domingo, 16 de fevereiro de 2014

Exibicionismo e inveja!

Outro dia, ainda esta semana, assisti uma curta reportagem em um telejornal matutino sobre a inveja que a superexposição de momentos felizes nas redes sociais causa em algumas pessoas. Foi uma matéria curta e superficial, mas valeu pelo tema. É uma questão que pode ser vista voltando-se o olhar para quem busca essa superexposição exibicionista de momentos prazerosos, ou voltando-se o olhar para aqueles que não conseguem suportar estar diante de imagens de felicidade. Importante é perceber que são duas situações "extremas", compulsivas, e que se não tratadas nos adoecem.

Ora, existem pessoas que adoram ser "monitoradas" em sua vida (e por isso se "expõem"), e outras que adoram "monitorar" (e por isso "vigiam"). São personalidades que lidam com a PERFEIÇÃO FANTASIADA, ou seja, parecem só conseguir funcionar no quadro de uma situação em que sentem-se ou buscam ser "perfeitas". Por isso, uns projetam esta aparência de perfeição através do exibicionismo e outros através da inveja, por acreditarem que não são capazes de serem "perfeitas".

O problema é que todos nós temos muito mais problemas do que admitimos ter, então por que sempre achar que a vida do outro é melhor que a nossa? Uma família "perfeita", uma vida "perfeita", acabam sendo somente projeções de fantasias infantis que expressam nossos desejos e angústias (medos, inseguranças, falta de afeto) experimentados naqueles momentos iniciais e prolongados pela vida.

Olhar demais para a grama verde do jardim do vizinho pode só significar que ainda não tivemos a condição para plantar a nossa própria grama, ou que devemos olhar para a nossa grama e percebermos que somos felizes com ela daquela maneira. Da mesma forma, por outro lado, precisar que o outro olhe para a minha grama verdinha é um sintoma do quanto me sinto inseguro com o que sou e com o que tenho.

No fundo, só precisamos apreciar melhor e com muito respeito o que temos e o que somos, e também admirar com respeito o que os outros conseguiram conquistar para si. Em parte, minha vida adquire sentido pelo reconhecimento que o outro me dá... mas só em parte!!! Pois EU preciso também reconhecer o que sou e o que tenho, encontrar a felicidade nisto, e deixar que o outro seja feliz à sua maneira.

Somos interessantes porque somos diferentes! Embora eu goste de ler, posso ser feliz com alguém que adora passar horas no shopping. Embora eu goste de caminhar lentamente pelas calçadas contemplando os pequenos detalhes, posso ser feliz feliz com que adora estar em um carro simplesmente andando por lugares badalados. Embora em goste do silêncio, posso ser feliz com quem adora uma agitação desenfreada. Ou seja, EU SOU FELIZ PELO QUE GOSTO E TENHO, E PELO QUE O OUTRO GOSTA E TEM!!!

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Precisamos de respostas! (a angústia do desconhecido - texto 6)

Gosto de filmes de ficção científica! Mesmo contrariando alguns colegas que torcem o bico, como se eu só devesse gostar de filmes de Bergman, dos iranianos ou franceses. Não é o caso, pois em se tratando de cinema, não tenho preconceitos. Assisto aquilo que geralmente considero que possa ser interessante e não dou bola para nacionalidades, diretores, prêmios, publicidades, críticos, etc. Acho que tenho minha própria forma de avaliar se vale a pena comprar o ingresso. O fato é que adoro sair do cinema com a certeza de que algo ficou e não que fui lá à somente para passar o tempo (embora isto seja absolutamente legítimo, e necessário!). Claro que já entrei algumas vezes, quebrei a cara e saí na metade do filme. É um risco, mas já me surpreendi inúmeras vezes. E essas são as melhores.
Mas, por que mesmo falei tudo isso? Ah, só para dizer que também gosto de filmes de ficção científica. Sim, adoro! 2001, uma Odisséia no espaço foi o primeiro que me deixou marcas. Filme inteligente, em todos os aspectos. E quando Roger Waters compôs a música Perfect Sense achei que o filme tinha recebido uma bela homenagem, destacando que o “salto” que demos do passado para este futuro pode ter sido, tecnologicamente interessante mas, ainda deixa muito a desejar em termos de evolução moral e ética. Mas, onde mesmo quero chegar? A ficção científica, quando não é feita só de bichinhos estranhos e bonitinhos, ou só de batalhas com raio laser, pode revelar algo bem interessante e que diz respeito a algo muito íntimo nosso. Algo que dificilmente expomos para os outros. Pode dizer respeito à nossa necessidade e ânsia por respostas.

Mais uma vez o “sentimento oceânico” que nos inunda e nos faz mergulhar em um desejo de respostas vem à tona. É este sentimento que nos leva, finalmente, a abrir os olhos e perceber nosso real tamanho. Bem diminuto, por sinal. Mas, nem por isso, menos interessante. Mas, diminuto frente às perguntas que fazemos e não conseguimos oferecer respostas. É um sentimento que nos faz desejar respostas para obter segurança, algum conforto, uma espécie de proteção. E a ficção científica tem evoluído bem para essa direção, nos levando a pensar em algumas coisas. Uma direção em que mostra que uma de nossas maiores necessidades é a de “respostas” para aplacar algumas de nossas angústias.
O filme Prometheus (2012), por exemplo, segue esta linha. Aqui um parêntese. Nos anos 80, quando assisti Alien, o oitavo passageiro, o fascínio foi imenso. O filme já se tornou um clássico e, agora, Prometheus veio para oferecer uma espécie de "origem" àquele assustador "Alien". Naquele momento, com "Alien" sabia-se que havia algo "além", pois a criatura que tinha dizimado uma nave, agora atacava outra que viera em socorro na tentativa de encontrar sobreviventes. Mas, uma resposta nunca havia sido dada: de onde vinham tais criaturas?

Somente agora Ridley Scott, o diretor, começou a oferecer alguma explicação. A criatura seria uma criação, por parte de uma espécie (os "engenheiros"). Espécie que teria sido a responsável também, por nossa criação, enquanto humanos. O problema é que as criaturas (aliens) haviam sido criadas com o objetivo de destruição da espécie humana. Algo deu errado, entretanto, e os próprios "engenheiros" foram destruídos, antes, em seu "laboratório". Mas, por quê destruir a nossa espécie? É aí que o filme fica interessante em minha opinião. Inicialmente motivados pela ideia de encontrar nossos "criadores" uma equipe de exploração parte em sua busca tentando responder às eternas questões: de onde viemos? Quem somos? Questões filosóficas e científicas que as religiões tentam também oferecer algum tipo de resposta.

Mas, quando tal equipe se depara com a questão da possível destruição da nossa espécie, outra pergunta se sobrepõe: o que fizemos de errado para ter que encarar nossa extinção? Essa mesma questão já havia sido colocada por outro filme clássico da ficção científica, "O dia em que a terra parou" (que teve uma refilmagem recente). Mas, infelizmente essa polêmica só aparece de forma subjacente ao filme, embora fique bem nítida para mim, e acho que é o grande barato do filme. Desse modo, entendo que as questões filosóficas e científicas que sempre colocamos sobre nossa origem e destino perdem totalmente qualquer relevância diante de outra questão: o que estamos fazendo? O que está dando errado em nossa evolução?

Acredito que buscar explicações para nossa origem e destino pode ser legítimo e a expressão máxima de nossa racionalidade, mas poderão ser sempre questões sem resposta, como que fadadas a manter nossa racionalidade prisioneira de si mesmo. Entretanto, pensar sobre o que estamos fazendo com nossas oportunidades de vida também é legítimo e pode ter resultados concretos. Quantas vezes já não parei e pensei comigo mesmo diante de tantas barbaridades cometidas pelo ser humano: "nós não demos certo", "falimos enquanto espécie". Buscar respostas para nossa origem e destino, de forma racional, pode ser mesmo só um artifício que usamos para escapar à pergunta mais importante e que diz respeito, mais de perto, à nossa existência e nossas responsabilidades: o que estamos fazendo? Saber de onde vim e para onde vou pode me dar alguma ilusão em me acreditar importante, escolhido, mas é quando me deparo com a questão do que faço com minha existência é que sinto o peso da responsabilidade e a angústia cresce.

Talvez por isso eu tenha gostado tanto de Prometheus, pois nos lembra de nosso iminente "fracasso" enquanto espécie. Lembra-nos de nossa maior tragédia enquanto seres humanos: diante da possibilidade de paz, teimamos em fracassar, pois a solução agressiva e violenta sempre nos parece mais fácil e adequada. Não é assim no nosso dia a dia? Não é assim quando nos revelamos absurdamente preconceituosos e intolerantes com quem é diferente de nós mesmos? Não é assim quando acreditamos que somos sempre melhores que os outros e não lhes devemos nenhum tipo de obrigação? A raiva e a agressividade talvez sejam o maior símbolo de nosso fracasso. Arrefecê-las, é o sinônimo de nosso sucesso. Por que não apostar nisso e olhar para o outro como alguém de quem realmente necessitamos, para nossa sobrevivência e felicidade? Talvez seja impossível, mas estamos aqui para tentar provar o contrário! A raiva e a agressividade talvez sejam o maior símbolo de nosso fracasso. Arrefecê-las, é o sinônimo de nosso sucesso. Por que não apostar nisso e olhar para o outro como alguém de quem realmente necessitamos, para nossa sobrevivência e felicidade? Talvez seja impossível, mas estamos aqui para tentar provar o contrário!

Já que falei em "tragédia", numa hora dessas não há como esquecer a mitologia. “Prometeu” foi um titã que tentou dar a inteligência aos homens, e foi punido severamente por isto. Assim, talvez no fundo, ainda estejamos mesmo ainda buscando nossa maior inteligência: Não necessariamente saber de onde viemos ou para onde vamos, mas entender o que estamos fazemos a nós mesmos aqui, nesta vida. A ciência, a filosofia e a religião lutam para nos oferecer respostas e nos acalmar sobre nossa origem e destino, mas ainda suspeito que nossa principal fonte de angústia é nos depararmos com o real significado de nossa existência, no aqui e no agora, e com o que estamos fazendo! Esse talvez seja o maior “desconhecido”, aquele que mais nos assusta!

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Reunindo meus pedaços! (texto 5 - os contos de fada e a perfeição)

Todos somos, em algum grau, neuróticos. E sei que esta é uma frase que incomoda e assusta a algumas pessoas que temem, com isso, uma proximidade com a “loucura”. Mas, não se trata disso. A loucura está mais próxima de uma violenta dissociação com a realidade, que nos aliena e incapacita para a construção de laços de forma quase permanente. A neurose, por seu lado, traz alguns traços desse tipo, mas num grau quase sempre bastante atenuado. Estamos falando, então, de outra ordem de sofrimento, de outro tipo de defesa que nós buscamos para controlar nossas angústias. E que é um tipo de defesa muito mais comum do que imaginamos. 

Quando se diz, então, que a “normalidade” é neurótica é porque, em nosso processo de constituição psíquica, em algum momento, nos deparamos com “limites” (pais, leis, regras sociais, valores etc.) que restringem nossos desejos e acabamos por sofrer com isso. Mas, sem este processo, sem estes “limites” como poderíamos olhar para o outro e respeitá-lo? Como poderíamos construir laços sociais se não tivéssemos restrições em nossos desejos? É uma boa questão! E não está fechada. Ou seja, conscientemente, sabemos da necessidade de limites para a vida social, mas a questão é que inconscientemente nossos desejos tentam “escapar” e é a luta por bloqueá-los que nos leva ao sofrimento. A grande saída é algum tipo de sublimação, que faça com que nossos desejos inconscientes se realizem de outra forma, como num relacionamento amoroso, num trabalho que nos causa felicidade, numa atividade em que nos sentimos bem etc. 

A neurose, então, nos fala de uma “submissão” à regra, ao limite. E é o sofrimento daí gerado que leva a mecanismos de defesa como a obsessividade e a compulsividade, por exemplo. Sofrer pelo nosso próprio desejo não realizado, então, nos aprisiona a uma “dívida”, como se estivéssemos em “falha” permanente, em “culpa”. Um sentimento de que somos devedores de algo que não sabemos bem o que é, e nem sabemos ao certo quem é o nosso credor. O fato é que nosso desejo fica soterrado em meio às obrigações e temores de punição ou de limites. É uma dívida que temos, então, em sentido metafórico, com o pai, com a lei, com o limite, e isso nos leva, nos casos mais graves, à possibilidade de nos comportarmos como escravos e ficarmos paralisados, sem futuro, condenados a repetições e com pouca chance de crescer e sentir-se bem.

Madonna, há pouco tempo, dirigiu um filme (“W. E.”, 2011) que, com muita força, traz um exemplo digno de chamar a atenção. Aliás, o filme traz uma trilha sonora que, no seu romantismo angustiante, parece sempre estar à beira da revelação de uma tragédia da qual não se pode escapar. Algo que marca os medos do neurótico obsessivo. No filme, duas histórias correm em paralelo. O que as liga? O desejo de um pai e de uma mãe que, ao dar o nome de uma nobre inglesa à filha, depositam ali todo o desejo de que sua vida transcorra como um “conto de fadas”, bem ao estilo daquilo que as monarquias tentam nos mostrar com sua pompa, beleza e delicadeza.

Isso é complicado. Para desespero da criança sua história seria construída tendo como espelho a vida daquela família real, considerada “perfeita”, como num “conto de fadas”. Ela teria, então, que realizar-se na busca por seu próprio conto de fadas. Mas, ela só conhecerá tragédias. Ficará, portanto, aprisionada ao desejo dos pais, e não ao seu. Não é a sua história que terá que viver, e isso lhe causa dor. Livrar-se da obsessão, portanto, significaria livrar-se de uma pulsão de morte poderosíssima, que a impulsiona sempre ao fracasso. O desejo não era seu e sim dos seus pais, era a eles que estava “obedecendo” ao tentar manter-se na linha de conquistar o “conto de fadas” para a sua vida. Quantas vezes, não levamos um tempo demasiado para perceber que o que estamos fazendo não é para nossa satisfação, e sim de nossos pais, ou outras pessoas? Isso quando percebemos!

Quantos pais, nesse exato instante, não estão arquitetando o “futuro” dos seus filhos, organizando “agendas” de educação e atividades que lhes tiram a chance de serem crianças ou adolescentes? Não! Não é assim. Contos de fada e histórias e “sucesso” individuais são criadas para amenizar nossas tragédias, para nos trazer de volta a esperança. Mas não podem se transformar em rígidos modelos de identificação, em exemplos aos quais devemos seguir e sermos fiéis incondicionalmente. Quem, de fato pode ser um super-homem? Quem, de fato pode ser uma princesa? Isso é puramente ideológico, e perigoso, pois nos adoece. Pelo contrário, é em meio aos tropeços de nossas vidas que vamos delineando um caminho que, muitas, vezes, já é o nosso próprio "conto de fadas". Basta às vezes, olhar atentamente para os lados e perceber, sentir. Ao final, o conto de fadas pode até estar se realizando sim, mas não daquela forma idealizada. Reconhecer isto é que é difícil, pois nos espelhamos severamente em modelos quase que inalcançáveis.

São estes “modelos inalcançáveis” e “irrealizáveis”, como os dos contos de fadas, que podem fazer com que pais e crianças se envergonhem de suas “imperfeições”, daí a busca em tornarem-se “super-adultos”. Isto é um massacre ao psiquismo da criança, ainda não plenamente constituído, e que já é submetido a tal ordem de obrigações neurotizantes. É nesse processo que a relação afetiva vai dando lugar a um sistema de obrigações morais e “educativas” que proporcionam uma boa dose de tormento às crianças. Crianças assim, preparadas para serem “super-adultos” e realizarem seu conto de fadas a todo custo, acabam se revelando egocêntricas, narcisistas, ou estarão condenadas a um sofrimento por se sentirem sempre “pequenas”. Por isso a dificuldade em enxergar o outro na sua totalidade. Afinal, se a sua própria integridade está corrompida, como enxergará a integridade dos outros? Os outros serão apenas “pedaços” dos quais se aproveita para buscar uma ilusória “completude”. 

E essa completude tem um nome: “perfeição”. É isso que muitos buscam como forma de sentirem-se, finalmente, bem, sem divida, sem culpa, sem sofrimento. Nesse terreno, portanto, não suportamos lidar com nossas “imperfeições”. Buscamos corrigi-las a todo custo, e cada vez mais cedo. Ou as cirurgias plásticas estéticas, por exemplo, não estão cada vez mais disseminadas e em idade cada vez mais precoce? Que modelo é esse que buscamos seguir? Que perfeição é esta que nos fascina? Metaforicamente poderia dizer que é a perfeição dos contos de fadas, mas na concretude do dia a dia, a perfeição está identificada nas atuais “celebridades”, por exemplo. São estas celebridades que “denunciam” nossas imperfeições. Não seria melhor pensar que todos somos “diferentes”? Não seria um comportamento mais saudável e humano?

É nos sentindo sem integridade, despedaçados, que buscamos os lábios de uma, o cabelo da outra, as pernas de outra ainda, os seios de uma outra. Ou, o cargo do outro, a casa maravilhosa de outro, o carro mais moderno de outro ainda. E por aí se caminha, tentando-se construir a completude, a perfeição e, em última instância, a paz interna. É claro que é natural que busquemos no outro algo que nos agrade, mas isso às vezes se torna um comportamento obsessivo. Enxergar o outro como feito de “partes” acaba nos levando a nos enxergarmos como um jogo de quebra-cabeças onde cada parte tem que juntar-se necessariamente para compor um todo, preenchendo um vazio e dando ares de “normalidade” e “perfeição”. Difícil, então, em meio a tudo isto, as crianças aprenderem a lidar com as diferenças. Elas querem escondê-las a todo custo, corrigi-las de qualquer modo, sempre na esperança de completar a obra, o quebra-cabeças, a si mesmas. Um dia isso ocorrerá? Jamais! São heranças de obsessões, por vezes, paternas e maternas, às quais se somam as obsessões do mundo contemporâneo, e que nos tornam reféns desde muito cedo.

Voltando ao filme, vemos que o resultado é paradoxal. De um lado, nossa personagem se "liberta" de um "destino" traçado antes mesmo de seu nascimento. Ela não viverá para sempre com seu príncipe. Mas, é justamente essa libertação que a permitirá atuar sobre seu próprio destino, construindo-o com seus próprios desejos, e não os de seus pais. É um exemplo que nos mostra o "peso" gigantesco que o desejo dos pais pode ter sobre uma criança que, para defender-se, segue o caminho da patologia, da doença psíquica. Pior, tal desejo dos pais, herdado de forma incondicional, sem negociação, obscurece nossos próprios desejos e até a percepção de que já podemos estar vivendo nosso próprio conto de fadas, ao nosso modo, mesmo sem nos darmos conta disso. E, isso tudo ainda agravado pelo fato de, culturalmente, teimarmos em esperar que um suposto destino se revele esplendoroso sobre nossas vidas. Não dá! Esperança é importante, mas não a ponto de nos tirar a responsabilidade sobre a construção de nosso destino.

(José Henrique P. e Silva - out/2013)

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Quero meu Rosebud! (texto 3 - Consumo e coisificação)

Talvez estejamos vivendo uma época em que o consumo atingiu um fim em si mesmo. Muda-se, troca-se, compra-se qualquer coisa sem nem mesmo saber ao certo sua verdadeira utilidade. Mas, alguém nos diz que este é o procedimento padrão e passamos a consumir de uma forma que beira a irresponsabilidade. O bom senso  foi embora há muito tempo.
 
Tudo bem, vivemos numa sociedade onde o consumo é mesmo seu ponto central. Mas chegamos a absurdos, e como pensar sobre isto? Quem somos, na verdade, quando consumimos desenfreadamente? Não quero falar de evolução tecnológica, muito menos da severa competitividade entre as empresas que leva a uma disputa acirrada por mercados e pelo desejo do próprio consumidor. Quero pensar um pouco sobre que tipo de homens e mulheres estamos falando e estamos nos tornando?
Qualquer coisa que seja duradoura está sofrendo um enfraquecimento hoje em dia. Alguns definem a época atual como “flexível”, outros como “líquida”. O fato é que a perenidade e a durabilidade das coisas sofre ataques diariamente, e nos impele a buscar o “novo”, a “novidade”, a qualquer custo. Permanecer com algo por um tempo a mais é incorrer em "erro", é ficar para "trás", é ser ultrapassado, é não ser “moderno”, é não estar “antenado”.
Bem, isso já dá muito pano para manga. O fato é que em uma sociedade marcada pelo individualismo egocêntrico, pelo narcisismo, difícil falar-se em comportamento solidário, em valorização do outro. Não à toa, boa parte das doenças psíquicas atuais enveredam pelo campo das psicoses, das psicopatias mais graves, das perversões, das fixações naquele estágio da vida onde o reconhecimento da lei se torna uma impossibilidade.
Estamos sendo chamados a ser fortes e insuperáveis. “Podemos tudo o que queremos”! O narcisismo está à solta, e com vigor. Não à toa, também, os comportamentos violentos e criminosos aumentam assustadoramente. E não só os crimes da rua, mas aqueles que violam regras básicas, valores básicos. Não queremos perder em nenhum momento. Não admitimos a derrota. Tiramos a bola de campo e a levamos para casa, mas não aceitamos outra regra que não seja a nossa.
Este parece ser um possível retrato desse sujeito contemporâneo, que não submete sua vontade à nada, que desvaloriza o outro, que quer ganhar a todo custo, e com o mínimo de esforço possível. Os “meios” perderam qualquer importância diante dos “fins”. Maquiavel venceu! Teria tido um bom campo de estudo se vivesse nos dias atuais.
Este é o ser humano “total”, completamente cheio. Parece não conhecer o vazio, nenhum buraco sequer. Nada por onde escapar suas fraquezas, suas dúvidas, seus instantes de dor e sofrimento. Ele parece vestir-se como um super-homem, adquire um ar de indestrutibilidade. Sente-se poderoso e só enxerga vilões à sua frente. Vilões a quem tem que enfrentar e destruir, tirando-os do seu caminho.
Mas, ele está “cheio” mesmo”? Está completo? Não precisa de mais nada? Inevitável aqui lembrar da interpretação de Orson Welles em Cidadão Kane (1941). Dizer que o filme é maravilhoso é chover no molhado, pois está sempre nas listas de "melhores filmes" já produzidos. Mas, porque eu o acho fantástico? Todos devem ter o seu motivo e eu também tenho o meu. Para me explicar melhor vou reproduzir um rápido diálogo de nosso personagem principal, Charles F. Kane e o seu "guardião" financeiro, o Sr. Bernstein.
 
… Sabe Sr. Bernstein, se eu não tivesse sido um homem tão rico eu poderia ter sido um grande homem…
O que teria gostado de ser?
Tudo o que você odeia!
Kane veio de uma infância pobre, com pais endividados, e construiu um império, acumulou riquezas e prazeres que nenhum mortal poderia sonhar. Mas, e aí? Ele passou a vida conquistando… e perdendo tudo, como em uma montanha russa. Sua insaciável busca, entretanto, não era pelo dinheiro. Não à toa, diz ao Sr. Bernstein: Não é difícil ganhar muito dinheiro… quando a única coisa que se quer é ganhar muito dinheiro.
Ao morrer, e pronunciar a palavra “Rosebud”, nosso personagem simplesmente mostrou que existem coisas de que precisamos e que não podemos simplesmente descartar nessa busca ensandecida por dinheiro e poder. Pior, essas coisas não podem ser "compradas", como querem acreditar aqueles que se entregam facilmente à crença de que "o dinheiro pode tudo". Foster Kane tentou comprar a tudo, mas o preço que pagava era sempre muito alto: sua infelicidade, sua ruína pessoal.
A incessante busca, mostrada pelo filme, para se desvendar o mistério do significado da palavra "Rosebud", dita por Kane quando de sua morte, revela a própria incapacidade da sociedade em perceber o beco sem saída em que cada vez mais estamos entrando: o da supervalorização da imagem e do sucesso, e o esquecimento de nós mesmos. Quanta infelicidade isso está gerando. A busca incessante pelo significado da palavra “Rosebud”, então, é a busca que fazemos todos os dias por reencontrar algo que "perdemos" ou "deixamos de lado" em troca de alguma coisa que consideramos ou que nos dizem ser importante.
Nesse sentido, a palavra “Rosebud” definia sim nosso personagem: Kane era um homem que tinha saudades de uma época em que fora feliz, quando criança, em sua família. Isso o atormentava, fazia de sua vida uma aparente felicidade, corroída por uma destrutividade interna silenciosa, mortífera. Mas, no momento de sua morte, ele foi sincero consigo mesmo e "agarrou-se" à sua melhor lembrança, o seu "Rosebud".

Todos temos o nosso pequeno trenó, ou nosso brinquedo, aquilo que nos lembra de uma felicidade absolutamente honesta… ou não? Só precisamos saber o que fazer com isso. Vamos descartá-lo? Ou vamos lutar para mantê-lo por perto, como uma lembrança e uma certeza de que a felicidade é possível, e está sempre nas coisas mais simples ao nosso redor?
(José Henrique P. e Silva - out / 2013)