quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Pierre Bourdieu (Dossiê - Revista Cult 166/2012)

Impossível não registrar algo acerca do dossiê preparado pela Revista Cult (n. 166, março 2012) para relembrar alguns conceitos de Pierre Bourdieu neste momento de 10 anos de sua morte (1930-2002). Uma justa homenagem a um dos maiores intelectuais do século XX, principalmente num momento em que, como diz Daysi Bregantini (editora da Cult),
nossos poucos intelectuais públicos são desmotivados, assim como nossos bons criadores. A economia vive um momento inédito de crescimento, mas não é representada na produção cultural, que está desbotada e sem vigor. O jornalismo cultural, com poucas exceções, está quase desmoralizado e a reboque da indústria do entretenimento. Por que nos conformamos?
Bourdieu é aquele intelectual ao qual podemos atribuir duas grandes características: é "engajado" (segue a tradição francesa de participar ativamente de movimentos sociais, integrando a teoria com a prática) e é "total" (sua obra cobre uma gama extremamente variada de problemas, domínios e dimensões da vida social).
 
Sua produção é vasta e, recentemente, foi publicado na França o livro "Sobre o Estado", produto de um curso oral entre 1989 e 1992 onde discutiu o papel do Estado e do indivíduo na sociedade. Segundo Franck Poupeau, ali Bourdieu constrói um modelo de gênese do Estado, pensado no cruzamento da História, da Sociologia e da Filosofia Política, com referências ao contexto francês da época, quando da desconstrução dos serviços públicos, das políticas sociais e da própria ideia de "público".
 
O termo que usava era o do "abandono do Estado", imaginando que o neoliberalismo estaria esvaziando completamente o Estado de suas funções. Nesse aspecto talvez tivesse se surpreendido, hoje em dia, com a sobrevivência de inúmeras funções e, talvez, optasse por falar em "transformação" do Estado e suas funções. Mas, é esperar pra ver, com calma, como tratou esta questão do Estado num momento decisivo de seu questionamento.
 
Entretanto, apesar de ser um dos autores mais citados no mundo (e "descoberta" no mundo inglês), sua obra vem sendo muito atacada pelos sociólogos franceses. Para Bernard Lahire, um de seus  herdeiros, estaria ocorrendo um processo de "desqualificação" (muito típico nas Ciências Sociais) que obedeceria à lógica da moda*, onde não há espaço para argumentações e evidências empíricas, somente para o "novo" e o "ultrapassado".
 
O que existiria por trás disso, então, seria uma recusa de uma sociologia subjetiva, apegada aos estudos da dominação e da desigualdade, dos determinismos sociais. Predomina, na atualidade, uma sociologia consensual, ausente de relações de dominação.
 
Vê-se aí reflexos da ideologia consumista onde os intelectuais estariam se comportando como crianças que, em busca de reconhecimento por parte do poder, estariam se tornando dóceis e se recusando a denunciar as violências. Um comportamento que tira das Ciências Sociais qualquer possibilidade de se tornar um contrapoder.
 
É neste contexto que Geoffroy de Lagasnerie critica a relação de muitos intelectuais (como Alain Badiou) com a mídia, também expressão dessa busca frenética por um tipo de reconhecimento similar à das celebridades.
 
Para ele, tais autores estariam se tornando ensaistas de segunda linha e produzindo subpesquisas, fazendo praticamente desaparecer o debate intelectual. Entretanto, o autor não demoniza a mídia e vê que Bourdieu, por sua vez, não soube avaliar com clareza o papel da mídia, perdendo-se, junto a outros importantes teóricos, numa feroz crítica aos jornais e suplementos culturais. Havia um receio de se perder o "monopólio" do discurso acadêmico?
 
Não há como negar o importante papel destes outros espaços como "críticos" das práticas acadêmicas, papel importante para se atenuar as chamas "imposturas" acadêmicas (similares às imposturas midiáticas). A crítica feroz, portanto, mais parecia uma tentativa de salvaguardar de críticas o espaço acadêmico, contribuindo para isolá-lo cada vez mais da sociedade, fechando-o em si mesmo.
Quando refletimos sobre o jornalismo, insistimos com frequência na censura que exerce. Mas a contribuição essencial do jornalismo reside no fato de que se trata de uma instância exterior à universidade. Ele representa um espaço de acolhimento para as obras, os autores e questionamentos em ruptura com as normas científicas (p. 39).
Outra publicação de Bourdieu, que deve ser lançada ainda este ano no Brasil, é "Os Herdeiros". Segundo sua tradutora, Ione Ribeiro Valle (UFSC), o livro inspira-se na tradição weberiana de não considerar a relação de dominação como exclusivamente econômica, embora sustente (como o marxismo) a ideia de divisão da sociedade entre dominantes e dominados.
 
No livro, Bourdieu rompe com a "ingenuidade" da ideologia da igualdade de oportunidades assentada na ideia de uma escola que alcance a todos. Independente de qualquer coisa, a escola ainda tem a função de legitimadora das desigualdades, mais do que um instrumento de mobilidade social. Para Bourdieu, a cultura de elite ainda predomina e seria necessário uma socialização diversa daquela preconizada pela escola (**). Vejamos, em síntese, alguns dos principais conceitos de Bourdieu:
 
1) Capital Cultural - Conjunto de qualificações intelectuais produzidas pela escola ou transmitidas pela família. Pode ser "incorporado" (como a facilidade de expressão), "objetivo" (como livros) ou "institucionalizado" (como títulos escolares). É uma propriedade que se tornou parte integrante da pessoa através da aprendizagem e aculturação, e fortemente relacionado ao capital econômico do indivíduo;
 
2) Capital Econômico - Conjunto de recursos patrimoniais e de rendas ligados ao capital ou a um exercício profissional assalariado ou não assalariado;
 
3) Contato Social - Conjunto de contatos, relações, amizades, obrigações, relações socialmente úteis que podem ser mobilizadas ao longo da trajetória profissional ou pessoal do indivíduo. É uma variável que confere maior ou menor "espessura" social, poder de ação e reação. "A rede de relações é o produto de estratégias de investimento social", consciente ou não, a fim de criar, manter, reforçar, reativar ligações das quais pode esperar retirar "lucros materiais ou simbólicos";
 
4) Campo -Espaço social estruturado e conflitual no qual os agentes sociais ocupam uma posição definida pelo volume e pela estrutura do capital eficiente no campo, agindo segundo suas posições nesse campo. Cada campo - um "campo de força" de agentes e instituições em luta - é dotado de regras de funcionamento e de agentes investidos de hábitos específicos (campo universitário, jornalístico, literário, jurídico, econômico etc). São campos autônomos que resultam da diferenciação do mundo social e dos modos de conhecimento do mundo. Assim, cada campo tem um ponto de vista fundamental sobre o mundo e cria, portanto, seu objeto próprio;
 
5) Distinção - Corresponde a uma estratégia de diferenciação que está no âmago da vida social. É uma propriedade que marca um desvio, uma diferença em relação a outros e que funda uma hierarquia entre indivíduos e grupos;
 
6) Capital Simbólico - Conjunto de rituais (como a etiqueta e o protocolo) ligados à honra e ao reconhecimento. É o crédito e a autoridade que conferem a um agente o reconhecimento e a posse das três outras formas de capital (econômico, cultural e social). Ele é produto da "transfiguração de uma relação de força em relação de sentido", designando o efeito de violência imaterial das outras formas de capital sobre a consciência. Um exemplo típico das transmutações das outras espécies de capital em efeitos simbólicos é o "grande nome" (de uma "grande família"), que condensa todas as propriedades materiais e imateriais acumuladas e herdadas. A compreensão da lógica dos efeitos simbólicos de posições e de recursos advém de uma economia dos bens simbólicos;
 
7) Espaço Social -~Representação multidimensional e relacional da estrutura da sociedade de acordo com o volume e a estrutura do capital em posse das diferentes classes sociais em conflito. É aqui que se encontra a verdadeira lógica da dinâmica social, pois a sociedade não é mais que um espaço de distribuição, ou seja, um vasto conjunto de posições hierarquizadas através de múltiplas dimensões, recortado por tensões e dominações, definido pela exclusão mútua, ou distinção, das posições que o constituem;
 
8) Habitus - Talvez seja o conceito central em Bourdieu. É um sistema de disposições duráveis e transponíveis, que podem gerar práticas em outras esferas no curso do processo de socialização. São potencialidades objetivas que têm a tendência a se atualizar e a operar nas práticas e representações que elas moldam de forma duradoura. Embora Bourdieu negue um determinismo social rígido (pois há uma margem de manobra para o "jogo" e a improvisação) o habitus seria sempre produto do condicionamento histórico e social. Ele não pode ser revertido com uma mera tomada de consciência, pois está profundamente inscrito, internalizado, nos corpos, gestos e posturas, mas nem sempre percebido e muito menos entendido racionalmente.
 
9) Hysteresis - É estar atrasado, defasado, em descompasso.
 
10) Violência Simbólica - É a violência não percebida, obtida por um trabalho de inculcação da legitimidade dos dominantes sobre os dominados e que assegura a permanência da dominação e da reprodução social. Um exemplo é a transmissão da cultura escolar;
O dossiê elaborado pela revista ainda tráz uma série de revelações da trajetória de Sérgio Miceli, para muitos o maior divulgador de Bourdieu no Brasil. No texto se percebe o fascínio e o caminho percorrido por Miceli no encontro com as ideias de Bourdieu, sua forte preocupação com as questões culturais e o pouco espaço encontrado nas universidades brasileiras dos anos 70, que se concentravam demasiadamente em Marx e em O Capital. Era uma época de "má vontade" da Sociologia com a cultura.
 
Para Miceli, enquanto o marxismo tratava a cultura de forma reducionista, o trabalho de Bourdieu era mais complexo e fascinante. Ele trazia uma nova leitura, menos dogmática e mais simbólica. Era, segundo muitos, a consolidação daquilo que os frankfurtianos iniciaram: uma análise central da cultura. Trata-se de um belo texto, revelador de uma época. Assim como Bourdieu pode ser muito revelador para a época atual.
 
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(*) interessante como a Universidade e, em especial o competitivo campo das Ciências Sociais, se utilize justamente daquilo que mais critica: a descartabilidade. Na ânsia por um "lugar" na história se patrocina, seguidamente, o "enterro" de teorias e metodologias (e seus representantes) para dar lugar às novidades. Ora, o que mais isso é além da "lógica da moda"?
(**) um bom terreno para se avaliar esta questão é o Brasil atual com sua migração social e o papel da escolaridade nesse processo como um todo. se pode tentar observar como o "desprezo" pela educação pode, de um lado, continuar servido a uma reproduzção cultural elitista, mas, também, a uma outra socialização, que menospreza qualquer valor oriundo da cultura escolar e acadêmica.

Uma rápida leitura: Paranóia (Laplanche e Pontalis)

 
Psicose crônica caracterizada por um delírio mais ou menos bem sistematizado, pelo predomínio da interpretação e pela ausência de enfraquecimento intelectual, e que geralmente não evolui para a deterioração (p. 334).
Esta é a definição de "Paranóia" encontrada no "Vocabulário da Psicanálise", dos autores citados no título deste post. Trata-se, então, em primeiro lugar, de uma patologia que se insere no grupo mais amplo das "psicoses", marcada, portanto, por delírios crônicos. Mas, dizer só isto não basta pois precisamos especificá-la melhor no interior desse amplo conjunto de patologias que é a "psicose". Em grego, a palavra paranóia significa "loucura" ou "desregramento do espírito" e Freud, naquilo que denominou paranóia, agrupou inúmeros delírios crônicos como os de "perseguição", os ligados à "erotomania", os de "ciúme" e os de "grandeza". A paranóia, portanto, é algo mais que simplesmente "mania de perseguição", como comumente se conhece.
 
Nesse sentido, Freud concordou com Kraepelin que já havia distinguido a paranóia das chamadas "demências precoces" (catatonia). Ambas, paranóia e demência precoce, compartilham delírios, mas jamais no mesmo nível de deterioração, pois, no caso da paranóia, se tratam de delírios mais sistematizados e eficazes. Esta é uma primeira grande distinção.
 
Mas, a paranóia também precisa ser bem definida no interior do campo das psicoses, até para não ser, como de fato é, frequentemente confundida com a "esquizofrenia", por exemplo. Ora, não é porque o delírio paranóico também produz uma "dissociação" com a realidade que ela pode ser confundida com a esquizofrenia, embora os sintomas possam combinar-se de diversas formas e proporções.
 
Mais precisamente, a paranóia se define, nas suas diversas modalidades delirantes, pelo seu caráter de defesa contra a homossexualidade. E temos que entender "homossexualidade" para além de sua conotação meramente sexual, ou seja, como "fantasia feminina", de "impotência".
 
É no estudo e desconstrução de seu delírio específico, portanto, que entenderemos melhor o funcionamento desta modalidade de psicose que é a paranóia.
 
A definição proposta pelos autores nos fornece um bom ponto de partida: trata-se de um delírio, bem sistematizado (pois é coerente), com forte caráter interpretativo (explica com veracidade a realidade) e ausência de enfraquecimento intelectual (gera convicções e certezas difíceis de serem abaladas). Por isso, a base do tratamento de um delírio paranóico é, justamente, sua desconstrução e revelação enquanto dissonante (incoerente) em relação á realidade. Tarefa difícil, mas não impossível.

A "identidade" entre a reflexão e a história

A Revista Piauí, em sua edição n. 55, trouxe um texto de Pérsio Arida que, em minha opinião, merece ser lido por todos. O texto é um relato de sua atuação na luta contra a ditadura e de seu relacionamento com o pai. Há muita sensibilidade e inúmeras lições com as quais podemos encontrar identificações. O texto não merece nenhum tipo de reparo, somente uma leitura muito atenta e respeitosa, por isso, limito-me apenas a transcrever alguns trechos que gostaria que fossem mais e mais compartilhados.
  • "O passado nunca está definitivamente concluído, age sem que o saibamos, ambíguo, esfinge. Há momentos em que desaparece, como se só importasse o cotidiano atribulado. Mas logo reaparece. Como uma sombra que se projeta sobre o presente. E nós o interpretamos continuamente, temos que decifrá-lo repetidas vezes para restituir coerência e identidade à nossa história";
  • "As memórias são lábeis, cada visita ao passado altera a frágil composição do terreno em que estão baseadas. E quando os sentimentos surgem, por milagre, no vigor original, não passam de afrescos preservados debaixo da terra, cujas cores vívidas se esmaecem no ar do presente. Daí minha escolha por um mosaico de fragmentos, flagrantes de emoção justapostos, longe da costura coerente que, tantas vezes, dá vida à ilusão de um processo ordenado";
  • "O tempo trouxe também o amadurecimento e a reflexão, muitas vezes quase tão penosas quanto as memórias do sofrimento. Passado o trauma, sobreveio o desencanto. Eu não me reconhecia mais nas ideias de juventude. Ficava arrepiado ao me lembrar quão naturalmente aceitara esfarrapados argumentos em prol da economia planejada e da propriedade coletiva dos meios de produção, ou da inevitabilidade da implosão do capitalismo. Meu muro de Berlim desmoronara muito antes do de concreto e arame farpado. E, mesmo colocando entre parênteses minha formação de economista, o que pensar do Lênin que lia com tanta avidez em castelhano? Os totalitarismos são todos assemelhados. Aquele rapaz de 17 ou 18 anos que considerava a democracia uma ideologia de dominação burguesa, percebi pouco depois, era de uma ignorância abissal, além de pretensioso";
  • "Eram pensamentos que embrulhavam o estômago. Demoliam sem piedade meus anos de militância comunista. Tinham o efeito de uma traição, tiravam o chão dos meus pés. Mas não havia como evitá-los, não havia canto no qual pudesse armazená-los – eles se impunham por si mesmos, clarividentes. Não se tratava mais da operação insidiosa daquele estranho sentimento de vergonha e constrangimento que tivera ao voltar para casa, aquele sentimento que faz recair sobre a vítima a responsabilidade do mal que lhe foi feito. Tratava-se agora da razão, cristalina e insofismável, mostrando o equívoco daquele esforço revolucionário nutrido de tão boas intenções. A militância contribuiu, por vias tortas, para a volta da democracia – mas nisso se esgotara todo o seu sentido. O mundo de ideais ao qual eu dedicara o melhor de mim perdeu qualquer encanto"
  • "Pois a verdade era uma só: tinha sido levado de roldão pelo movimento coletivo, abdicado da minha própria capacidade de me situar no mundo, arrastado feito uma Maria vai com as outras. E nada havia que pudesse fazer a respeito, a não ser curar as feridas com o tempo e aprender com a experiência. Aprender a prezar a independência de pensamento; a não se iludir com o conforto e amparo que os movimentos coletivos infundem a quem deles participa; e a desconfiar daqueles que invocam a História, o Social, o Interesse Público, o Interesse Nacional ou a pureza e suas boas intenções para violar as liberdades e os direitos individuais".
  • "Mais de quarenta anos se passaram desde os meses de prisão. Mas, ao longo desse tempo, senti pulsar a mesma identidade a cada encontro com os que compartilharam comigo aquelas aventuras de juventude. Éramos todos muito jovens e a vida levou-nos por caminhos distantes... Mas basta revê-los para que no seu olhar eu mesmo me reconheça... Há aqui também uma identidade secreta – habitamos a mesma casa, nossa alma foi construída da mesma maneira. É difícil expressá-la. Talvez se possa dizer de uma atitude de vida que desconfia do individualismo, do sentimento nocivo de que cada um cuida de si (e os outros que se danem), que tão frequentemente apequena as pessoas e tolhe sua humanidade. Ter ousado resistir à ditadura em nome de um mundo melhor não é necessariamente a única maneira de incrustar dentro de si essa desconfiança, mas tê-lo feito torna-a marca de alma indelével. Esta é a herança daqueles anos sombrios, aquilo que nos une, uma identidade secreta que faculta o reconhecimento e o autorreconhecimento. Não é mais nem um ideário nem uma plataforma política – mas quem ousaria dizer que é pouco nestes tempos tomados pelo egoísmo?"
O relato de Arida, evidentemente, trás muito mais que isto. Os trechos onde fala do pai são dignos de muito respeito e admiração. Mas, me atenho a um só comentário acerca dos trechos reproduzidos acima. A vida real, quase sempre, contrasta com as fantasias e ilusões proporcionadas pelas "críticas"; a vida real, quase sempre, vai de encontro à crença da "falsa consciência"; a vida real, quase sempre, resiste a qualquer chamamento para o "levante". Por que, então, imaginar que as pessoas são simplesmente vítimas (ou adeptas) do "pão e circo"? Talvez o despropósito da vida real, quase sempre, desarme qualquer espírito crítico. O desafio, portanto, não está na construção de um belo discurso, mas no desvendar dos movimentos dessa vida real. Só assim poderemos encontrar essa "identidade secreta" que nos une, mas nunca é tao aparente.

(José Henrique P. e Silva)

Política Midiatizada e Mídia Politizada

O texto abaixo é uma síntese das ideias apresentadas por Piovezani Filho¹ acerca das transformações envolvendo a mídia e a política. Piovezani parte do conceito de "pós-modernidade" de David Harvey, baseada na "acumulação flexível", para enfatizar a efemeridade do que é produzido e consumido no capitalismo atual.
Volatilidade e efemeridade nos serviços, nas ideias e nos desejos, e instantaneidade e descartabilidade das mercadorias são duas tendências do refinamento do capitalismo nos tempos pós-modernos. Em detrimento da ética, aflora a estética capitalizada, a era é a da imagem, do parecer e do aparecer (p. 51).
Em paralelo, a política também "espetacularizou-se". Não que desde sempre a política já não possuísse uma intrínseca propriedade imaginária, mas, agora, esse processo teria se intensificado, com uma "nova linguagem política", cujas maiores características seriam (segundo Courtine - post neste blog: "Os deslizamentos do espetáculo político"): a brevidade e a conversação. No que diz respeito à "brevidade", o campo político passou a organizar-se em termos de "arcaico x moderno" e não mais em termos de "esquerda x direita" -  (um exemplo está na eleição para a Prefeitura paulistana em 2012).
 
A "conversaçao", por sua vez, supõe uma forma dialógica que teria por missão construir a imagem de um político acessível (não distante do cidadão), sempre próximo e aberto ao diálogo. Mas, se a política se "espetacularizou", a mídia se "politizou", paralelamente. Com isso, a mídia busca sua posiçao de agente político, intensificando seu exercício sobre a política por meio da revelaçao de segredos e mentiras.
Subsidiada na pretensa existência, no espaço político, de um nível profundo (e, por isso mesmo, mais real), ou de uma dupla dimensão - a da manifestação (aparência) e da imanência (essência) -, a mídia reinvindica a legitimidade de sua laboração politizada, na medida em que diante daquilo que não é, mas que se manifesta como sendo ou daquilo que é, mas que aparenta não ser, a postura crítico-heurística que ela toma cumpre a funçao de deslindar o obtuso, de revelar o real (p. 57).
Natural daí surgir aquela postura de porta-voz dos que estão alijados do poder.  O que temos, então, é um simulacro da fala do povo, já que se o povo realmente falasse não precisaria de um porta-voz. Neste processo, a mídia acaba por assumir duas posições, como afirmava Bourdieu: a de "tribuno" (falando em nome do povo e para o povo) e do "debater" (fala da, para e contra a classe política). Existe aí uma "vontade de verdade" que, evidentemente, não elimina possíveis manipulações.
 
Um ponto necessário a ressaltar é com relação à audiência. Não estamos falando de uma subjetividade passiva, mas que interpreta, em parte, o produto midiático que consome, o que, necessariamente, influi na própria mídia. Ou seja,
Faz-se anunciar a inscrição de uma subjetividade consumidora, em certa medida subversiva, manifesta sob a forma do uso, de modo que se estabelece, com efeito, na produção discursiva midiática, uma interpretação espectadora e não uma mera recepção passiva (p. 62).
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¹ PIOVEZANI FILHO, Carlos Félix. Política Midiatizada e Mídia Politizada: Fronteiras mitigadas na pós-modernidade. In: GREGOLIN, M.R.V. (org.). Discurso e Mídia: A cultura do espetáculo. - São Carlos: Claraluz, 2003, p. 49-64.

A Espetacularização da Política e da Mídia e a Tarefa da Análise do Discurso

O texto abaixo é uma síntese das principais ideias trazidas por M.R.V. Gregolin¹ acerca da relação entre mídia e política na atualidade. A autora nos relembra, inicialmente, que Guy Debord, em 1967 ("A Sociedade do Espetáculo"), ao falar da indistinção entre o "real" e aquilo que é produzido e colocado em circulação, dá mais um passo ao que Adorno já anunciava como "industrialização cultural". Como analisar este caráter "espetacular" do que é circulado? Para a autora não há como não pensar esta "cultura do espetáculo" como um fato de "discurso", e que pode, portanto, ser trabalhada pela Análise do Discurso, cujo objetivo é o de:
explicar os mecanismos discursivos que embasam a produção dos sentidos [a partir de uma] compreensão de como se dá a produção e a interpertação dos textos em um determinado contexto histórico, em uma determinada sociedade (p. 10).
Em 1983, Pêcheux ("Discurso: estrutura ou acontecimento"), quando da vitória de Mitterand, percebeu como a mídia opera a transformação da política. Para ele, a estrutura enunciativa do discurso da mídia se assemelhava aos gritos das torcidas esportivas. Estaria ocorrendo a "espetacularização da política", através de uma metáfora popular, esportiva, que adequava-se ao campo político. Mas, o que isto significa?
 
Ora, quando a mídia diz "ganhamos!", referindo-se à vitória de Mitterand, o acontecimento político se associa ao resultado de um jogo esportivo. Mas, o problema é que, ao final de um jogo, o que se tem, sempre, é um resultado estável, que não se questiona. Perguntas como: "quem ganhou de verdade?", "o que está além das aparências?", não são colocadas, e perde-se qualquer relação entre o "real da língua" e o "real da história". É aí que deve entrar em cena o analista de discurso e sua tarefa de entender a relação entre essas duas ordens para poder falar sobre o "sentido" produzido. Afinal,
Há sempre batalhas discursivas movendo a construção dos sentidos na sociedade. Motivo de disputa, signo de poder, a circulação dos enunciados é controlada de forma a dominar a proliferação dos discursos. Por isso, aquilo que é dito tem de, necessariamente, passar por procedimentos de controle, de interdição, de segregação dos conteúdos (p. 12).
Nesse sentido,
A análise do discurso propõe, portanto, descrever as articulações entre a materialidade dos enunciados, seu agrupamento em discursos, sua inserção em formações discursivas, sua circulação através de práticas, seu controle por princípios relacionados ao poder, sua inserção em um arquivo histórico (p. 12)
Podemos, então, num esforço de síntese, dizer que a grande tarefa do analista de discurso é desvendar os sentidos produzidos pelos enunciados colocados em circulação em determinado contexto sócio histórico. Voltando à autora, o grande operador de todo este processo de espetacularização seria a mídia, com as transformações nas práticas discursivas por três meios:
 
1) A política como espetáculo - Com a forte aproximação entre a mídia e a política, aquela passou a exigir uma nova "fala" pública, cambiável, flúida e imediata. Desse modo, técnicas de comunicação foram aplicadas ao discurso político que ficou cada vez mais homogeneizado, um produto de consumo vendido a partir da "teatralização". Como consequência, os políticos cada vez mais oscilaram entre heróis de novelas e mercadorias a venda, cada vez mais se utilizou jogos de palavras e recursos que evitavam explicações, que afastaram o debate político e o aprofundamento dos temas.
Esse estilo é adequado à mídia hoje dominante - a televisão - que valoriza as performances exuberantes e faz com que a aparição de políticos se transforme em um espetáculo para o grande público (p. 13-4).
O resultado é o que se chama de "midiatização da política". Mas, este processo é mais amplo e implica na transformação da própria mídia que, cada vez mais, se atribui a função de investigação, situando-se como "porta-voz" da coletividade, que vai descobrir os "segredos" dos agentes políticos. Resulta daí, então, a "politização da mídia". Midiatização da política e politização da mídia são, portanto, dois processos correlatos, que se alimentam.
 
2) A língua como espetáculo - A língua portuguesa, na mídia, tem como objetivo não apenas comunicar, mas um efeito simbólico (ordenação, categorização etc.) e político (luta pelo poder).
 
3) A história como espetáculo - A mídia desenvolve estratégias para a construção de uma "história espetacularizada", como se acompanhássemos ao vivo a produção da história, mas dela não participássemos (uma história sem sujeitos, portanto).
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¹ GREGOLIN, Maria do Rosário V. A Mídia e a Espetacularização da Cultura. In: GREGOLIN, M.R.V. (org.). Discurso e Mídia: A Cultura do Espetáculo. - São Carlos: Claraluz, 2003, Apresentação, p. 9-17.

A Demanda por "Reconhecimento" (Teoria Crítica e Psicanálise)

Certamente são muitas as demandas atuais da clínica psicanalítica e, em boa parte dos casos, é possível construir uma "ponte" entre a queixa individual e as questões sociais nas quais este indivíduo está colocado. Não é um exercício muito simples, mas considero necessário, até para vermos o que "é" do sujeito e o que "é" do social, sem nenhuma pretensão, é claro, que sejam esferas autônomas.
 
Uma destas demandas que a clínica psicanalítica mostra é a que vou chamar "Demanda por Reconhecimento", na qual existe uma luta do sujeito para emancipar-se através da (re)construção de sua identidade. Isto fica muito claro em inúmeros discursos que chegam à clínica psicanalítica. E é sobre ela que gostaria de fazer alguns comentários.
 
A "ponte" com o social pode ser feita através da Teoria Crítica (TC). O que é a Teoria Crítica? Em um rápido retrospecto, com o total auxílio da "apresentação" feita pelo professor Marcos Nobre, ao livro "Luta por Reconhecimento", de Axel Honneth, podemos dizer que, em 1924, foi fundado junto à Universidade de Frankfurt, na Alemanha, o Instituto de Pesquisa Social. Horkheimer assumiu sua direção em 1930 e propôs um programa interdisciplinar cuja referência teórica era o marxismo.
 
Nascia a TC que tanto influenciou o debate contemporâneo após a II Guerra. Buscava-se descrever o funcionamento da sociedade e, mais, compreendê-la criticamente à luz de uma possível emancipação. Esta entretanto, apresentava-se como "bloqueada" pela própria lógica da organização social.
 
A partir dos anos 40 Horkheimer e Adorno vão se distanciando dos diagnósticos e soluções marxistas e passam a dar a estas uma nova versão intelectual. Atualmente, Axel Honneth é um dos mais fortes expoentes da TC. Assim como Habermas, posicionou-se sempre em contraste com seus antecessores e apresentou sua teoria como solução para, justamente, os impasses detectados nas teorias anteriores - é essa postura de crítica interna da TC que me fascina metodologicamente, pois me parece muito mais científica e honesta do que ficar simplesmente, reproduzindo dogmas que, muitas vezes, já não explicam a realidade. Sua postura foi de procurar encontrar nos escritos de seus antecessores pistas e traços de um rumo teórico que não havia sido trilhado e que poderia ter evitado as dificuldades. Como diz o prof. Marcos Nobre:
Esses elementos negligenciados podem dar novo rumo à teoria social crítica,agora ancorada no processo de construção social da identidade (pessoal e coletiva) e que possa ter como sua gramática o processo da "luta" pela construção da identidade, entendida como uma "luta pelo reconhecimento" (p. 11, apresentação).
Mas, em que aspectos Honneth estaria confrontando Habermas e oferecendo novas respostas? Habermas havia, por sua vez, procurado criticar o diagnóstico de Horkheimer e Adorno em seu clássico "A Dialética do Esclarecimento" onde investigavam a "razão" humana e concluíam que a racionalidade "instrumental" era a forma estruturante e "única" da racionalidade social apresentada pelo "capitalismo administrado" que podiam observar à época.
 
Mas, aqui existiria uma "aporia" (um impasse), pois se a razão instrumental é a única no sistema e bloqueia toda e qualquer emancipação, como criticá-la? Para Habermas, insistir nessa aporia seria colocar em risco o próprio projeto da TC. É a partir daí que Habermas vai propor novo diagnóstico e recuperar a capacidade crítica da teoria. Aspectos decisivos das relações lhe pareciam estar sendo ignorados.
Ele pensou, então, em um novo conceito de "racionalidade". Habermas partiu do pressuposto que a racionalidade instrumental não deveria ser "demonizada", mas que deveria ter "freios", daí vir com o conceito de "racionalidade de dupla face", onde a "instrumental" convive coma "comunicativa".
 
A "instrumental" é uma racionalidade orientada para o "êxito",o que possibilita a reprodução material da sociedade. A "comunicativa", por sua vez, é orientada para o "entendimento", que possibilita a reprodução simbólica da sociedade. Uma, então, responde ao "sistema", outra ao "mundo da vida", das relações sociais.
Trata-se de apontar ara uma racionalidade cujo padrão não é o absoluto hegeliano ou do sujeito característico da "filosofia da práxis" sem, com isso, dar adeus à modernidade e seu projeto. Trata-se de mostrar que há vertentes do projeto, moderno que não foram levadas adiante (p. 14, apresentação).
A aporia, portanto, é um impasse, mas não uma impossibilidade, possui alternativas. A conjuntura de Habermas era distinta. Com o capitalismo sendo regulado pelo Estado, concluiu que aquelas tendências que poderiam levar à emancipação tinham sido neutralizadas (o colapso interno do sistema, e a organização do proletariado).
 
Algo disso já estava em Horkheimer e Adorno, mas Habermas não conclui que a emancipação estava definitivamente bloqueada, afinal, às tentativas de colonização do mundo da vida pelo sistema, estruturas da ação comunicativa iriam se opor.
 
Mas, para Honneth, faltava enfrentar o problema por inteiro. Tanto em "Dialética do Esclarecimento" quanto em "Teoria da Ação Comunicativa" (Habermas), haveria um déficit sociológico. Um exemplo está na própria distinção dual entre sistema e mundo da vida, muito mecânica, e não permeada pelo "conflito social".
 
Com isso, Habermas não conseguiu pensar o próprio sistema e sua lógica instrumental como resultados de permanentes conflitos sociais, capazes de moldá-lo de acordo com a correlação de forças políticas e sociais. O conflito é abstraído da teoria. Mas, se a base da interação é o conflito, sua gramática, segundo Honneth, seria a luta por reconhecimento.
 
O que Honneth faz, então, é o sentido inverso: partindo dos conflitos vai em busca das lógicas da sociedade. Não se interessa, entretanto, primeiramente, pelos conflitos pelo aumento de poder, mas...
interessam-lhe aqueles conflitos que se originam de uma experiência de desrespeito social, de um ataque à identidade pessoal ou coletiva, capaz de suscitar uma ação que busque restaurar relações de reconhecimento mútuo ou  justamente desenvolvê-las num nível evolutivo superior. Por nisso, para Honneth, é possível ver nas diversas lutas por reconhecimento uma força moral que impulsiona desenvolvimentos sociais (p. 18, apresentação).
Isso lhe vai exigir a análise do indivíduo a partir de 3 dimensões:
  • A esfera emotiva que permite ao indivíduo a confiança em si mesmo;
  • A esfera jurídico-moral em que o indivíduo é reconhecido como autônomo;
  • A esfera da estima social em que seus projetos de autorrealização pessoal são objetos de respeito solidário;
O que vemos, então, até aqui, é a recuperação que Honneth faz, no interior da TC, da ideia e do valor do "conflito social" (com sua gramática vinculada à luta pelo reconhecimento) para explicar a dinâmica da sociedade. Algo similar, um conflito de tal ordem, sem dúvida, ocorre na esfera psíquica. É esta gramática que inunda os conflitos sociais atuais e, a clínica psicanalítica.
 
O que podemos dizer, então, é que o indivíduo enfrenta uma dura batalha psicossocial em busca de reconhecimento, tanto de si mesmo, quanto social. Hoje, vivendo a sociedade que define a todos pelo "sucesso", o indivíduo, evidentemente, não encontra o seu lugar, o espaço necessário de reconhecimento em que possa atuar. Nos defrontamos, a todo instante, com a ameaça, ou com o próprio "fracasso", e isso destrói um pouco mais nossa própria confiança.
 
É nesta riquíssima interação entre o psíquico e o social, mediada, justamente, pelas relações emocionais e sociais, que encontramos a oportunidade, ou não, de nosso auto reconhecimento, base para que esse respeito seja solidário.
 
É aí que se constrói a ponte entre a "clínica" e o "social", entre o indivíduo e a sociedade. se não nos situarmos nessa metafórica ponte dificilmente poderemos enxergar o indivíduo em sua totalidade. Se é que isto é possível.
 
É no real, no social, que o psíquico transborda. E é neste terreno, absolutamente pantanoso, movediço, que temos que atuar para entender e auxiliar nessa reconstrução identitária. Só não podemos esquecer que também vivemos por sobre este mesmo terreno.
 
Em outros posts tentarei explicitar melhor essa "luta pelo reconhecimento" de Honneth.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Vergonha, Depressão e Narcisismo: O conflito que vive o "envergonhado"

Hoje se dá uma maior atenção à "vergonha" como objeto de estudo. E isto se deve ao fato de que a disseminação de novas configurações neuróticas após Freud não cessa, sempre mostrando facetas até então ocultas ao olhar da metapsicologia. Assim, o caso das fobias sociais é um exemplo, pois, tradicionalmente vistas sob o ângulo do "medo", hoje pode-se colocar em relevo a "vergonha".
 
Na edição de out/2013 da Revista Mente&Cérebro o psicanalista Jurandir Freire Costa nos oferece um artigo justamente sobre a "vergonha" (Os sobrenomes da vergonha: melancolia e narcisismo), aquele sentimento que reflete bem o paradoxo de querer ser visto e reconhecido pelo outro, ao mesmo tempo que recusa ser visto por acreditar não possuir o que o outro deseja. É este paradoxo que é o cerne do conflito envergonhado. 

Neste conflito, depressão e narcisismo estão presentes. Segundo Jurandir, a DEPRESSÃO se faz notar através da "ausência de culpa", ou seja, o envergonhado não sente culpa por um dano real ou imaginário causado a outro, mas pelo "sentimento de insuficiência diante do desejo do outro". A marca principal da culpa é o "traço vergonhoso" que chega como uma sombra que recai sobre o sujeito. Mas, não confundir com a melancolia, pois esta é uma desorganização mental grave que pode levar à morte ou paralisia da atividade psíquica. Na vergonha o que há é uma desproporção entre a natureza dos mecanismos de defesa (semelhantes à melancolia) e os efeitos sintomáticos (próximos da neurose fóbica e das depressões por culpa) e o alvo do ódio é o próprio sujeito e não o objeto incorporado. É neste contexto que "a imagem corporal é submetido à mais cruel inspeção persecutória, racionalizada como prova de 'inferioridade real...", com consequências desastrosas. É a partir daí que o indivíduo lança mão, como defesa, da "recusa da intenção" (conceito de Marie-Claude Lambotte), que abandonando a intencionalidade (ação) tenta calar o psiquismo. É assim que o sujeito acabar por encenar para si e os outros a pantomima (abuso dos gestos para se comunicar e chamar a atenção).

É na tentativa de explicar melhor esta dinâmica melancólica que se recorre ao NARCISISMO. O que se percebe na vergonha é uma "precariedade narcísica" marcada por um olhar materno sem a intenção e amor, como uma moldura vazia do desejo do outro. A criança é despida de qualidades, seu imaginário se cristaliza no vácuo de ideais de eu maternos. Daí a inconsistência da formação egóica (baixa autoestima) e a dificuldade em sentir-se como suporte de narrativas positivas. Predomina uma história marcada por subtrações: eu não sou, eu não posso, eu não sei, eu não quero, eu não penso etc.

Como, então, analisar este indivíduo que não tem o ímpeto necessário para preencher sua moldura vazia com histórias e conteúdos suficientemente bons? Parece que o conceito de "perdão" terá uma importância decisiva. Mas, o que é o perdão? De original conotação religiosa passou a ter um sentido leigo como algo indispensável à manutenção da imprevisibilidade das ações humanas, pois sem o perdão não nos arriscaríamos a agir, já que não conseguimos prever ou controlar os efeitos de nossas ações. O perdão seria como um passaporte para a entrada no universo simbólico da relação com o outro, que precisa de nossa confiança em sua suposta benevolência. Na psicanálise, o "perdoar a si" é fundamental para este processo com o outro, já que seria reconhecer em nós mesmos a existência do gozo e do real, ou seja, daquilo que é "abjeto" (desprezível). É este reconhecimento que implica em nos tornarmos agentes de nossa história, que deixa de ser contada somente como se tudo fosse resultado da intenção do outro.

Daí é um passo para se concluir que a própria "moldura vazia" é uma fantasia defensiva, uma cena congelada pelo ego em favor de sua própria homeostase. Como nos diz Jurandir:

No começo, o vazio da moldura se impõe como o espelho da impotência da mãe-ambiente para criar uma imagem narcísica suficientemente boa do próprio sujeito. Depois esse vazio é progressivamente engessado numa outra fantasia, desta feita de autoria egóica: a do sujeito como replicante do não-desejo do outro (p. 73).

Ou seja, a vergonha não é só efeito da incapacidade do outro em projetar conteúdos bons e positivos, mas também uma resistência do ego em aceitar um sujeito que resiste à "intrusão" do outro.

A vergonha, a vitimização do ego pelo ego, faz da "moldura vazia" uma fachada que esconde a existência de um sujeito coautor de seu destino psíquico. Ao apegar-se à posição de traído pelo desejo do outro, o ego, inconscientemente, buscar furtar-se ao trabalho de desejar segundo a castração (p. 73).

Desse modo, "perdoar a si mesmo é tornar-se responsável inclusive pelo que o outro fez de 'irresponsável'...". 

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Os homens e a questão da fidelidade

A fidelidade masculina é praticamente uma questão de honra para as mulheres, que parecem não querer abrir mão dessa exigência. Por outro lado, "traição" praticamente virou um sobrenome masculino. Diante de todo este quadro, os homens têm tido a oportunidade de se explicar? Não é uma tarefa fácil, praticamente para quem se dispõe a ser advogado do diabo.
 
O texto abaixo foi escrito a partir das considerações trazidas por Maryse Vaillant¹ e seu método foi o de, pós fazer a escuta (nem um pouco "moralista") de inúmeros casos, elencar aqueles que considerou de "infidelidade (ou fidelidade) extrema" e compreendê-los em seus pormenores para, a partir daí, lançar luz sobre as chamadas "pequenas fraquezas corriqueiras". Importante lembrar que a autora se concentrou nas uniões heterossexuais, plenamente estabelecidos. Sobre a escuta, ela nos diz:
Ao deixar que a história de cada um explique a aventura passageira, avassaladora ou discreta, que pode abalar um casal ou levá-lo à ruptura, sem dar definição a alguém, procurei as forças profundas que sustentam os discursos dos homens nos que diz respeito à sua maneira de conceber o compromisso, o amor e o casamento (p. 176).
Dentre os principais temas investigados podemos elencar os seguintes:
  • Que motivos levam um homem a enganar a mulher que ama?
  • Que motivos levam um homem a amar a mulher que engana?
  • Por que diversos maridos adúlteros jamais deixam suas esposas?
  • Que motivos levam as mulheres a praticamente não desconfiarem de quase nada?
  • Quais as dificuldades em manter-se monogâmico?
  • Por que motivos consideram as conquistas como garantia de virilidade?
  • O que definem como mentira, escapada, traição e adultério?
  • Por que consideram a existências de "mentiras protetoras"?
Parece-me, entretanto, que duas grandes questões rondam todo o trabalho de Maryse Vaillant:
  • Até que ponto a (in) fidelidade está relacionadas às qualidades de homens que traem ou mulheres amadas?
  • E, qual a relação, de fato, entre a (in) fidelidade e o amor?
Então, o que alegam os fiéis e os infiéis?
 
Para tentar responder à esta questão, e todas as demais, citadas acima, a autora nos apresentará cinco grandes "tipos" comportamentais:
  1. O monogâmico mentiroso e sua "arte de acomodar o casamento"
  2. O poligâmico ansioso e seu "desejo de ter todas as mulheres"
  3. O poligâmico indeciso e seu "sonho de amar todas as mulheres"
  4. O monogâmico cativo e sua "concepção específica de homem"
  5. O poligâmico resolvido / monogâmico perdido e a "possibilidade de mudança"
 É a partir, então, da análise destes "tipos" que a autores vai chegar  a algumas conclusões:
  • Não veio à tona um "modo amoroso masculino" específico, distinto daquilo que serve de âncora para as mulheres (amor pelo pai, dedicação ao filho, arte de apoiar ou forjar os homens). Os homens, então, não falam das mulheres, nem de suas figuras sedutoras e maternas. Se ocorre, é de forma muito ocasional. Os homens falam de si mesmos, suas dúvidas  identitárias, sonhos, dificuldades com o compromisso. Falam mais de suas angústias e limitações que de seus amores e amantes;
  • Duas grandes angústias emergem: a clássica "castração" e o medo de ver o "desejo" acabar ("afânise"). Por isso, para o homem, independente da fase de sua vida, a necessidade de amar e ser amado assume uma nuance fálica;
  • Há uma clara dificuldade por parte dos homens em deixar a infância para trás, e isso, fundamentalmente, pelo fato de que o que faz mesmo diferença em matéria de fidelidade é a capacidade (não de amar) mas de renunciar ou separar-se do outro;
SOBRE OS INFIÉIS - Reivindicam a liberdade sexual e o pleno direito ao desejo. Praticam o adultério de forma crônica e mentem para preservar o casamento. Possuem uma fome insaciável de amor. "...Acham impossível abrir mão da liberdade de seduzir, uma vez que a única coisa que importa aos homens atormentados pelo medo da castração é a disponibilidade sexual" (p. 177). Estamos sempre presos à equação que une masculinidade e virilidade. "...As infidelidades daí decorrentes são apenas a consequência de um drama íntimo de um homem que, por detrás de sua profissão e fé, oculta autêntica fragilidade. Assim, a infidelidade é o sintoma da dificuldade de assumir as escolhas e as imposições inerentes a qualquer existência" (p. 178). Existem os "poligâmicos indecisos" que cultivam amores múltiplos e paralelos. Geralmente ficam infelizes por terem que se utilizar de mentiras e acham que suas companheiras são intolerantes.

SOBRE OS FIÉIS - Alguns podem ser indiscutivelmente fiéis, seja por uma questão de natureza, estrutura ou cultura. São homens de uma única mulher, enclausurados na monogamia, seja por imposições, honra ou loucura, prisioneiros de si mesmo ou de seu passado. São homens que mentem para si mesmos, pois estar com a consciência tranquila é fundamental para eles. "Todos são incapazes de escolher ou de se desvencilhar das imposições que os amarram. São fiéis por medo, por inibição, por adição, porém também por preguiça. Incapazes de escolher ou de se desvencilhar, só lhes resta serem fiéis. Duplicadas ao infinito pelas suas uniões e seus casamentos, as figuras parentais arcaicas que os enquadram não lhes deixam nenhuma esperança de liberdade intima. Então, a felicidade é o sintoma de sua dificuldade de se desvencilhar - da história de sua infância, por exemplo - para construir sua vida de homem" (p. 178).

Mas, o que é um HOMEM? O fato é que nestas últimas décadas a figura masculina se tornou muito complexa e seus esquemas comportamentais e identitários não estão mais tão bem estruturados, estão obsoletos. Isso implica em que os homens de amanhã terão que inventar novas estruturas amorosas de longo prazo. Não bastará mais tomar seu pai como modelo (ou contraexemplo) para poder deixar a mãe e as ilusões da infância. "...Entre os desafios mais difíceis, ele talvez tenha de procurar outra unidade de medida identitárias em vez do tamanho ou do vigor do seu órgão reprodutor e dos seus substitutos, como o poder e o dinheiro..." (p. 179). São mudanças no imaginário masculino que precisam se refletir na realidade, pois a libido não pode mais ser a única força motriz de sua existência e razão única para viver. Os homens, então, devem abandonar o amor de uma mulher (mãe) e a promessa do pênis, para procurar em seu pai e em seus pares o modo de se tornarem si mesmos.

 
___________
 
¹ VAILLANT, Maryse. Os Homens, o Amor e a Fidelidade; Tradução: Elena Gaidano. - Rio de Janeiro: BestSeller, 2013 (c) 2009. A autora foi uma psicóloga francesa, prof. da Universidade de Paris.

domingo, 20 de outubro de 2013

O papel do psicanalista

"Uma vez ou outra, quase todos nós nos sentimos aprisionados por coisas que pensamos ou fazemos, enredados por nossos impulsos ou escolhas idiotas; presos em alguma infelicidade ou medo, atolados em nossa própria história. Sentimo-nos incapazes de seguir adiante, mas apesar disso acreditamos que deve haver uma maneira (...) E como mudança e perda estão profundamente conectadas - não pode haver mudança sem perda..." (Stepen Grosz, A Vida em Análise).

É neste contexto que o papel do psicanalista consiste em ajudar na mudança, compreendendo, sabendo ouvir, e não somente as palavras, mas os intervalos entre elas.

"Gravidade" e a decisão de voltar

Ontem assisti ao filme Gravidade (Dir. Alfonso Cuáron). Gostei muito. É um filme tenso e a todo instante remete a situações de possível pânico, pois o medo de estar sozinho e a impotência estão sempre presentes. O mesmo cenário (o espaço e o silêncio) que pode se transformar em paz e reencontro consigo mesmo, também pode significar o terror de sentir-se absolutamente sozinho. Tudo vai depender de como estamos em relação a nós mesmos. 
 
Matt, que vagou até a morte, simplesmente passou a ouvir sua música country e a admirar a beleza da visão que tinha da terra. Mas Ryan parecia desmanchar-se em seu pavor. Havia algo inconcluso ali. A morte de sua filha a havia colocado em um estado de suspensão onde a vida passava sem deixar absolutamente nada. Só em determinado momento percebeu que tinha que lutar pela sua sobrevivência.
 
A única metáfora que desenvolvi para este filme é essa:
 
Decidir voltar a viver é ter que seguir em frente, sem segurança, correndo riscos, mesmo o risco de ser machucado. Decidir voltar a viver é, de alguma forma, ter de reaprender a andar, sair daquele estado de suspensão, flutuação, onde a ausência de gravidade mal nos permite sentir o corpo, o chão, nem mesmo o que é real. Decidir voltar é decidir viver, com todos os seus riscos, mas viver. E isso pode ser uma experiência incrível!
 
Um belo filme, que nos mostra que não precisamos estar no espaço para nos sentirmos em um estado de suspensão da vida, cuja única finalidade é nos afastar do medo que sentimos.

sábado, 19 de outubro de 2013

Um trecho revelador acerca da Psicanálise

"Face à dor psíquica, às divisões internas, os traumatismos universais e pessoais que a vida inevitavelmente provoca, o homem é capaz de criar uma neurose, uma psicose, um escudo caracterial, uma perversão sexual, sonhos, obras de arte e doenças psicossomáticas. Artesão de si mesmo, tem poucas possibilidades de modificar a forma de suas criações psíquicas, essa estrutura que o ajuda a manter não somente o equilíbrio de sua economia pulsional, mas também o sentimento de ter uma identidade. Assim, existe uma resistência ferrenha contra tudo o que pode abalar essa fortaleza psíquica, e embora o sujeito encontre aí sua morada, tem muito pouca consciência de seu significado. É claro que esse conhecimento psíquico e as criações que ele origina não possuem um valor idêntico do ponto de vista de sua eficácia, nem aos olhos da sociedade. Todavia, todos visam os mesmos objetivos: o desejo de se manter vivo, de realizar-se nos planos pulsional e narcísico, de conservar intacta a identidade assim construída e defender-se contra tudo que ameaça estes propósitos. A força do sujeito reside nessa continuidade e nessa monotonia. Contudo, é aí também que encontramos a fonte do seu sofrimento e até mesmo de sua morte..." 

(Joyce McDougall - "Em defesa de uma certa anormalidade", 1° parágrafo do ensaio Psicanálise e Soma)

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

A busca pela opinião de "juízes" quando não consigo "decidir"

Um tema que por vezes surge na clínica é aquele em que o sujeito apresenta um grau de dúvida bastante elevado, praticamente impossibilitando que possua uma "opinião" acerca de qualquer coisa. Claro que possuir "dúvida" é algo humano e fundamental. E é absolutamente normal que busquemos concordâncias e elementos para formar nossa própria opinião. Mas, e quando apresentar uma opinião passa a ser algo quase impossível?

Estamos, então, diante de uma "opinião não sustentada". Uma opinião que se monta a partir, exclusivamente, de referências alheias ao nosso processo de pensamento. Em tempos de Facebook isso parece se alastrar. Mas, enfim!

Claro que o sujeito, quase sempre, já tem os elementos necessários para formular seus juízos, sua opinião, mas o que lhe falta é a "segurança" necessária para "sustentar" (emitir) esta opinião. Para estas pessoas, a "dúvida" não é só um componente humano (que todos possuímos) é algo muito mais familiar, que lhe acompanha permanentemente, e que oprime, como expressão maior de uma "insegurança" estrutural. E isto lhe causa sofrimento, pois lhe impede um melhor posicionamento na vida, no mundo. E causa dor, sem dúvida alguma.

O que há, então, nessa "atenção" tão especial que determinadas pessoas dão às opiniões alheias? Trata-se de uma busca por maior segurança para formular seus próprios juízos e assumir posições. É comum alguns, no dia a dia, se perderem em meio a tantos "juízes". Na busca da opinião "segura" destes "juízes" acabam por ficar ilhados, e incapazes de formular seu próprio juízo. É como se não se sentissem nem um pouco à vontade com sua própria opinião, tal o grau de insegurança experimentado. E, quando se percebe (ou melhor, não se percebe), se está em meio a uma teia de "dependência" muito densa.

Tem algo de fortemente regressivo aí. É um claro sinal da velha dependência que experimentávamos na infância e que está dando sinais de retorno e permanência. É isto que precisa ser entendido e enfrentado, em nome da independência e autonomia do sujeito. Só assim haverá, de fato, um crescimento, um amadurecimento, e se sairá dessa posição infantil.
 

O "caso Elizabeth" e a Histeria

O caso Elizabeth é um dos casos chamados "pré-psicanalíticos" de Freud e é fundamental para a estruturação dos alicerces de sua teoria psicanalítica. Trata-se de um caso que tem muito a dizer acerca da histeria. 

Historicamente, a questão da histeria sempre disse respeito ao "corpo". Eram como que "humores" e "vapores" do corpo que, de alguma forma, alcançavam a mente. Ou seja, o corpo "enlouquecia". Só no século XIX é que a histeria passa a ter "no" corpo o local de sua manifestação, deixando de ser algo "do" corpo, mas da ordem do psicossoma.

A histeria seria, portanto, um modo mais "barato" para se lidar com a energia estrangulada. Barato no sentido de poder-se utilizar de deslocamentos dessa energia para escapar ao sofrimento intenso e se encontrar uma forma mais amena de sobrevivência. Nessa escala, o modo mais "caro" poderia ser o autismo, que acaba por cortar a relação com a realidade. 

No caso de Elizabeth, sua perna era quem simbolizava suas questões edípicas, era ali que tudo se manifestava. A perna carregava em si suas questões. O corpo estaria ocupando o lugar, portanto, de um psiquismo que não dá conta de suas questões. Aliás, isso é a base da psicossomática.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

A questão da fala psicótica: uma errância sem ancoragem

Assisti à peça "A obscena senhora D" (Hilda Hilst), interpretada pela excelente Susan Damasceno. Nela, pode se ver o efeito mais trágico do desamparo diante da figura do pai, evidenciada na sua incompreensão diante das mortes do pai e do marido e, especialmente, na sua dura relação com Deus. Recolhida ao vão da escada para falar das conturbações da condição humana nada mais é que uma metáfora para sua psicotização e abandono desta realidade obscena, que é a vida. Estamos todos morrendo, e continuamos absurdos.

Nada me chama tanto a atenção em interpretações assim como a sua linguagem praticamente ilegível, completamente cifrada, sua fala praticamente hipnótica, que nos força a tentar ver um fundo que praticamente não tem fim. Aquele ponto em que a angústia humana no seu sentido mais denso só começou a revelar-se. Por isso, mesmo incompreensível, ninguém sai da mesma forma, pois em algum momento é capturado por esta fala.

Trata-se exatamente disto, de um texto absolutamente incompreensível. Palavras se sucedem numa velocidade extraordinária. Nenhuma regra é respeitada. Elas são cuspidas na nossa cara com uma força incontrolável. Quando você imagina um instante de calma, elas explodem novamente em gritos ensurdecedores. Esta é a fala psicótica. Errante. Incompreensível.

A Obscena Senhora D retrata bem o fato de que não são poucos os casos de delírios religiosos nos estados psicóticos. Nestas situações, em especial, o discurso está "sustentado" na palavra de Deus, tornando muito difícil encontrar e adentrar em suas "brechas", afinal, diante do surgimento de qualquer brecha no discurso, logo vem seu preenchimento pela palavra divina. Entretanto, apesar de ser um discurso sustentado, é uma mentira.

Um dos aspectos que me chama a atenção e que pode, muito bem, servir para manter esta imagem de uma "discurso sem brechas" é a velocidade com que o sujeito em estado psicótico, nestas situações de delírio religioso, especialmente, fala. Trata-se de uma voz rápida, que dispara palavras quase ao ritmo de uma potente metralhadora. Mas, como vejo esta questão? Este "discurso veloz", esta "velocidade" obscurece as brechas de um discurso, na realidade, mal colado, afinal de contas, à medida que ele diminui a velocidade, as brechas se tornam evidentes e, suas palavras "caem". É a reconstrução deste texto sagrado, seguida de sua quebra, que é fundamental no tratamento do estado psicótico.

Na análise da psicose há algo de radicalmente diferente. Temos que viajar, embarcar em algo que não sabemos bem para onde ir. Mas, não tenhamos dúvida, há uma "movimentação", uma "circulação", ainda que errante. A psicose é o que nos mostra, radicalmente, o "estranho". Por isso, quanto mais nos despirmos de projeções do nosso eu sobre a clínica e o paciente, maior a chance de nos depararmos com esse estranho. É preciso se des-subjetivar ao máximo. Entretanto, não há como pensar na errância na escuta analítica, pois a errância é uma forma de "aprisionamento", ela não permite nenhuma "ancoragem", não faz "lugar" e, então, acaba por não circular. Assim, não podemos falar em "escuta errante" pois não conseguimos, enquanto analistas, nos livrar de nossas neuroses.

O perfil do Bully (praticante do Bullying)

Quem é o praticante do Bullying?

Em linhas gerais, é um adolescente, marcado pela ausência de um superego bem consolidado e, portanto, pela maior presença de traços de onipotência e agressividade no aparelho psíquico. Nesses casos, pode-se especular que houve uma má saída do complexo de édipo resultando em um quadro de fracos limites, podendo ser fonte potencial de violências futuras. Trata-se de um indivíduo que atribui muita importância ao pertencimento a um grupo, que considera decisivo para a construção de sua personalidade. 

Portanto, esse indivíduo, na grande maioria das vezes, é oriundo de uma família "desestruturada", no sentido de não ter ocorrido uma educação a partir de "limites". Isso o levou a ver na "força" e "agressividade" a melhor estratégia de resolução de problemas. Como sente-se, em boa parte, humilhado e descontente com sua própria posição, busca a humilhação do outro para evitar o contato com suas próprias fraquezas. Para corroborar esta posição basta vermos a importância atribuída pelo Bully ao "grupo", sem o qual ele parece exatamente do tamanho que é, "pequeno" (a partir daí fica fácil entender que os que seguem o grupo acabam por seguir o superego do líder do grupo, violento).

Nesta composição psíquica, portanto, ele aproxima-se de um "sádico", mas a sua vítima, não necessariamente é um "masoquista" que luta para pertencer ao grupo do qual é excluído. Definir o Bullying a partir de uma relação sado-masoquista não explica muita coisa. Talvez alguns casos. Somente isto. Dizer que a vítima é masoquista e que bastaria, para isso, querer evitar o grupo e o conflito, é, parece-me, atribuir culpa à vítima desta violência. A vítima, no caso, é muito mais uma "caça" para este "predador" que é o Bully.

A violência, ou "agressividade", tão própria do Bullying, é um comportamento que surge desde muito cedo quando buscamos chamar a atenção para nós mesmos, como através de atitudes de ambição e coragem. Se o Bully, então, é um indivíduo agressivo, é porque aprendeu a reagir sempre no contexto de uma competição, de uma disputa, quase sempre para tentar, justamente, evitar uma situação em que ele próprio seja o excluído. Não convive bem com as críticas, além de desejar conquistar a tudo que tem interesse a qualquer preço, numa espécie de "conduta ambiciosa".

Nesse sentido, campanhas educativas pouco resolvem contra aparelhos psíquicos deste tipo podendo, pelo contrário, servir como reforço à ousadia e desafio que os Bully se impõem a todo instante. A experiência é covarde e violenta e deve ser tratada, também, com rigor, sem deixar espaço para impunidades. Afinal, isentá-los de responsabilidade só tornará ainda mais fracos seus superegos que já desconhecem limites. É evidente, por outro lado, que tais Bullys precisam de tratamento terapêutico. O acompanhamento terapêutico psicanalítico se torna indispensável, primeiro para que os envolvidos (praticantes e cúmplices) se dêem conta dos processos que estão vivenciando, e em segundo, por reconhecer-se que estamos lidando com fenômenos mentais e comportamentais recorrentes em busca de um gozo absoluto e, por isso, mortal.

Levando-se em conta este perfil podemos ainda acrescentar que um dos mecanismos sempre presentes na ação do Bully é a "projeção", ou "identificação projetiva", um conceito bem desenvolvido pela psicanalista Melanie Klein que mostra que o indivíduo tenta livrar-se de "partes" de si que considera intoleráveis e as projeta no outro. Trata-se de um mecanismo muito comum em situações psicóticas mas está muito presente, também, nas situações de discriminação e preconceito contra o outro. É sobre esse outro, portanto, que recaem as projeções (como os sentimentos de inferioridade e raiva) e angústias do Bully, na sua impossibilidade de lidar melhor com suas próprias dores.

Enfim, trata-se de uma tentativa de perfil. Não se esgota, evidentemente.

Um rápido conceito de Bullying

O Bullying é daqueles temas que nos últimos tempos só tem crescido nas rodas de discussão. Não é, por certo, um fenômeno recente, mas tem algo de novo em sua dinâmica. E é sobre isto que gostaria de comentar um pouco destacando alguns aspectos envolvidos nas discussões sobre o Bullying.

Inicialmente bastante discutido a partir do ambiente escolar, o Bullying extrapolou este espaço e hoje é visto como um fenômeno social amplo, que conheceu uma rápida forma de expansão no contexto de uma sociedade cada vez mais competitiva, individualista e marcada pela difusão de tecnologias de comunicação de massa. Mas, o que é o Bullying?

Tentando-se um conceito, ainda que geral, mas que não deixe de fora os principais elementos constitutivos do Bullying, posso dizer, com segurança, que seja em que ambiente for, educacional, corporativo, ou outro, o Bullying é a recorrência de atos de violência física ou psicológica, praticados por um grupo, de forma intencional, visando a humilhação do outro no contexto de uma relação desigual de poder. Neste conceito já temos, pelo menos,  seis elementos constitutivos que exigem alguma elucidação. Vou tentar ser didático:
 
1) O Bullying é uma prática recorrente, ou seja, não pode ser confundido com uma simples brincadeira de "zoar" um colega, algo que faz parte do cotidiano das relações interpessoais. É essa recorrência que garante a violência do ato e seu caráter de intencionalidade no objetivo de humilhar e machucar o outro que se tornou alvo. Portanto, não é qualquer brincadeira, onde se "zoa" e se tira um "sarro" que pode ser classificada como Bullying. Essa confusão está levando, inclusive a construção de "manuais" que tentam "domesticar" qualquer tipo de brincadeira nos diversos ambientes. Isso atua como forte fator inibidor do desenvolvimento das relações interpessoais, cada vez mais inseridas dentro do chamado "politicamente correto". Ou seja, Bullying não é uma prática ocasional, episódica, isso pode ser uma brincadeira, uma ofensa, mas não Bullying. Este exige para ser caracterizado como tal que as práticas sejam recorrentes, sistemáticas

2) O Bullying é um ato de violência, ou seja, não é uma "brincadeira". O termo deriva da palavra inglesa "bully" que significa "brigão", "valentão", alguém, portanto, muito disposto à agressividade e à violência. Mas, é um ato de violência porque está sustentado na agressividade contra o outro. Uma agressividade que pode ser física ou fazer parte daquilo que chamamos de "terror psicológico", repleto de acusações, infâmias, mentiras etc. Dizer que a prática do Bullying está situada no universo das "brincadeiras" é ignorar seu caráter agressivo. Enquanto ato de violência, portanto, o Bullying pode ser visto como uma prática que exemplifica uma espécie de "regressão civilizatória", pois desconhece o outro e desconhece as regras morais que sustentam os laços civilizatórios;

3) O Bullying ocorre no contexto de uma relação desigual de poder, ou seja, é sempre uma relação marcada pela oposição entre o mais forte e o mais fraco. O lado mais forte ainda é reforçado pelo "grupo" e a vítima geralmente é o indivíduo isolado;

4) O Bullying é uma prática que quase sempre exige a formação de um grupo, ou seja, na grande maioria das vezes a prática do Bullying parte de um grupo. Isso não dispensa a figura de lideranças, mas existem os demais participantes que compõem o grupo e têm papel chave para o Bullying. Não é só a liderança que pratica o Bullying, os demais, com sua cumplicidade, também o praticam.

5) O Bullying é praticado de forma intencional, ou seja, existe uma intenção no Bullying. Não se trata de uma prática desinteressada e fortuita. Ela tem um objetivo, um alvo, algo a ser atacado e conquistado. Quase sempre a prática exige certo planejamento, não sendo nem um pouco espontânea ou ao acaso.

6) O Bullying tem como um de seus principais objetivos a humilhação do outro, ou seja, colocar um apelido, "zoar", tirar um "sarro" de um colega sempre fez parte de nossa infância, adolescência e mesmo da fase adulta. E fazemos isto de vez em quando sim, quando nos reunimos num bar, na casa de um amigo, no trabalho, no estudo etc. Isso é saudável, mostra que existem laços de amizade tais que nos permitem brincar, sorrir, se divertir, mesmo à custa de uma mancada de nosso colega. E, nesses casos, a resposta desse colega, é sempre compartilhar o sorriso e "cair" na brincadeira. A intenção que existe aí é a de "brincar", processo aliás, fundamental para nossa boa constituição psíquica. Mas o que torna o Bullying algo perigoso e não simplesmente uma brincadeira espontânea? Não é a disposição em "brincar". É uma outra disposição, a de "humilhar". E, nesse aspecto, pode ser colocado na categoria das perversões. É lógico que, com o Bullying, alguns se divertem, tanto os que os praticam quanto os que assistem e se tornam cúmplices, portanto. Mas o caráter desta "diversão" é que ela se dá "à custa da humilhação do outro", do sofrimento do outro. Não é perverso isto? Existe, portanto, no Bullying, uma atitude clara e intencional de humilhar o outro. Quem pratica o Bullying sabe exatamente o que está fazendo, pois possui uma clara intenção, mascarada sob uma falsa ignorância, mas repleta de intenções maldosas;

Portanto, para finalizar, antes de pensar ou dizer que o Bullying é só uma "brincadeira" que extrapolou é bom lembrar que na prática existe uma intenção clara de humilhar o outro, e quando falamos em humilhação estamos falando de uma atitude que é pública, e que causa um dano seríssimo à autoimagem do indivíduo.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Observações Psicanalíticas sobre as Psicoses

O objetivo deste rápido texto de Liliane Zolty é oferecer um esboço do que chama de "teoria psicanalítica do processo psicótico". O termo parece levar à crença de que a psicose é uma patologia homogênea, um processo único, mas não é. Todos sabemos que os estados psicóticos se contrastam aos neuróticos e perversos, mas um olhar mais cuidadoso para o seu interior nos vai revelar as diversas formas clínicas que a psicose assume (paranóia, loucura homicida, autismo, psicose maníaco-depressiva, esquizofrenia etc.). É justamente por isso que se prefere dizer que não existe "a" psicose, mas "as" psicoses, unidas, evidentemente, por traços comuns.
 
As principais manifestações psicóticas são as alucinações e os delírios, sempre derivados de uma luta travada pelo EU, que isola-se da realidade, para se livrar de uma dor insuportável que ameaça sua integridade. Freud já a considerava uma "doença de defesa", defesa do EU, para se preservar diante desta dor insuportável (uma "representação" que não consegue assimilar)¹. Mas, como funciona esta "defesa"? Há três momentos muito importantes:
 
1) O superinvestimento de uma ideia ou representação psíquica pelo Eu - Esse superinvestimento, cuja significação se torna transbordante, intolerável, inassimilável pelo Eu, é o que deixa a representação incompatível com as demais representações presentes no Eu;
 
2) Uma violenta rejeição da representação inassimilável pelo Eu - Nesse segundo momento, o Eu expulsa a ideia (acerca da realidade externa) ou representação intolerável. O Eu consegue se desprender da ideia, mas ela continua ligada a um fragmento da realidade, e é justamente por isso que o Eu acaba, ao expulsar a ideia, desligando-se, também, da realidade. Com isto, o Eu faz com que a ideia ou representação fique sem significado, mas o custo é amputar uma parte de si. A expulsão, portanto, é uma metáfora para a brutal retirada de significação da ideia inassimilável. É o que Lacan chama de "Nome do Pai" e Nasio, de "Foraclusão Localizada".
O eu é vazado em sua substância, e a esse furo no eu corresponde um furo na realidade (p. 36).
3) A percepção, pelo Eu, desse pedaço rejeitado - Aqui, a percepção se dá sob a forma de alucinação ou de delírio que, por sua vez, substituem a realidade perdida;
 
A autora descreve sinteticamente o processo dessa forma:
Superinvestimento excessivo de uma representação, retirada violenta de todo o investimento feito nela, constituição de um ponto cego no eu, renegação completa da realidade correspondente e, por último, substituição da realidade perdida por outra realidade, ao mesmo tempo interna e externa, chamada delírio ou alucinação (p. 37). 
O eu fica, assim, dividido: uma parte rejeitada e expulsa, e outra parte alucinada, como nova realidade. Assim, a "voz" escutada é sempre um pedaço errante do eu, que, para o psicótico, ela vem de "fora" (afinal, ela foi expulsa). Na realidade, é um pedaço seu, portanto, é a "voz do inconsciente". Lacan situava o psicótico como uma "testemunha" do inconsciente e de sua força devastadora. O neurótico também ouve esta voz do inconsciente, mas a vivencia de forma distinta.
Enquanto o neurótico, surpreso, admite que seu inconsciente fala através dele e que ele é seu agente involuntário, o psicótico, por sua vez, repleto de certeza, tem a convicção dolorosa e inabalável de ser vítima de uma voz tirânica que o aliena (p. 39). 
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ZOLTY, Liliane. Observações Psicanalíticas sobre as Psicoses. In: Nasio, J.-D. Nasio (dir.). Os Grandes Casos de Psicose. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, (c) 2000, p. 33-39.
¹ Foi com o estudo do Narcisismo que Freud mais se aproximou da compreensão da psicose, em suas formas esquizofrênica e paranóica. No narcisismo ocorreria uma concentração da libido no Eu, o que vai levar ao isolamento do psicótico em relação ao mundo. É essa energia que superinveste o Eu que deixa de produzir uma fantasia (como no neurótico) e passa a desencadear um delírio, por exemplo, no psicótico.