quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Observações Psicanalíticas sobre as Psicoses

O objetivo deste rápido texto de Liliane Zolty é oferecer um esboço do que chama de "teoria psicanalítica do processo psicótico". O termo parece levar à crença de que a psicose é uma patologia homogênea, um processo único, mas não é. Todos sabemos que os estados psicóticos se contrastam aos neuróticos e perversos, mas um olhar mais cuidadoso para o seu interior nos vai revelar as diversas formas clínicas que a psicose assume (paranóia, loucura homicida, autismo, psicose maníaco-depressiva, esquizofrenia etc.). É justamente por isso que se prefere dizer que não existe "a" psicose, mas "as" psicoses, unidas, evidentemente, por traços comuns.
 
As principais manifestações psicóticas são as alucinações e os delírios, sempre derivados de uma luta travada pelo EU, que isola-se da realidade, para se livrar de uma dor insuportável que ameaça sua integridade. Freud já a considerava uma "doença de defesa", defesa do EU, para se preservar diante desta dor insuportável (uma "representação" que não consegue assimilar)¹. Mas, como funciona esta "defesa"? Há três momentos muito importantes:
 
1) O superinvestimento de uma ideia ou representação psíquica pelo Eu - Esse superinvestimento, cuja significação se torna transbordante, intolerável, inassimilável pelo Eu, é o que deixa a representação incompatível com as demais representações presentes no Eu;
 
2) Uma violenta rejeição da representação inassimilável pelo Eu - Nesse segundo momento, o Eu expulsa a ideia (acerca da realidade externa) ou representação intolerável. O Eu consegue se desprender da ideia, mas ela continua ligada a um fragmento da realidade, e é justamente por isso que o Eu acaba, ao expulsar a ideia, desligando-se, também, da realidade. Com isto, o Eu faz com que a ideia ou representação fique sem significado, mas o custo é amputar uma parte de si. A expulsão, portanto, é uma metáfora para a brutal retirada de significação da ideia inassimilável. É o que Lacan chama de "Nome do Pai" e Nasio, de "Foraclusão Localizada".
O eu é vazado em sua substância, e a esse furo no eu corresponde um furo na realidade (p. 36).
3) A percepção, pelo Eu, desse pedaço rejeitado - Aqui, a percepção se dá sob a forma de alucinação ou de delírio que, por sua vez, substituem a realidade perdida;
 
A autora descreve sinteticamente o processo dessa forma:
Superinvestimento excessivo de uma representação, retirada violenta de todo o investimento feito nela, constituição de um ponto cego no eu, renegação completa da realidade correspondente e, por último, substituição da realidade perdida por outra realidade, ao mesmo tempo interna e externa, chamada delírio ou alucinação (p. 37). 
O eu fica, assim, dividido: uma parte rejeitada e expulsa, e outra parte alucinada, como nova realidade. Assim, a "voz" escutada é sempre um pedaço errante do eu, que, para o psicótico, ela vem de "fora" (afinal, ela foi expulsa). Na realidade, é um pedaço seu, portanto, é a "voz do inconsciente". Lacan situava o psicótico como uma "testemunha" do inconsciente e de sua força devastadora. O neurótico também ouve esta voz do inconsciente, mas a vivencia de forma distinta.
Enquanto o neurótico, surpreso, admite que seu inconsciente fala através dele e que ele é seu agente involuntário, o psicótico, por sua vez, repleto de certeza, tem a convicção dolorosa e inabalável de ser vítima de uma voz tirânica que o aliena (p. 39). 
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ZOLTY, Liliane. Observações Psicanalíticas sobre as Psicoses. In: Nasio, J.-D. Nasio (dir.). Os Grandes Casos de Psicose. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, (c) 2000, p. 33-39.
¹ Foi com o estudo do Narcisismo que Freud mais se aproximou da compreensão da psicose, em suas formas esquizofrênica e paranóica. No narcisismo ocorreria uma concentração da libido no Eu, o que vai levar ao isolamento do psicótico em relação ao mundo. É essa energia que superinveste o Eu que deixa de produzir uma fantasia (como no neurótico) e passa a desencadear um delírio, por exemplo, no psicótico.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Sobre o amor e o casamento: "antes" era melhor que hoje?

Amar, hoje em dia é mais fácil que antes? Antes, o casamento era melhor que hoje? Ser um casal hoje em dia garante que vou continuar sendo livre? Perguntas como estas, e tantas outras, povoam o imaginário de homens e mulheres na atualidade. São como que sombras de um passado, de que se ouviu falar, principalmente dos pais e avós, e que não consegue mais se sustentar tão facilmente e com tanta naturalidade. 

Ora, os casais continuam indo às terapias com suas angustias e incertezas. Mas, se antes estas eram provocadas, na sua maioria, por uma espécie de "confinamento" (no casamento) que exigia uma mudança, hoje, muito são muito mais motivadas por uma "liberdade" (individual) que se conquistou e que é difícil dividir com o outro, não se sabendo bem, portanto, o que fazer com ela. No meio de tudo isto, aquela fantasia tão nos ensinada pelos contos de fada: "antes tudo era melhor". Será mesmo? Em que aspectos?

Antes de mais nada, é bom lembrar o quanto é difícil se trabalhar com categorias assim tão fechadas como "antes" e "hoje", pois sabemos que esses tempos se misturam de formas específicas em cada imaginário e produzem fantasias as mais distintas em cada pessoa, onde a realidade de um casal e do amor não é a mesma de outro e precisa ser investigada na sua especificidade. Isso, entretanto, não invalida que apontemos certas "regularidades", situações compartilhadas por muitos, e são estas que nos permitem falar, ainda que com cautela, em um "antes" e um "hoje".

Mas, o que era este "antes"? Cada vez mais, o "antes" dos relacionamentos amorosos e conjugais entra para aquela categoria dos "paraísos perdidos", dos quais nada sabemos, nada experimentamos, nada vivemos, mas que somos capazes de jurar que foram bem melhores do que aquilo que vivemos hoje. São como que um refúgio para onde escapamos, em nossos pensamentos, quando as incertezas do momento atual nos afligem. 

Uma necessária regressão a tempos "primitivos" onde apostamos na existência de uma felicidade sincera e duradoura. Melhor seria olhar para frente? Talvez! Mas, convenhamos, é bem mais fácil e simples se olhar para trás com alguma nostalgia, essa saudade idealizada e quase sempre irreal, alguma segurança, do que olhar para frente com todos os riscos que o futuro traz embutidos.

O "paraíso perdido", então, nada mais é do que uma construção imaginária que utilizamos para combater nossas angústias. Por isso soa tão fácil na boca de muitas pessoas ouvir que, "antes", mesmo quando o amor não estava tão em questão no casamento, tudo era "melhor". Não há nada que comprove isto. Para os que se apegam demasiadamente em estatísticas talvez o tempo de duração dos casamentos hoje comprove algo. Mas, na verdade, isso não explica quase nada. 

Então, o retorno ao "paraíso perdido" é só um recurso de que nos utilizamos quando estamos sem saber bem o que fazer "hoje". Mas, de fato, o que era esse "antes", tão idealizado por homens e mulheres? E quais os desafios que o "hoje" coloca aos relacionamentos amorosos?

A respeito do "antes", acho que dá para se chegar a algum consenso: o "casal" era algo bastante idealizado, principalmente pelas mulheres, e muito buscado. Os papéis de homem e mulher já estavam bem definidos, enquanto um buscava prover e proteger, outro buscava cuidar e procriar, tudo segundo regras culturais bem claras e que deixavam o destino bem visível para os dois. Neste contexto, havia uma ideia de complementaridade, como se fossem "duas metades", ou como se diz, "a tampa da panela". Os filhos, quase sempre muitos, eram como que a garantia e o atestado de uma família feliz. 

Esse é um panorama muito geral, que quase sempre é idealizado mesmo. Mas, em seu interior haviam problemas. E é muito natural que houvessem. Num contexto assim, como o de "antes", não era difícil o marasmo, a inércia, e a luta pela "transformação" do vínculo entre os dois talvez estivesse no inconsciente de cada um, mas sem grandes possibilidades de sucesso. Estavam como que "amarrados", mas no sentido ruim mesmo do termo, e a palavra de ordem era "transformar" para se tentar ser feliz. 

Mas, e o "hoje", o que apresenta de novidade? Existem sim algumas características que transformam o "hoje" em algo bem distinto de "antes". Duas me parecem muito fortes e ajudam a explicar muitas situações: 1) O narcisismo individual, e 2) A ideia de igualitarismo e similaridade na relação. O que isto tudo implica? Como podemos resumir o cenário?

"Hoje", homens e, especialmente mulheres, tendo conquistado uma maior liberdade em diversos aspectos, e sendo convidados a participar de uma sociedade cada vez mais competitiva, viram o ressurgimento de um individualismo muito feroz, que trouxe à tona o narcisismo, muitas vezes, em suas piores versões. Trata-se de um narcisismo que praticamente se resume à busca e conservação, a todo custo, do bem-estar pessoal. Um narcisismo tão arraigado que, diante de uma dificuldade maior em realizar um desejo busca-se logo uma alternativa e abandona-se tudo.

Na prática dos relacionamentos isso significa, de imediato, uma "desconfiança" em relação ao outro. O que ele(a) quer mesmo de mim? Vou perder minha liberdade diante dele(a)? Vou ter que dividir algo com ele(a)? Ora, é essa desconfiança que está na base das dificuldades em se construir laços na atualidade. Se antes, então, o laço se formava através de um casamento que era facilmente buscado e desejado, hoje esse laço é visto com desconfiança. Como criar um laço com o(a) outro(a) se o que busco, em primeiro lugar é minha felicidade pessoal? Nada pode abalar minha onipotência narcísica de buscar o que é bom para mim.

Não à toa, diversas formas de laços têm surgido, formas alternativas de amor e de amar, situações diferentes de estar junto, de conviver. Cada um de nós não quer mais ficar "refém" de um destino, ou de um casamento que parecia ser o único resultado a esperar da vida. Nos sentimos no direito de inventar, de transformar, de forjar nosso próprio destino. Não queremos mais dividir papéis de forma tão clara. Não queremos mais transar de forma tão convencional. Sempre desejamos isso? Tudo bem, só que agora estamos fazendo isso, com muito mais liberdade.

Ora, de acordo com esta lógica narcísica, como entender o laço de um casal? É aí que passa a predominar o que Serge Hefez (psicanalista francês) chama de "miragem da similaridade", do igualitarismo, onde tentamos desesperadamente preservar nossa identidade diante da outra pessoa. Talvez por isso mesmo seja fácil "jogar a toalha" diante das primeiras dificuldades. Talvez por isso mesmo, os casais, hoje, visitem os terapeutas cada vez mais jovens e no início do casamento, justamente porque não "sabem" criar um laço. Embora, saibam defender bem, cada um, a sua liberdade, a sua individualidade, o seu desejo, o direito de ser amado. Mas e o laço? Onde fica o laço? Não podemos esquecer que:
Cada um se engaja inteiramente na relação amorosa, colocando em jogo tudo o que o constitui como pessoa: o sentimento dos próprios limites, da posse de si mesmo e de seus desejos, com o risco de uma perda de si ou pelo menos de uma certa imagem de si. Mas a vida amorosa é precisamente o que coloca em causa as fronteiras do eu, entre "eu" e "nós", entre mundo interior e a realidade externa. Ser amado "por completo" faz bem e traz segurança, mas o perigo de aniquilamento ou de fusão nunca estará muito distante"¹
Para finalizar, acho que na ânsia de superarmos os limites desastrosos dos casamentos de "antes" (uniões normatizadas) conquistamos liberdades que despertaram em nós um sentimento narcísico de onipotência que nos faz sentir, permanentemente "melhores" que o outro. Este passa a ser necessário somente para o "meu" prazer. Mas e o laço? O laço amoroso é tecido pelo amor. E o amor exige uma entrega do "eu" para o "nós". Estamos dispostos a correr este risco? Ou vamos nos atolar neste pântano narcísico e individualista onde buscamos nosso prazer a todo custo, mesmo à custa do(a) outro(a)?

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¹ HEFEZ, Serge. Cenas da vida conjugal: como os casais enfrentam a crise do relacionamento. - São Paulo: Saraiva, 2012, "Introdução", pág. 23.


domingo, 18 de agosto de 2013

Contrapartida (James Joyce, "Dublinenses")

A campainha soou furiosamente e quando a senhorita Parker chegou ao receptor, uma voz irada, com estridente sotaque do norte da Irlanda, gritou:

- Mande Farrington aqui!
A senhorita Parker retornou à sua máquina e, de passagem, disse para o homem que trabalhava numa escrivaninha:
- O senhor Alleyne quer você lá em cima.
"Que vá para o diabo", resmungou o homem, afastando a cadeira para levantar-se...
É desta forma intensa que se inicia este conto de James Joyce ("Contrapartida", publicado em Dublinenses). Farrington, em seu trabalho, e naquele momento em especial, tinha a missão de fazer cópias de um contrato. Cópias à mão é claro. Estava permanentemente sendo cobrado e a lembrança do tempo se esgotando o perturbava imensamente e acabava impedindo-o de melhor se concentrar.

Sua relação com o chefe era a de um ódio contido, mas a ponto de explodir. Sentia-se permanentemente humilhado e não reconhecido. Em certo momento, quando tentou pegar a caneta novamente, sentiu que precisava molhar a garganta. Levantou-se, foi ao restaurante O'Neill e pediu uma cerveja. Logo voltou ao escritório, mas o tempo parecia esgotar-se rapidamente. Não iria conseguir.

A noite escura e nevoenta aproximava-se, aumentando seu desejo de passá-la bebendo com os amigos, em meio ao tilintar de copos nos salões bem iluminados.

Mas, faltavam 14 páginas.

"Maldição". Não iria conseguir. Tinha vontade de blasfemar, de socar alguém... Sentia-se capaz de arrasar o escritório num só golpe. Seu corpo ansiava por fazer alguma coisa: precipitar-se para a rua e desabafar na violência. Todas as afrontas que sofrera na vida vinham-lhe à memória e o encolerizavam...

Apesar do seu mergulho em devaneios, logo a cobrança chegou. Ele não conseguira cumprir a tarefa. As ofensas logo começaram. E, mais uma vez fora obrigado a desculpar-se vergonhosamente. Ansiava cada vez mais pelo bar, mas precisava de dinheiro. Estava muito irritado, mas logo descobriu que, como saída, seu relógio podia ir parar numa casa de penhores.

Atravessou rapidamente a estreita passagem do Temple Bar, murmurando consigo que todos podiam ir para o diabo, pois ele teria uma boa noitada.

Junto aos amigos começou a relatar os incidentes do dia e suas respostas malcriadas. Todos riam e ele sentia-se melhor, mas, com o passar da noite a cólera e o desejo de vingança voltavam a dominá-lo. Além de tudo isto, ainda detestava voltar para casa, pois a mulher o repreendia por andar bebendo.

Ao chegar em casa, sabe pelo filho que a mulher foi à igreja. A criança está com medo, se oferece para preparar a comida do pai, mas deixa o fogo apagar-se no fogão. Neste momento, o pai persegue-o e o agarra pelo casaco golpeando-o vigorosamente com a bengala.

O garoto soltou um gemido de dor quando a bengala atingiu-o na coxa. Ergueu as mãos entrelaçadas e sua voz tremia de pavor:

- Oh, papai! Não me bata, papai. Eu... eu rezarei uma ave-maria pelo senhor... Eu rezarei uma ave-maria pelo senhor, papai, se não me bater... Rezarei uma ave-maria...

Este conto de Joyce é duro, mas nem de longe é uma ficção. É o cotidiano de um homem insatisfeito, humilhado e que, como que numa previsibilidade terrível, alimenta-se de rancor e desejo de vingança. A tragédia faz parte de seu cotidiano, a vida lhe parece um horror, nada o satisfaz e, infelizmente, o desejo de explodir em violência, acaba encontrando no lar, e nas inocentes crianças, o ambiente perfeito para acontecer.

Vale a pena ler... e reler este conto. Podemos, enquanto adultos, nos vermos, ainda que em lampejos, neste homem. Mas, se fizermos um esforço maior, podemos, enquanto crianças, também nos vermos na aflição e no terror daquela criança.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Agorafobia e Pânico: O medo de ter medo (estar sujeito à angústia)

Em 1872, o alemão Carl Westphal descreve um quadro clínico em que os pacientes não suportavam ficar sozinhos em grandes espaços abertos sob o risco de viverem uma incontrolável crise de angústia, e o denomina de agorafobia ("medo de lugar público").

Mas, é na França, com Legrand Du Saulle (1878), que surge uma melhor descrição do que vai chamar de "medo dos espaços". A questão central, aqui, é que já não se tratava de um "lugar público", mas de qualquer lugar onde o "vazio" fosse experimentado como "medo" de sentir-se "sozinho"Mas, diante de tantas possíveis situações assim (locais abertos, fechados, etc.) existiria um elemento psicopatológico comum?
Este elemento essencial comum se situa, segundo nossa hipótese, no confronto que impõem estas duas condições com o fundamento de desamparo e de falta de garantias sobre a qual se desenrola o funcionamento psíquico, enquanto ancorado na linguagem. Para estes sujeitos, tanto a dissolução em uma multidão quanto a restrição a um lugar fechado, evocam a emergência do possível sob a forma de um fato aterrorizante: o sujeito descobre, para seu pavor, que não poderá encontrar aí nenhum tipo de ajuda se for necessária. Face a esta constatação, entra em pânico (p. 161).¹
Trata-se de um "medo de ter medo", "medo de estar sujeito à angústia", um medo mais frequente que todos os demais. É o medo de ter medo que unifica toda essa constelação heterogênea de situações fóbicas (medo de cair, de tontura, de ser zombado, de ter vontade de ir ao banheiro etc.).

E quanto á Freud? O que nos diz sobre isto? Em "Inibição, Sintoma e Angústia" (1926) nos diz que a fobia instaura-se após a experimentação de um primeiro acesso de angústia. Há uma lembrança desse ataque e o que o paciente vai temer é a sua recorrência em determinada situação da qual, portanto, imagina não poder escapar. Em "Novas Conferências" (1932), Freud confirma a fobia como fenômeno secundário, um estratégia defensiva contra o acesso de angústia. Seu principal sintoma, então, é uma inibição, uma limitação da função do "eu", justamente para tantar se poupar da angústia.

Mas, que explicação Freud nos dá para a origem desses acessos de angústia? Sobre isso, desenvolveu duas teorias sobre a angústia. Na primeira ("As Psiconeuroses de Defesa", 1894), o afeto (angústia) é o resultado da acumulação excessiva de libido insatisfeita, ou seja, surgia de uma "crise inexplicável" ancorada na acumulação da libido física. O afeto, dessa forma, é visto como um elemento estranho ao psíquico, já que deriva de outro domínio, o corpo. 

Com o tempo, Freud muda essa posição. Em "Inibição, Sintoma e Angústia" (1926) diz que a angústia experimentada em situações fóbicas não é independente da estrutura edipiana, ou seja, não depende somente de acúmulo de libido. Ela seria um "acréscimo" ao sistema defensivo para afastar um desejo proibido.

Mas, que "acréscimo" é este? Para Freud, uma "regressão" a tempos primitivos da infância (e mesmo ao útero) onde existia forte proteção contra perigos. Assim, se agorafóbico consegue sair acompanhado é porque está se comportando como aquela criança que não tem medo de sair com quem confia. Mas, se estiver sozinho, terá que conhecer bem o local e as pessoas. Trata-se de uma neurose onde há o reconhecimento da lei, mas busca-se desfazer esta proibição para se fazer valer o desejo - o que é a estrutura de toda neurose.

E quem é este acompanhante? É alguém que se legitima por sua posição tácita de indivíduo "adulto". Ele é o "representante da lei" junto ao superego, é o "fiador" da possível reconstituição desse indivíduo angustiado, por isso aparece como "desesperadamente indispensável", trazendo certo alívio.
O acompanhante fóbico constitui o substituto patético de um deus particular, a quem o paciente dirige seu pedido de ajuda de forma dramática por meio de seus ataques de pânico (p. 170).
Nesse sentido, por trás do abandono há uma relação entre desamparo, sexualidade e castração. Nesta neurose, há uma aparência total de abandono, mas permanece a problemática conflitual com a lei simbólica, diferente da psicose, onde esse possível reconhecimento na lei está praticamente aniquilado. Isso não quer dizer que nas neuroses não ocorram condições de despersonalização e desrealização, embora sejam sempre defensivas, justamente para barrar as experiências dolorosas. Assim, ocorre uma "dissimulação" da consciência e do eu para evitar o caráter insuportável da lembrança.

Aqui é interessante ver, também, a diferença que Freud estabelece entre "terror" e "horror". No terror, a experiência de aniquilamento é mais radical, sendo quase impossível até referir-se à uma lei. Já no "horror" surge uma confrontação petrificante com a realidade da castração.

Assim, para Freud, o desamparo não é um "acidente" da vida psíquica, que se manifesta em "situações específicas". O desamparo chega a ser intrínseco à vida psíquica. O que se precisa perguntar é sobre as condições que conduzem ao pânico, sem poder contorná-lo, sem possuir garantias! É disso que o pânico nos fala:
O desencadeamento de crises em situações cuja significação subjetiva é a falta essencial de garantias para a existência (p. 173).
Escrevi este post para apresentar uma síntese de um capítulo acerca da agorafobia e do pânico, de um livro de Mario Eduardo da Costa Pereira. De acordo com o autor, existe um intenso debate entre a agorafobia e o pânico. Debate esse, geralmente centrado na maior ou menor vinculação entre o pânico e a fobia. Para alguns, o ataque de pânico seria a causa primeira da fobia. Para outros, até pode existir uma vinculação, mas sem causalidade. Outros, ainda, negam inclusive a vinculação e dão à agorafobia autonomia enquanto entidade clínicaDe qualquer forma, parecem haver há dois tipos de pacientes que apresentam pânico: aqueles onde a crise se dá quando da exposição a uma situação fóbica, e aqueles cujos ataques não são situacionais, com fatores desencadeadores ocultos. 

Em 1980, com o DSM-III tínhamos 4 categorias de diagnóstico:

- Agorafobia com ataques de pânico (transtorno fóbico)
- Agorafobia sem ataques de pânico (transtorno fóbico)
- Transtorno de pânico
- Transtorno de angústia generalizado (estado de ansiedade)

Gradativamente, o "estado de ansiedade" é incluído nos transtornos fóbicos e, os três tipos passam a ficar sob a denominação de "transtornos de ansiedade" e o "transtorno de pânico" mantém-se, com o termo "agorafobia" perdendo valor descritivo para a própria situação de pânico.

Mas, a questão continuou polêmica, até que, no DSM-IV a agorafobia passou a ser considerada uma entidade independente do transtorno de pânico, mesmo se a síndrome agorafóbica estiver associada ao pânico. Não é bem o que Freud pensava, pois seu ponto de vista estava mais próximo dos que situam o pânico num lugar de primazia em relação à agorafobia

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¹ PEREIRA, Mário Eduardo da Costa. Os ataques de pânico e a Agorafobia: O problema da Agorafobia. In: Psicopatologia dos Ataques de Pânico. - São Paulo: Escuta, 2003, capítulo 8, p. 149-173.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

"W.E." e a obsessão herdada do desejo dos pais

Assisti a W.E. (R.U., 2011) há um tempo atrás e lembro que não estava muito empolgado, mas algumas coisas me chamavam a atenção, como o fato de ser uma produção inglesa, que sempre gostei, e a história do casal em questão, que me despertava curiosidade.

O filme nos primeiros minutos chega a ser confuso e não se entende bem a proposta da diretora (Madonna) mas, aos poucos, o filme encontra um fio condutor e as coisas vão ficando mais claras para o espectador. Logo se percebe duas histórias em paralelo mas, na verdade, uma só história.

Antes que deixe minhas impressões quero deixar dois destaques: a beleza estonteante de Abbie Cornish e a trilha sonora que, no seu romantismo, revela o prenúncio de uma tragédia. Chega a ser angustiante, mas, enquanto tragédia, não dá para escapar. São poucos os momentos, mas são marcantes. É uma trilha que te aprisiona.

O filme adquire todo o sentido quando vem a revelação de que o nome de Wally não foi à toa. Foi escolhido pelos pais em uma homenagem ao "conto de fadas" que teria significado o romance de Wallis Simpson e o herdeiro do trono britânico, Edward.

Previsível. O filme, então, iria transcorrer na desesperada luta de Wally (a personagem de época recente) para "realizar-se" como esposa e mãe, numa busca pelo seu próprio "conto de fadas". Mas, só conhece tragédias. 

Cada rememoração do passado, gradativamente, vai perdendo todo o glamour de um conto de fadas e vai mostrando o forte embate, a luta feroz, que nossa Wally leva a cabo para se libertar desse desejo que não é seu, e sim dos pais. Não haveria como conviver indefinidamente com aquela obsessão em torno da história de dois personagens que não lhe dizem respeito. Se livrar da obsessão era livrar-se de uma pulsão de morte poderosíssima.

O resultado é paradoxal. De um lado, ela se "liberta" de um "destino" traçado antes mesmo de seu nascimento, pois ela não é a Wallis que viveu ao lado do seu príncipe até o fim da vida. Por outro lado, é essa libertação que a permite atuar sobre seu próprio destino, construindo-o com seus próprios desejos, e não os de seus pais. 

O tema é interessante por nos mostrar o "peso" gigantesco que o desejo dos pais pode ter sobre uma criança que, para defender-se, segue o caminho da patologia. Pior, tal desejo dos pais, herdado de forma incondicional e sem negociação obscurece nossos próprios desejos e até a percepção de que já podemos estar vivendo nosso próprio conto de fadas, mesmo sem nos darmos conta disso. E, isso tudo ainda agravado pelo fato de, culturalmente, teimarmos em esperar que um suposto destino se revele esplendoroso sobre nossas vidas.

Não! Não é assim. Contos de fada são criados para amenizar nossas tragédias, mas não podem se transformar em rígidos modelos de identificação. Pelo contrário, é em meio às tragédias de nossas vidas que vamos delineando um caminho que, muitas, vezes, é o nosso próprio "conto de fadas". Basta, as vezes, olhar atentamente para os lados... e perceber, e sentir. Ao final, o conto de fadas se realiza sim, de alguma forma, se realiza. Mas aos olhos de quem o enxerga.

Mais do que o romantismo em si, me parece este um dos principais recados do filme. A cena final é um ato psicanalítico muito interessante. A despedida entre as duas Wallis é a despedida de nossa Wally de sua própria obsessão. Um bom filme, gostei!

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

"O Sétimo Selo" e o medo do vazio (morte)

São tempos difíceis. Guerras devastam as terras. As pessoas estão frágeis e doentes. É quando nosso cavaleiro recebe a visita da "morte". Ela veio buscá-lo, mas ele diz que se seu corpo está pronto, sua alma ainda não está. Ele quer ficar um pouco mais e propõe um jogo de xadrez para ter uma pouco mais de vida. 

Trata-se de “O Sétimo Selo” (I. Bergman, 1956, com Max Von Sidow). Uma partida de xadrez, desde o início fadada ao fracasso, afinal, como se pode vencer a morte? De qualquer forma, ele a enfrentará pois quer continuar vivendo. Mas, a questão é: continuar a viver para que? Em meio à disputa essa questão vai aflorar em um momento de confissão de nosso cavaleiro.
“O vazio é um espelho que reflete meu rosto. Minha própria imagem me causa repulsa e medo. A indiferença que eu sinto pelo próximo me levou ao isolamento. Agora eu vivo em um mundo de assombrações, prisioneiro das minhas próprias fantasias... O conhecimento... é tão inconcebível tentar compreender Deus? Por que ele precisa se esconder por trás de promessas vagas e milagres invisíveis? Como podemos ter fé, se não temos fé em nós mesmos? O que será de nós, que queremos acreditar, mas não conseguimos? E daqueles que não querem ou não podem acreditar? Por que não consigo arrancá-lo de dentro de mim? Por que persiste em viver em mim dessa forma tão dolorosa e humilhante, apesar de eu amaldiçoá-lo e tentar arrancá-lo de meu coração? Por que, apesar de ele ser uma falsa realidade, eu não consigo me livrar dele?... Eu quero conhecimento! Eu não quero fé ou suposição, eu quero conhecimento! Eu quero que deus estenda a mão para mim, mostre seu rosto e fale comigo... Eu clamo por ele na escuridão, mas parece que não há ninguém lá... Então a vida é um terror sem sentido. Ninguém consegue tolerar a morte sabendo que não há mais nada... temos que idolatrar nosso medo e chamá-lo de Deus... Minha vida se resumiu em buscas sem sentido, a ações e conversas tolas e vazias. Uma vida inteira sem sentido. Não digo isso com amargura ou discriminação, como tantas outras pessoas que também vivem assim. Mas eu quero usar esta trégua [conseguida pelo jogo de xadrez] para fazer algo que tenha significado. (Antonius Block, o cavaleiro)
Um trecho magnífico este. Como uma vida sem sentido, vazia, pode intensificar o medo da morte. Não é a morte, portanto, e em última instância, o "nada" que vem após ela, que causa medo e repulsa. É o olhar-se no espelho e ver que a vida seguiu sem um significado. É este medo que nos espanta, que nos assusta. 

É na ânsia de escapar a este medo que projetamos nossas esperanças. Esperanças de felicidade, de uma vida eterna, de um paraíso que venha a nos compensar por tantos erros. Mas, ainda assim o medo persiste. O espelho de hoje me impede de aceitar a morte.

Outro aspecto interessante deste trecho é a tentativa de se usar da racionalização (e do conhecimento) para se tentar entender um sentimento que Freud, apesar de ter dúvidas sobre ele, o situava num nível muito primário de nossa vida, o "sentimento oceânico" que nos move em direção à esperança da existência de um Deus que nos proteja, finalmente, e que não conseguimos, jamais, "explicar".

Vai ficando claro para nosso cavaleiro que não se pode vencer a morte, mas pode-se deixar de temê-la, dando-lhe também um significado. É esse significado que muitos dizem ser impossível dado o seu papel avassalador e destruidor. Mas, é preciso pensar melhor sobre isso, pois podemos muito bem lidar com nossa finitude. Temos um fim, isso é fato, mas não é isto que nos define, e sim o que fazemos e sentimos. Mas, é difícil esse lidar com a morte. Daí nossas infinitas indagações, como as do nosso cavaleiro.

- (morte) Você nunca vai parar de fazer perguntas?
- (cavaleiro) Não! Em tempo algum.
- (morte) Mas não terá respostas.

Não cansamos em querer entendê-la... e temê-la. Diante de uma cena dramática, a da morte de uma camponesa na fogueira, as interrogações continuam:

- (escudeiro, referindo-se à moça queimada viva) O que ela vê? Pode me dizer?
- (cavaleiro) Ela já não sente dor.
- (escudeiro) Quem vai olhar por ela? Os anjos? Deus? O Diabo? Ou apenas o vazio?
- (cavaleiro) Não pode ser
- (escudeiro) veja os olhos dela. Ela parece estar descobrindo algo.  O vazio!
- (cavaleiro) Não!
- (escudeiro) Estamos indefesos. Pois vemos o que ela vê e tememos também.

A presença da morte é tão intensa no filme como, por vezes, em nossa vida. Mas, o filme nos deixa algo a pensar: Por que temer tanto a morte se podemos levar a vida com mais pureza e leveza, fazendo da "arte" aquilo que, também, nos dá sentido? Sim, a arte tem um papel importante no filme. 

A resposta talvez seja não tentar vencer a morte, mas viver com maior felicidade, quase que num estado de "ingenuidade". A racionalidade não nos fornecerá armas adequadas para vencer a morte, mas a leveza nos manterá tranqüilos e confiantes de ter encontrado um "sentido" para a vida. Só isto esvazia o sentido do “vazio” e do medo que ele nos impõe.

Nos dias atuais, quando a meta é ser "imortal", quando o maior objetivo é parecer sempre "jovem", estamos cada vez mais distantes da leveza e da tranqüilidade, e isso é devastador. Não só estamos perdendo a batalha do xadrez para a morte, como estamos deixando de viver. O filme é clássico, afinal, a questão da morte não se desatualiza. 

Não é o suposto "vazio" trazido pela morte que mais nos assusta, mas o vazio que permitimos em nossa vida.

O conceito de Falso Self (D. Winnicott)

Este post foi escrito a partir do rascunho inacabado de uma palestra proferida por Winnicott no All Souls College, Oxford, para o grupo "Crime - um desafio", em 29.01.64. O rascunho está publicado em "Tudo Começa em Casa" (Martins Fontes, 1996, p. 51-54), e nesta palestra Winnicott aproveitou para, mais uma vez, destacar os conceitos de verdadeiro e falso self

Trata-se de uma "divisão" que todos nós possuímos (e ele pôde detectar em seus pacientes) e que nos permite dizer que "todos somos doentes" e, ao mesmo tempo, que "as pessoas doentes são saudáveis". Ou seja, é da divisão que muitos processos patolóigicos surgem, mas é a divisão que nos torna "normais". Dessa forma, segundo Winnicott:
cada pessoa tem um self educado ou socializado, e também tem um self pessoal privado, que só aparece na intimidade. Isso é comum e pode ser considerado normal (p. 52).
Trata-se de uma divisão, uma cisão na mente que, em seu grau mais profundo, gera a esquizofrenia. A sociedade, segundo Winnicott nos exige altos graus de concordância e adaptação, e aceitamos o fato diante das perspectivas de obter vantagens. 

Por exemplo, ensinamos as crianças a dizer "obrigado", por polidez, e não necessariamente porque a criança o quer dizer. Ou seja, de alguma forma esperamos que as crianças sejam capazes de mentir, aceitando as convenções para uma administração da vida. Parece ser o preço a pagar pela socialização. É nesse contexto que muitas crianças vão começar a achar a vida difícil devido à 
necessidade que têm de estabelecer e restabelecer a importância do verdadeiro self em relação à tudo o que seja falso (p. 54). 
O que Winnicott quer dizer é que, embora sejamos capazes de fazer concessões diariamente à sociedade, podem existir áreas que consideramos especiais e não aceitamos fazer concessões
Na área escolhida não há lugar para concessões (p. 54).
Podemos resumir dizendo que a sociedade impõe regras que devemos aceitar, consentir. Tais concessões levam à socialização e à construção de um falso self. É esse falso self que, por vezes, contrasta com o self verdadeiro, aquele que mantém nossos desejos, que é de nossa privacidade. Nessa luta, estamos todos, e a todo instante, envolvidos.

terça-feira, 23 de julho de 2013

Mídia e Poder (Dossiê - Revista Cult)

A edição n. 154, fevereiro 2011, da Revista Cult trouxe um dossiê sobre a relação entre Mídia e Poder e algumas colocações me chamaram bastante a atenção e sobre elas gostaria de fazer alguns comentários.

Olgária Matos (prof. de filosofia da Unifesp), em seu texto “A democracia moderna e a estética da moeda“, destacou o fato da sociedade atual se ver atravessada, numa visibilidade sem paralelos, de figuras da corrupção.

Para exemplificar, a autora nos diz que com a institucionalização da sociedade de consumo aquela busca por símbolos culturais que antes a burguesia fazia para “aristocratizar-se” foi sendo abandonada, fazendo com que, hoje, a ideologia do “novo rico” prescinda de qualquer verniz cultural.

Esta é a ideologia dominante, onde se conhece o preço de tudo mas não o seu “valor”. É uma cultura que atrofia a sensibilidade e o pensamento, o conhecimento e a ética. Estaríamos vivendo em uma sociedade panóptica em que tudo se pauta pela exibição midiática, onde desaparece qualquer pudor e de moral social levando, por conseguinte, a uma flexibilização do sentimento de culpa na consciência moral. Segundo Olgária,
O fim da autoridade paterna e o “pai humilhado” coincidem com a sociedade infantilizada em que não se reconhece mais a diferença entre gerações, entre pais e filhos, masculino e feminino, bom gosto e mau gosto. Em tempos comandados pela ideologia “novo rico”, tudo pode ser dito e mostrado; cada um de nós é chamado a apresentar em público atos e sentimentos como se fossem ideias (p. 57).
É este contexto de ampla visibilização que, segundo Olgária, favorece a desconfiança de todos contra todos, como forma de sociabilidade, e a delação, por exemplo. E isto está se tornando cada vez mais reconhecido como uma espécie de “compensação” pelas impunidade. Num ambiente assim, proliferam a demagogia e a difamação no espaço público. O delator, hoje, surge como uma espécie de “delator público” com a missão de “proteger” o espaço comum (uma figura criada na Grécia antiga).
Resta saber se o recurso à delação voluntária mediante recompensa em dinheiro não induz à corrupção – dadas as oportunidades que se oferecem para quem procura desembaraçar-se de um adversário indesejado ou então para aquele que se deixa comprar por ele – e, ainda mais, quando vai se tornando um meio para o funcionamento da justiça (p. 57).
Assim, a estética da moeda, dando um preço a tudo (e retirando seu valor) vai transformando a esfera pública num ambiente onde a culpa não tem espaço.

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Em ”Mídia e Poder na Sociedade do Espetáculo“, Cláudio Novaes Pinto Coelho, prof. da Faculdade Cásper Líbero, nos diz que um dos equívocos sobre a sociedade contemporânea é o de que os meios de comunicação são uma instituição poderosa. Para ele, Guy Debord definiu o termo “sociedade do espetáculo” como o conjunto de relações sociais mediadas pelas imagens, e ela corresponderia a uma fase específica do capitalismo marcada pela interdependência entre o acúmulo de capital e o acúmulo de imagens, daí a onipresença do marketing.

Todas as relações sociais, nessa fase, estariam mercantilizadas e envolvidas por imagens. Ou seja, predomina o caráter cotidiano da produção de espetáculos e seu vínculo com a produção e consumo de mercadorias em larga escala, fazendo com que as imagens sejam cada vez mais fundamentais para legitimar as mercadorias e seu consumo.

É nesse sentido que a sociedade do espetáculo é um entrave para a emancipação humana (onde o indivíduo perde o controle sobre sua vida) e não simplesmente um conceito acadêmico. Cláudio Novaes nos lembra que, mais tarde, em 1988, Debord diria que a Sociedade do Espétaculo só se intensificou e espalhou por toda a sociedade, tomando conta de toda a vida social, fazendo surgir algo como um “poder espetacular” cada vez mais integrado.

Debord faz ainda uma ligação entre a expansão desse poder e o triunfo do neoliberalismo em escala mundial. É um momento em que se fortalecem os conglomerados comunicacionais e a indústria cultural transforma-se no porta-voz ideológico do capitalismo desqualificando as outras visões como “ultrapassadas” e promovendo o “pensamento único”.

Mas e o contexto brasileiro? Ele nos diz que, em que pese a diminuição das desigualdades sociais o marketing continua em franco crescimento. Mas, tanto a vitória de Lula em 2006, como a de Dilma, em 2010, mostram um eventual declínio da influência dos grandes conglomerados comunicacionais na formação na opinião pública, como foi no caso do alcance limitado das denúncias de corrupção.

O quadro ainda pode se acirrar, segundo o autor, pois pelo passado de Dilma é de se esperar uma postura ainda mais conservadora da mídia, caso ela realmente venha a romper com o neoliberalismo e diminuir o uso do marketing político.

Nesse ponto gostaria de fazer um comentário. É certo que nas duas eleições setores da mídia deram muito espaço a denúncias de corrupção e facilitaram um eventual segundo turno. Mas, o resultado final não seguiu esta linha. Isto, para o autor, mostra a relativização do poder da mídia, o que está correto.

Mas, o que foi que deu a vitória, nos dois casos, ao governo? A simples atitude ativa da opinião pública? Não necessariamente. Aí também entra o uso intenso do marketing político em uma guerra simbólica onde o governo foi muito mais competente que a oposição. Só acredito em um poder de influência forte do meio de comunicação se for sobre um consumidor passivo e em condições de ausência de disputa simbólica. Fora disso, sobra complexidade na formação da opinião pública.

Outro aspecto que gostaria de comentar é que nem Lula e nem, muito menos, Dilma fizeram qualquer sinal no sentido de rompimento com o neoliberalismo. Pelo contrário, o governo Lula marcou-se pela consolidação de políticas econômicas neoliberais e o de Dilma já está sendo marcado pelo melhor “gerenciamento” destas questões.

Por outro lado, que governo foi mais “espetacular” que o de Lula? Ele foi o “espetáculo” em si. E, quais as chances para Dilma assumir a “ideologia” e abandonar o “marketing político”? Nenhuma. É a ideologia perdendo força, a cada dia, diante do espetáculo. Mas quem disse que o espetáculo também não é ideológico? O que não dá pra fazer é criar um confronto entre “ideologia de esquerda” X “espetáculo”, isso seria simplismo e ingenuidade.

Será preciso, cada vez, um esforço gigantesco para escapar a essa ideologização total da sociedade através do espetáculo, e isso não é um privilégio da esquerda e sim daqueles que possuem forte senso crítico, e auto-crítico.

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Bem, em ”Indústria Cultural e Manutenção do Poder“, Rafael Cordeiro Silva, prof. na UFU, relembra que Tocqueville viu na busca pela igualdade uma perigosa tendência para a uniformização das pessoas, uma ameaça à liberdade individual. Liberdade e igualdade não eram vistas como valores complementares por Tocqueville.

Adorno e Horkheimer vão retomar esta questão e falam de uma dominação pela igualação e homogeneização que atua no inconsciente (aquilo que para Tocqueville era a “alma”). Domesticar desejos revelou-se mais eficaz que a sujeição física, e se realiza sob a aparência de total liberdade.

Esta é a indústria cultural. Para eles, isto não é arte. A indústria cultural é mais afeita ao gosto mediano das massas e está fortemente vinculada aos meios técnicos de produção e difusão da cultura padronizada, como o cinema, o rádio e a TV. Ela sacrifica a autonomia, a singularidade, a diferença, a autenticidade, a crítica. Por outro lado, é um fator de coesão social. Ela reforça as relações de poder estabelecidas e a passividade diante da realidade.
Depois de uma jornada dedicada à reprodução do capital nas fábricas e nos escritórios, nada mais salutar do que a necessidade de descanso e relaxamento que a diversão proporciona. O ciclo está completo! (p. 65).
No meio disto tudo, a publicidade tentando estabelecer uma identificação entre produto e consumidor, tentando realizar o indivíduo como tal quando, na realidade, o que ela faz é castrar a individualidade.
Não se define o indivíduo pelo incremento de sua capacidade de consumo; indivíduo e consumidor não são termos sinônimos. Na verdade, a publicidade sacrifica o indivíduo, porque reitera sua dependência em relação ao mundo das mercadorias. Em vez de fomentar as autênticas capacidades e qualidades humanas, a publicidade representa a conquista da alma (p. 65).
Aqui, também, gostaria de fazer um comentário, só para relembrar que é nesse sentido que levando a discussão para o terreno da política enxergo a mesma oposição só que entre “cidadão” e “consumidor” e aí uma boa pergunta seria: O que significa essa apologia do consumo entre as classes populares? Algo que Lula repetiu algumas vezes, e com muito orgulho. Que cidadão está nascendo? um cidadão emancipado? Mas, em que bases? Exclusivamente materiais? É um belo tema para se discutir.

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Em “Da Aldeia Global à Teia Global“, Vinícius Andrade Pereira, prof. de comunicação da UERJ, nos relembra que uma das mais comentadas “previsões” de McLuhan era a de que o mundo se transformaria em uma em uma “aldeia global”. Ele teria dito isso pensando na TV e seus satélites que fortaleceriam a cultura de massa e seus produtos.

É inegável que ele estava preocupado com a identidade canadense, espremida entre o gelo e a força descomunal da cultura norte-americana. Para ele, as novas tecnologias provocariam uma “crise de identidade” nas diversas culturas. Mas, isso se justifica hoje em dia? Para isso, Vinícius sugere explorar melhor sua ideia de “aldeia global”.

À esse termo sugere outro: “teia global”. Assim, em que aspectos a aldeia global ajuda a entender a teia global da atualidade? O termo aldeia global traz um paradoxo, pois ao mesmo tempo que evoca a ideia de uma cidadezinha do interior propõe um sentido global. A ideia expressa o fato de uma notícia de uma pequena cidade alcançar, de imediato, todo o mundo.

É um conceito que fala de um único emissor, de uma comunicação de tipo massiva, de uma pequena quantidade de notícias que ganham o mundo, e de um imenso público consumindo a mesma notícia. McLuhan, portanto, ao falar de aldeia global trabalhava com as categorias da comunicação de massa. Essa é a mesma dinâmica da teia global?

A teia trabalha, entretanto, com o modelo “todos para todos”, no qual a comunicação se dá de forma multidirecional, acentrada e conversacional, já que todos podem estar conectados à rede. O público, então, também é produtor de mensagens e as mensagens, portanto, são as mais variadas.
Isso significa ainda que, quanto mais houver gente se conectando à teia global, mais vozes e mensagens entrarão em cena, tornando progressiva e paulatinamente mais variada e complexa a rede de mensagens circulantes (p. 73).
Isso se manifesta claramente na pulverização das audiências. Mas, isso não significa desqualificar as ideias de McLuhan, pelo contrário, o importante é sair da figura e ir para o fundo da reflexão, ou seja, a velha questão da crise de identidade cultural que se experimenta diante do impacto de novas tecnologias. Nesse sentido, é extremamente atual e pertinente a preocupação de McLuhan,
pois, sua obra nos convida a estarmos atentos para os possíveis efeitos que as tecnologias digitais (meios) podem estimular nos aparatos perceptivos e cognitivos com os quais percebemos o mundo (a mensagem) (p. 73).
Esta, portanto, é a principal mensagem da reflexão de McLuhan, ou seja, não podemos esquecer que os meios, ainda que de forma sutis, continuam sendo as mensagens, seja na aldeia, seja na teia global.

Como se vê, as relações entre mídia e poder são um terreno escorregadio, mas fecundo em possibilidades de análise.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

O Estranho Apelo do Ciúme - M. Blévis

Este texto é uma síntese de um capítulo I do livro de M. Blévis (1) intitulado "O Estranho apelo do ciúme".

A frase "você nunca saberá o quanto eu a teria amado", dita pelo namorado, quase fez Cléa desmaiar. Ela estava muito próxima do fundo do poço. Lúcida, mas em desespero, ela sabia que o ciúme a estava consumindo e tudo lhe parecia bem claro. Nesse ponto, se destaca a questão da "racionalização", tão típica do delírio de ciúmes.  É o que destaca Blévis.
O ciúme atesta um desvario perante o qual as suspeitas do ciumento parecem ser uma "racionalização", uma "roupagem do movimento de pavor que o suscita. Mas, que chaves fornecem estas máscaras? (p. 30).
A "racionalização" funciona, então, como uma máscara que esconde o pavor. Ora, segundo Cléa, como é que, naquele momento em que o namorado diz que a ama fala como se já não estivessem mais juntos? ("você nunca saberá o quanto eu a teria amado") Cléa já não sabia se era a mulher amada do "presente" ou a mulher esquecida do "futuro". pode parecer a alguns estranho o fato de poucas palavras dispararem tão forte angústia, mas
O ciúme é uma tortura que se alimenta das mínimas palavra e as deturpa em seu proveito (p. 31).
O resultado foi Cléa adentrar em uma crise de angústia, abrindo um abismo com relação a seu namorado. Mas, como nomear este abismo? Na impossibilidade, Cléa se alimenta de "ruminações" infindáveis sobre qualquer palavra que lhe era dirigida pelo namorado, afinal:
O ciumento é alvo permanente de batalhas internas, tão exaustas quanto estéreis (p. 33).
Sim, porque quem dota os rivais de tantos encantos e sedução é o próprio ciumento. No fundo, então, suas racionalizações e convicções acerca de numa traição são "fantasmas sem consistência". Fundamental, então, buscar a linguagem de Cléa na sua infância. Nesse momento,
O psicanalista precisa de toda a sua habilidade para conseguir se colocar na "pele infantil" do paciente, imaginá-la e descobrir as palavras que lhe faltaram (p. 34).
Qual, então, o curso das sensações de rejeição experimentadas por Cléa ao longo de sua vida? Não demorou para que uma lembrança lhe viesse à mente. Tratava-se de uma imagem que era recorrente. Em uma cidade devastada, um cachorro vadio e faminto andava por fachadas de prédios em ruínas.

Não havia dúvida que Cléa imaginava-se sendo esse cão desamparado e aflito, e a recorrência dessa imagem não era mais que um pedido de socorro. Mas, que conflito vivenciado por Cléa poderia ter causado toda essa cena sombria e destrutiva? Que acontecimentos foram esses, tão fortes, que foram silenciados por Cléa? O que a teria deixada tão faminta por palavras e vínculos?

No decorrer das sessões, suas associações iam em direção às "guerras" familiares. Ela sabia que a mãe fora enganada pelo pai. Logo em seguida o pai viria a morrer, mas sobre a traição e sobre o próprio pai passou a imperar um "silêncio". Cléa, na realidade, só possuía algumas fotos dele, de seu rosto ("fachadas").

Esse silêncio hostil por parte da mãe privara Cléa de todo o Luto necessário. Sem ele, sua dor permanecia "real", não simbolizada. Talvez por isso, andasse "vagando", faminta de significados, como aquele cão bem representava, diante de fachadas em ruínas.

Cléa, portanto, não havia explorado a realidade de suas emoções. E a impossibilidade do luto pelo pai, imposta pelo silêncio, deixara em suspenso sua feminilidade. O ciúme, então, a levava sempre a imaginar uma mulher a quem seu namorado poderia se dirigir. Uma rival que possuiria esta feminilidade. O abismo, então, era longo e profundo. De acordo com M. Blévis,
Uma construção de hipóteses erigida por um psicanalista só é pertinente quando faz reviver na memória do paciente fragmentos de lembranças que ajudem a preencher as omissões causadas pelos diversos recalcamentos, censuras, foraclusões ou renegações. O tratamento psicanalítico restitui força e vida a todos os vestígios e significações de acontecimentos que foram vividos, mas permaneceram fixados sem alteração no psiquismo. Com isso, eles persistem sob a forma de enigmas perigosos (...) O psicanalista, no espaço da transferência vai em busca das lembranças escondidas e cristalizadas nas palavras do paciente, a fim de "reativá-las" (p. 38).
Mas, o avanço definitivo de Cléa veio através de um sonho. Neste sonho, ela cruzava, na rua, com um homem com uma máscara de carnaval veneziana, com um bico assustador. Ela tinha que transar com ele, mas ela parecia um bebê. Ela sentia uma excitação sexual, mas desprovida de prazer. Logo, isto foi interpretado como uma revivência do amor intenso que Cléa sentia pelo pai, então proibido e silenciado pela mãe.
O trabalho da análise suspende esse tipo de proibição, desarticulando o pavor que ela encerra, e reabre o espaço do desejo de viver; nesse sentido, toda análise é também um "renascimento" (...) Cléa não poderia fazer o luto do pai enquanto ele não voltasse a ocupar um lugar "vivo", em palavras que o arrancassem do silêncio em que a mãe o havia escondido (p. 44).
Seu ciúme era, ao mesmo tempo, uma proibição de pensar no vínculo amoroso em seu lugar próprio e um apelo para arrancar essa preciosa ligação de sua ganga de proibições (p. 41).
Se era um destruidor de vínculos, o ciúme era também o lembrete de uma dor de amor perdida. Assim,
A saída do ciúme veio da possibilidade de lhe ser restituído o direito de amar a um pai, um homem, e também a si mesma como "apaixonada" (p. 41).
A proibição e o silêncio da mãe haviam amputado uma dimensão essencial da sua "identidade feminina". Há, no ciúme, uma oscilação entre o amor e a fúria (angústia) e essa raiva não é, ingenuamente, um "sinal de amor", é pura hostilidade. O ciumento tem raiva por não poder "consertar" o amado para que este lhe dê o reconhecimento e o amor que acha merecer. Mas, isto é impossível que alcance, até porque a demanda do ciumento é impossível de satisfazer. De acordo com Blévis,
No ciúme, é uma proibição de amar - no sentido como a infância ama, de forma intransigente, total e libertária - que o sujeito procura expulsar de si (p. 42).
Se ele conseguir essa expulsão, passará a amar como um "adulto". O ciúme, então, serve de anteparo para uma falha íntima. E a liberdade contra o ciúme vem quando se simboliza essa falha, como compreendendo que era possível reconquistar o direito de amar, sem mergulhar numa angústia mental. Afinal,
Amamos contra a morte, para vencê-la, para esquecer que somos mortais e, ao mesmo tempo, sabemos perfeitamente que nossos laços amorosos podem romper-se a qualquer momento. Assim, somos reconvocados à vida por eles e expostos ainda mais à angústia de nossa finitude ao perdê-los (p. 42).
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BLÉVIS, Marcianne. O Ciúme - Delícias e Tormentos. - São Paulo: Editora Martins Fontes, 2009, p. 27-42