orientada para o "entendimento", que possibilita a reprodução simbólica da sociedade. Uma, então, responde ao "sistema", outra ao "mundo da vida", das relações sociais.
Trata-se de apontar ara uma racionalidade cujo padrão não é o absoluto hegeliano ou do sujeito característico da "filosofia da práxis" sem, com isso, dar adeus à modernidade e seu projeto. Trata-se de mostrar que há vertentes do projeto, moderno que não foram levadas adiante (p. 14, apresentação).
A aporia, portanto, é um impasse, mas não uma impossibilidade, possui alternativas. A conjuntura de Habermas era distinta. Com o capitalismo sendo regulado pelo Estado, concluiu que aquelas tendências que poderiam levar à emancipação tinham sido neutralizadas (o colapso interno do sistema, e a organização do proletariado).
 
Algo disso já estava em Horkheimer e Adorno, mas Habermas não conclui que a emancipação estava definitivamente bloqueada, afinal, às tentativas de colonização do mundo da vida pelo sistema, estruturas da ação comunicativa iriam se opor.
 
Mas, para Honneth, faltava enfrentar o problema por inteiro. Tanto em "Dialética do Esclarecimento" quanto em "Teoria da Ação Comunicativa" (Habermas), haveria um déficit sociológico. Um exemplo está na própria distinção dual entre sistema e mundo da vida, muito mecânica, e não permeada pelo "conflito social".
 
Com isso, Habermas não conseguiu pensar o próprio sistema e sua lógica instrumental como resultados de permanentes conflitos sociais, capazes de moldá-lo de acordo com a correlação de forças políticas e sociais. O conflito é abstraído da teoria. Mas, se a base da interação é o conflito, sua gramática, segundo Honneth, seria a luta por reconhecimento.
 
O que Honneth faz, então, é o sentido inverso: partindo dos conflitos vai em busca das lógicas da sociedade. Não se interessa, entretanto, primeiramente, pelos conflitos pelo aumento de poder, mas...
interessam-lhe aqueles conflitos que se originam de uma experiência de desrespeito social, de um ataque à identidade pessoal ou coletiva, capaz de suscitar uma ação que busque restaurar relações de reconhecimento mútuo ou  justamente desenvolvê-las num nível evolutivo superior. Por nisso, para Honneth, é possível ver nas diversas lutas por reconhecimento uma força moral que impulsiona desenvolvimentos sociais (p. 18, apresentação).
Isso lhe vai exigir a análise do indivíduo a partir de 3 dimensões:
  • A esfera emotiva que permite ao indivíduo a confiança em si mesmo;
  • A esfera jurídico-moral em que o indivíduo é reconhecido como autônomo;
  • A esfera da estima social em que seus projetos de autorrealização pessoal são objetos de respeito solidário;
O que vemos, então, até aqui, é a recuperação que Honneth faz, no interior da TC, da ideia e do valor do "conflito social" (com sua gramática vinculada à luta pelo reconhecimento) para explicar a dinâmica da sociedade. Algo similar, um conflito de tal ordem, sem dúvida, ocorre na esfera psíquica. É esta gramática que inunda os conflitos sociais atuais e, a clínica psicanalítica.
 
O que podemos dizer, então, é que o indivíduo enfrenta uma dura batalha psicossocial em busca de reconhecimento, tanto de si mesmo, quanto social. Hoje, vivendo a sociedade que define a todos pelo "sucesso", o indivíduo, evidentemente, não encontra o seu lugar, o espaço necessário de reconhecimento em que possa atuar. Nos defrontamos, a todo instante, com a ameaça, ou com o próprio "fracasso", e isso destrói um pouco mais nossa própria confiança.
 
É nesta riquíssima interação entre o psíquico e o social, mediada, justamente, pelas relações emocionais e sociais, que encontramos a oportunidade, ou não, de nosso auto reconhecimento, base para que esse respeito seja solidário.
 
É aí que se constrói a ponte entre a "clínica" e o "social", entre o indivíduo e a sociedade. se não nos situarmos nessa metafórica ponte dificilmente poderemos enxergar o indivíduo em sua totalidade. Se é que isto é possível.
 
É no real, no social, que o psíquico transborda. E é neste terreno, absolutamente pantanoso, movediço, que temos que atuar para entender e auxiliar nessa reconstrução identitária. Só não podemos esquecer que também vivemos por sobre este mesmo terreno.
 
Em outros posts tentarei explicitar melhor essa "luta pelo reconhecimento" de Honneth.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Os homens e a questão da fidelidade

A fidelidade masculina é praticamente uma questão de honra para as mulheres, que parecem não querer abrir mão dessa exigência. Por outro lado, "traição" praticamente virou um sobrenome masculino. Diante de todo este quadro, os homens têm tido a oportunidade de se explicar? Não é uma tarefa fácil, praticamente para quem se dispõe a ser advogado do diabo.
 
O texto abaixo foi escrito a partir das considerações trazidas por Maryse Vaillant¹ e seu método foi o de, pós fazer a escuta (nem um pouco "moralista") de inúmeros casos, elencar aqueles que considerou de "infidelidade (ou fidelidade) extrema" e compreendê-los em seus pormenores para, a partir daí, lançar luz sobre as chamadas "pequenas fraquezas corriqueiras". Importante lembrar que a autora se concentrou nas uniões heterossexuais, plenamente estabelecidos. Sobre a escuta, ela nos diz:
Ao deixar que a história de cada um explique a aventura passageira, avassaladora ou discreta, que pode abalar um casal ou levá-lo à ruptura, sem dar definição a alguém, procurei as forças profundas que sustentam os discursos dos homens nos que diz respeito à sua maneira de conceber o compromisso, o amor e o casamento (p. 176).
Dentre os principais temas investigados podemos elencar os seguintes:
  • Que motivos levam um homem a enganar a mulher que ama?
  • Que motivos levam um homem a amar a mulher que engana?
  • Por que diversos maridos adúlteros jamais deixam suas esposas?
  • Que motivos levam as mulheres a praticamente não desconfiarem de quase nada?
  • Quais as dificuldades em manter-se monogâmico?
  • Por que motivos consideram as conquistas como garantia de virilidade?
  • O que definem como mentira, escapada, traição e adultério?
  • Por que consideram a existências de "mentiras protetoras"?
Parece-me, entretanto, que duas grandes questões rondam todo o trabalho de Maryse Vaillant:
  • Até que ponto a (in) fidelidade está relacionadas às qualidades de homens que traem ou mulheres amadas?
  • E, qual a relação, de fato, entre a (in) fidelidade e o amor?
Então, o que alegam os fiéis e os infiéis?
 
Para tentar responder à esta questão, e todas as demais, citadas acima, a autora nos apresentará cinco grandes "tipos" comportamentais:
  1. O monogâmico mentiroso e sua "arte de acomodar o casamento"
  2. O poligâmico ansioso e seu "desejo de ter todas as mulheres"
  3. O poligâmico indeciso e seu "sonho de amar todas as mulheres"
  4. O monogâmico cativo e sua "concepção específica de homem"
  5. O poligâmico resolvido / monogâmico perdido e a "possibilidade de mudança"
 É a partir, então, da análise destes "tipos" que a autores vai chegar  a algumas conclusões:
  • Não veio à tona um "modo amoroso masculino" específico, distinto daquilo que serve de âncora para as mulheres (amor pelo pai, dedicação ao filho, arte de apoiar ou forjar os homens). Os homens, então, não falam das mulheres, nem de suas figuras sedutoras e maternas. Se ocorre, é de forma muito ocasional. Os homens falam de si mesmos, suas dúvidas  identitárias, sonhos, dificuldades com o compromisso. Falam mais de suas angústias e limitações que de seus amores e amantes;
  • Duas grandes angústias emergem: a clássica "castração" e o medo de ver o "desejo" acabar ("afânise"). Por isso, para o homem, independente da fase de sua vida, a necessidade de amar e ser amado assume uma nuance fálica;
  • Há uma clara dificuldade por parte dos homens em deixar a infância para trás, e isso, fundamentalmente, pelo fato de que o que faz mesmo diferença em matéria de fidelidade é a capacidade (não de amar) mas de renunciar ou separar-se do outro;
SOBRE OS INFIÉIS - Reivindicam a liberdade sexual e o pleno direito ao desejo. Praticam o adultério de forma crônica e mentem para preservar o casamento. Possuem uma fome insaciável de amor. "...Acham impossível abrir mão da liberdade de seduzir, uma vez que a única coisa que importa aos homens atormentados pelo medo da castração é a disponibilidade sexual" (p. 177). Estamos sempre presos à equação que une masculinidade e virilidade. "...As infidelidades daí decorrentes são apenas a consequência de um drama íntimo de um homem que, por detrás de sua profissão e fé, oculta autêntica fragilidade. Assim, a infidelidade é o sintoma da dificuldade de assumir as escolhas e as imposições inerentes a qualquer existência" (p. 178). Existem os "poligâmicos indecisos" que cultivam amores múltiplos e paralelos. Geralmente ficam infelizes por terem que se utilizar de mentiras e acham que suas companheiras são intolerantes.

SOBRE OS FIÉIS - Alguns podem ser indiscutivelmente fiéis, seja por uma questão de natureza, estrutura ou cultura. São homens de uma única mulher, enclausurados na monogamia, seja por imposições, honra ou loucura, prisioneiros de si mesmo ou de seu passado. São homens que mentem para si mesmos, pois estar com a consciência tranquila é fundamental para eles. "Todos são incapazes de escolher ou de se desvencilhar das imposições que os amarram. São fiéis por medo, por inibição, por adição, porém também por preguiça. Incapazes de escolher ou de se desvencilhar, só lhes resta serem fiéis. Duplicadas ao infinito pelas suas uniões e seus casamentos, as figuras parentais arcaicas que os enquadram não lhes deixam nenhuma esperança de liberdade intima. Então, a felicidade é o sintoma de sua dificuldade de se desvencilhar - da história de sua infância, por exemplo - para construir sua vida de homem" (p. 178).

Mas, o que é um HOMEM? O fato é que nestas últimas décadas a figura masculina se tornou muito complexa e seus esquemas comportamentais e identitários não estão mais tão bem estruturados, estão obsoletos. Isso implica em que os homens de amanhã terão que inventar novas estruturas amorosas de longo prazo. Não bastará mais tomar seu pai como modelo (ou contraexemplo) para poder deixar a mãe e as ilusões da infância. "...Entre os desafios mais difíceis, ele talvez tenha de procurar outra unidade de medida identitárias em vez do tamanho ou do vigor do seu órgão reprodutor e dos seus substitutos, como o poder e o dinheiro..." (p. 179). São mudanças no imaginário masculino que precisam se refletir na realidade, pois a libido não pode mais ser a única força motriz de sua existência e razão única para viver. Os homens, então, devem abandonar o amor de uma mulher (mãe) e a promessa do pênis, para procurar em seu pai e em seus pares o modo de se tornarem si mesmos.

 
___________
 
¹ VAILLANT, Maryse. Os Homens, o Amor e a Fidelidade; Tradução: Elena Gaidano. - Rio de Janeiro: BestSeller, 2013 (c) 2009. A autora foi uma psicóloga francesa, prof. da Universidade de Paris.

domingo, 20 de outubro de 2013

O papel do psicanalista

"Uma vez ou outra, quase todos nós nos sentimos aprisionados por coisas que pensamos ou fazemos, enredados por nossos impulsos ou escolhas idiotas; presos em alguma infelicidade ou medo, atolados em nossa própria história. Sentimo-nos incapazes de seguir adiante, mas apesar disso acreditamos que deve haver uma maneira (...) E como mudança e perda estão profundamente conectadas - não pode haver mudança sem perda..." (Stepen Grosz, A Vida em Análise).

É neste contexto que o papel do psicanalista consiste em ajudar na mudança, compreendendo, sabendo ouvir, e não somente as palavras, mas os intervalos entre elas.

sábado, 19 de outubro de 2013

Um trecho revelador acerca da Psicanálise

"Face à dor psíquica, às divisões internas, os traumatismos universais e pessoais que a vida inevitavelmente provoca, o homem é capaz de criar uma neurose, uma psicose, um escudo caracterial, uma perversão sexual, sonhos, obras de arte e doenças psicossomáticas. Artesão de si mesmo, tem poucas possibilidades de modificar a forma de suas criações psíquicas, essa estrutura que o ajuda a manter não somente o equilíbrio de sua economia pulsional, mas também o sentimento de ter uma identidade. Assim, existe uma resistência ferrenha contra tudo o que pode abalar essa fortaleza psíquica, e embora o sujeito encontre aí sua morada, tem muito pouca consciência de seu significado. É claro que esse conhecimento psíquico e as criações que ele origina não possuem um valor idêntico do ponto de vista de sua eficácia, nem aos olhos da sociedade. Todavia, todos visam os mesmos objetivos: o desejo de se manter vivo, de realizar-se nos planos pulsional e narcísico, de conservar intacta a identidade assim construída e defender-se contra tudo que ameaça estes propósitos. A força do sujeito reside nessa continuidade e nessa monotonia. Contudo, é aí também que encontramos a fonte do seu sofrimento e até mesmo de sua morte..." 

(Joyce McDougall - "Em defesa de uma certa anormalidade", 1° parágrafo do ensaio Psicanálise e Soma)

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

A busca pela opinião de "juízes" quando não consigo "decidir"

Um tema que por vezes surge na clínica é aquele em que o sujeito apresenta um grau de dúvida bastante elevado, praticamente impossibilitando que possua uma "opinião" acerca de qualquer coisa. Claro que possuir "dúvida" é algo humano e fundamental. E é absolutamente normal que busquemos concordâncias e elementos para formar nossa própria opinião. Mas, e quando apresentar uma opinião passa a ser algo quase impossível?

Estamos, então, diante de uma "opinião não sustentada". Uma opinião que se monta a partir, exclusivamente, de referências alheias ao nosso processo de pensamento. Em tempos de Facebook isso parece se alastrar. Mas, enfim!

Claro que o sujeito, quase sempre, já tem os elementos necessários para formular seus juízos, sua opinião, mas o que lhe falta é a "segurança" necessária para "sustentar" (emitir) esta opinião. Para estas pessoas, a "dúvida" não é só um componente humano (que todos possuímos) é algo muito mais familiar, que lhe acompanha permanentemente, e que oprime, como expressão maior de uma "insegurança" estrutural. E isto lhe causa sofrimento, pois lhe impede um melhor posicionamento na vida, no mundo. E causa dor, sem dúvida alguma.

O que há, então, nessa "atenção" tão especial que determinadas pessoas dão às opiniões alheias? Trata-se de uma busca por maior segurança para formular seus próprios juízos e assumir posições. É comum alguns, no dia a dia, se perderem em meio a tantos "juízes". Na busca da opinião "segura" destes "juízes" acabam por ficar ilhados, e incapazes de formular seu próprio juízo. É como se não se sentissem nem um pouco à vontade com sua própria opinião, tal o grau de insegurança experimentado. E, quando se percebe (ou melhor, não se percebe), se está em meio a uma teia de "dependência" muito densa.

Tem algo de fortemente regressivo aí. É um claro sinal da velha dependência que experimentávamos na infância e que está dando sinais de retorno e permanência. É isto que precisa ser entendido e enfrentado, em nome da independência e autonomia do sujeito. Só assim haverá, de fato, um crescimento, um amadurecimento, e se sairá dessa posição infantil.
 

O "caso Elizabeth" e a Histeria

O caso Elizabeth é um dos casos chamados "pré-psicanalíticos" de Freud e é fundamental para a estruturação dos alicerces de sua teoria psicanalítica. Trata-se de um caso que tem muito a dizer acerca da histeria. 

Historicamente, a questão da histeria sempre disse respeito ao "corpo". Eram como que "humores" e "vapores" do corpo que, de alguma forma, alcançavam a mente. Ou seja, o corpo "enlouquecia". Só no século XIX é que a histeria passa a ter "no" corpo o local de sua manifestação, deixando de ser algo "do" corpo, mas da ordem do psicossoma.

A histeria seria, portanto, um modo mais "barato" para se lidar com a energia estrangulada. Barato no sentido de poder-se utilizar de deslocamentos dessa energia para escapar ao sofrimento intenso e se encontrar uma forma mais amena de sobrevivência. Nessa escala, o modo mais "caro" poderia ser o autismo, que acaba por cortar a relação com a realidade. 

No caso de Elizabeth, sua perna era quem simbolizava suas questões edípicas, era ali que tudo se manifestava. A perna carregava em si suas questões. O corpo estaria ocupando o lugar, portanto, de um psiquismo que não dá conta de suas questões. Aliás, isso é a base da psicossomática.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

A questão da fala psicótica: uma errância sem ancoragem

Assisti à peça "A obscena senhora D" (Hilda Hilst), interpretada pela excelente Susan Damasceno. Nela, pode se ver o efeito mais trágico do desamparo diante da figura do pai, evidenciada na sua incompreensão diante das mortes do pai e do marido e, especialmente, na sua dura relação com Deus. Recolhida ao vão da escada para falar das conturbações da condição humana nada mais é que uma metáfora para sua psicotização e abandono desta realidade obscena, que é a vida. Estamos todos morrendo, e continuamos absurdos.

Nada me chama tanto a atenção em interpretações assim como a sua linguagem praticamente ilegível, completamente cifrada, sua fala praticamente hipnótica, que nos força a tentar ver um fundo que praticamente não tem fim. Aquele ponto em que a angústia humana no seu sentido mais denso só começou a revelar-se. Por isso, mesmo incompreensível, ninguém sai da mesma forma, pois em algum momento é capturado por esta fala.

Trata-se exatamente disto, de um texto absolutamente incompreensível. Palavras se sucedem numa velocidade extraordinária. Nenhuma regra é respeitada. Elas são cuspidas na nossa cara com uma força incontrolável. Quando você imagina um instante de calma, elas explodem novamente em gritos ensurdecedores. Esta é a fala psicótica. Errante. Incompreensível.

A Obscena Senhora D retrata bem o fato de que não são poucos os casos de delírios religiosos nos estados psicóticos. Nestas situações, em especial, o discurso está "sustentado" na palavra de Deus, tornando muito difícil encontrar e adentrar em suas "brechas", afinal, diante do surgimento de qualquer brecha no discurso, logo vem seu preenchimento pela palavra divina. Entretanto, apesar de ser um discurso sustentado, é uma mentira.

Um dos aspectos que me chama a atenção e que pode, muito bem, servir para manter esta imagem de uma "discurso sem brechas" é a velocidade com que o sujeito em estado psicótico, nestas situações de delírio religioso, especialmente, fala. Trata-se de uma voz rápida, que dispara palavras quase ao ritmo de uma potente metralhadora. Mas, como vejo esta questão? Este "discurso veloz", esta "velocidade" obscurece as brechas de um discurso, na realidade, mal colado, afinal de contas, à medida que ele diminui a velocidade, as brechas se tornam evidentes e, suas palavras "caem". É a reconstrução deste texto sagrado, seguida de sua quebra, que é fundamental no tratamento do estado psicótico.

Na análise da psicose há algo de radicalmente diferente. Temos que viajar, embarcar em algo que não sabemos bem para onde ir. Mas, não tenhamos dúvida, há uma "movimentação", uma "circulação", ainda que errante. A psicose é o que nos mostra, radicalmente, o "estranho". Por isso, quanto mais nos despirmos de projeções do nosso eu sobre a clínica e o paciente, maior a chance de nos depararmos com esse estranho. É preciso se des-subjetivar ao máximo. Entretanto, não há como pensar na errância na escuta analítica, pois a errância é uma forma de "aprisionamento", ela não permite nenhuma "ancoragem", não faz "lugar" e, então, acaba por não circular. Assim, não podemos falar em "escuta errante" pois não conseguimos, enquanto analistas, nos livrar de nossas neuroses.

O perfil do Bully (praticante do Bullying)

Quem é o praticante do Bullying?

Em linhas gerais, é um adolescente, marcado pela ausência de um superego bem consolidado e, portanto, pela maior presença de traços de onipotência e agressividade no aparelho psíquico. Nesses casos, pode-se especular que houve uma má saída do complexo de édipo resultando em um quadro de fracos limites, podendo ser fonte potencial de violências futuras. Trata-se de um indivíduo que atribui muita importância ao pertencimento a um grupo, que considera decisivo para a construção de sua personalidade. 

Portanto, esse indivíduo, na grande maioria das vezes, é oriundo de uma família "desestruturada", no sentido de não ter ocorrido uma educação a partir de "limites". Isso o levou a ver na "força" e "agressividade" a melhor estratégia de resolução de problemas. Como sente-se, em boa parte, humilhado e descontente com sua própria posição, busca a humilhação do outro para evitar o contato com suas próprias fraquezas. Para corroborar esta posição basta vermos a importância atribuída pelo Bully ao "grupo", sem o qual ele parece exatamente do tamanho que é, "pequeno" (a partir daí fica fácil entender que os que seguem o grupo acabam por seguir o superego do líder do grupo, violento).

Nesta composição psíquica, portanto, ele aproxima-se de um "sádico", mas a sua vítima, não necessariamente é um "masoquista" que luta para pertencer ao grupo do qual é excluído. Definir o Bullying a partir de uma relação sado-masoquista não explica muita coisa. Talvez alguns casos. Somente isto. Dizer que a vítima é masoquista e que bastaria, para isso, querer evitar o grupo e o conflito, é, parece-me, atribuir culpa à vítima desta violência. A vítima, no caso, é muito mais uma "caça" para este "predador" que é o Bully.

A violência, ou "agressividade", tão própria do Bullying, é um comportamento que surge desde muito cedo quando buscamos chamar a atenção para nós mesmos, como através de atitudes de ambição e coragem. Se o Bully, então, é um indivíduo agressivo, é porque aprendeu a reagir sempre no contexto de uma competição, de uma disputa, quase sempre para tentar, justamente, evitar uma situação em que ele próprio seja o excluído. Não convive bem com as críticas, além de desejar conquistar a tudo que tem interesse a qualquer preço, numa espécie de "conduta ambiciosa".

Nesse sentido, campanhas educativas pouco resolvem contra aparelhos psíquicos deste tipo podendo, pelo contrário, servir como reforço à ousadia e desafio que os Bully se impõem a todo instante. A experiência é covarde e violenta e deve ser tratada, também, com rigor, sem deixar espaço para impunidades. Afinal, isentá-los de responsabilidade só tornará ainda mais fracos seus superegos que já desconhecem limites. É evidente, por outro lado, que tais Bullys precisam de tratamento terapêutico. O acompanhamento terapêutico psicanalítico se torna indispensável, primeiro para que os envolvidos (praticantes e cúmplices) se dêem conta dos processos que estão vivenciando, e em segundo, por reconhecer-se que estamos lidando com fenômenos mentais e comportamentais recorrentes em busca de um gozo absoluto e, por isso, mortal.

Levando-se em conta este perfil podemos ainda acrescentar que um dos mecanismos sempre presentes na ação do Bully é a "projeção", ou "identificação projetiva", um conceito bem desenvolvido pela psicanalista Melanie Klein que mostra que o indivíduo tenta livrar-se de "partes" de si que considera intoleráveis e as projeta no outro. Trata-se de um mecanismo muito comum em situações psicóticas mas está muito presente, também, nas situações de discriminação e preconceito contra o outro. É sobre esse outro, portanto, que recaem as projeções (como os sentimentos de inferioridade e raiva) e angústias do Bully, na sua impossibilidade de lidar melhor com suas próprias dores.

Enfim, trata-se de uma tentativa de perfil. Não se esgota, evidentemente.

Um rápido conceito de Bullying

O Bullying é daqueles temas que nos últimos tempos só tem crescido nas rodas de discussão. Não é, por certo, um fenômeno recente, mas tem algo de novo em sua dinâmica. E é sobre isto que gostaria de comentar um pouco destacando alguns aspectos envolvidos nas discussões sobre o Bullying.

Inicialmente bastante discutido a partir do ambiente escolar, o Bullying extrapolou este espaço e hoje é visto como um fenômeno social amplo, que conheceu uma rápida forma de expansão no contexto de uma sociedade cada vez mais competitiva, individualista e marcada pela difusão de tecnologias de comunicação de massa. Mas, o que é o Bullying?

Tentando-se um conceito, ainda que geral, mas que não deixe de fora os principais elementos constitutivos do Bullying, posso dizer, com segurança, que seja em que ambiente for, educacional, corporativo, ou outro, o Bullying é a recorrência de atos de violência física ou psicológica, praticados por um grupo, de forma intencional, visando a humilhação do outro no contexto de uma relação desigual de poder. Neste conceito já temos, pelo menos,  seis elementos constitutivos que exigem alguma elucidação. Vou tentar ser didático:
 
1) O Bullying é uma prática recorrente, ou seja, não pode ser confundido com uma simples brincadeira de "zoar" um colega, algo que faz parte do cotidiano das relações interpessoais. É essa recorrência que garante a violência do ato e seu caráter de intencionalidade no objetivo de humilhar e machucar o outro que se tornou alvo. Portanto, não é qualquer brincadeira, onde se "zoa" e se tira um "sarro" que pode ser classificada como Bullying. Essa confusão está levando, inclusive a construção de "manuais" que tentam "domesticar" qualquer tipo de brincadeira nos diversos ambientes. Isso atua como forte fator inibidor do desenvolvimento das relações interpessoais, cada vez mais inseridas dentro do chamado "politicamente correto". Ou seja, Bullying não é uma prática ocasional, episódica, isso pode ser uma brincadeira, uma ofensa, mas não Bullying. Este exige para ser caracterizado como tal que as práticas sejam recorrentes, sistemáticas

2) O Bullying é um ato de violência, ou seja, não é uma "brincadeira". O termo deriva da palavra inglesa "bully" que significa "brigão", "valentão", alguém, portanto, muito disposto à agressividade e à violência. Mas, é um ato de violência porque está sustentado na agressividade contra o outro. Uma agressividade que pode ser física ou fazer parte daquilo que chamamos de "terror psicológico", repleto de acusações, infâmias, mentiras etc. Dizer que a prática do Bullying está situada no universo das "brincadeiras" é ignorar seu caráter agressivo. Enquanto ato de violência, portanto, o Bullying pode ser visto como uma prática que exemplifica uma espécie de "regressão civilizatória", pois desconhece o outro e desconhece as regras morais que sustentam os laços civilizatórios;

3) O Bullying ocorre no contexto de uma relação desigual de poder, ou seja, é sempre uma relação marcada pela oposição entre o mais forte e o mais fraco. O lado mais forte ainda é reforçado pelo "grupo" e a vítima geralmente é o indivíduo isolado;

4) O Bullying é uma prática que quase sempre exige a formação de um grupo, ou seja, na grande maioria das vezes a prática do Bullying parte de um grupo. Isso não dispensa a figura de lideranças, mas existem os demais participantes que compõem o grupo e têm papel chave para o Bullying. Não é só a liderança que pratica o Bullying, os demais, com sua cumplicidade, também o praticam.

5) O Bullying é praticado de forma intencional, ou seja, existe uma intenção no Bullying. Não se trata de uma prática desinteressada e fortuita. Ela tem um objetivo, um alvo, algo a ser atacado e conquistado. Quase sempre a prática exige certo planejamento, não sendo nem um pouco espontânea ou ao acaso.

6) O Bullying tem como um de seus principais objetivos a humilhação do outro, ou seja, colocar um apelido, "zoar", tirar um "sarro" de um colega sempre fez parte de nossa infância, adolescência e mesmo da fase adulta. E fazemos isto de vez em quando sim, quando nos reunimos num bar, na casa de um amigo, no trabalho, no estudo etc. Isso é saudável, mostra que existem laços de amizade tais que nos permitem brincar, sorrir, se divertir, mesmo à custa de uma mancada de nosso colega. E, nesses casos, a resposta desse colega, é sempre compartilhar o sorriso e "cair" na brincadeira. A intenção que existe aí é a de "brincar", processo aliás, fundamental para nossa boa constituição psíquica. Mas o que torna o Bullying algo perigoso e não simplesmente uma brincadeira espontânea? Não é a disposição em "brincar". É uma outra disposição, a de "humilhar". E, nesse aspecto, pode ser colocado na categoria das perversões. É lógico que, com o Bullying, alguns se divertem, tanto os que os praticam quanto os que assistem e se tornam cúmplices, portanto. Mas o caráter desta "diversão" é que ela se dá "à custa da humilhação do outro", do sofrimento do outro. Não é perverso isto? Existe, portanto, no Bullying, uma atitude clara e intencional de humilhar o outro. Quem pratica o Bullying sabe exatamente o que está fazendo, pois possui uma clara intenção, mascarada sob uma falsa ignorância, mas repleta de intenções maldosas;

Portanto, para finalizar, antes de pensar ou dizer que o Bullying é só uma "brincadeira" que extrapolou é bom lembrar que na prática existe uma intenção clara de humilhar o outro, e quando falamos em humilhação estamos falando de uma atitude que é pública, e que causa um dano seríssimo à autoimagem do indivíduo.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Sobre o amor e o casamento: "antes" era melhor que hoje?

Amar, hoje em dia é mais fácil que antes? Antes, o casamento era melhor que hoje? Ser um casal hoje em dia garante que vou continuar sendo livre? Perguntas como estas, e tantas outras, povoam o imaginário de homens e mulheres na atualidade. São como que sombras de um passado, de que se ouviu falar, principalmente dos pais e avós, e que não consegue mais se sustentar tão facilmente e com tanta naturalidade. 

Ora, os casais continuam indo às terapias com suas angustias e incertezas. Mas, se antes estas eram provocadas, na sua maioria, por uma espécie de "confinamento" (no casamento) que exigia uma mudança, hoje, muito são muito mais motivadas por uma "liberdade" (individual) que se conquistou e que é difícil dividir com o outro, não se sabendo bem, portanto, o que fazer com ela. No meio de tudo isto, aquela fantasia tão nos ensinada pelos contos de fada: "antes tudo era melhor". Será mesmo? Em que aspectos?

Antes de mais nada, é bom lembrar o quanto é difícil se trabalhar com categorias assim tão fechadas como "antes" e "hoje", pois sabemos que esses tempos se misturam de formas específicas em cada imaginário e produzem fantasias as mais distintas em cada pessoa, onde a realidade de um casal e do amor não é a mesma de outro e precisa ser investigada na sua especificidade. Isso, entretanto, não invalida que apontemos certas "regularidades", situações compartilhadas por muitos, e são estas que nos permitem falar, ainda que com cautela, em um "antes" e um "hoje".

Mas, o que era este "antes"? Cada vez mais, o "antes" dos relacionamentos amorosos e conjugais entra para aquela categoria dos "paraísos perdidos", dos quais nada sabemos, nada experimentamos, nada vivemos, mas que somos capazes de jurar que foram bem melhores do que aquilo que vivemos hoje. São como que um refúgio para onde escapamos, em nossos pensamentos, quando as incertezas do momento atual nos afligem. 

Uma necessária regressão a tempos "primitivos" onde apostamos na existência de uma felicidade sincera e duradoura. Melhor seria olhar para frente? Talvez! Mas, convenhamos, é bem mais fácil e simples se olhar para trás com alguma nostalgia, essa saudade idealizada e quase sempre irreal, alguma segurança, do que olhar para frente com todos os riscos que o futuro traz embutidos.

O "paraíso perdido", então, nada mais é do que uma construção imaginária que utilizamos para combater nossas angústias. Por isso soa tão fácil na boca de muitas pessoas ouvir que, "antes", mesmo quando o amor não estava tão em questão no casamento, tudo era "melhor". Não há nada que comprove isto. Para os que se apegam demasiadamente em estatísticas talvez o tempo de duração dos casamentos hoje comprove algo. Mas, na verdade, isso não explica quase nada. 

Então, o retorno ao "paraíso perdido" é só um recurso de que nos utilizamos quando estamos sem saber bem o que fazer "hoje". Mas, de fato, o que era esse "antes", tão idealizado por homens e mulheres? E quais os desafios que o "hoje" coloca aos relacionamentos amorosos?

A respeito do "antes", acho que dá para se chegar a algum consenso: o "casal" era algo bastante idealizado, principalmente pelas mulheres, e muito buscado. Os papéis de homem e mulher já estavam bem definidos, enquanto um buscava prover e proteger, outro buscava cuidar e procriar, tudo segundo regras culturais bem claras e que deixavam o destino bem visível para os dois. Neste contexto, havia uma ideia de complementaridade, como se fossem "duas metades", ou como se diz, "a tampa da panela". Os filhos, quase sempre muitos, eram como que a garantia e o atestado de uma família feliz. 

Esse é um panorama muito geral, que quase sempre é idealizado mesmo. Mas, em seu interior haviam problemas. E é muito natural que houvessem. Num contexto assim, como o de "antes", não era difícil o marasmo, a inércia, e a luta pela "transformação" do vínculo entre os dois talvez estivesse no inconsciente de cada um, mas sem grandes possibilidades de sucesso. Estavam como que "amarrados", mas no sentido ruim mesmo do termo, e a palavra de ordem era "transformar" para se tentar ser feliz. 

Mas, e o "hoje", o que apresenta de novidade? Existem sim algumas características que transformam o "hoje" em algo bem distinto de "antes". Duas me parecem muito fortes e ajudam a explicar muitas situações: 1) O narcisismo individual, e 2) A ideia de igualitarismo e similaridade na relação. O que isto tudo implica? Como podemos resumir o cenário?

"Hoje", homens e, especialmente mulheres, tendo conquistado uma maior liberdade em diversos aspectos, e sendo convidados a participar de uma sociedade cada vez mais competitiva, viram o ressurgimento de um individualismo muito feroz, que trouxe à tona o narcisismo, muitas vezes, em suas piores versões. Trata-se de um narcisismo que praticamente se resume à busca e conservação, a todo custo, do bem-estar pessoal. Um narcisismo tão arraigado que, diante de uma dificuldade maior em realizar um desejo busca-se logo uma alternativa e abandona-se tudo.

Na prática dos relacionamentos isso significa, de imediato, uma "desconfiança" em relação ao outro. O que ele(a) quer mesmo de mim? Vou perder minha liberdade diante dele(a)? Vou ter que dividir algo com ele(a)? Ora, é essa desconfiança que está na base das dificuldades em se construir laços na atualidade. Se antes, então, o laço se formava através de um casamento que era facilmente buscado e desejado, hoje esse laço é visto com desconfiança. Como criar um laço com o(a) outro(a) se o que busco, em primeiro lugar é minha felicidade pessoal? Nada pode abalar minha onipotência narcísica de buscar o que é bom para mim.

Não à toa, diversas formas de laços têm surgido, formas alternativas de amor e de amar, situações diferentes de estar junto, de conviver. Cada um de nós não quer mais ficar "refém" de um destino, ou de um casamento que parecia ser o único resultado a esperar da vida. Nos sentimos no direito de inventar, de transformar, de forjar nosso próprio destino. Não queremos mais dividir papéis de forma tão clara. Não queremos mais transar de forma tão convencional. Sempre desejamos isso? Tudo bem, só que agora estamos fazendo isso, com muito mais liberdade.

Ora, de acordo com esta lógica narcísica, como entender o laço de um casal? É aí que passa a predominar o que Serge Hefez (psicanalista francês) chama de "miragem da similaridade", do igualitarismo, onde tentamos desesperadamente preservar nossa identidade diante da outra pessoa. Talvez por isso mesmo seja fácil "jogar a toalha" diante das primeiras dificuldades. Talvez por isso mesmo, os casais, hoje, visitem os terapeutas cada vez mais jovens e no início do casamento, justamente porque não "sabem" criar um laço. Embora, saibam defender bem, cada um, a sua liberdade, a sua individualidade, o seu desejo, o direito de ser amado. Mas e o laço? Onde fica o laço? Não podemos esquecer que:
Cada um se engaja inteiramente na relação amorosa, colocando em jogo tudo o que o constitui como pessoa: o sentimento dos próprios limites, da posse de si mesmo e de seus desejos, com o risco de uma perda de si ou pelo menos de uma certa imagem de si. Mas a vida amorosa é precisamente o que coloca em causa as fronteiras do eu, entre "eu" e "nós", entre mundo interior e a realidade externa. Ser amado "por completo" faz bem e traz segurança, mas o perigo de aniquilamento ou de fusão nunca estará muito distante"¹
Para finalizar, acho que na ânsia de superarmos os limites desastrosos dos casamentos de "antes" (uniões normatizadas) conquistamos liberdades que despertaram em nós um sentimento narcísico de onipotência que nos faz sentir, permanentemente "melhores" que o outro. Este passa a ser necessário somente para o "meu" prazer. Mas e o laço? O laço amoroso é tecido pelo amor. E o amor exige uma entrega do "eu" para o "nós". Estamos dispostos a correr este risco? Ou vamos nos atolar neste pântano narcísico e individualista onde buscamos nosso prazer a todo custo, mesmo à custa do(a) outro(a)?

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¹ HEFEZ, Serge. Cenas da vida conjugal: como os casais enfrentam a crise do relacionamento. - São Paulo: Saraiva, 2012, "Introdução", pág. 23.


segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Agorafobia e Pânico: O medo de ter medo (estar sujeito à angústia)

Em 1872, o alemão Carl Westphal descreve um quadro clínico em que os pacientes não suportavam ficar sozinhos em grandes espaços abertos sob o risco de viverem uma incontrolável crise de angústia, e o denomina de agorafobia ("medo de lugar público").

Mas, é na França, com Legrand Du Saulle (1878), que surge uma melhor descrição do que vai chamar de "medo dos espaços". A questão central, aqui, é que já não se tratava de um "lugar público", mas de qualquer lugar onde o "vazio" fosse experimentado como "medo" de sentir-se "sozinho"Mas, diante de tantas possíveis situações assim (locais abertos, fechados, etc.) existiria um elemento psicopatológico comum?
Este elemento essencial comum se situa, segundo nossa hipótese, no confronto que impõem estas duas condições com o fundamento de desamparo e de falta de garantias sobre a qual se desenrola o funcionamento psíquico, enquanto ancorado na linguagem. Para estes sujeitos, tanto a dissolução em uma multidão quanto a restrição a um lugar fechado, evocam a emergência do possível sob a forma de um fato aterrorizante: o sujeito descobre, para seu pavor, que não poderá encontrar aí nenhum tipo de ajuda se for necessária. Face a esta constatação, entra em pânico (p. 161).¹
Trata-se de um "medo de ter medo", "medo de estar sujeito à angústia", um medo mais frequente que todos os demais. É o medo de ter medo que unifica toda essa constelação heterogênea de situações fóbicas (medo de cair, de tontura, de ser zombado, de ter vontade de ir ao banheiro etc.).

E quanto á Freud? O que nos diz sobre isto? Em "Inibição, Sintoma e Angústia" (1926) nos diz que a fobia instaura-se após a experimentação de um primeiro acesso de angústia. Há uma lembrança desse ataque e o que o paciente vai temer é a sua recorrência em determinada situação da qual, portanto, imagina não poder escapar. Em "Novas Conferências" (1932), Freud confirma a fobia como fenômeno secundário, um estratégia defensiva contra o acesso de angústia. Seu principal sintoma, então, é uma inibição, uma limitação da função do "eu", justamente para tantar se poupar da angústia.

Mas, que explicação Freud nos dá para a origem desses acessos de angústia? Sobre isso, desenvolveu duas teorias sobre a angústia. Na primeira ("As Psiconeuroses de Defesa", 1894), o afeto (angústia) é o resultado da acumulação excessiva de libido insatisfeita, ou seja, surgia de uma "crise inexplicável" ancorada na acumulação da libido física. O afeto, dessa forma, é visto como um elemento estranho ao psíquico, já que deriva de outro domínio, o corpo. 

Com o tempo, Freud muda essa posição. Em "Inibição, Sintoma e Angústia" (1926) diz que a angústia experimentada em situações fóbicas não é independente da estrutura edipiana, ou seja, não depende somente de acúmulo de libido. Ela seria um "acréscimo" ao sistema defensivo para afastar um desejo proibido.

Mas, que "acréscimo" é este? Para Freud, uma "regressão" a tempos primitivos da infância (e mesmo ao útero) onde existia forte proteção contra perigos. Assim, se agorafóbico consegue sair acompanhado é porque está se comportando como aquela criança que não tem medo de sair com quem confia. Mas, se estiver sozinho, terá que conhecer bem o local e as pessoas. Trata-se de uma neurose onde há o reconhecimento da lei, mas busca-se desfazer esta proibição para se fazer valer o desejo - o que é a estrutura de toda neurose.

E quem é este acompanhante? É alguém que se legitima por sua posição tácita de indivíduo "adulto". Ele é o "representante da lei" junto ao superego, é o "fiador" da possível reconstituição desse indivíduo angustiado, por isso aparece como "desesperadamente indispensável", trazendo certo alívio.
O acompanhante fóbico constitui o substituto patético de um deus particular, a quem o paciente dirige seu pedido de ajuda de forma dramática por meio de seus ataques de pânico (p. 170).
Nesse sentido, por trás do abandono há uma relação entre desamparo, sexualidade e castração. Nesta neurose, há uma aparência total de abandono, mas permanece a problemática conflitual com a lei simbólica, diferente da psicose, onde esse possível reconhecimento na lei está praticamente aniquilado. Isso não quer dizer que nas neuroses não ocorram condições de despersonalização e desrealização, embora sejam sempre defensivas, justamente para barrar as experiências dolorosas. Assim, ocorre uma "dissimulação" da consciência e do eu para evitar o caráter insuportável da lembrança.

Aqui é interessante ver, também, a diferença que Freud estabelece entre "terror" e "horror". No terror, a experiência de aniquilamento é mais radical, sendo quase impossível até referir-se à uma lei. Já no "horror" surge uma confrontação petrificante com a realidade da castração.

Assim, para Freud, o desamparo não é um "acidente" da vida psíquica, que se manifesta em "situações específicas". O desamparo chega a ser intrínseco à vida psíquica. O que se precisa perguntar é sobre as condições que conduzem ao pânico, sem poder contorná-lo, sem possuir garantias! É disso que o pânico nos fala:
O desencadeamento de crises em situações cuja significação subjetiva é a falta essencial de garantias para a existência (p. 173).
Escrevi este post para apresentar uma síntese de um capítulo acerca da agorafobia e do pânico, de um livro de Mario Eduardo da Costa Pereira. De acordo com o autor, existe um intenso debate entre a agorafobia e o pânico. Debate esse, geralmente centrado na maior ou menor vinculação entre o pânico e a fobia. Para alguns, o ataque de pânico seria a causa primeira da fobia. Para outros, até pode existir uma vinculação, mas sem causalidade. Outros, ainda, negam inclusive a vinculação e dão à agorafobia autonomia enquanto entidade clínicaDe qualquer forma, parecem haver há dois tipos de pacientes que apresentam pânico: aqueles onde a crise se dá quando da exposição a uma situação fóbica, e aqueles cujos ataques não são situacionais, com fatores desencadeadores ocultos. 

Em 1980, com o DSM-III tínhamos 4 categorias de diagnóstico:

- Agorafobia com ataques de pânico (transtorno fóbico)
- Agorafobia sem ataques de pânico (transtorno fóbico)
- Transtorno de pânico
- Transtorno de angústia generalizado (estado de ansiedade)

Gradativamente, o "estado de ansiedade" é incluído nos transtornos fóbicos e, os três tipos passam a ficar sob a denominação de "transtornos de ansiedade" e o "transtorno de pânico" mantém-se, com o termo "agorafobia" perdendo valor descritivo para a própria situação de pânico.

Mas, a questão continuou polêmica, até que, no DSM-IV a agorafobia passou a ser considerada uma entidade independente do transtorno de pânico, mesmo se a síndrome agorafóbica estiver associada ao pânico. Não é bem o que Freud pensava, pois seu ponto de vista estava mais próximo dos que situam o pânico num lugar de primazia em relação à agorafobia

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¹ PEREIRA, Mário Eduardo da Costa. Os ataques de pânico e a Agorafobia: O problema da Agorafobia. In: Psicopatologia dos Ataques de Pânico. - São Paulo: Escuta, 2003, capítulo 8, p. 149-173.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

O conceito de Falso Self (D. Winnicott)

Este post foi escrito a partir do rascunho inacabado de uma palestra proferida por Winnicott no All Souls College, Oxford, para o grupo "Crime - um desafio", em 29.01.64. O rascunho está publicado em "Tudo Começa em Casa" (Martins Fontes, 1996, p. 51-54), e nesta palestra Winnicott aproveitou para, mais uma vez, destacar os conceitos de verdadeiro e falso self

Trata-se de uma "divisão" que todos nós possuímos (e ele pôde detectar em seus pacientes) e que nos permite dizer que "todos somos doentes" e, ao mesmo tempo, que "as pessoas doentes são saudáveis". Ou seja, é da divisão que muitos processos patolóigicos surgem, mas é a divisão que nos torna "normais". Dessa forma, segundo Winnicott:
cada pessoa tem um self educado ou socializado, e também tem um self pessoal privado, que só aparece na intimidade. Isso é comum e pode ser considerado normal (p. 52).
Trata-se de uma divisão, uma cisão na mente que, em seu grau mais profundo, gera a esquizofrenia. A sociedade, segundo Winnicott nos exige altos graus de concordância e adaptação, e aceitamos o fato diante das perspectivas de obter vantagens. 

Por exemplo, ensinamos as crianças a dizer "obrigado", por polidez, e não necessariamente porque a criança o quer dizer. Ou seja, de alguma forma esperamos que as crianças sejam capazes de mentir, aceitando as convenções para uma administração da vida. Parece ser o preço a pagar pela socialização. É nesse contexto que muitas crianças vão começar a achar a vida difícil devido à 
necessidade que têm de estabelecer e restabelecer a importância do verdadeiro self em relação à tudo o que seja falso (p. 54). 
O que Winnicott quer dizer é que, embora sejamos capazes de fazer concessões diariamente à sociedade, podem existir áreas que consideramos especiais e não aceitamos fazer concessões
Na área escolhida não há lugar para concessões (p. 54).
Podemos resumir dizendo que a sociedade impõe regras que devemos aceitar, consentir. Tais concessões levam à socialização e à construção de um falso self. É esse falso self que, por vezes, contrasta com o self verdadeiro, aquele que mantém nossos desejos, que é de nossa privacidade. Nessa luta, estamos todos, e a todo instante, envolvidos.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

O Estranho Apelo do Ciúme - M. Blévis

Este texto é uma síntese de um capítulo I do livro de M. Blévis (1) intitulado "O Estranho apelo do ciúme".

A frase "você nunca saberá o quanto eu a teria amado", dita pelo namorado, quase fez Cléa desmaiar. Ela estava muito próxima do fundo do poço. Lúcida, mas em desespero, ela sabia que o ciúme a estava consumindo e tudo lhe parecia bem claro. Nesse ponto, se destaca a questão da "racionalização", tão típica do delírio de ciúmes.  É o que destaca Blévis.
O ciúme atesta um desvario perante o qual as suspeitas do ciumento parecem ser uma "racionalização", uma "roupagem do movimento de pavor que o suscita. Mas, que chaves fornecem estas máscaras? (p. 30).
A "racionalização" funciona, então, como uma máscara que esconde o pavor. Ora, segundo Cléa, como é que, naquele momento em que o namorado diz que a ama fala como se já não estivessem mais juntos? ("você nunca saberá o quanto eu a teria amado") Cléa já não sabia se era a mulher amada do "presente" ou a mulher esquecida do "futuro". pode parecer a alguns estranho o fato de poucas palavras dispararem tão forte angústia, mas
O ciúme é uma tortura que se alimenta das mínimas palavra e as deturpa em seu proveito (p. 31).
O resultado foi Cléa adentrar em uma crise de angústia, abrindo um abismo com relação a seu namorado. Mas, como nomear este abismo? Na impossibilidade, Cléa se alimenta de "ruminações" infindáveis sobre qualquer palavra que lhe era dirigida pelo namorado, afinal:
O ciumento é alvo permanente de batalhas internas, tão exaustas quanto estéreis (p. 33).
Sim, porque quem dota os rivais de tantos encantos e sedução é o próprio ciumento. No fundo, então, suas racionalizações e convicções acerca de numa traição são "fantasmas sem consistência". Fundamental, então, buscar a linguagem de Cléa na sua infância. Nesse momento,
O psicanalista precisa de toda a sua habilidade para conseguir se colocar na "pele infantil" do paciente, imaginá-la e descobrir as palavras que lhe faltaram (p. 34).
Qual, então, o curso das sensações de rejeição experimentadas por Cléa ao longo de sua vida? Não demorou para que uma lembrança lhe viesse à mente. Tratava-se de uma imagem que era recorrente. Em uma cidade devastada, um cachorro vadio e faminto andava por fachadas de prédios em ruínas.

Não havia dúvida que Cléa imaginava-se sendo esse cão desamparado e aflito, e a recorrência dessa imagem não era mais que um pedido de socorro. Mas, que conflito vivenciado por Cléa poderia ter causado toda essa cena sombria e destrutiva? Que acontecimentos foram esses, tão fortes, que foram silenciados por Cléa? O que a teria deixada tão faminta por palavras e vínculos?

No decorrer das sessões, suas associações iam em direção às "guerras" familiares. Ela sabia que a mãe fora enganada pelo pai. Logo em seguida o pai viria a morrer, mas sobre a traição e sobre o próprio pai passou a imperar um "silêncio". Cléa, na realidade, só possuía algumas fotos dele, de seu rosto ("fachadas").

Esse silêncio hostil por parte da mãe privara Cléa de todo o Luto necessário. Sem ele, sua dor permanecia "real", não simbolizada. Talvez por isso, andasse "vagando", faminta de significados, como aquele cão bem representava, diante de fachadas em ruínas.

Cléa, portanto, não havia explorado a realidade de suas emoções. E a impossibilidade do luto pelo pai, imposta pelo silêncio, deixara em suspenso sua feminilidade. O ciúme, então, a levava sempre a imaginar uma mulher a quem seu namorado poderia se dirigir. Uma rival que possuiria esta feminilidade. O abismo, então, era longo e profundo. De acordo com M. Blévis,
Uma construção de hipóteses erigida por um psicanalista só é pertinente quando faz reviver na memória do paciente fragmentos de lembranças que ajudem a preencher as omissões causadas pelos diversos recalcamentos, censuras, foraclusões ou renegações. O tratamento psicanalítico restitui força e vida a todos os vestígios e significações de acontecimentos que foram vividos, mas permaneceram fixados sem alteração no psiquismo. Com isso, eles persistem sob a forma de enigmas perigosos (...) O psicanalista, no espaço da transferência vai em busca das lembranças escondidas e cristalizadas nas palavras do paciente, a fim de "reativá-las" (p. 38).
Mas, o avanço definitivo de Cléa veio através de um sonho. Neste sonho, ela cruzava, na rua, com um homem com uma máscara de carnaval veneziana, com um bico assustador. Ela tinha que transar com ele, mas ela parecia um bebê. Ela sentia uma excitação sexual, mas desprovida de prazer. Logo, isto foi interpretado como uma revivência do amor intenso que Cléa sentia pelo pai, então proibido e silenciado pela mãe.
O trabalho da análise suspende esse tipo de proibição, desarticulando o pavor que ela encerra, e reabre o espaço do desejo de viver; nesse sentido, toda análise é também um "renascimento" (...) Cléa não poderia fazer o luto do pai enquanto ele não voltasse a ocupar um lugar "vivo", em palavras que o arrancassem do silêncio em que a mãe o havia escondido (p. 44).
Seu ciúme era, ao mesmo tempo, uma proibição de pensar no vínculo amoroso em seu lugar próprio e um apelo para arrancar essa preciosa ligação de sua ganga de proibições (p. 41).
Se era um destruidor de vínculos, o ciúme era também o lembrete de uma dor de amor perdida. Assim,
A saída do ciúme veio da possibilidade de lhe ser restituído o direito de amar a um pai, um homem, e também a si mesma como "apaixonada" (p. 41).
A proibição e o silêncio da mãe haviam amputado uma dimensão essencial da sua "identidade feminina". Há, no ciúme, uma oscilação entre o amor e a fúria (angústia) e essa raiva não é, ingenuamente, um "sinal de amor", é pura hostilidade. O ciumento tem raiva por não poder "consertar" o amado para que este lhe dê o reconhecimento e o amor que acha merecer. Mas, isto é impossível que alcance, até porque a demanda do ciumento é impossível de satisfazer. De acordo com Blévis,
No ciúme, é uma proibição de amar - no sentido como a infância ama, de forma intransigente, total e libertária - que o sujeito procura expulsar de si (p. 42).
Se ele conseguir essa expulsão, passará a amar como um "adulto". O ciúme, então, serve de anteparo para uma falha íntima. E a liberdade contra o ciúme vem quando se simboliza essa falha, como compreendendo que era possível reconquistar o direito de amar, sem mergulhar numa angústia mental. Afinal,
Amamos contra a morte, para vencê-la, para esquecer que somos mortais e, ao mesmo tempo, sabemos perfeitamente que nossos laços amorosos podem romper-se a qualquer momento. Assim, somos reconvocados à vida por eles e expostos ainda mais à angústia de nossa finitude ao perdê-los (p. 42).
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BLÉVIS, Marcianne. O Ciúme - Delícias e Tormentos. - São Paulo: Editora Martins Fontes, 2009, p. 27-42