quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Sobre o amor e o casamento: "antes" era melhor que hoje?

Amar, hoje em dia é mais fácil que antes? Antes, o casamento era melhor que hoje? Ser um casal hoje em dia garante que vou continuar sendo livre? Perguntas como estas, e tantas outras, povoam o imaginário de homens e mulheres na atualidade. São como que sombras de um passado, de que se ouviu falar, principalmente dos pais e avós, e que não consegue mais se sustentar tão facilmente e com tanta naturalidade. 

Ora, os casais continuam indo às terapias com suas angustias e incertezas. Mas, se antes estas eram provocadas, na sua maioria, por uma espécie de "confinamento" (no casamento) que exigia uma mudança, hoje, muito são muito mais motivadas por uma "liberdade" (individual) que se conquistou e que é difícil dividir com o outro, não se sabendo bem, portanto, o que fazer com ela. No meio de tudo isto, aquela fantasia tão nos ensinada pelos contos de fada: "antes tudo era melhor". Será mesmo? Em que aspectos?

Antes de mais nada, é bom lembrar o quanto é difícil se trabalhar com categorias assim tão fechadas como "antes" e "hoje", pois sabemos que esses tempos se misturam de formas específicas em cada imaginário e produzem fantasias as mais distintas em cada pessoa, onde a realidade de um casal e do amor não é a mesma de outro e precisa ser investigada na sua especificidade. Isso, entretanto, não invalida que apontemos certas "regularidades", situações compartilhadas por muitos, e são estas que nos permitem falar, ainda que com cautela, em um "antes" e um "hoje".

Mas, o que era este "antes"? Cada vez mais, o "antes" dos relacionamentos amorosos e conjugais entra para aquela categoria dos "paraísos perdidos", dos quais nada sabemos, nada experimentamos, nada vivemos, mas que somos capazes de jurar que foram bem melhores do que aquilo que vivemos hoje. São como que um refúgio para onde escapamos, em nossos pensamentos, quando as incertezas do momento atual nos afligem. 

Uma necessária regressão a tempos "primitivos" onde apostamos na existência de uma felicidade sincera e duradoura. Melhor seria olhar para frente? Talvez! Mas, convenhamos, é bem mais fácil e simples se olhar para trás com alguma nostalgia, essa saudade idealizada e quase sempre irreal, alguma segurança, do que olhar para frente com todos os riscos que o futuro traz embutidos.

O "paraíso perdido", então, nada mais é do que uma construção imaginária que utilizamos para combater nossas angústias. Por isso soa tão fácil na boca de muitas pessoas ouvir que, "antes", mesmo quando o amor não estava tão em questão no casamento, tudo era "melhor". Não há nada que comprove isto. Para os que se apegam demasiadamente em estatísticas talvez o tempo de duração dos casamentos hoje comprove algo. Mas, na verdade, isso não explica quase nada. 

Então, o retorno ao "paraíso perdido" é só um recurso de que nos utilizamos quando estamos sem saber bem o que fazer "hoje". Mas, de fato, o que era esse "antes", tão idealizado por homens e mulheres? E quais os desafios que o "hoje" coloca aos relacionamentos amorosos?

A respeito do "antes", acho que dá para se chegar a algum consenso: o "casal" era algo bastante idealizado, principalmente pelas mulheres, e muito buscado. Os papéis de homem e mulher já estavam bem definidos, enquanto um buscava prover e proteger, outro buscava cuidar e procriar, tudo segundo regras culturais bem claras e que deixavam o destino bem visível para os dois. Neste contexto, havia uma ideia de complementaridade, como se fossem "duas metades", ou como se diz, "a tampa da panela". Os filhos, quase sempre muitos, eram como que a garantia e o atestado de uma família feliz. 

Esse é um panorama muito geral, que quase sempre é idealizado mesmo. Mas, em seu interior haviam problemas. E é muito natural que houvessem. Num contexto assim, como o de "antes", não era difícil o marasmo, a inércia, e a luta pela "transformação" do vínculo entre os dois talvez estivesse no inconsciente de cada um, mas sem grandes possibilidades de sucesso. Estavam como que "amarrados", mas no sentido ruim mesmo do termo, e a palavra de ordem era "transformar" para se tentar ser feliz. 

Mas, e o "hoje", o que apresenta de novidade? Existem sim algumas características que transformam o "hoje" em algo bem distinto de "antes". Duas me parecem muito fortes e ajudam a explicar muitas situações: 1) O narcisismo individual, e 2) A ideia de igualitarismo e similaridade na relação. O que isto tudo implica? Como podemos resumir o cenário?

"Hoje", homens e, especialmente mulheres, tendo conquistado uma maior liberdade em diversos aspectos, e sendo convidados a participar de uma sociedade cada vez mais competitiva, viram o ressurgimento de um individualismo muito feroz, que trouxe à tona o narcisismo, muitas vezes, em suas piores versões. Trata-se de um narcisismo que praticamente se resume à busca e conservação, a todo custo, do bem-estar pessoal. Um narcisismo tão arraigado que, diante de uma dificuldade maior em realizar um desejo busca-se logo uma alternativa e abandona-se tudo.

Na prática dos relacionamentos isso significa, de imediato, uma "desconfiança" em relação ao outro. O que ele(a) quer mesmo de mim? Vou perder minha liberdade diante dele(a)? Vou ter que dividir algo com ele(a)? Ora, é essa desconfiança que está na base das dificuldades em se construir laços na atualidade. Se antes, então, o laço se formava através de um casamento que era facilmente buscado e desejado, hoje esse laço é visto com desconfiança. Como criar um laço com o(a) outro(a) se o que busco, em primeiro lugar é minha felicidade pessoal? Nada pode abalar minha onipotência narcísica de buscar o que é bom para mim.

Não à toa, diversas formas de laços têm surgido, formas alternativas de amor e de amar, situações diferentes de estar junto, de conviver. Cada um de nós não quer mais ficar "refém" de um destino, ou de um casamento que parecia ser o único resultado a esperar da vida. Nos sentimos no direito de inventar, de transformar, de forjar nosso próprio destino. Não queremos mais dividir papéis de forma tão clara. Não queremos mais transar de forma tão convencional. Sempre desejamos isso? Tudo bem, só que agora estamos fazendo isso, com muito mais liberdade.

Ora, de acordo com esta lógica narcísica, como entender o laço de um casal? É aí que passa a predominar o que Serge Hefez (psicanalista francês) chama de "miragem da similaridade", do igualitarismo, onde tentamos desesperadamente preservar nossa identidade diante da outra pessoa. Talvez por isso mesmo seja fácil "jogar a toalha" diante das primeiras dificuldades. Talvez por isso mesmo, os casais, hoje, visitem os terapeutas cada vez mais jovens e no início do casamento, justamente porque não "sabem" criar um laço. Embora, saibam defender bem, cada um, a sua liberdade, a sua individualidade, o seu desejo, o direito de ser amado. Mas e o laço? Onde fica o laço? Não podemos esquecer que:
Cada um se engaja inteiramente na relação amorosa, colocando em jogo tudo o que o constitui como pessoa: o sentimento dos próprios limites, da posse de si mesmo e de seus desejos, com o risco de uma perda de si ou pelo menos de uma certa imagem de si. Mas a vida amorosa é precisamente o que coloca em causa as fronteiras do eu, entre "eu" e "nós", entre mundo interior e a realidade externa. Ser amado "por completo" faz bem e traz segurança, mas o perigo de aniquilamento ou de fusão nunca estará muito distante"¹
Para finalizar, acho que na ânsia de superarmos os limites desastrosos dos casamentos de "antes" (uniões normatizadas) conquistamos liberdades que despertaram em nós um sentimento narcísico de onipotência que nos faz sentir, permanentemente "melhores" que o outro. Este passa a ser necessário somente para o "meu" prazer. Mas e o laço? O laço amoroso é tecido pelo amor. E o amor exige uma entrega do "eu" para o "nós". Estamos dispostos a correr este risco? Ou vamos nos atolar neste pântano narcísico e individualista onde buscamos nosso prazer a todo custo, mesmo à custa do(a) outro(a)?

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¹ HEFEZ, Serge. Cenas da vida conjugal: como os casais enfrentam a crise do relacionamento. - São Paulo: Saraiva, 2012, "Introdução", pág. 23.


domingo, 18 de agosto de 2013

Contrapartida (James Joyce, "Dublinenses")

A campainha soou furiosamente e quando a senhorita Parker chegou ao receptor, uma voz irada, com estridente sotaque do norte da Irlanda, gritou:

- Mande Farrington aqui!
A senhorita Parker retornou à sua máquina e, de passagem, disse para o homem que trabalhava numa escrivaninha:
- O senhor Alleyne quer você lá em cima.
"Que vá para o diabo", resmungou o homem, afastando a cadeira para levantar-se...
É desta forma intensa que se inicia este conto de James Joyce ("Contrapartida", publicado em Dublinenses). Farrington, em seu trabalho, e naquele momento em especial, tinha a missão de fazer cópias de um contrato. Cópias à mão é claro. Estava permanentemente sendo cobrado e a lembrança do tempo se esgotando o perturbava imensamente e acabava impedindo-o de melhor se concentrar.

Sua relação com o chefe era a de um ódio contido, mas a ponto de explodir. Sentia-se permanentemente humilhado e não reconhecido. Em certo momento, quando tentou pegar a caneta novamente, sentiu que precisava molhar a garganta. Levantou-se, foi ao restaurante O'Neill e pediu uma cerveja. Logo voltou ao escritório, mas o tempo parecia esgotar-se rapidamente. Não iria conseguir.

A noite escura e nevoenta aproximava-se, aumentando seu desejo de passá-la bebendo com os amigos, em meio ao tilintar de copos nos salões bem iluminados.

Mas, faltavam 14 páginas.

"Maldição". Não iria conseguir. Tinha vontade de blasfemar, de socar alguém... Sentia-se capaz de arrasar o escritório num só golpe. Seu corpo ansiava por fazer alguma coisa: precipitar-se para a rua e desabafar na violência. Todas as afrontas que sofrera na vida vinham-lhe à memória e o encolerizavam...

Apesar do seu mergulho em devaneios, logo a cobrança chegou. Ele não conseguira cumprir a tarefa. As ofensas logo começaram. E, mais uma vez fora obrigado a desculpar-se vergonhosamente. Ansiava cada vez mais pelo bar, mas precisava de dinheiro. Estava muito irritado, mas logo descobriu que, como saída, seu relógio podia ir parar numa casa de penhores.

Atravessou rapidamente a estreita passagem do Temple Bar, murmurando consigo que todos podiam ir para o diabo, pois ele teria uma boa noitada.

Junto aos amigos começou a relatar os incidentes do dia e suas respostas malcriadas. Todos riam e ele sentia-se melhor, mas, com o passar da noite a cólera e o desejo de vingança voltavam a dominá-lo. Além de tudo isto, ainda detestava voltar para casa, pois a mulher o repreendia por andar bebendo.

Ao chegar em casa, sabe pelo filho que a mulher foi à igreja. A criança está com medo, se oferece para preparar a comida do pai, mas deixa o fogo apagar-se no fogão. Neste momento, o pai persegue-o e o agarra pelo casaco golpeando-o vigorosamente com a bengala.

O garoto soltou um gemido de dor quando a bengala atingiu-o na coxa. Ergueu as mãos entrelaçadas e sua voz tremia de pavor:

- Oh, papai! Não me bata, papai. Eu... eu rezarei uma ave-maria pelo senhor... Eu rezarei uma ave-maria pelo senhor, papai, se não me bater... Rezarei uma ave-maria...

Este conto de Joyce é duro, mas nem de longe é uma ficção. É o cotidiano de um homem insatisfeito, humilhado e que, como que numa previsibilidade terrível, alimenta-se de rancor e desejo de vingança. A tragédia faz parte de seu cotidiano, a vida lhe parece um horror, nada o satisfaz e, infelizmente, o desejo de explodir em violência, acaba encontrando no lar, e nas inocentes crianças, o ambiente perfeito para acontecer.

Vale a pena ler... e reler este conto. Podemos, enquanto adultos, nos vermos, ainda que em lampejos, neste homem. Mas, se fizermos um esforço maior, podemos, enquanto crianças, também nos vermos na aflição e no terror daquela criança.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Agorafobia e Pânico: O medo de ter medo (estar sujeito à angústia)

Em 1872, o alemão Carl Westphal descreve um quadro clínico em que os pacientes não suportavam ficar sozinhos em grandes espaços abertos sob o risco de viverem uma incontrolável crise de angústia, e o denomina de agorafobia ("medo de lugar público").

Mas, é na França, com Legrand Du Saulle (1878), que surge uma melhor descrição do que vai chamar de "medo dos espaços". A questão central, aqui, é que já não se tratava de um "lugar público", mas de qualquer lugar onde o "vazio" fosse experimentado como "medo" de sentir-se "sozinho"Mas, diante de tantas possíveis situações assim (locais abertos, fechados, etc.) existiria um elemento psicopatológico comum?
Este elemento essencial comum se situa, segundo nossa hipótese, no confronto que impõem estas duas condições com o fundamento de desamparo e de falta de garantias sobre a qual se desenrola o funcionamento psíquico, enquanto ancorado na linguagem. Para estes sujeitos, tanto a dissolução em uma multidão quanto a restrição a um lugar fechado, evocam a emergência do possível sob a forma de um fato aterrorizante: o sujeito descobre, para seu pavor, que não poderá encontrar aí nenhum tipo de ajuda se for necessária. Face a esta constatação, entra em pânico (p. 161).¹
Trata-se de um "medo de ter medo", "medo de estar sujeito à angústia", um medo mais frequente que todos os demais. É o medo de ter medo que unifica toda essa constelação heterogênea de situações fóbicas (medo de cair, de tontura, de ser zombado, de ter vontade de ir ao banheiro etc.).

E quanto á Freud? O que nos diz sobre isto? Em "Inibição, Sintoma e Angústia" (1926) nos diz que a fobia instaura-se após a experimentação de um primeiro acesso de angústia. Há uma lembrança desse ataque e o que o paciente vai temer é a sua recorrência em determinada situação da qual, portanto, imagina não poder escapar. Em "Novas Conferências" (1932), Freud confirma a fobia como fenômeno secundário, um estratégia defensiva contra o acesso de angústia. Seu principal sintoma, então, é uma inibição, uma limitação da função do "eu", justamente para tantar se poupar da angústia.

Mas, que explicação Freud nos dá para a origem desses acessos de angústia? Sobre isso, desenvolveu duas teorias sobre a angústia. Na primeira ("As Psiconeuroses de Defesa", 1894), o afeto (angústia) é o resultado da acumulação excessiva de libido insatisfeita, ou seja, surgia de uma "crise inexplicável" ancorada na acumulação da libido física. O afeto, dessa forma, é visto como um elemento estranho ao psíquico, já que deriva de outro domínio, o corpo. 

Com o tempo, Freud muda essa posição. Em "Inibição, Sintoma e Angústia" (1926) diz que a angústia experimentada em situações fóbicas não é independente da estrutura edipiana, ou seja, não depende somente de acúmulo de libido. Ela seria um "acréscimo" ao sistema defensivo para afastar um desejo proibido.

Mas, que "acréscimo" é este? Para Freud, uma "regressão" a tempos primitivos da infância (e mesmo ao útero) onde existia forte proteção contra perigos. Assim, se agorafóbico consegue sair acompanhado é porque está se comportando como aquela criança que não tem medo de sair com quem confia. Mas, se estiver sozinho, terá que conhecer bem o local e as pessoas. Trata-se de uma neurose onde há o reconhecimento da lei, mas busca-se desfazer esta proibição para se fazer valer o desejo - o que é a estrutura de toda neurose.

E quem é este acompanhante? É alguém que se legitima por sua posição tácita de indivíduo "adulto". Ele é o "representante da lei" junto ao superego, é o "fiador" da possível reconstituição desse indivíduo angustiado, por isso aparece como "desesperadamente indispensável", trazendo certo alívio.
O acompanhante fóbico constitui o substituto patético de um deus particular, a quem o paciente dirige seu pedido de ajuda de forma dramática por meio de seus ataques de pânico (p. 170).
Nesse sentido, por trás do abandono há uma relação entre desamparo, sexualidade e castração. Nesta neurose, há uma aparência total de abandono, mas permanece a problemática conflitual com a lei simbólica, diferente da psicose, onde esse possível reconhecimento na lei está praticamente aniquilado. Isso não quer dizer que nas neuroses não ocorram condições de despersonalização e desrealização, embora sejam sempre defensivas, justamente para barrar as experiências dolorosas. Assim, ocorre uma "dissimulação" da consciência e do eu para evitar o caráter insuportável da lembrança.

Aqui é interessante ver, também, a diferença que Freud estabelece entre "terror" e "horror". No terror, a experiência de aniquilamento é mais radical, sendo quase impossível até referir-se à uma lei. Já no "horror" surge uma confrontação petrificante com a realidade da castração.

Assim, para Freud, o desamparo não é um "acidente" da vida psíquica, que se manifesta em "situações específicas". O desamparo chega a ser intrínseco à vida psíquica. O que se precisa perguntar é sobre as condições que conduzem ao pânico, sem poder contorná-lo, sem possuir garantias! É disso que o pânico nos fala:
O desencadeamento de crises em situações cuja significação subjetiva é a falta essencial de garantias para a existência (p. 173).
Escrevi este post para apresentar uma síntese de um capítulo acerca da agorafobia e do pânico, de um livro de Mario Eduardo da Costa Pereira. De acordo com o autor, existe um intenso debate entre a agorafobia e o pânico. Debate esse, geralmente centrado na maior ou menor vinculação entre o pânico e a fobia. Para alguns, o ataque de pânico seria a causa primeira da fobia. Para outros, até pode existir uma vinculação, mas sem causalidade. Outros, ainda, negam inclusive a vinculação e dão à agorafobia autonomia enquanto entidade clínicaDe qualquer forma, parecem haver há dois tipos de pacientes que apresentam pânico: aqueles onde a crise se dá quando da exposição a uma situação fóbica, e aqueles cujos ataques não são situacionais, com fatores desencadeadores ocultos. 

Em 1980, com o DSM-III tínhamos 4 categorias de diagnóstico:

- Agorafobia com ataques de pânico (transtorno fóbico)
- Agorafobia sem ataques de pânico (transtorno fóbico)
- Transtorno de pânico
- Transtorno de angústia generalizado (estado de ansiedade)

Gradativamente, o "estado de ansiedade" é incluído nos transtornos fóbicos e, os três tipos passam a ficar sob a denominação de "transtornos de ansiedade" e o "transtorno de pânico" mantém-se, com o termo "agorafobia" perdendo valor descritivo para a própria situação de pânico.

Mas, a questão continuou polêmica, até que, no DSM-IV a agorafobia passou a ser considerada uma entidade independente do transtorno de pânico, mesmo se a síndrome agorafóbica estiver associada ao pânico. Não é bem o que Freud pensava, pois seu ponto de vista estava mais próximo dos que situam o pânico num lugar de primazia em relação à agorafobia

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¹ PEREIRA, Mário Eduardo da Costa. Os ataques de pânico e a Agorafobia: O problema da Agorafobia. In: Psicopatologia dos Ataques de Pânico. - São Paulo: Escuta, 2003, capítulo 8, p. 149-173.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

"W.E." e a obsessão herdada do desejo dos pais

Assisti a W.E. (R.U., 2011) há um tempo atrás e lembro que não estava muito empolgado, mas algumas coisas me chamavam a atenção, como o fato de ser uma produção inglesa, que sempre gostei, e a história do casal em questão, que me despertava curiosidade.

O filme nos primeiros minutos chega a ser confuso e não se entende bem a proposta da diretora (Madonna) mas, aos poucos, o filme encontra um fio condutor e as coisas vão ficando mais claras para o espectador. Logo se percebe duas histórias em paralelo mas, na verdade, uma só história.

Antes que deixe minhas impressões quero deixar dois destaques: a beleza estonteante de Abbie Cornish e a trilha sonora que, no seu romantismo, revela o prenúncio de uma tragédia. Chega a ser angustiante, mas, enquanto tragédia, não dá para escapar. São poucos os momentos, mas são marcantes. É uma trilha que te aprisiona.

O filme adquire todo o sentido quando vem a revelação de que o nome de Wally não foi à toa. Foi escolhido pelos pais em uma homenagem ao "conto de fadas" que teria significado o romance de Wallis Simpson e o herdeiro do trono britânico, Edward.

Previsível. O filme, então, iria transcorrer na desesperada luta de Wally (a personagem de época recente) para "realizar-se" como esposa e mãe, numa busca pelo seu próprio "conto de fadas". Mas, só conhece tragédias. 

Cada rememoração do passado, gradativamente, vai perdendo todo o glamour de um conto de fadas e vai mostrando o forte embate, a luta feroz, que nossa Wally leva a cabo para se libertar desse desejo que não é seu, e sim dos pais. Não haveria como conviver indefinidamente com aquela obsessão em torno da história de dois personagens que não lhe dizem respeito. Se livrar da obsessão era livrar-se de uma pulsão de morte poderosíssima.

O resultado é paradoxal. De um lado, ela se "liberta" de um "destino" traçado antes mesmo de seu nascimento, pois ela não é a Wallis que viveu ao lado do seu príncipe até o fim da vida. Por outro lado, é essa libertação que a permite atuar sobre seu próprio destino, construindo-o com seus próprios desejos, e não os de seus pais. 

O tema é interessante por nos mostrar o "peso" gigantesco que o desejo dos pais pode ter sobre uma criança que, para defender-se, segue o caminho da patologia. Pior, tal desejo dos pais, herdado de forma incondicional e sem negociação obscurece nossos próprios desejos e até a percepção de que já podemos estar vivendo nosso próprio conto de fadas, mesmo sem nos darmos conta disso. E, isso tudo ainda agravado pelo fato de, culturalmente, teimarmos em esperar que um suposto destino se revele esplendoroso sobre nossas vidas.

Não! Não é assim. Contos de fada são criados para amenizar nossas tragédias, mas não podem se transformar em rígidos modelos de identificação. Pelo contrário, é em meio às tragédias de nossas vidas que vamos delineando um caminho que, muitas, vezes, é o nosso próprio "conto de fadas". Basta, as vezes, olhar atentamente para os lados... e perceber, e sentir. Ao final, o conto de fadas se realiza sim, de alguma forma, se realiza. Mas aos olhos de quem o enxerga.

Mais do que o romantismo em si, me parece este um dos principais recados do filme. A cena final é um ato psicanalítico muito interessante. A despedida entre as duas Wallis é a despedida de nossa Wally de sua própria obsessão. Um bom filme, gostei!

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

"O Sétimo Selo" e o medo do vazio (morte)

São tempos difíceis. Guerras devastam as terras. As pessoas estão frágeis e doentes. É quando nosso cavaleiro recebe a visita da "morte". Ela veio buscá-lo, mas ele diz que se seu corpo está pronto, sua alma ainda não está. Ele quer ficar um pouco mais e propõe um jogo de xadrez para ter uma pouco mais de vida. 

Trata-se de “O Sétimo Selo” (I. Bergman, 1956, com Max Von Sidow). Uma partida de xadrez, desde o início fadada ao fracasso, afinal, como se pode vencer a morte? De qualquer forma, ele a enfrentará pois quer continuar vivendo. Mas, a questão é: continuar a viver para que? Em meio à disputa essa questão vai aflorar em um momento de confissão de nosso cavaleiro.
“O vazio é um espelho que reflete meu rosto. Minha própria imagem me causa repulsa e medo. A indiferença que eu sinto pelo próximo me levou ao isolamento. Agora eu vivo em um mundo de assombrações, prisioneiro das minhas próprias fantasias... O conhecimento... é tão inconcebível tentar compreender Deus? Por que ele precisa se esconder por trás de promessas vagas e milagres invisíveis? Como podemos ter fé, se não temos fé em nós mesmos? O que será de nós, que queremos acreditar, mas não conseguimos? E daqueles que não querem ou não podem acreditar? Por que não consigo arrancá-lo de dentro de mim? Por que persiste em viver em mim dessa forma tão dolorosa e humilhante, apesar de eu amaldiçoá-lo e tentar arrancá-lo de meu coração? Por que, apesar de ele ser uma falsa realidade, eu não consigo me livrar dele?... Eu quero conhecimento! Eu não quero fé ou suposição, eu quero conhecimento! Eu quero que deus estenda a mão para mim, mostre seu rosto e fale comigo... Eu clamo por ele na escuridão, mas parece que não há ninguém lá... Então a vida é um terror sem sentido. Ninguém consegue tolerar a morte sabendo que não há mais nada... temos que idolatrar nosso medo e chamá-lo de Deus... Minha vida se resumiu em buscas sem sentido, a ações e conversas tolas e vazias. Uma vida inteira sem sentido. Não digo isso com amargura ou discriminação, como tantas outras pessoas que também vivem assim. Mas eu quero usar esta trégua [conseguida pelo jogo de xadrez] para fazer algo que tenha significado. (Antonius Block, o cavaleiro)
Um trecho magnífico este. Como uma vida sem sentido, vazia, pode intensificar o medo da morte. Não é a morte, portanto, e em última instância, o "nada" que vem após ela, que causa medo e repulsa. É o olhar-se no espelho e ver que a vida seguiu sem um significado. É este medo que nos espanta, que nos assusta. 

É na ânsia de escapar a este medo que projetamos nossas esperanças. Esperanças de felicidade, de uma vida eterna, de um paraíso que venha a nos compensar por tantos erros. Mas, ainda assim o medo persiste. O espelho de hoje me impede de aceitar a morte.

Outro aspecto interessante deste trecho é a tentativa de se usar da racionalização (e do conhecimento) para se tentar entender um sentimento que Freud, apesar de ter dúvidas sobre ele, o situava num nível muito primário de nossa vida, o "sentimento oceânico" que nos move em direção à esperança da existência de um Deus que nos proteja, finalmente, e que não conseguimos, jamais, "explicar".

Vai ficando claro para nosso cavaleiro que não se pode vencer a morte, mas pode-se deixar de temê-la, dando-lhe também um significado. É esse significado que muitos dizem ser impossível dado o seu papel avassalador e destruidor. Mas, é preciso pensar melhor sobre isso, pois podemos muito bem lidar com nossa finitude. Temos um fim, isso é fato, mas não é isto que nos define, e sim o que fazemos e sentimos. Mas, é difícil esse lidar com a morte. Daí nossas infinitas indagações, como as do nosso cavaleiro.

- (morte) Você nunca vai parar de fazer perguntas?
- (cavaleiro) Não! Em tempo algum.
- (morte) Mas não terá respostas.

Não cansamos em querer entendê-la... e temê-la. Diante de uma cena dramática, a da morte de uma camponesa na fogueira, as interrogações continuam:

- (escudeiro, referindo-se à moça queimada viva) O que ela vê? Pode me dizer?
- (cavaleiro) Ela já não sente dor.
- (escudeiro) Quem vai olhar por ela? Os anjos? Deus? O Diabo? Ou apenas o vazio?
- (cavaleiro) Não pode ser
- (escudeiro) veja os olhos dela. Ela parece estar descobrindo algo.  O vazio!
- (cavaleiro) Não!
- (escudeiro) Estamos indefesos. Pois vemos o que ela vê e tememos também.

A presença da morte é tão intensa no filme como, por vezes, em nossa vida. Mas, o filme nos deixa algo a pensar: Por que temer tanto a morte se podemos levar a vida com mais pureza e leveza, fazendo da "arte" aquilo que, também, nos dá sentido? Sim, a arte tem um papel importante no filme. 

A resposta talvez seja não tentar vencer a morte, mas viver com maior felicidade, quase que num estado de "ingenuidade". A racionalidade não nos fornecerá armas adequadas para vencer a morte, mas a leveza nos manterá tranqüilos e confiantes de ter encontrado um "sentido" para a vida. Só isto esvazia o sentido do “vazio” e do medo que ele nos impõe.

Nos dias atuais, quando a meta é ser "imortal", quando o maior objetivo é parecer sempre "jovem", estamos cada vez mais distantes da leveza e da tranqüilidade, e isso é devastador. Não só estamos perdendo a batalha do xadrez para a morte, como estamos deixando de viver. O filme é clássico, afinal, a questão da morte não se desatualiza. 

Não é o suposto "vazio" trazido pela morte que mais nos assusta, mas o vazio que permitimos em nossa vida.

O conceito de Falso Self (D. Winnicott)

Este post foi escrito a partir do rascunho inacabado de uma palestra proferida por Winnicott no All Souls College, Oxford, para o grupo "Crime - um desafio", em 29.01.64. O rascunho está publicado em "Tudo Começa em Casa" (Martins Fontes, 1996, p. 51-54), e nesta palestra Winnicott aproveitou para, mais uma vez, destacar os conceitos de verdadeiro e falso self

Trata-se de uma "divisão" que todos nós possuímos (e ele pôde detectar em seus pacientes) e que nos permite dizer que "todos somos doentes" e, ao mesmo tempo, que "as pessoas doentes são saudáveis". Ou seja, é da divisão que muitos processos patolóigicos surgem, mas é a divisão que nos torna "normais". Dessa forma, segundo Winnicott:
cada pessoa tem um self educado ou socializado, e também tem um self pessoal privado, que só aparece na intimidade. Isso é comum e pode ser considerado normal (p. 52).
Trata-se de uma divisão, uma cisão na mente que, em seu grau mais profundo, gera a esquizofrenia. A sociedade, segundo Winnicott nos exige altos graus de concordância e adaptação, e aceitamos o fato diante das perspectivas de obter vantagens. 

Por exemplo, ensinamos as crianças a dizer "obrigado", por polidez, e não necessariamente porque a criança o quer dizer. Ou seja, de alguma forma esperamos que as crianças sejam capazes de mentir, aceitando as convenções para uma administração da vida. Parece ser o preço a pagar pela socialização. É nesse contexto que muitas crianças vão começar a achar a vida difícil devido à 
necessidade que têm de estabelecer e restabelecer a importância do verdadeiro self em relação à tudo o que seja falso (p. 54). 
O que Winnicott quer dizer é que, embora sejamos capazes de fazer concessões diariamente à sociedade, podem existir áreas que consideramos especiais e não aceitamos fazer concessões
Na área escolhida não há lugar para concessões (p. 54).
Podemos resumir dizendo que a sociedade impõe regras que devemos aceitar, consentir. Tais concessões levam à socialização e à construção de um falso self. É esse falso self que, por vezes, contrasta com o self verdadeiro, aquele que mantém nossos desejos, que é de nossa privacidade. Nessa luta, estamos todos, e a todo instante, envolvidos.